Velas Içadas


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Velas Içadas é uma canção de Ivan Lins e Victor Martins e está no álbum de 1979 chamado A Noite. Velas Içadas diz assim:

SEU CORAÇÃO É UM BARCO DE VELAS IÇADAS / LONGE DOS MARES, DO TEMPO, DAS LOUCAS MARÉS / SEU CORAÇÃO É UM BARCO DE VELAS IÇADAS / SEM NEVOEIROS, TORMENTAS, SEQUER UM REVÉS

Os artistas usam o barco como metáfora para falar de um coração que nunca se lançou, que ainda não se aventurou nas ondas dos mares de amor. Um coração que nunca se aventurou apesar das ‘velas içadas’, ou seja, apesar de preparado e pronto para navegar, prefere permanecer naquele mesmo lugar, num porto ou num cais, distante das tormentas, longe dos mares, do tempo, das loucas marés. A canção continua:

SEU CORAÇÃO É UM BARCO JAMAIS NAVEGADO / NUNCA MOSTROU-SE POR DENTRO, ABRINDO OS PORÕES / SEU CORAÇÃO É UM BARCO QUE VIVE ANCORADO / NUNCA ARRISCOU-SE AO VENTO, ÀS GRANDES PAIXÕES

O coração é descrito como um barco que, mesmo diante das possibilidades, dos mistérios e das aventuras de imensos mares e oceanos, de águas e marés, de ventos e tempestades, de sóis e de luas, de belezas e calmarias, de silêncios e canto de pássaros, de surpresas e imprevistos, que mesmo diante de inimagináveis possibilidades, escolheu manter-se fechado e ancorado evitando, assim, o risco. Existem perigos nas experiências. Toda experiência carrega algum perigo. Vitor e, sobretudo, Ivan podem estar falando dos perigos e riscos que envolvem as grandes paixões, parecem estar falando daquilo que dá mais sabor à vida. Assim, ‘nunca soltou as amarras, nunca ficou à deriva’ pode dizer de uma vida contida onde uma certa obsessão por segurança e certezas dificultam, para não dizer impedem, experimentações. Falo aqui de experiência não como o acúmulo do tempo cronológico, não como acúmulo de saberes específicos, mas a experiência compreendida como aquilo que se experimenta, como experimentação e, no limite, como viver uma vida em intensidade, na potência, naquilo que a vida pode.

NUNCA SOLTOU AS AMARRAS / NUNCA FICOU À DERIVA / NUNCA SOFREU UM NAUFRÁGIO / NUNCA CRUZOU COM PIRATAS E AVENTUREIROS / NUNCA CUMPRIU O DESTINO DAS EMBARCAÇÕES

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. Diante da imensidão do mar, o barco precisa de orientação. Astrolábio, bússola, mapas, cartas náuticas, o GPS, radares e computadores garantem a chegada a um destino. Navegar é, portanto, necessário: marinheiros e aventureiros têm necessidade de navegação, ambicionam o desconhecidos, não conseguem ficar muito tempo em terra. Viver, por sua vez, não tem precisão, viver é incerto, viver é arriscar-se. Sem isso a vida pode parecer oca, a vida parece ficar sem sentido. Inerte, parada, ancorada, a vida parece insossa, inerte, desvitalizada e a consequência é a perda da esperança, opacidade da alma, adoecimento do corpo, enfraquecimento dos sentidos. Abrir mão de olhar, ouvir, cheirar o mundo, de tocar e se deixar tocar pelas belezas do mundo, impermeabilizar a pele para o mundo e suas belezas é tornar a humanidade fraca. É como vestir uma armadura, vestir uma capa para se proteger da chuva, do vento, da alegria-destino das embarcações. E, de tão protegidos, deixamos de viver ao ponto de aceitar qualquer coisa como arte, aceitar qualquer coisa como vida, aceitar qualquer coisa como amor.

Ivan Rubens



Igarapé das mulheres (parte II)

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Osmar Jr é um artista brasileiro. Nortista de Macapá, é cantor, compositor, poeta, na constelação da música popular amapaense. Iniciou seus estudos musicais aos 14 anos de idade. A canção "Igarapé das Mulheres" diz assim:

O tempo leva tudo / O tempo leva a vida / Lá fora as margaridas fazem cor / Eu lembro a alegria / Boiar naquelas águas / E ver as lavadeiras lavando a dor / E lavavam a minha esperança perdida / De crescer lá no igarapé / E lavavam o medo que tinha da vida / E agora o meu medo o que é?

“Igarapé” está no título, "tempo" inicia a canção. Se igarapé é uma espécie de rio, podemos associar rio e tempo. Rio tem fluxo, tempo tem fluxo. Rio passa, tempo passa. Se o tempo passa, a vida passa. É feito um rio: flui. Rio flui, vida flui. Quantas vezes não nos pegamos pensando: "se eu pudesse voltar no tempo, faria diferente". Mas isso não é possível. Então, “o tempo leva tudo, o tempo leva a vida”. O artista fala de um tempo de alegria, boiar naquelas águas, brincar no igarapé ali mesmo onde mulheres lavavam as roupas, onde margaridas fazem cor. Linda a imagem trazida pelo poeta. A canção continua…

A minha nave, um tronco navegava / As estrelas, entre as palafitas / E as lavadeiras / Nas minhas aventuras, Poraquê / Pirarara, Piranha Peixe-Boi, Boto, Igara / E lavavam a minha paixão corrompida / As mulheres do igarapé / As Joanas, Marias, deusas, Margaridas / Lavarão o que ainda vier

O artista continua nos apresentando paisagens: um tronco que navega levando o artista a uma viagem imaginária, estrelas brilhando, palafitas, lavadeiras. Podemos imaginar mulheres, os pés molhados de igarapé, cantando enquanto lavam roupas, panos, toalhas etc. Peixe elétrico, pirararas, piranhas, bichos perigosos e encantados pela poesia. Quem seriam as mulheres que lavam a paixão corrompida?
Joanas, Marias, deusas, Margaridas. Se Margaridas, mulheres. Mulheres-flores.

Osmar fala de uma paixão corrompida que foi lavada. Mas o que seria uma paixão corrompida? paixão corrompida pode ser compreendida como uma paixão contaminada, paixão estragada, subornada. Paixão destruída, paixão que foi maculada por alguma força de repressão, alguma força de negação. Numa perspectiva mais alegre, podemos pensar que a paixão está sendo restaurada. Sobretudo se considerarmos que a paixão foi lavada pelas mulheres do igarapé. Dada a extraordinária das mulheres e das flores, e da água do igarapé (palavra musical), a corrupção realizada na paixão foi lavada e, não bastasse, o artista sabe o risco permanente que a paixão está submetida. A paixão está ameaçada pela corrupção do mundo humano, das forças que corrompem a paixão ontem, hoje e sempre. Há paixões corrompidas que esperam ser lavadas para virar paixão renovada, e, neste processo de estragar a paixão e reapaixonar, podemos usar a palavra reencanto. Cantar e reencantar, com todos os riscos da corrupção humana.

Corromper a paixão pode ser compreendida como estragar uma paixão. Quem nunca? errar e desejar que o tempo volte para seguir por outros caminhos. Mas foi, e o tempo não volta. É como rio que flui da nascente até a foz, a vida flui do nascimento até a morte. Princípio, meio e fim.


Ivan Rubens

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 6 de agosto de 2024





Tempo com você

 Tempo com você

(Cláudio Bolão e Ivan Rubens)



Quero te levar pra conhecer

o amanhecer, ver o sol nascer

Mas que dia lindo

É você sorrindo


O vento assanhando teus cabelos

o seu olhar perdido em tom de apelo

Na aurora então, surge uma paixão


Quero é provar o teu sabor

deliciar o puro mel da flor

Onde o dia é mais puro

e o tempo é mais seguro


Vamos nos deliciar nesse prazer

da nascente até o entardecer

Mais um dia de domingo

ver o teu rosto sorrindo

Felicidade é ter tempo com você


Quero te levar pra ver o mundo

quando a vida passa num segundo

chove agora, então

Macapá, Carvão


Vamos nos deliciar nesse prazer

da nascente até o entardecer

Mais um dia de domingo

ver o teu rosto sorrindo

Felicidade é ter tempo com você


Maré cheia

Maré cheia

(Claudio Bolão e Ivan Rubens) 


uma criança pés na areia
olhos para o rio
imenso e misterioso rio
uma criança pés na areia
olhos para o mar
imenso e misterioso mar

Uma criança brincando na areia
pulando as ondas, virando sereia
É maré cheia
Uma criança brincando na areia
pulando as ondas, virando sereia
É maré cheia

Uma criança entrando na mata
colhendo maracujá,
brincadeira, taperabá.
Uma criança entrando na mata
colhendo burití,
brincadeira, uxí, bacurí.

Uma criança, uma meninota,
o tempo passando outra vida que brota
É maricota.
Uma criança, uma meninota,
o tempo passando outra vida que brota
É maricota.

(solo longo)

Uma criança brincando na areia
pulando as ondas, virando sereia
É maré cheia

É maricota

É mar e flora
É maré cheia

Um voo mais bonito

(Claudio Bolão e Ivan Rubens)


Depois de refutar a si próprio pensando no sonho de igualdade, e um canoeiro vencendo a força do majestoso rio Amazonas com seu remo em punho...
Das terras tucujus onde a floresta é diversidade pura, diferença pura em perfeita harmonia
Assim como o açaí e farinha d'água com peixe ou camarão
Assim como o queijo com goiabada que chegam de fora contribuindo com a diferença e a harmonia
Tudo isso que a vida nos oferece de beleza e alegria,
Natureza viva...
em respeito a tudo isso, em respeito a todos e todas nós, um sonho de igualdade em direitos e oportunidades.... Um voo mais bonito



Lá na margem longa, cotovelo de um rio
no encontro de horizontes
no céu puro, uma fonte a me desaguar
Avisto_o revoar
Avisto_o revoar
Há norteador de coragem
quanta certeza dentro desses corações
No voo mais bonito, como alcançar?
Vem nos acordar
Vem nos acordar
no despontar do sol a cada manhã
toda verdade ali, naquela alvorada de passarinhos
Que sejamos gaivotas
sejamos pardais
que sejais curruíras, curió, tanto faz
de pluma branca, mestiça, amarela
nós somos iguais.
Que sejamos gaivotas
sejamos pardais
que sejais curruíras, curió, tanto faz
Cantando, voando, horizontes abertos
nós somos iguais.

(Cláudio Bolão e Ivan Rubens)

Igarapé das mulheres (parte I)


Inicio a primeira parte deste texto com uma afirmação: cada palavra é um mundo! Se você conhece o museu da língua portuguesa na capital paulista, ouviu uma frase que é repetida como um refrão: "penetra surdamente no reino das palavras, penetra surdamente no reino das palavras, no reino das palavras, das palavras"... Trata-se do fragmento de um poema de Carlos Drummond de Andrade:

Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (…) / Chega mais perto e contempla as palavras. / Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra / e te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível, que lhe deres: "Trouxeste a chave?"

Para Drummond, cada pessoa carrega (talvez dentro do coração) a chave para entrar no reino das palavras, lugar onde estão os poemas que ainda não foram escritos. O poeta te convida para chegar mais perto, te convida para contemplar as mil facetas das palavras. São faces secretas, facetas escondidas debaixo de uma face aparentemente neutra. Mas as palavras não são neutras, as palavras não são neutras! Por algum motivo meu inconsciente me coloca neste poema do Drummond com uma outra palavra. No lugar de ‘reino, sempre vem a palavra ‘mundo’. Inconscientemente, ‘mundo’ substitui ‘reino’. Na minha leitura mais íntima fica assim: penetra surdamente no mundo das palavras. Penetra surdamente no mundo das palavras, no mundo das palavras, das palavras... Desatento, aquele estado que o inconsciente (danadinho) se manifesta, troco ‘reino’ por ‘mundo’. Gosto dessa manobra inconsciente. Particularmente, gosto mais de mundos do que de reinos. Reino pressupõe um castelo com uma porta imensa, rodeada de soldados, trancas e chaves. Mundos talvez não tenham portas, nem trancas, nem soldados, nem chaves. Pelo menos os mundos aqui imaginados.

Que bom poder imaginar livremente... imaginar mundos abertos, sem portas nem chaves, nem grades de todo tipo, grades físicas como aquelas que protegem janelas das casas nas cidades, tampouco as grades que limitam nossa capacidade de pensar, grades que estão dentro das cabeças, grades que impedem o corpo de sentir, o coração de sentir, grades não físicas mas, por assim dizer, grades imateriais, grades subjetivas.

Uma palavra muito presente na Amazônia e no Pantanal, tem uma sonoridade adorável: Igarapé. A palavra foi adotada do tupi e significa literalmente "caminho de canoa", dada a junção dos termos ‘ygara’ (canoa) e ‘apé’ (caminho). Lindo, não? Na língua Tupi, igarapé é "caminho da canoa"! Podemos dizer que igarapé é um curso d'água constituído por um braço longo de rio ou canal. Apenas pequenas embarcações, como canoas e pequenos barcos, podem navegar pelas águas de um igarapé devido a sua baixa profundidade e por ser estreito.

Na cidade de Macapá/AP, o Igarapé das Mulheres lança suas águas no rio Amazonas, e recebe influência do rio Amazonas. No próximo artigo você conhecerá a canção ‘Igarapé das Mulheres’. Até lá.

Ivan Rubens


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro/SP, edição de 9 de julho de 2024

Mu-dança

 



Quando me sentei para escrever esse texto, pensava no tema da ‘mudança’. Não uma mudança de casa ou de endereço, mas num movimento, algo parecido com uma dança. Foi quando pintou uma canção do Gilberto Gil.

Entre 1989 e 1992, Gil foi vereador na cidade de Salvador/BA. Interessante pensar um artista da potência criativa do Gil cumprindo as tarefas típicas de um vereador numa grande cidade, uma rotina de comissões, sessões plenárias, audiências públicas, parlatórios, rotina de um parlamentar. Um artista da música trabalha com palavras, com a estética das palavras, um parlamentar trabalha com a objetividade (ou obscuridade) das palavras. Ambos têm na palavra sua matéria prima. De 1989, a canção ‘O eterno deus Mu dança’ diz assim:

Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá / Sente-se que a coisa já não pode ficar como está / Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar / Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar: / “A gente quer mu-dança / O dia da mu-dança / A hora da mu-dança / O gesto da mu-dança”

Gil fala da moçada descontente, de uma massa gritando por mu-dança. A canção continua:

Sente-se – e não é somente aqui, mas em qualquer lugar: / Terras, povos diferentes – outros sonhos pra sonhar / Mesmo e até principalmente onde menos queixas há / Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está / Clamando por mu-dança / O tempo da mu-dança / O sinal da mu-dança / O ponto da mu-dança

É como se o fermento ainda executasse o seu trabalho de crescer a massa do pão. Terras e povos diferentes querem sonhar outros sonhos, reivindica-se o direito de sonhar por si, sonhar outros sonhos coletivos como fazem muitos povos indígenas. A canção sugere que algo ainda desconhecido se move no subterrâneo das cidades, em setores da sociedade, no inconsciente das pessoas e das comunidades. Note que até aqui Gil escreve ‘mu-dança’.

Quando da composição ainda no século passado, Gil “pensava em Lemúria, uma região pré-Atlântica de onde ter-se-ia originado a raça negra”.

Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar / O deus Mu dança! / O eterno deus Mu dança! / Talvez em paz Mu dança! / Talvez com sua lança (...)

Uma canção que celebra a mudança não poderia ser fixa, estática, imóvel. Em Gil, as palavras dançam, o texto dança, ele dá movimento. Desloca um grito por ‘mudança’ para ‘mu-dança’ chegando até ‘Mu dança’. E dá a Mu o status de deus, um deus que dança. Se deus, eterno. Então podemos, com o artista, celebrar a eternidade da mudança. Mudança enquanto condição, mudança desejável, mudança utópica como aquele horizonte que nos faz caminhar. Celebremos a mudança como abertura de horizontes possíveis, livres das amarras do certo/errado. Pelo contrário, aproveitemos as mudanças enquanto andanças, enquanto possibilidades de errar. E errando, nos movimentemos, caminhemos, mudemos, dancemos.

Quando me sentei para escrever esse texto, pensava no tema da ‘mudança’. Ao final desta escrita, sinto que alguma mudança aconteceu. Mudança, mu-dança ou Mu dança? Não sei. Aconteceu.

Ivan Rubens




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 11 de junho de 2024

Quero quero


bacana é ler o texto ouvindo a canção baixinho. 
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No final de semana de 17 de maio de 2024, um “quero quero” passou por Macapá. Foi um show, foram vários shows na verdade. Deize Pinheiro, a Pérola Azulada com Zé Miguel, o Jeito Tucujú com Val Milhomem e Joãozinho Gomes, numa verdadeira Farofa Tropical com Cláudio Nucci.

Paulista de Jundiaí, o artista Cláudio Nucci é cantor e compositor. No Rio de Janeiro em 1971, cursou o então segundo grau com Cláudio Infante, Mu Carvalho, Lobão e Zé Renato. Com este último integrou, em 1978, o grupo Boca Livre gravando canções como Toada (parceria com Zé Renato e Juca Filho), Quem Tem a Viola (parceria com Zé Renato, Xico Chaves e Juca Filho) e Sapato Velho (parceria com Mu Carvalho e Paulinho Tapajós). A canção Quero Quero (parceria com Mauro Assumpção) diz assim:

Ai, eu quero, eu quero tanto / Que você me aceite do jeito que eu sou / Muito inibido, recatado e tímido, puro de amor / Ai, eu quero, quero tanto / Que você me aceite do jeito que eu sou / Arrebatado, atirado, rápido, sem pudor

Quem não quer ser aceito? Chegar num lugar desconhecido, começar num trabalho novo, iniciar um curso são situações que nos colocam diante dessa questão. E isso acontece desde cedo: você se lembra do seu primeiro dia de aula? lembra das trocas de colégio, do primeiro dia de aula no ensino médio? da primeira vez que apresentou um trabalho na faculdade ou que falou em público? a ansiedade gerada por momentos deste tipo talvez carregue a expectativa da aceitação: o que irão pensar de mim? gostarão do que eu vou dizer? portanto, ser aceito pode causar certa expectativa e ansiedade. A canção continua…

Sempre nessa vida solta / Fazendo a gente se chegar / Ao encontro natural / Muito bom de se ficar

Os artistas apresentam um encontro natural, desses que você quer ficar, se demora nele, que você vai criando maneiras de adiar o fim. Então podemos pensar num encontro de corpos, um encontro de amor. Um desses encontros raros, raríssimos, onde caminhos se cruzam, onde pessoas se encontram na vida, quando uma pessoa passa por mim, passa por você, onde você passa por ela mas algo de ambos fica. Fica como uma semente colocada em solo fértil, germina, brota e gera outra vida. Um encontro meio óvulo e espermatozoide, um encontro onde ambos saem tão modificados que tornam-se um outro ser.

Ai, eu quero, eu quero tanto / Que você me aceite do jeito que eu sou / Descabelado, malucado, doido / Mas muito integrado nesse nosso amor

É possível fazer performances, malabarismos, gastar dinheiro visando à aceitação. A canção parece nos indicar algo muito simples e aí mesmo pode estar a beleza e a força dessa obra de arte: primeiro aceitação a si mesmo começando pelas próprias fragilidades, aceitando a precariedade humana, e depois indo na direção do outro carregando consigo qualidades e fragilidades, virtudes e ‘defeitos’, acertos e erros. E ao mesmo tempo, na pureza que o amor é capaz de produzir, uma pureza que gera a força necessária para se apresentar sem máscaras, inibido, recatado, tímido, arrebatado, atirado, rápido, sem pudor, descabelado, maluco, doido, se apresentar assim como se é ou como se está naquele momento da vida, uma espécie de colocar-se de peito aberto e de cara limpa e, aceito, integra-se e cuida dessa relação tão preciosa quanto delicada que é o amor. E viver momentos igualmente delicados e raros, quando sua cabeça está repousada no peito da outra pessoa, quando seu ouvido sente o coração do outro batendo tranquilo, aquele momento onde a simples presença viva do outro traz uma sensação maravilhosa de paz e tranquilidade. Muito integrado nesse nosso amor.

Ivan Rubens
19/maio/2024
#farofatropical #queroquero #claudionucci #macapá #bocalivre #mpb


Quero quero, Cláudio Nucci




Jatobá

 (introdução com o som dos jatobás)


O som da cachoeira vindo do Jatobá / Nasci na cordilheira desaguei no Guamá / Tesouro escondido que atrai o olhar / Banzeiro diferente, Araxá, Macapá.

Paisagem, simetria, coração por um fio / Poesia rabiscada, ensaiada num canto do Brasil


Lampejo, gravidade / estou saindo do chão / Vestindo um chapéu / de palha “azul confusão” / Na aba o mistério, tão intensa atração! / Maria que o diga, acordes desta canção.

Ensaio, fim de tarde, bossa, blue, um café / E eu tiro o chapéu, retiro meu chapéu só pr'aquela mulher


É nessa onda carimbó, marabaixo / que eu saio pro mato sem pressa de voltar / Visto o chapéu azul que controla o tempo, / no preciso momento, à sombra do jatobá.


Cláudio Bolão e Ivan Rubens


Falsete da emoção

Falsete de emoção 


Pare na ladeira / descida traiçoeira / Mudança de Estação 

Em raios lancinantes / Manhã tão cintilante / torrente de paixão


Num cofre ali guardado / Um ponto iluminado / E pulsa o coração

Se abro a janela / Solfejo em aquarelas / Falsete da emoção


Se a noite ali está / um poeta a pensar  / Um acorde, um violão

Se o tempo não passar / Que não é de se  estranhar / o poder da criação


Seja do jeito que for / mas que seja uma canção / que toque a alma e dê sabor / que sapeca, o coração

Seja do jeito que for / seja lá o que Deus quiser / que agrade o coração / no peito de uma mulher



Cláudio Bolão e Ivan Rubens


Deixa chover, ô ô ô


A cidade de Belém/PA é conhecida por muitas coisas, inclusive pela chuva. Dizem que em Belém chove quase todos os dias sempre no final da tarde. Dizem que é comum as pessoas marcarem compromissos para depois da chuva: "nos encontramos depois da chuva". Uma pesquisa rápida apresenta várias cidades brasileiras onde a chuva ultrapassa os 3.000 milímetros no período de um ano, a maioria delas situadas na região Norte do Brasil. O ano de 2023 foi bastante chuvoso na cidade de Rio Claro/SP também: 1.837 milímetros.

Guilherme Arantes é um artista brasileiro, cantor e compositor, nascido na cidade de São Paulo no ano de 1953. A canção “Deixa Chover” começa assim:

CERTOS DIAS DE CHUVA / NEM É BOM SAIR DE CASA, AGITAR / É MELHOR DORMIR / SE VOCÊ TENTOU E NÃO ACONTECEU... VALEU! / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER

A cantora Vanessa Moreno diz que, quando era criança e tinha algum pedido negado pela mãe, tal negativa se justificava com a canção do Guilherme na voz materna: "Infelizmente nem tudo é / Exatamente como a gente quer". Aqui vemos um trecho bem pedagógico, desses que educa para a vida. Porque a vida nos ensina exatamente isso: nem tudo é exatamente do jeitinho que a gente quer. O nosso desejo é ilimitado, mas a vida nos coloca limites, o mundo nos coloca limites, a sociedade nos coloca limites. O tempo nos dá limites, as outras pessoas nos colocam limites. Nosso próprio corpo nos coloca limites. Tudo isso que nos dá limites, também nos dá possibilidades... A canção continua:

AS PESSOAS SEMPRE TÊM CHANCE DE JOGAR / DE NOVO E ERRAR / VER O QUE CONVÉM / RECEBER ALGUÉM / NO SEU CORAÇÃO... OU NÃO / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER

Que bom!!! poder errar e continuar tentando. A canção nos convida a pensar na errância, o erro livre do acerto, do certo em oposição ao errado, mas pensar e experimentar o erro como errância, e a errância como movimento. O movimento mesmo da vida, possibilidades de vida dentro do tempo determinado da vida, porque o corpo tem limites e a vida que habita um corpo tem fim, o fim determinado pela morte.

DEIXA CHOVER Ô Ô Ô / DEIXA A CHUVA MOLHAR / DENTRO DO PEITO TEM UM FOGO ARDENDO / QUE NUNCA VAI SE APAGAR

Fogo que arde no peito pode ser compreendido como a chama do desejo, da vontade. Desejo de viver, vontade de lutar pela vida, uma força que alimenta, que anima, que coloca nosso corpo na ativa. Mas tudo isso tem o limite inexorável da morte. A canção “Deixa Chover” estourou no Brasil em 1981 na voz do próprio Guilherme Arantes mas, para mim e para as minhas irmãs Graziella e Ivanessa, a canção fez sucesso mesmo na voz grave de um rioclarense que, violão no colo e bigode proeminente, cantava para as crianças embalando aquela década mágica de nossas vidas.

João Afonso Faglioni, nos encontramos depois da chuva.

DEIXA CHOVER Ô Ô Ô…




Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 16 de abril de 2024






Um Homem Comum


sobre Nietzsche, Peter Gast e Caetano Veloso


O baiano Caetano Veloso tem uma obra vastíssima. Você, certamente, conhece alguma canção deste artista baiano, talvez nem saiba tratar-se de uma canção de Caetano ao cantarolar. Neste texto vamos falar de uma canção pouco conhecida intitulada 'Peter Gast'. A canção está no álbum chamado UNS, de 1983, onde aparecem clássicos como o samba enredo É Hoje, como Eclipse Oculto e outras canções. A canção ‘Peter Gast’ começa assim:

SOU UM HOMEM COMUM, QUALQUER UM / ENGANANDO ENTRE A DOR E O PRAZER / HEI DE VIVER E MORRER COMO UM HOMEM COMUM / MAS O MEU CORAÇÃO DE POETA PROJETA-ME EM TAL SOLIDÃO...

Sou um homem comum.... O artista pode estar falando de si mesmo, mas se Caetano estiver falando de um eu lírico, ‘Sou’ pode ser qualquer pessoa. Assim ele nos empurra a pensar para fora do ego, para fora ou para além do sujeito, pensar sem sujeito. Então, ‘sou um homem comum’, sou uma mulher comum. Qualquer homem, qualquer mulher, apenas mais um, apenas mais uma, na multidão. Assim a canção começa nos convidando para um passeio pelo comunal, por esta dimensão daquilo que pode ser de todos, de todas, de cada um e cada uma, que ao mesmo tempo não é de ninguém. Mas (e sempre tem um mas...), um coração de poeta, mas a poesia pode projetar, a poesia pode lançar, a poesia pode ascender a alma, elevar o espírito, a poesia pode ampliar os horizontes, pode nos fazer voar. Um outro verso da mesma 'Peter Gast' diz assim:

NINGUÉM É COMUM, E EU SOU NINGUÉM. NO MEIO DE TANTA GENTE / DE REPENTE VEM (...) O PROFUNDO SILÊNCIO / DA MÚSICA LÍMPIDA DE PETER GAST

Mas (e sempre tem um mas), ninguém é igual, mesmo gêmeos não são iguais. Toda pessoa é singular, se faz na singularidade do percurso da vida.

ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST / PETER GAST, O HÓSPEDE DO PROFETA SEM MORADA / O MENINO BONITO, PETER GAST / ROSA DO CREPÚSCULO DE VENEZA / MESMO AQUI NO SAMBA-CANÇÃO DO MEU ROCK'N'ROLL / ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST

Você talvez esteja se perguntando: quem é esse tal de Peter Gast? de onde a inspiração para o artista criar a sua obra de arte? Acontece que Caetano Veloso estava muito interessado no filósofo alemão Friedrich Nietzsche, leu um livro a respeito da vida do filósofo e ficou fascinado com a personalidade de Johann Köselitz, igualmente músico e compositor, amigo de Nietzsche até o final de sua vida, que dedicou parte significativa de sua vida à amizade com seu ex-professor e sua produção filosófica e intelectual. A propósito do livro ‘Humano, demasiado humano’, Nietzsche dizia: “fundamentalmente, Gast foi o escritor enquanto eu fui apenas o autor”. Assim ficou conhecido Köselitz: Peter Gast.

ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST / PETER GAST

Composição: Gast pode significar ‘hóspede’, pode significar ‘visitante’ ou ‘convidado’. Um homem comum, um homem ninguém, um menino bonito, um músico e compositor que se fez conhecido na voz e nas palavras do amigo Nietzsche.



Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 19 de março de 2024







De volta pro Aconchego

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uma experiência 



Dominguinhos (José Domingos de Morais, 1941-2013) é pernambucano, sanfoneiro, cantor e compositor. Amigo de Luiz Gonzaga, sua formação musical passa pelo baião, bossa-nova, choro, forró, xote e jazz.

Dominguinhos e Luiz Gonzaga são artistas. Artistas são pessoas dotadas de grande sensibilidade, são pessoas à flor da pele. Artistas são pessoas que carregam dentro de si a energia da criação. Sem a criação, artistas talvez não conseguissem viver, talvez implodiriam. Trata-se do contrário: artistas são seres em explosão, seres em erupção. Imagine uma bexiga de festa infantil que explode quando cheia demais. Imagine um vulcão que dá passagem ao magma incandescente desde as profundezas da Terra para a superfície, derramando lava, a rocha em estado líquido. A imagem do vulcão nos ajuda a pensar como eu imagino que aconteça no corpo dos artistas: a criação como uma fervura que está nas profundezas da alma humana, que passa pelo corpo do artista e chega à superfície, que derrama no mundo sua beleza em forma de arte. Uma canção, por exemplo.

De Dominguinhos e Nando Cordel, a canção “De volta pro aconchego” diz assim:

Estou de volta pro meu aconchego / Trazendo na mala bastante saudade / Querendo um sorriso sincero, um abraço / Para aliviar meu cansaço / E toda essa minha vontade

O eu lírico fala da alegria de retornar a um lugar. Um lugar que, neste caso, pode ser uma cidade, uma casa, um lugar de aconchego. Ele chega trazendo na mala saudade, o desejo de um sorriso e um abraço. Um abraço como o lugar do aconchego. A canção continua…

Que bom poder tá contigo de novo / Roçando o teu corpo e beijando você / Pra mim tu és a estrela mais linda / Seus olhos me prendem, fascinam / A paz que eu gosto de ter

Contigo, "roçando o teu corpo e beijando você", indica ser o lugar do aconchego uma pessoa. Uma pessoa com o brilho da estrela mais linda, cujo olhar fascina, cuja presença produz um ambiente de paz. Afinal, “quando a gente ama, brilha mais que o Sol”, mas essa é outra canção (rs).

É duro ficar sem você, vez em quando / Parece que falta um pedaço de mim / Me alegro na hora de regressar / Parece que eu vou mergulhar / Na felicidade sem fim

Se é duro ficar sem esse lugar de aconchego (e é), por outro lado, acessar este lugar do aconchego é sentir uma felicidade sem fim, uma alegria eterna. Uma eternidade no sentido da ternura, da chama acesa, da vida que pulsa. E do desejo de mergulhar mais profundo, mesmo que um pouquinho mais profundo, num encontro potente, um encontro que significa um tempo e um espaço à parte, um tempo e espaço separado da rotina, separado do dia-a-dia, um tempo e um espaço para contemplação e sublimação. Sublimação como observar um amanhecer, um nascer de Sol, um ser novo que vem à luz do dia, ou um golfinho que salta nas águas, um boto, uma preguiça na árvore. Uma criança que pedala a bicicleta sem as rodinhas e sem as mãos de um adulto, que caminha pela primeira vez, uma criança desenhando ou lendo sozinha as primeiras letras. Uma castanheira na floresta amazônica. Comer fruta do pé.

Ivan Rubens
educador




Aconchego


Dominguinhos (José Domingos de Morais, 1941-2013) é pernambucano, sanfoneiro, cantor e compositor. Amigo de Luiz Gonzaga, sua formação musical passa pelo baião, bossa-nova, choro, forró, xote e jazz.

Dominguinhos e Luiz Gonzaga são artistas. Artistas são pessoas dotadas de grande sensibilidade, são pessoas à flor da pele. Artistas são pessoas que carregam dentro de si a energia da criação. Sem a criação, artistas talvez não conseguissem viver, talvez implodiriam. Pelo contrário, os artistas são seres em explosão, seres em erupção. Imagine uma bexiga de festa infantil que explode quando cheia demais. Imagine um vulcão que dá passagem ao magma incandescente desde as profundezas da Terra para a superfície, derramando em lava a rocha em estado líquido. A imagem do vulcão nos ajuda a pensar como eu imagino que aconteça no corpo dos artistas: a criação como uma fervura que está nas profundezas da alma humana, que passa pelo corpo do artista e chega à superfície, que derrama no mundo sua beleza em forma de arte. Uma canção, por exemplo.

Em parceria com Nando Cordel, a canção “De volta pro aconchego” diz assim:

Estou de volta pro meu aconchego / Trazendo na mala bastante saudade / Querendo um sorriso sincero, um abraço / Para aliviar meu cansaço / E toda essa minha vontade

O eu lírico fala da alegria de retornar a um lugar. Um lugar que, neste caso, pode ser uma cidade, uma casa, um lugar de aconchego. Ele chega trazendo na mala saudade, o desejo de um sorriso e um abraço. Este lugar de aconchego poderia ser um abraço? A canção continua…

Que bom poder tá contigo de novo / Roçando o teu corpo e beijando você / Pra mim tu és a estrela mais linda / Seus olhos me prendem, fascinam / A paz que eu gosto de ter

Contigo, "roçando o teu corpo e beijando você", indica ser o lugar do aconchego uma pessoa. Uma pessoa com o brilho da estrela mais linda, cujo olhar fascina, cuja presença produz um ambiente de paz.

É duro ficar sem você, vez em quando / Parece que falta um pedaço de mim / Me alegro na hora de regressar / Parece que eu vou mergulhar / Na felicidade sem fim

Se é duro ficar sem esse lugar de aconchego (e é), por outro lado, acessar este lugar do aconchego é como se tomado por uma sensação de felicidade sem fim, uma espécie de alegria eterna. Mas lembremos que eterno não é para sempre. Talvez seja e_terno no sentido de uma ternura, da chama acesa, da vida que pulsa. E do desejo de mergulhar mais profundo, mesmo que um pouquinho mais profundo, num encontro potente, um encontro que significa um tempo e um espaço à parte, um tempo e espaço separado da rotina, separado do dia-a-dia, um tempo e um espaço para contemplação e sublimação. Como observar um amanhecer, um nascer de Sol, ou mesmo imaginar o sol nascendo como se fosse uma criança, rompendo barriga da noite e trazendo a luz, a força, o calor e a alegria. Imagino que seja contemplar uma barriga que cresce, contar os dias em 40 semanas, ouvir o primeiro choro da criança que nasce.

Ivan Rubens

Cidades me habitam

Eu adoro Brasília

Vista de cima, a cidade tem o desenho de um avião.

É o Plano Piloto

No corpo do avião ficam os ministérios. Na cabine do avião fica a sede dos 3 poderes: executivo (Palácio do Planalto onde fica o presidente da república), legislativo (congresso nacional onde ficam deputados e senadores) e judiciário (o supremo tribunal federal). Isso que a TV mostra todos os dias

Já trabalhei em Brasília. Adoro a cidade.

Nas asas do avião são a asa sul e a asa norte. Casas, apartamentos, comércio e serviços.

Cidade cara demais. Museu a céu aberto, no corpo do avião, prédios são obras de arte.

Uma cidade linda e toda planejada. tudo feito da melhor qualidade. paisagem de rara beleza, se ha natureza é construída por mãos humanas. a natureza de uma certa humanidade.

uma cidade mto diferente das outras.

fazia um tempão q eu não vinha a Brasília. Vim na posse do Lula em primeiro de janeiro de 2023.

eu sinto saudade das cidades que eu conheço. E até das cidades que ainda não conheço eu sinto saudade. Sinto saudade de Barcelona e Madri. Sinto saudade de Sevilha. Sinto saudade de Lisboa. Sinto saudade do museu do Louvre em Paris, das ruas de Roma, até de Montevidéo, Caracas e Bogotá que estão pertinho eu sinto saudade. Sinto muita saudade de Havana. Cidades que ainda não conheço mas sinto saudade. Budapeste, Moscou, Pequim, Tokyo, Cidade do Cabo, Luanda, Nairóbi, Dakar, Lomé, Porto Novo, Lagos. Sinto saudade de Bombaim, de Kuala Lumpur, de Hanói. Se acaso conhecê-las, ainda sentirei saudade dessas cidades. Conhecer uma cidade é estar em contato com um pedacinho dela, um pedacinho de sua matéria. Passamos pelas cidades mas nunca conheceremos as cidades. E as cidades passam por nós em sua concretude e seu misterio. Portanto sentiremos saudade das cidades que nos habitam. 

Eu moro na cidade e as cidades me habitam. Morar e habitar, morar e habitar e conhecer. Uma busca eterna, uma busca com ternura.

rios, ruas e risos


Para quem vive na cidade, transporte e trânsito pressupõem rodas. tudo sobre rodas: caminhões, ônibus, carros, motos, bicicletas. Tudo transitando sobre estradas, ruas e avenidas, de asfalto ou chão de terra batida.

Imagine você um lugar onde rios são mais e maiores que as ruas. Ilhas onde carros não transitam, onde asfalto não faz lá muita diferença. Um lugar onde roda que mais interessa é a roda do carrinho de mão que transporta nos quintais e terrenos as bananas e mandioca. Imagine você um lugar onde a rua é menos importante que o rio. Um lugar onde o rio é mais importante que a rua.

Rio mais que rua

Rio maior que rua

rio mais importante que rua

Quando cheguei ao Norte do Brasil, ri muito disso: rio mais que rua.

Eu ria disso, ainda rio. Ainda rio disso: rio mais que rua.

Neste Norte do Brasil, pessoas e mercadorias transitam pelos rios mais que pelas ruas. Trânsito maior por rios que ruas.

rios são ruas

rios que são estradas 

rios ruas

rios estrada

Rios por onde transitam, por onde passam, por onde circulam pessoas e mercadorias. Tudo isso dá p ver porque estão passando por cima do rio. mas por baixo, dentro das águas, o que tem ? peixes, bichos, sedimentos, e histórias fantásticas. histórias de boto, de sereias, história do minhocão d'água, história de encantados. História da deusa que levou pela mão o homem para morar no fundo do rio.

Rios por onde passam catráias encantadas entre Brasil e França. Brasil indígena que vive dentro da água, de gente q toma banho de rio, vários banhos por dia para aliviar o calor. Vários banhos por dia para viver com o calor, para conviver na quentura. A França, famosa por seus perfumes, está na outra beira do rio Oiapoque.

Aqui no Brasil do hemisfério Norte, eu busco, eu procuro, me encanto em todo canto, rio. Eu rio, meu eu rio ri de gente que não gosta de rio.

Mergulho no rio

(M)eu rio

Eu rio

Rio como metáfora da vida. Rio e vida... rio passa, vida passa. Nem rio nem vida voltam atrás. Olhar atentamente para um rio é entender um pouco mais a vida, a fluidez da vida, o movimento da vida, a vida que passa. A vida que passa e não volta atrás. A vida sem o movimento da maré, a vida que passa como a areia que passa pela ampulheta e, ao final, repousa no fundo de terra.  


Ivan Rubens

Flor da idade

Suavidade 

sua idade, 

tenra idade. 

toda idade é tempo, 

tempo de flor


flor da idade

idade da flor

floridade

florada

mulher florada florida 

criança querida

nascida na Flórida

É só pensar…


O paraibano Chico César é cantor, compositor, escritor e jornalista nascido em Catolé do Rocha. Aos 16 anos de idade mudou-se para João Pessoa onde estudou jornalismo e fazia poesia de vanguarda no grupo ‘Jaguaribe Carne’. Aos 21 anos mudou-se para São Paulo onde trabalhou como jornalista e revisor de textos na Editora Abril. Na canção “Pensar em Você”, o artista diz o seguinte:

É só pensar em você / Que muda o dia / Minha alegria dá pra ver / Não dá pra esconder / Nem quero pensar se é certo querer / O que vou lhe dizer / Um beijo seu / E eu vou só pensar em você

Chico parece falar de um pensamento personificado: pensar em uma pessoa é sentir boas mudanças. Ele se deixa afetar por algo bom, algo que dá potência, algo que empurra para frente. Tais mudanças tocam o corpo subjetivo, tocam a alma, afetam a alma, “alma que é a parte invisível do corpo” como pensam alguns povos indígenas da Amazônia brasileira. Assim, Pensar em Você traz alegria, traz leveza. Pensar em Você potencializa, empurra. Pensar em Você faz decolar, desejo de céu imenso azul, desejo de voo. Pensar em Você faz… pensar. A canção continua:

Se a chuva cai e o sol não sai / Penso em você / Vontade de viver mais / Em paz com o mundo e comigo… / Em paz com o mundo e consigo

‘Vontade de viver mais’, lindo isso. Paulo Freire fala em “ser mais”, ou seja, ser não é a finalização de uma obra, nunca se é assim pronto e acabado. Mas de ‘estar sendo’, ‘ser sendo’ numa ideia de processualidade, ser na roda gigante da vida. Nesta perspectiva de ser em processo que pode nos levar a ser mais. Entendo que estudar, que cantar, que ler, que escrever (dentre outras coisas) pode nos levar a ser mais.

O filósofo Friedrich Nietzsche fala em “vontade de potência”, forças vivas que tendem à expansão, forças como constante superação, como ir além, como desejo de voo. Podemos falar de um ir além, além de si, ‘além do homem’. Podemos falar de superação, superar a si mesmo, mudar, transformar, criar uma outra forma. Outro jeito de olhar, outro jeito de ouvir, outro jeito de pensar. Pensar enquanto um exercício que leva a pensar mais e com mais potência.

Bom mesmo é poder pensar com liberdade. Pensar com as obras de arte, pensar com as canções em toda sua sabedoria popular, pensar com o pensamento de artistas populares. Pensar com a sabedoria do povo brasileiro. Tenho vivido a maravilhosa experiências de pensar com pequenos agricultores, com quilombolas e ribeirinhos no Pantanal matogrossense, com pequenos agricultores, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas na Amazônia setentrional, a maravilhosa experiência de conviver e, convivendo, pensar com eles e com elas. Pensar com quilombolas e ribeirinhos, extrativistas e pequenos agricultores… Pensar é pensar COM o pensamento de outras pessoas.

Sempre me pego “pensando em você”. É como o Sol que brilha, ilumina, aquece, traz o dia. É só pensar em você, é só pensar com você. Porque pensar, por mais simples que possa parecer, já é muita coisa.

Ivan Rubens

O que é o amor?


para ler o texto ouvindo a canção, clique aqui:  


Tem pergunta que pede resposta objetiva, tem pergunta que exige reflexão, tem pergunta que aparece como um convite para pensar, tem pergunta que faz pensar e sentir. Arlindo Cruz é um sambista carioca originário das rodas de samba do Cacique de Ramos. Em parceria com Maurição e Fred Camacho, Arlindo lança uma pergunta aparentemente simples mas muito complexa. A canção O QUE É O AMOR? começa assim:

SE PERGUNTAREM O QUE O AMOR PARA MIM / NÃO SEI RESPONDER, NÃO SEI EXPLICAR / MAS SEI QUE O AMOR NASCEU DENTRO DE MIM / ME FEZ RENASCER, ME FEZ DESPERTAR / ME DISSERAM UMA VEZ QUE O DANADO DO AMOR PODE SER FATAL / DOR SEM TER REMÉDIO PARA CURAR. / ME DISSERAM TAMBÉM QUE O AMOR FAZ BEM E QUE VENCE O MAL / E ATÉ HOJE NINGUÉM CONSEGUIU DEFINIR O QUE É O AMOR

A palavra amor, na língua portuguesa, pode significar afeição, compaixão, misericórdia, ou ainda inclinação, atração, apetite, paixão, querer bem, satisfação, conquista, desejo, libido. No popular, fala da formação de um vínculo emocional com alguém que seja capaz de receber o comportamento amoroso e enviar os estímulos necessários para manutenção e motivação do amor. Amar também tem o sentido de gostar muito.

Para Adélia Prado, o amor é a vitalidade. A filósofa e poetisa mineira diz mais ou menos assim: “quando se ama uma pessoa, cabe tudo, só não tem espaço para o tédio”. Vitalidade no sentido de animação, no sentido de energia vital, de vontade de viver mais. No contato, o corpo ganha leveza. O beijo derruba as máscaras e expõe olhos e alma, transforma tensão em riso. ‘No vinho está a verdade’, diziam os antigos romanos: a língua fica mais solta e a verdade aparece. Ouvi recentemente num quilombo no interior do Mato Grosso que “verdade é a palavra que nasce no coração”. Amantes estão despidos de preconceitos e pudores, amantes estão vestidos de sabores, cores, odores, enfim: amores. A canção continua….

QUANDO A GENTE AMA, BRILHA MAIS QUE O SOL / É MUITA LUZ, É EMOÇÃO O AMOR / QUANDO A GENTE AMA, É O CLARÃO DO LUAR / QUE VEM ABENÇOAR O NOSSO AMOR. 

Sol é estrela, Sol é um corpo celeste, Sol produz energia, Sol emite energia pelo espaço. Parte dessa energia é luz. Sol pulsa, Sol brilha, Sol é luz, Sol ilumina, Sol aquece, Sol anima. Arlindo Cruz associa a chama do seu amor ao brilho do sol. Sol brilha, Sol dá vida…

Um escritor carrega um sol desenhado na pele desde muito novo. Um desenho que pigmenta a derme, aquece, incendeia a alma e a vida. Sol tatuado no braço. Sol aquecendo o coração. Sol segue no horizonte, destino de uma caminhada sem destino, como diria o uruguaio Eduardo Galeano em suas ‘Janelas para a Utopia’. Sol no horizonte inatingível, como se estivesse do outro lado do mundo (e talvez esteja). O poeta uruguaio tranquiliza essa breve reflexão sobre o amor em altas temperaturas. Sob e sobre sol. Sol e amor são palavras que podem caminhar de mãos dadas porque Sol não apaga.

E para você, o que é o amor?  


Ivan Rubens

escritor ensolarado



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 28 de novembro de 2023


Arlindo Cruz, O que é o amor?


Um Jeito Tucujú

Pode ser uma experiência interessante ler o texto ouvindo a canção. Clique aqui: 


Dois artistas amapaenses, Val Milhomem e Joãozinho Gomes, criaram a canção intitulada Jeito Tucuju. A canção diz assim:

QUEM NUNCA VIU O AMAZONAS / NUNCA IRÁ ENTENDER A VIDA DE UM POVO / DE ALMA E COR BRASILEIRAS / SUAS CONQUISTAS RIBEIRAS / SEU RITMO NOVO / NÃO CONTARÁ NOSSA HISTÓRIA / POR NÃO SABER OU POR NÃO FAZER JUS / NÃO CURTIRÁ NOSSAS FESTAS TUCUJUS

Um rio produz erosões, retira e transporta sedimentos em seu fluxo natural depositando-os em outros pontos do seu curso; um rio transborda no período das cheias. Estamos falando do rio como ‘modelador da paisagem’ física. Jeito Tucuju fala do maior rio do mundo como modelador de paisagens de outros tipos. Para os artistas, o rio Amazonas é fundamental na vida de um povo. Mas que povo? Um povo de alma e cor brasileiras, um povo que tem um ritmo próprio e, subentende-se, não se deixar colonizar pelos dispositivos, pelos interesses, pelos produtos que, acelerando o tempo, retiram de nós o pouco tempo de que dispomos, e retirando-nos o tempo também retiram uma parcela de vida. Para eles, o rio Amazonas parece modelar um modo de vida, portanto, um ou vários povos. A canção continua:

QUEM AVISTAR O AMAZONAS NESSE MOMENTO / E SOUBER TRANSBORDAR DE TANTO AMOR / ESSE TERÁ ENTENDIDO O JEITO DE SER DO POVO DAQUI

O rio Amazonas é muito grande. E pode, espero, despertar em nós humanos (nos desumanos, quiçá nos inumanos) algum sopro de sensibilidade, de arte e de beleza. Sensibilidade para olhar e de fato enxergar, e se deixar tocar, de fato se deixar afetar pela imagem da lua cheia refletida nas águas. Nos dias quentes, se deixar afetar pela força dos raios de Sol iluminando as águas, esquentando, aquecendo... E ferve a verve do poeta modelando o poeta e sua poesia: obras de arte em processo. Há poesia nas conversas de pescador, há poesia nas conversas da floresta, poesia nas lendas, poesia nas histórias de boto, há poesia nas conversas de visagem. O rio como modelador de tantas belezas, modelador compreendido como força de vida e poesia compreendida uma estética nas falas.

Habitar o território do Amapá, transitar por ele, olhar as paisagens e as pessoas, as tradições, comer açaí com farinha, maniçoba, tacacá, peixe e camarão, taperebá, cupuaçu, caju, jambo, bacaba. Ouvir regionalismos como ‘égua, fôlego, disque’, expressões como: “a modo que tô mufina”. Ouvir o Marabaixo e o Batuque, ver as danças, estar no quilombo do Curiaú, estar nas ruas de Mazagão Velho/AP quando a Festa de São Thiago reconta desde 1777 as batalhas entre mouros e cristãos. Habitar o Amapá, transitar por ele, olhar para as paisagens e para as pessoas nos dá as primeiras pistas para entender o jeito de ser do povo daqui.

QUEM NUNCA VIU O AMAZONAS / JAMAIS IRÁ COMPREENDER A CRENÇA DE UM POVO / SUA CIÊNCIA CASEIRA / A REZA DAS BENZEDEIRAS / O DOM MILAGROSO

O rio nos atravessa, generoso. Somos feitos de rio, gente_rio, quem está vivo também é rio, não há separação. Encontrar o Amazonas é encontrar um Brasil singular.

Tucujús foram os primeiros povos indígenas a habitar o território onde se constituiu o estado do Amapá.

Ivan Rubens
Educador popular



Jeito Tucuju na versão do grupo Senzalas


Com Patrícia Bastos no programa Ensaio (TV Cultura)



Publicado no Jornal Cidade de 31 de outubro de 2023

Sobre escrever

Por Janaina Freitas Calado e Ivan Rubens



A escrita te escolheu

A escrita me escolheu

Escrevendo, te convido a escrever.

Vamos escrever juntos? Escrever pelo simples prazer de escrever.

Escrever sobre ESCREVER? 


Mas como? 

Você me escolheu para escrever ou foi a escrita que nos juntou para ela?

Será que já estamos escrevendo?


Talvez. Em comum temos o fato de escrevermos pela alegria de escrever. 

Não escrevemos pela obrigação, mas pela alegria.


Sim!! Já topei! O texto começou no convite.

Mas eu só escrevo o óbvio.


Não pretendemos escrever nada complexo, mas algo simples. 

Tão simples quanto o desejo que nos toma neste momento da escrita. 

Neste encontro inusitado que começou nas leituras de um e outro. 

É preciso dizer o óbvio, por mais que ele seja óbvio.

Mas um óbvio que salta aos olhos. 

Um óbvio que pode passar despercebido. 

Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?


Eu não sabia que sabia escrever.

Mas eu escrevia, e ainda escrevo, com amor.

Acho que o amor faz a gente transbordar em palavras o que sente,

aí, a gente escreve.


Escrevemos pelo simples prazer de escrever.

Escrevemos por uma escolha, 

mas não uma escolha nossa, 

não por uma escolha desse sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá… 

Mas por uma escolha modesta, 

Uma escolha que não foi nossa mas foi do texto. 

O texto que nos escolheu!!


É, acho que é isso.

Por isso escrevemos, porque não temos escolha.

Quando você dá fé, já saiu.

O dedo no teclado, a caneta no papel são mais rápidos em expressar nosso querer.


Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente. 

Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever.

Seja uma carta, seja uma dissertação

Seja um bilhete, seja uma tese.

Seja um texto, seja um livro.

Basta pensar, pensar, pensar, sentar e escrever.


Que coisa bonita de se dizer, 

Quero dizer, de se escrever!

“Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente”

Acho que tenho muita coisa enrolada dentro de mim, 

e quando escrevo, me sinto aliviada.

Eu tenho um monte de cartas escritas e não enviadas,

bilhetes de amor, textos não publicados, fragmentos que não servem de nada.

Escrever torna o pesado leve,

torna o superficial profundo.

É um suspiro de amor aliviado.


….Por fora da cabeça, os fios de cabelo podem estar lisos, 

podem estar cacheados, podem estar enrolados. 

Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados. 

Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas, 

dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado. 

Escrever é um jeito de desenrolar. 

Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue.


Mas realmente se a gente parar pra pensar assim, 

desse jeito que você me propôs,

fica tudo muito complexo mesmo. 

Até quando se escreve o óbvio.


O óbvio se torna óbvio depois de descoberto. 

Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é ‘não saber’. 

Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio,

Como transformar o óbvio num conjunto de palavras?

Porque mesmo óbvio tem uma complexidade.


E escrever é parte também

Pois de tudo que a gente vive, sente e experimenta, 

a gente só consegue expressar uma parte.

A parte que transborda na escrita.

Acho importante Ser Parte na escrita, 

Porque a escrita só se completa quando o outro ler

E quando o outro ler já não é mais o que a gente quis escrever, 

mas o que atravessou quem leu.


Entendo escrever como um processo de elaboração.

Os fios de cabelo enrolado ou os fios, 

as linhas enroladas são uma imagem do pensamento. 

No início, é uma massa disforme. Com nosso trabalho de elaboração, 

vai ganhando contorno, vai ganhando forma. Escrever é, entre outras possibilidades,

esse trabalho de elaboração, de escultura, de dar alguma forma.

Agora, o que o/a outro/a, leitor e leitora farão com o texto, aí é com eles.

Trata-se de uma experiência de liberdade: a liberdade de pensar.

Quando releio textos antigos, fragmentos abandonados, anotações esparsas,

sinto como se me encontrasse com alguém que eu já fui.


Eu também, esse encontro me causa sensações diferentes.

Eu tento entender o que eu estava vivendo naquela hora, para ter escrito aquilo. 

Aquele texto antigo me atravessa diferente.

Às vezes dói, dá saudade.

Às vezes dá orgulho e sinto esperança.


Quando sinto beleza em algo que escrevi

quando leio e sinto que ficou realmente bonito, 

isso me dá esperança. A beleza me dá esperança, 

uma esperança freiriana, uma esperança ativa.

E me faz escrever mais pois a beleza é forte

A arte, a beleza, a estética pode produzir uma nova ética 

A beleza é capaz de abrir possibilidades de uma nova sensibilidade 


Acho que a escrita é esperança.

Não é uma esperança parada, inerte, que espera o sol inevitavelmente se pôr. 

É uma esperança ativa, que faz acontecer o que a gente quer. 

Aí depois de ter muito feito, de ter muito agido, de ter muito escrito... 

Você espera…

Espera o alívio de ter desenrolado um pouquinho o nó que tinha na cabeça,

espera alguém ler 

e espera que aquilo faça algum sentido.

A escrita espera com esperança. 


A escrita nos moveu, nos escolheu

Éramos um, dois e, juntos, somos mais que três


Escrever é verbo, é o ato de pôr palavra com palavra. 

Por COM, com por. 

Compor.

Palavra que se abraçam, 

palavras de mãos dadas, 

palavras faladas,

palavras coladas, 

palavras contadas, 

palavras inventadas,

palavras caladas,

palavras vividas.

Palavras que vão se compondo, compondo frases.


O destino dos escritores

desembaraçar ideias

criar estratégias


Escritores amadores, criadores de possibilidades,

fazedores de convites, relógios

despertadores de interesses, de sonhos e desejos


O destino dos escritores

eternizar suas dores, temores,

saberes, sabores e amores.


Você ainda está aí?

Estou.

Estou escrevendo.

Às vezes, tenho dificuldades de parar de escrever

Será que alguém vai nos ler?


Talvez.

Mas agora isso não é mais conosco.

Espero que esta composição toque

toque cabeças e corações,

toque flautas e violões, 

e que faça alguém sorrir.


Quem escreve?


Dia desses, numa conversa com uma amiga professora e escritora, nos perguntávamos: quem é escritor? quem é escritora? e essa pergunta acende, ecoa, ascende, ressoa. E a conversa rolava: 

- Escrevemos pelo simples prazer se escrever. Escrevemos por uma escolha, mas não uma escolha nossa, não por uma escolha de um suposto sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá… Mas por uma escolha modesta, uma escolha que não foi nossa mas uma escolha que foi do próprio texto. O texto é quem escolhe.

- Ao sentar para escrever, não se pretende escrever nada complexo, mas algo simples. Tão simples quanto o desejo que nos toma no momento da escrita. Neste encontro inusitado que via de regra começa ou recomeça na leitura de outros textos, nesse encontro inusitado de ser e texto, texto e ser, tanto texto quanto escritores se fazem no processo da escrita. Parece óbvio e, por mais que ele seja óbvio, que salte aos olhos, pode passar despercebido. Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?

O óbvio se torna óbvio depois de descoberto. Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é não saber. Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio, como transformar o óbvio num conjunto de palavras? porque mesmo óbvio tem uma complexidade. Por fora da cabeça os fios de cabelo podem estar lisos, podem estar cacheados, podem estar enrolados. Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados. Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas, dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado. Escrever é um jeito de desembolar, escrever é um jeito de desenrolar. Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue. Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente. 

Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever. Seja uma carta, seja uma dissertação, seja um bilhete, seja uma tese. Seja um texto, seja um livro. Claro que cada texto tem seu rigor, uns tem o rigor acadêmico, o rigor científico, rigor metodológico, rigor temático. Rigor ético, rigor estético, rigor político. Rigor ético-estético-político. Escrever é também um exercício de liberdade, de libertação, de elaboração, é como se você tirando de dentro de si algo que nem mesmo você sabe bem o que é, liberando o espaço para começar tudo de novo. Algo que te tocou, algo que te atravessou, que te incomodou, algo que ficou em ti e, elaborado, já pode ganhar alguma forma e, saindo, liberar o espaço para começar tudo de novo.

No fundo é muito simples: deixar-se afetar pelo mundo, ler, pensar, pensar, pensar, sentar e escrever. Então, quem é escritor? quem é escritora?

Talvez seja mais fácil dizer quem não é. Não é escritor, não é escritora quem não escreve. Porque Escrever é inscrever-se. Então, quem escreve é...



alegria do samba

quando o samba me pega, é assim
entro na roda com pandeiro e tamborim
canto com uma alegria que 
que parece nunca ter fim

Quando o samba me chama, é de esquentar
entro na roda com o reco-reco e o ganzá
toco com a alegria que
parece nunca acabar

Quando ele me sacode, é pra balançar
caio no samba com o corpo querendo sambar
e danço com a alegria que
parece nunca terminar

o samba é alegria
o samba tem energia
é a melhor parte de mim
o samba é a melhor parte de mim

Ébrios, bêbados e loucos


Que sejamos nós os ébrios

Os que espalham, régios,

O mundano evangelho das esquinas!


Proclamemos, nós, sinais 

Do fígado das horas

E as canções profanas!


Não nos dobremos, nós

À putrefata voz do algoz

Que nos sublima!


Devoremos, sim, a vida

A sina, os dias, os anos

Intrépidos? Profanos!


Que sejamos nós os bêbados

que caminham, trôpegos,

As esquinas mundanas da cidade fria


Beberemos, nós, sinais

Do trânsito acelerado

E da vida q circula intensa.


Só nos dobremos, nós 

À marquise úmida 

Que nos abriga


Devoremos, sim, a vida

A sina, os dias, os anos

Artrópodes? Profanos!


Que sejamos nós os loucos

Os que empurram, poucos,

Carrinhos, papelões, amigos fiéis


Reclamemos, nós, sinais

Do muro alto que separa

E do portão que aprisiona


Só nos dobremos, nós

À beleza da arte

Que nos liberta


Devoremos, sim, a vida

A sina, os dias, os anos

Antropófagos profanos!



(Nuno Moraes e Ivan Rubens)

Fruta de rua

Feira?

Feira eu faço lá fora.

Fruta eu pego na rua. 

Figo não tem, 

mas tem mamão, jambo, cajú.

Manga tem de sobra, fartura açaí. 

Procurando bem tem acerola, goiaba,  talvez amora 

tudo com gosto de rua,

tudo pra coletar

coletar

Feira de fruta faço lá fora.

Feira de fruta faço na rua.


Ivan Rubens

Que mundo é esse?


ouça este texto na voz doce da professora Graziella Jordão Marcucci

clique no link acima para ouvir



Este texto tem como título: Que mundo é esse?

mas poderia ser: Um pouquinho por dia...



Nasce um bebê. É linda essa cena. O choro da criança aparece como um símbolo, como um grito: cheguei! Mas, cheguei onde? que mundo é esse?


Coloque-se no lugar do bebê. Você fica cerca de 40 semanas dentro de uma barriga, protegido, protegida, recebendo tudo que precisa para sobreviver. Até que um dia, você, bebê, sai da barriga e vai para o mundo. Mas que mundo é esse?


Um bebê não fala. Mas, se falasse, o que diria?

O que você, bebê, diria na chegada a este nosso mundo? 


Então você deixa aquele mundo de água, passa por um aperto danado, uma passagem estreita e é lançado/a para fora. Mãos te tocam, te enrolam em panos, dedo na tua boca, no teu nariz e teus olhos… E tem um choque térmico: se num hospital, certamente uma sala com ar condicionado em baixa temperatura, se numa aldeia na floresta provavelmente calor, muito calor. E seus braços se movem, pernas, mãos se movem, e coisas que você não conhece tocam no seu corpo, toalhas, paninhos, mãos, algodão. E um monte de ruído toca seus ouvidos, cheiros e tal, um mamilo encontra tua boca… o que te resta é sentir, sentir e sentir.


Ou seja, sua primeira relação com este mundo extra_uterino acontece nos cinco sentidos: audição, olfato, tato e, até, visão e paladar. Ouvidos, nariz, pele, e até os olhos e a língua são intensamente estimulados, mas você não tem palavras para dizer o que te acontece, ainda não tem linguagem, consciência, razão, isso virá com o tempo. Pelo menos não esta linguagem e esta razão que mobilizamos ao ler (e escrever) este texto. O que está operando em você, bebê, talvez uma experimentação intensiva. Você está nascendo para uma (muitas) vida(s) neste mundo. A primeira relação com este mundo fora do útero é sensível e, acredito, a sensibilidade pode ser cultivada durante a vida.


Tem uma palavra para dizer da “apreensão pelos sentidos”, dessa “percepção”. Estética deriva da palavra grega ‘aisthesis’, é uma forma de conhecer, de apreender o mundo através dos cinco sentidos. Uma música, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos ouvidos. Uma tela, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos olhos. Uma poesia, literatura, dança, ou o cheiro de uma comida, um prato bonito, o barulho da cerveja caindo no copo, o cheiro do vinho, a cor do suco da fruta colhida do pé, tudo isso vai criando um desejo. Estamos falando de um cultivo da sensibilidade que nos torna mais humanos, um pouquinho por dia. 


‘O contrário também sei que pode acontecer’: podemos cultivar sementinhas de medo e ódio, um pouquinho por dia. Acredito nas belezas como produtoras de sensibilidades e de uma humanidade mais interessante. Quero sugerir duas obras de arte: JEITO TUCUJÚ, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem, (hino popular do Amapá); e SABOR AÇAÍ, de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves, homenagem a esse alimento maravilhoso que é o açaí. A Música Popular Amapaense é um mundo de beleza e poesia. Um pouquinho por dia.


Ivan Rubens

Educador popular



JEITO TUCUJÚ, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem. Por Grupo Senzalas


SABOR AÇAÍ, de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves. Por Nilson Chaves.


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 8 de agosto de 2023.