Arte, ciência e professorxs nO coração da loucura

 Thu, 30 Sep 2021 in Fractal: Revista de Psicologia

clique aqui para acessar a revista Fractal


Ivan Rubens Dário Jr
Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v33i2/5761
Palavras-chave: arte, educação, encontro, experiência, loucura



Resumo

O presente Relato de Experiência Profissional pretende investigar um encontro formativo integrando professores/as de Artes com professores/as de Ciências na rede municipal de São José dos Campos/SP. Foi utilizado o longa-metragem “Nise – o coração da loucura” como sustentação para debater e refletir sobre as práticas realizadas nas escolas e salas de aula. O objetivo foi registrar a experiência desse encontro de professores/as, apresentando algumas falas que denotam deslocamentos na maneira como professoras e professores enxergam a relação professor-estudante e as diversas possibilidades pedagógicas de intervenção. O pensamento de Jorge Larrosa, Romualdo Dias, Gilles Deleuze e Nise da Silveira funciona como lente para nossa observação. Música e cinema como território comum para o movimento de pensamento do grupo e abertura de possíveis. Entre pincéis e picadores de gelo, a tentativa de um texto-fluxo permite perceber pontos de contatos entre hospital e escola; a vida entre forças de interdição e forças de expansão; estar em horário de trabalho coletivo na perspectiva do encontro e da experiência.

Dia das crianças na Escola

disponível também no spotify: podiquesti Andarilhagens

Narração de Sâmila e Jaine

narração de Rafael Bento



Era 12 de outubro. Para Jaquelline e Gabrielle, 12 de outubro é o dia das crianças. Poderia ser mais do que isso, mas o que interessa para elas é o dia das crianças. Jaquelline tem 9 anos e Gabrielle tem 6 anos de idade. A história que vamos contar aconteceu numa escola. Quando você lê a palavra escola, logo pensa em uma escola assim… dessas que ficam na cidade, entre muros e grades, afinal, é preciso ter muita segurança nesse espaço dedicado a estudantes. Dessas escolas com espaço delimitado para tudo: quadra, pátio, refeitório, parquinho, sala de aula etc. E tem hora pra tudo: bate o sinal, termina uma aula e começa outra, bate o sinal começa o recreio, termina o recreio. Corre pra merendar, corre pro xixi, corre pra sala. Aliás, quando eu uso a palavra sinal, talvez você pense num apito, numa sirene ou até numa música. Pois bem, mas nossa história aconteceu numa escola um pouco diferente.

Primeiro porque não é uma escola urbana. A escola de onde falamos fica na floresta. Uma escola sem muros e nem grades, sem separação entre o espaço da escola e o espaço da floresta. A escola de onde falamos tem uma proposta pedagógica interessante: pros dotô o nome é ‘pedagogia da alternância’, na comunidade é ‘escola família’. Na escola família, adolescentes e jovens ficam 15 dias direto na escola estudando juntos, dormindo e acordando, comendo e cuidando da escola. Podemos dizer que a escola de onde falamos é uma graaande família. Agora que você conhece um pouco da beleza de uma Escola Família Agroextrativista, uma escola integrada à comunidade, integrada à floresta, podemos voltar para nossa história.  

Era 12 de outubro. O almoço na Escola Família Agroextrativista foi muito especial, afinal era o dia das crianças. Jaquelline e Gabrielle não são alunas matriculadas na Escola, mas, sendo família, comemoraram na Escola. No almoço teve uma salada especial de legumes e folhas com temperos vindos do laboratório de produção de alimentos da própria Escola. Do mesmo laboratório vieram o açaí e a farinha de tapioca. Do igarapé vieram as proteínas: peixe, Tamuatá e Acarí, e camarão. Do laboratório de frutas veio o cupú para o suco natural. A pesquisa de alunos e alunas foi descobrir qual o cupuaçuzeiro com os frutos mais maduros para o suco ficar ainda mais gostoso. No final, a deliciosa mistura de castanha do pará e farinha de tapioca. Na Escola Agroextrativista, a floresta é um grande laboratório de experimentações, a floresta é sala de aula e a sala de aula é a floresta.

Mas a surpresa ainda estava por vir. Ceci, a monitora, fez uma pequena surpresa para Jaquelline e Gabrielle. Ceci chamou as pequenas e lhes entregou um presente do dia das crianças. Era uma banheira de bonecas. Agora as bonecas de Jaque e Gabi tomam banhos no igarapé ou na banheira quando quiserem. Mas a emoção de passar o dia das crianças na Escola Família Agroextrativista é indescritível.



Este texto foi escrito junto com Sâmila e Jaine, jovens escritoras do distrito do Carvão/AP, e contadoras de histórias.

Mazagão/Amapá - Distrito Do Carvão

Ivan Rubens, Sâmila como Jaquelline e Jaine como Gabrielle.

História real produzida pelos próprios personagens.


Reflexões pedagógicas produzidas na Escola Família Agroecológica do Macacoari - EFAM e na Escola Família Agroextrativista do Carvão - EFAC.



Do interior dos interiores: bastidores da laive


Aconteceu no dia 19 de agosto de 2022, o lançamento do livro Narrativas do Interior. Aconteceu em forma da laive. Laive é um neologismo desses tempos da jovem internete. Essa tal de internete que chegou chegando. Por mais incrível que possa parecer, sobretudo para os mais jovens, o mundo já existia (e até funcionava) antes da internete. A internete chegou chegando, mexeu, remexeu. Mexe e remexe, sacode, balança. Lança. Assim realizamos a laive de lançamento numa espécie de lançalaive, um lançamento em forma de laive. Lançamento e entrelaçamento de narrativas e interiores.


Tal acontecimento exigiu grande preparação. Para tudo dar certinho, afinal era muita gente envolvida, muita história, narrativas e interiores. Um jovem quilombola se experimentando escritor das narrativas colhidas desde menino numa terra encantada: o território quilombola do Vão Grande. 

Desconhecido

Des_conhecido

Des conhecido

Se_conhecendo

Conhecendo

Conhe_sendo

Sendo conhecido


Devagar vamos conhecendo esta terra e seu povo em ações de fazer(-se) comunidade, de “produção do comum” no dizer dos dotô, “que era tudo comum” no palavreado do quilombo. Aqui no território acompanhamos de perto a preparação da laive. A laive lança o livro, lança para o mundo um livro. Um livro que lança para o mundo as narrativas e, com as narrativas, narradores e narradoras, gente que conta causos, gente que faz coisas, gente que cria objetos e, ao criar objetos, cria gentes e modos de vida. Gente que luta, luta pela terra, gente que labuta, labuta pela vida.


Gente que faz viola de cocho, gente que toca viola de cocho.

Gente que faz ganzá, gente que toca ganzá.

Gente que dança e que reza, gente que preza seus santos e santas, gente de fé.

Gente que tece, gente que fia, gente que cria.

Gente que vive da terra, que cuida da terra, gente que traz gente para esta terra.

Gente que tira remédio das plantas

Gente que canta.

Gente que segura o céu, gente que segura na mão uma vida inteira:

e viva a parteira!!!

viva

viva


Gente que luta pelo rio

no calor e no frio

o rio onde o jaú quara na beira

luta de uma vida inteira

Rio livre, vivo e sem fronteira



Jauquara, o rio emoção. Apesar do frio.


Frio. 

Certamente o dia mais frio do ano aqui neste mato grosso e trêmulo de frio. 

Bom mesmo foi ribuçar na festa de aniversário do João Batista que aconteceu na casa do pai-véio Chico. Para este povo quilombola, o verbo ribuçar significa “ficar bem quentinho debaixo de roupa quente ou de cobertores”. Pensei em ribuçar na fogueira ali no barraquinho do terreno mas não posso usar este verbo. Então ficamos ali aproveitando o calor da fogueira mesmo e brincando com as pequenas Luiza e Maria. Ribuçar veio depois, debaixo dos cobertores do Programa Aconchego. Ahâã?


No dia e na hora marcados, estávamos lá. Tudo preparado, computador ligado e a internete funcionando. Caminhando do jeitinho que gostaríamos exceto pelo vento anunciado pela chuva do dia anterior e do frio mais forte do ano. 

Rio do frio

Frio, muito frio neste Mato Grosso.

Por mais incrível que possa aparecer, passamos frio no estado do Mato Grosso.


Até o último momento, Lindalva passava o café para receber parentes. Um livro que narra os interiores. Mas que interiores?


Os parente tudo chegando: Ditos, Tonhos, Clemente, Júnio, nenê…

Uma laive que lança interiores merece que os interiores estejam na laive. E estavam ali posicionados no plano da câmera. Ali no interior do buraquinho (da câmera), os interiores narrados nas Narrativas. 

Estavam ali: Dito 1000, Dito 400, Dito Baiano, Dito Vitor, Antônio, Claudenilson, Larissa, Ivo, Clemente, Francisco, Zacarias, Lindalva, Junior, Pedro, Mila e mais alguéns que talvez me escapem às memórias. Gente muito interessada, gente muito atenta aos acontecimentos do livro e da laive. Talvez um inédito inaugura aquele momento meio mágico, meio místico, meio mítico. Estávamos ali, pouca gente acostumada com laive, talvez apenas eu, Mariana Lacerda e Pedro Paulo porque certamente Pedro Silva, o escritor inaugural inaugurando uma lançalaive e se inaugurando nela. Posicionamos o lepitopi sobre a mesa de forma que o vento não prejudicasse a tela. Diante dela, Pedro Paulo, que assina Pedro Silva como reforço no esforço do nome carregamento das tradições e narrativas de interiores. Do lado direito, Lindalva, sua mãe. Do lado esquerdo, pai-véio Chico, seu avô.


De nossa parte, tudo começou em 2019, mais precisamente em 28 de abril como canta Dito Ilino, o Dito Ilino (Dito Baiano)

Renasceu entre as colinas / suas águas sem igual / cortando serra e montanha / com destino ao Pantanal / trazendo esperança e vida / para muitos corações / seu existir é uma herança pra futuras gerações

Rio Jauquara, Rio Jauquara / faço aqui minha homenagem pra essas águas que não pára / Rio Jauquara, Rio Jauquara / suas águas cor de anil / deixo aqui minha homenagem: 28 de abril. Deixo aqui minha homenagem: 28 de abril.


Muitos olhares atentos à tela e ao buraquinho de vrido que fica em cima dela, que os sabido chama de câmera. Dois olhares atentos aos muitos olhares: enquanto a laive rolava, Mariana, “nossa dotora devogada”, dedicada, observa as expressões, olhares e percebe lágrimas. Lágrimas contidas ou corridas. E percebe gente se fazendo rio, gente vertendo, vertedoura de fortes emoções em forma de lágrimas que, pingando, alimentam a terra e o lençol freático. Gente do território quilombola, gente território de passagem de afetos alegres que metabolizam a água do rio Jauquara em corpos afetivos e, na forma de lágrima, devolvem para o rio a água limpíssima, água emocionada:


“estou muito orgulhoso de tudo isso. Obrigado pra você que agora considero filho meu também, obrigado por ajudar esse meu neto a escrever esse livro que fala de nossa gente, de nossa terra, de nossa tradição. Hoje eu me sinto com o dever cumprido. Eu que nunca pensei em chegar tão longe nessa vida…” disse o seu Francisco.


A dotôra adevogada vê no olhar do seu Francisco muita emoção, respeito, carinho. Acho que pouca gente viu isso porque enxergar exige sensibilidade. Estava ali, tudo ali naquele rosto marcado pelo tempo, marcado pela vida. Seu Francisco, o pai-véio, fez versos para este momento especial. Sua canção diz assim:


Olha meu Pedro Paulo / esses verso é pra você / mas é verdade

Com todas inteligência, então / eu quero é te agradecer / mas é verdade

Mas eu que nasci pra padecer / nesse mundo de meu Deus / Mãe, mas não há de ser nada, nao. 



Tamarindando na laive


No Vão Grande o tamarindeiro tem propriedades medicinais. Dessa medicina que acalma a alma: a_calma_a_alma


Aqui não se aceita barragem. Barragem é como o Vão Grande denomina uma Pequena Central Hidrelétrica - PCH. Em coro de vozes, gritam:

PCH, aqui não!

ou

Barragem, aqui não!


Nos bastidores da laive, percebemos uma nuance emocional: no momento de muita emoção, recorre-se ao tamarindo. Para segurar o choro, Tonho disse que ia até ali fora para comer um tamarindo. Tamarindo costumam ser frutas azedinhas mas, segundo o Tonho e o nenê, o tamarineiro lá da Lindalva é docinho que só. Sair do barraquinho da laive e ir até o tamarineiro era um jeito de conter o choro, um jeito de barrar o rio de lágimas. Mas aquele não era um tamarineiro qualquer. O encantamento dá ao tamarineiro da Lindalva as propriedades medicinais já mencionadas: acalma a alma. Segura o choro, mas o docinho do tamarindo permite o escoamento da água. Barra mas não barra tanto assim. A lágrima corre na hora de contar da laive, a emoção brota da terra no pé de tamarindo e nos permite ver a fluidez das lágrimas correndo no Tonho também.

Tonho e Chico abastecendo o rio Jauquara.

Chico, Tonho e Lindalva olhos dágua lavando a alma.

Tonho e Chico nascentes do Jauquara.



Mais um pouco da laive


Mas voltemos ao lançalaive. Para tanto, contamos com a ajuda de Milton Nascimento que também lança ao mundo narrativas de interiores das Minas Gerais. Uma canção em particular: Canções e Momentos.


Há canções e há momentos / Que eu não sei como explicar / Em que a voz é um instrumento / Que eu não posso controlar / Ela vai ao infinito / Ela amarra a todos nós / E é um só sentimento / Na platéia e na voz

Há canções e há momentos / Em que a voz vem da raiz / E eu não sei se quando triste / Ou se quando sou feliz / Eu só sei que há momentos / Que se casa com canção / De fazer tal casamento / Vive a minha profissão


Nesta canção, Milton diz que a voz é o instrumento do cantor e da cantora. Logo Milton cujo nascimento trouxe ao mundo a voz que Elis Regina considerava divina. Ela disse mais ou menos o seguinte: ‘se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento’. Pensando com ele, podemos considerar que a voz é também o instrumento de quem fala as palavras que nascem no coração. Podemos considerar o ‘coração’ como a raiz do sentimento que, quando muito forte dilui a fronteira entre tristeza e felicidade, mais ou menos daí pode vir um sentido para a palavra política, para a palavra democracia, sobretudo para a palavra parlamento. Sim, porque no parlamento, uma expressão da política e da democracia, se parlamenta. No idioma francês, parler significa falar. Mas falar o que? mas falar como? falar para quem?


Aqui no território quilombola do Vão Grande a prática da fala é muito presente. Segundo a Ana Mumbuca, nos territórios se fala muito, a transmissão das tradições, dos saberes, a produção dos saberes se dá na forma da palavra falada, da expressão da oralidade. Parlamenta-se e muito aqui. E Pedro Paulo trans_formado em Pedro Silva registra essas palavras nascidas no interior do Brasil, no Mato Grosso, no interior do Quilombo do Vão Grande com sua escrita. Palavra registrada em papel, de alguma forma, imortalizada no papel. Palavras com palavras, palavras que estão ali, uma do ladinho da outra. Palavras aos pares, ímpares, conjunto de palavras. Tudo verdade, tudo verdade. Tudo invenção, portanto, verdade. Invenção e verdade de mãos dadas e dançando São Gonçalo, registradas, cravadas em pedra bruta, em madeira feita papel. 

A laive registra palavras faladas e interiores. Do interior do seu Francisco e da finada Benedita, da Lindalva, dos Ditos, dos Tonhos, das rezadeiras e das cumades, do interior de tanta gente “nascida e criada aqui”, de tanta gente que “lutou por esta terra”, que sobreviveu às ameaças, gente que ficou escondida no mato por dias e dias, gente que escapou de facada, de bala, de fogo botado na casa de páia, de gente que venceu “mardição de atraso de vida”, “gente raiz daqui” tipo gente maniva, gente semente de pé de manga, gente ingazeiro mas também gente ipê amarelo e florido como no terreno do pai-véio Chico. 



Territórios interiores


Ao final da laive, um amigo disse: “Ivan, sinto que já podemos morrer. Fizemos uma coisa muito bonita nesta vida”


“O meu orgulho de ver esse guri escrevendo e levando para bastante lugares esse livro que ele fez através de mim e da avó dele. Grato de ver esse guri educado e cuidando desse bem preparado. Sinto feliz em ver esse meu neto me colocando nesse lugar de liderança nesses assunto de tradição. Peço que ele siga em frente nesse caminho dos estudo dele”. (Francisco, o pai-véio)


“O Pedro falou no livro a respeito do nosso território, de nossa vivência, do nosso palavreado, muita coisa sobre a nossa localidade aqui” (Benedito Ilino)


Claudenilson Bento da Guia, o nenê, guia nosso olhar. Ele também escreveu:

“A laive do dia 19/08/22 foi muito bom porque Pedro Silva falou umas coisa bom. Ele falou sobre o rio Jauquara. Ele falou como começou o dia do rio Jauquara em um dia lá em Cáceres. 

Nessa laive teve até emoção. O Dito Ilino ficou emocionado, quase ninguém viu. Eu vi no rosto dele. Ele fez uma cara de durão mas não segurou umas horas, o rosto dele mostrou. A Lindalva ficou emocionada com os elogios que deram para o Pedro. E o Chico também ficou emocionado com os elogios do Pedro e do vídeo gravado dele quando colocaram (na laive). E no fim teve até cururú para o encerramento: Chico tocando viola de cocho, Zacarias e o Dito tocando ganzá”. (texto que está numa folha de poesias, um trabalho da professora Márcia com o tema: a importância do rio Jauquara. Trabalho que desdobrou em uma brincadeira gostosa de ‘ser escritor de poesias’. Nenê tem 12 anos)


***


O sorriso estampado no rosto do Pedro, um sorriso misto de forte emoção e a tensão de falar ao vivo, um sorriso descoberta que aperta o coração, revela a gratidão. Gratidão aos amigos e amigas que caminharam ao lado do Pedro na pesquisa e na escrita, e na laive. E na caminhada do Comitê Popular de Defesa do Rio Jauquara.




Do interior dos interiores

Comitê Popular de Defesa do rio Jauquara