Em mim a embarcação





Em mim a embarcação             (Rabicho Luís e Ivan Rubens)

Deu-me o tempo a paciência
Feita em mim a embarcação
Sobre o mar da existência
Vim remando da ilusão
De um tempo à deriva aprendi
Que o mar arrebenta e passa
E o leme é de quem resistir
Quando a solidão disfarça
Navegante eu sei que sou
E espero amansar a maré
Confiante que o amor
Ancore seguro onde a vida der pé
Quero uma nova emoção
Como se eu fosse um marujo aprendiz
E um novo amor embarcando
No meu coração na rota mais feliz
Com as marés sempre tranquilas
E os bons ventos a favor
Singrando sonhos e aventuras
Velejando sem temor
E o amor comandando a proa
E uma nova tripulação
Sem plano, sem hora
Com outras histórias
Viva em mim a embarcação


Pessoa e pessoas


Disponível no podiquesti Andarilhagens no spotify



O poeta Fernando Pessoa nasceu em Lisboa no ano de 1888. Foi educado numa escola católica irlandesa na África do Sul. Pessoa não era apenas uma pessoa, ele era muitas pessoas. Para escrever seus poemas ele ia além da criação de personagens. Imagine que Fernando Pessoa criava um outro Pessoa, e outro e outros, criava outros poetas. À medida que criava outro poeta, ele fazia-se outra pessoa. Pessoa fazia mais: ele criava heterônimos, ou seja, outro nome, outros autores, gente com nascimento, cultura, personalidade, singularidades, ele criava toda uma biografia e isso sustentava cada heterônimo. Assim, Fernando Pessoa diluiu a fronteira entre real e imaginário. Vejamos três heterônimos de Fernando Pessoa:

Ricardo Reis nasceu na cidade do Porto em 1887. Pessoa imaginou o poeta em 1913 quando sentia vontade de escrever poemas pagãos (Reis até falava palavrões). Estudou num colégio de jesuítas, formou-se em medicina e, por ser monárquico, expatriou-se espontaneamente em 1919 e viveu no Brasil.

Álvaro de Campos nasceu na cidade de Tavira ou Lisboa em 13 ou 15 de outubro de 1890. É considerado o alter ego do criador Fernando Pessoa. Morreu no ano de 1935.

Alberto Caeiro é uma espécie de mestre ingênuo de Álvaro de Campos e de Ricardo Reis e também de Fernando Pessoa. Detalhe: Caeiro teve apenas instrução primária. Caeiro escreveu o poema Guardador de Rebanhos. Veja um trecho:

Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações. / Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca. / Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Fernando Pessoa, ops… Alberto Caeiro define pensamento: pensamentos são sensações. E ele nos dá uma imagem: “pensar uma flor é vê-la e cheirá-la e comer um fruto é saber-lhe o sentido”. Ele sugere que pensar não é um ato apenas da cabeça, não é mecânico. Pensar é uma experiência de corpo inteiro. Caeiro pensa com os olhos, ouvidos, mãos e pés, nariz e boca. Pensar é, assim, movimentar todos os sentidos: visão e audição, tato, olfato e paladar. É saber-lhe o sentido, palavra que pode ser compreendida como direção ou como o passado do verbo sentir, o já sentido. Pensar é, disse minha mãe, puro movimento: “é feito uma dança”. Olha que imagem bonita ela nos deu: pensamento movimento. O poema continua:

Por isso quando num dia de calor / Me sinto triste de gozá-lo tanto, / E me deito ao comprido na erva, / E fecho os olhos quentes, / Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz.

Saber a verdade é estar ao sol, em contato com a terra. E tem um detalhe no mínimo curioso: ele fecha os olhos. E fechando os olhos o poeta nos convida a olhar para dentro. Mas olhar para dentro à procura da verdade? Sim, porque a verdade está fora, a verdade está no mundo real, mas a verdade também está dentro de cada um(a) de nós. Olhar atentamente para a realidade do mundo e para dentro do ser é buscar a verdade e ser felicidade.

Ivan Rubens Dário Jr

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 12 de julho de 2021





EU MANGUE

EUGMAN, que prefiro chamar de EU MANGUE, é um estudo sobre o Mangue em Trancoso.

Depois de várias idas ao mangue em Trancoso/BA, vários estudos, músicas e conversas... experimentamos o mangue como gente, como peixes e como caranguejos. Preocupados com a tensão turismo x preservação, estudantes decidiram dizer alguma coisa para a cidade. E disseram... veja que belezura. Veja também o manifesto Caranguejos com cérebro, do movimento Mangue Beat.




disponível no canal da Associação Despertar Trancoso. https://www.youtube.com/channel/UC5CztHvUlJtmn4TEmKmihzw




Leia a seguir o manifesto "Caranguejos com cérebro", escrito em julho de 1992 pelo jornalista e músico pernambucano Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S/A.

 

Mangue, o conceito.

Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. 

 

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.

Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.

Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.

Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.