A vida o que é, meu irmão?


Componha sua paisagem sonora, leia o texto ouvindo a canção.
 Clique aqui: 


Eu fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita…

Uma colega de trabalho viu a seguinte citação num material didático: “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Ela estava preparando uma formação para professoras/es e pensava no dualismo ensino_aprendizagem, pensava no 'sujeito aprendiz de uma vida inteira', vai por aí. Acontece que Gonzaguinha vai além das obviedades, então convidei: “Vamos olhar a canção?”

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

Claro que a letra remete à ideia de aprendizagem. E 
aprendizagem anda de mãos dadas com ensino. Apesar disso, Gonzaguinha pode estar falando de outra coisa, de algo maior, algo que vai além… e diz isso com otimismo porque, cantando, a vida fica muito mais alegre, mais leve, fica melhor. O artista lança perguntas:

E a vida? / E a vida o que é, diga lá, meu irmão? / Ela é a batida de um coração? / Ela é uma doce ilusão? / Mas e a vida? / Ela é maravilha ou é sofrimento? / Ela é alegria ou lamento? / O que é, o que é, meu irmão?

São muitas possibilidades de resposta, da biologia às religiões. Na canção, Gonzaguinha parece preferir as perguntas. Cultivar uma pergunta, mantê-la viva, significa disparar um movimento de busca por respostas. Talvez o movimento de busca seja mais interessante do que a resposta em si, seja ela qual for. O compositor nos lança numa busca para além da física: sem a arte, a vida perde um tanto do seu brilho.

Há quem fale que a vida da gente / É uma nada no mundo / É uma gota, é um tempo / Que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor / Você diz que é luta e prazer / Ela diz que a vida é viver / Ela diz que melhor é morrer / Pois amada não é e o verbo é sofrer / Eu só sei que confio na moça / E na moça eu boto a força da fé

Há quem diga isso e aquilo da vida. Com a moça, Gonzaguinha afirma: a vida é da nossa responsabilidade. O desejo é motor da vida!

Somos nós que fazemos a vida / Como der ou puder ou quiser / Sempre desejada, por mais que esteja errada / Ninguém quer a morte, só saúde e sorte / E a pergunta roda e a cabeça agita / Fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita

O tempo passa e a morte é certa. Entre o passado que não volta mais, e o futuro (incerto), temos o presente. O que fazemos com ele? o que temos feito da vida neste tempo presente? Mas Gonzaguinha conclui com as crianças: A vida é bonita, é bonita e é bonita. Crianças entendem de presente.

O carioca Luiz Gonzaga do Nascimento Jr, nasceu em 1945. Economista, teve 54 canções censuradas de 72 apresentadas. Autor de Começaria tudo outra vez, Explode coração, Grito de alerta entre outras. Morreu aos 45 anos num acidente de carro em 1991.

Ivan Rubens Dário Jr
Educador

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 25 de janeiro de 2022

O SOM AO REDOR


[O trailer Está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rj0eeHW7lXU&t=60s ]





O som ao redor é primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho, escrito por ele entre 2007 e 2010, filmado em julho e agosto de 2010. Grande parte do filme se passa no bairro de Setúbal, cidade de Recife/PE. A sinopse apresenta o filme:

A presença de uma milícia em uma rua de classe média na zona sul do Recife muda a vida dos moradores do local. Ao mesmo tempo em que alguns comemoram a tranquilidade trazida pela segurança privada, outros passam por momentos de extrema tensão. Ao mesmo tempo, casada e mãe de duas crianças, Bia (Maeve Jinkings) tenta encontrar um modo de lidar com o barulhento cachorro de seu vizinho.


AÇÃO !!!

A makita[1] corta o ferro da grade na janela!

Enquanto Kléber rodava O Som ao Redor, o Brasil vivia um período de crescimento econômico do governo Lula, com os ruídos da construção civil ocupando o cotidiano das grandes cidades. O que os sons da cidade contam da vida na cidade? O filme mostra que os espigões, que o paliteiro de prédios que provocam andarilhos_voadores, os grandes edifícios super atuais, chiques e caros, as Empresas que fazem da cidade palco da especulação imobiliária levantam torres sobre uma sociedade desigual e violenta que não olha para suas próprias feridas do seu passado colonial. O filme é uma espécie de crônica, a observação da sociedade brasileira a partir da janela num bairro da zona sul da Recife contemporânea mas, na visão do diretor e roteirista, uma adaptação dos engenhos de cana ainda marcantes no cotidiano da sociedade pernambucana. Os elementos da cidade moderna como carros, prédios, o mobiliário urbano disfarçando as relações coloniais. Para Kléber, os papéis sociais e a disposição topográfica naquela rua apresentam os mesmos papéis sociais do engenho.

O cachorro late.

O entregador de água potável e maconha. Os trabalhadores que vendem a segurança na rua para o ‘coronel’ que, proprietário da maioria dos imóveis no bairro, é quem administra a paz de uns e a violência de outros. A vida das trabalhadoras domésticas, dos vendedores, dos vigias, dos entregadores, a rotina dos patrões deixarem as casas durante os finais de semana. O filme apresenta as rotinas dos donos dos imóveis e dos trabalhadores e trabalhadoras no cotidiano urbano. Trata-se de uma base muito realista, muito perto do funcionamento real da sociedade. O cachorro late.

Kleber viveu muitos anos na rua do filme e, de tanto observar o cotidiano, escreveu o roteiro ali mesmo. Cada vírgula um latido: o cachorro participou do filme, mesmo das filmagens... A casa de Bia (vivida pela atriz Maeve Jinkings) e sua família no filme é exatamente a casa onde Kléber morava. Trata-se de uma crônica realista que coloca a cidade como principal protagonista[RD1] . A cidade apresentada como a rua onde morava o roteirista e diretor.

O título do filme aponta, desde o início, uma dimensão importante e que diz muito sobre a cidade. Enquanto as imagens apresentam a temática do filme, o áudio funciona como uma linguagem da cidade, deste fragmento da cidade. A vida da classe média se mostra marcada pelo tédio e pela nostalgia, os comportamentos e conflitos estão sobre as bases estruturais do Brasil, a rua como um engenho de cana de açúcar. O filme começa com fotos de trabalhadores nas lavouras, casarões ao som de um ritmo tribal contrastando com imagens coloridas e atuais de crianças brincando no estacionamento e na quadra de um condomínio enquanto são observados por babás e empregadas domésticas, as tradições escravocratas e aristocráticas expostas durante o filme. Da grade que separa o condomínio das ruas e, supostamente, da violência urbana, as crianças observam um homem lixando a janela com uma makita em ruído estridente.

Um som externo compõe com as cenas… o som é um personagem[RD2] .

O Som ao Redor está organizado em 3 partes que apresentam uma certa ascensão social dos Guardas e, ao mesmo tempo, o som da cidade como protagonista.

1a parte

2a parte

3a parte

Cães de Guarda

Guardas noturnos

Guarda costas

som como incômodo

som como proibição 

o silêncio


1a parte: cães de guarda

O drama de Bia, uma moradora mãe de dois pré-adolescentes que não consegue dormir com os latidos do cachorro na casa ao lado. Todas cenas com Bia são atravessadas pelo som desagradável do cachorro. Motores, latidos, ruídos, vendedor de cds, palmas, portas, bolas, riscos na lataria do carro, marteladas e outros sons típicos do aquecimento da economia especificamente na área da construção civil, são sons que apresentam um incômodo para a vida dos moradores e moradoras na cidade. Isso coincide com a chegada de alguns homens oferecendo serviço de proteção aos moradores. As casas e os carros são verdadeiras prisões, as pessoas estão trancadas o tempo todo, a rua é calma, o filme parece apresentar a construção de uma certa neurose em torno da segurança em um bairro calmo e pessoas de classe média neuróticas na defesa de suas propriedades. O filme passa uma sensação de posse e, ao mesmo tempo, segregação sócio espacial. Nessas condições, um serviço de segurança privada é muito bem recebido. O cachorro late.


2a parte: Guardas noturnos

Esta parte está mais focada no trabalho e na ética da equipe de segurança privada nas ruas do bairro. Aqui o som é vítima de censura. Agora já aceitos e instalados nas ruas do bairro, a equipe de segurança é liderada por Clodoaldo (vivido pelo ator Irandhir Santos). Eles servem aos moradores. Seu Francisco se apresenta como proprietário de mais da metade dos imóveis do bairro. Clodoaldo é a voz dos da rua, Francisco é o representante dos de cima. Ele mora na cobertura de uma torre imensa. Clodoaldo reúne as condições para dialogar com Francisco, funciona como uma espécie de representante de classe, um quase branco.

Dinho é um dos netos de seu Francisco que rouba toca cds dos carros na rua. Um interessante contraste vai se revelando nesta parte: o bairro é tranquilo exceto pelos pequenos furtos de Dinho vistos como desgosto ao pai, jovens bêbados e vomitando ou fazendo manobras com seus carros. Um menino negro silencioso, descalço e sem camisa é espancado porque estava trepado numa árvore. Este personagem sem fala representa Saci, uma lenda urbana do Recife. O alarme do carro dispara!


3a parte - Guarda costas

Aqui o som aparece como desejo de silêncio. A última parte do filme começa no casarão antigo de uma fazenda onde descansam seu Francisco, o neto João (que trabalha como corretor dos imóveis do avô) e sua namorada Sofia. O ambiente é tranquilo e rodeado pelo som de pássaros, vento e árvores. Nem os cães da fazenda fazem barulho. Um passeio pelo casarão e pela fazenda em fortes imagens. Os ruídos na fazenda são expressão da história, são os gritos de dor que a casa grande não escuta: os passos dos barões de engenho soando como terror na senzala, crianças numa escola pública, os gritos de dor e desespero na cena das ruínas de um cinema antigo e abandonado. A posição de privilégio da classe média do filme mostra a busca do controle do som ao redor e, quando algum som vaza, desagrada essa classe média raivosa, medrosa e culpada. E a cena chocante do banho de cachoeira quando a água gelada aparece como o sangue derramado pelas gerações de escravos e vítimas da opressão e dos crimes que a família de João cometeu naquelas terras de engenho para que ele pudesse estar na posição de privilégio urbano que ocupa hoje.

Os guardas constituem uma classe intermediária que tem o papel simbólico de manter os de baixo em silêncio pois seu ruído pode incomodar os de cima. O apartamento do Francisco aparece sempre em muito silêncio, os ruídos da cidade e do passado não chegam até o alto de sua cobertura. Essa gente que aparece nos andares superiores escuta apenas os seus próprios ruídos, está fechada para o mundo ao redor. Bia compra bombas de São João para calar o cachorro que late. Um segurança dá um soco na boca do menino negro, o Saci que estava na árvore, num gesto cruel de silenciamento, cala sua boca de quem não tem voz e com violência.

O filme termina com a revelação de uma trama subliminar: Clodoaldo deseja vingar a morte do pai e do tio. Ambos foram assassinados pelo capataz de Francisco em razão de conflitos fundiários.

Para Kléber, o filme começa com uma história real apresentada nas fotos da nossa história. Isso impacta os espectadores, são fotos lindas e fortes em retratar uma determinada situação histórica que faz parte da vida no Brasil. Entre tantas leituras possíveis deste filme, uma particularmente nos interessa: João um abolicionista; Bia a escrava alforriada; Francisco o senhor de engenho; Clodoaldo o jagunço, o senhor do mato. E a ideia do filme é transpor um engenho para uma rua moderna da zona sul do Recife. O filme não diz isso diretamente mas apresenta gente de todo tipo, gente do Brasil de hoje. Sofia que é uma brasileira afilada, o cara que cuida do carro que é índio e branco. Francisco, um branco com barba e cabelos brancos. O menino da árvore que é um Saci Pererê. É muito parecido com o que se vê nas ruas das grandes cidades[RD3] .



[1] Trata-se da marca de um conjunto de ferramentas. A ferramenta que aparece no filme é uma serra circular utilizada para cortar barras de ferro popularmente conhecida como Makita.


contribuições da andarilha: 

[RD1]Entre si e o mundo, prefira sempre o mundo! Quando você posiciona a cidade como protagonista de sua tese, penso que esteja desubjetivando pelos caminhos andarilhados entre as cidades e as artes... com os sons e marcas que fazem surgir esta sua cartografia.... pensa nisto!

 [RD2]Talvez aqui pudesse entrar com um corte e inserir uma música....um pitaco.. mas você deve ter um repertório intensivo para conectar estas marcas.... Construção do Chico

 [RD3]Penso que seja interessante fazer ligas entre os filmes... ou criar uma estratégia de texto que expresse as marcas entre sujeito e cidade e sua dimensão empírica com o pp jogo estético do capítulo