Pérola azulada


sugestão: leia o texto ouvindo a canção.                
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Zé Miguel é um artista amapaense. Cantor e compositor, sua bonita obra está disponível nas plataformas de música. Em parceria com Joãozinho Gomes, a canção Pérola azulada diz assim:


Já aprendi voar dentro de você / Ancorar no espaço ao sentir cansaço / Ossos da jornada /

Já aprendi viver como vive nu / Um cacique arara cultivando aurora / Luz de sua tiara


O compositor inicia a canção dizendo que aprendeu, portanto sabe, “voar dentro de você”. Você, quem? de quem o artista está falando? 

Fala do espaço e de uma jornada, cita “um cacique arara cultivando aurora”, manhã. Talvez esteja se referindo à ararinha azul, mais provável que fale de indígenas: o povo Arara. A música lança suas primeiras provocações a ouvintes curiosos da obra de arte… E a canção continua:


Eu amo você terra minha amada / Minha oca meu iglu, minha casa / Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe


A canção vai se revelando: “você” é a terra. Para Joãozinho e Zé Miguel, o planeta Terra é oca, iglu, casa. Oca é onde moram os indígenas das florestas, Iglu é onde moram os povos das geleiras, e casa é o jeito como nos referimos às habitações mais das cidades. Podemos pensar que oca, iglu e casa são lugares de recolhimento, de sossego, de acolhimento, de intimidade, de descanso do corpo. Podemos pensar também o corpo como casa, casa do espírito, casa da alma. Também podemos pensar o corpo como casa da vida. Se o coração para, se o pulmão para, se o cérebro para, ou seja, se o corpo para de funcionar, a vida acaba. Então, o corpo é a casa da vida.


Já aprendi nadar em seu mar azul / Adorar água, homem peixe, água / Fonte iluminada /

Já aprendi a ser parte de você / Respeitar a vida em sua barriga / Quantos mais vão aprender


Joãozinho e Zé Miguel nos convidam a pensar a Terra como a nossa casa, pensar a Terra como casa comum aos povos da floresta, povos das geleiras, povos das cidades. Haveria vida fora da Terra? Em que condições? Portanto, podemos pensar a Terra como casa dos peixes e dos bichos, das plantas, das águas, dos ventos, uma casa iluminada pois ensolarada e enluarada. A Terra pode ser compreendida como a casa de maneira ampla, a Terra como a casa de todas as formas de vida.

 

Eles amam a Terra e usam uma expressão muito bonita: “pérola azulada” pendurada no colar de deus. Como se deus vestindo um colar com uma pérola azulada, com a Terra pendurada no pescoço. Linda a imagem… Mas, perceba: terra, casa, vida, pérola, conta, palavras no feminino. Não à toa, o artista pede bênção para a mãe. 


Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe


Mãe Terra, linda a associação. A mãe é suporte para a vida, a mãe é a casa do bebê. Da mãe viemos e, mesmo rompido o cordão umbilical, os laços afetivos jamais se rompem. Mãe cuida de filhos/as e filhos/as cuidam da mãe. Quem ama, cuida. É preciso cuidar da Terra.


A benção minha mãe, Sandra Jordão. A benção minha mãe, Pérola Azulada.  


Ivan Rubens



    
Zé Miguel cantando na praça Araxá, Macapá/AP em novembro de 2022. 




Pérola azulada. Com Zé Miguel e Nilson Chaves



Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro, edição impressa de 27 de dezembro de 2022.
#Pérola azulada #ZéMiguel #JoaozinhoGomes #Amapá #Macapá

há lugares, alugueres



há um lugar, sei que há

um lugar devido

um lugar abismo

um lugar a encontrar

sei que há


No mundo há lugares

alugueres, alugar, alugares

na cidade há lugares pra morar


mas há lugares dentro de si

há buscar

na andança por lugares, aqui e ali

lugar dentro de si


aconchegos, acalantos

lugares de descanso

de encontros

Lugares a esmo

encontro consigo mesmo


superfícies, mergulhos

altos e baixos 

vão grande e pequeno

encontros consigo mesmo


Ivan Rubens


Jair, o cão raivoso


Ela saia de casa para trabalhar bem cedinho. Não sei sua profissão, não sei onde trabalha, mas sei que ela sai da casa toda manhã. Sei disso porque um cão dá o sinal da passagem da mulher. O cão é macho e não foi castrado. Não sei qual a satisfação de um cão macho ao ver uma mulher passando toda manhã, vestida de branco até os pés. Imagino que seja enfermeira e que o dono do cão seja homem. Apenas imagino e, imaginando, vou criando aqui uma realidade da mulher e o cão.


Ela acorda cedinho, imagino que se arruma e saia para o trabalho. Os latidos raivosos do cão chegam com os primeiros anúncios da manhã. Ela passa, ele late. Ele late muito, ele baba, amedronta. Ele pula, arranha o portão do cercadinho. Ela se assusta. Toda manhã é assim. Talvez ela esteja sonolenta pois, mesmo sabendo da diária repetição, ela se assusta e salta amedrontada na direção do meio fio.


Ela é uma mulher de 30 e poucos anos. Ele é um cão raivoso, medonho, assustador. Escuto os gritos de censura do dono: “cala boca, Jair!!!” Portanto, o cão raivoso é Jair. A casa fica numa ladeira, a mulher passa lentamente no início do dia, o que alonga o escândalo produzido por Jair em seus latidos de ódio e raiva. No final da tarde ela desce rapidamente a ladeira, o que abrevia o escândalo canino.


Jair é raivoso no geral, mas com a mulher que veste branco o comportamento do cão é exagerado. O que provocaria a raiva de Jair na caminhada da mulher de branco? seria o cheiro? dizem que os cães têm o olfato aguçado. Seria o ruído da passagem, do caminhar, seria o impacto da chinela na calçadinha portuguesa? Mas talvez o incômodo disparador da raiva não esteja nela.


Se o problema estiver nele, podemos pensar que o Jair carrega sentimentos pouco (ou nada) carinhosos, nada solidários, que Jair não goste das mulheres. Podemos pensar também que Jair se comporta como uma criança mimada que se joga no chão gritando quando contrariado pela mãe. Seria a mulher de branco, ao passar, o despertar das frustrações e traumas na relação de Jair com sua mãe? Neste caso, Jair poderia procurar a psicanálise freudiana, clássica, mas isso depende do desejo dele e, até onde eu saiba, cães raivosos se acham superiores e, portanto, não precisam disso. Cães raivosos não cuidam de si, tampouco cuidam do outro. Cães raivosos ignoram a presença viva do outro, menosprezam o desejo e a liberdade do outro. A raiva e o ódio são afetos que cegam, que ensurdecem, que despertam latidos e baba. Jair é um cão raivoso.


No dia 30 a cena mudou. A mulher de branco bateu palma e, apesar do escândalo de Jair, seu dono apareceu. Da minha janela observei o diálogo: Jair raivoso, a mulher tentando dialogar. Jair é a imagem e semelhança de seu dono, igualmente raivoso e barulhento na sua pregação com normas do comportamento feminino sob a cortina de latidos de Jair. Quando não há espaço para o diálogo, está na hora de já ir embora. Ela seguiu o seu caminho. Desde o dia 30, Jair vive seu melhor momento: de boca calada, é um poeta.


Ivan Rubens


Brilha uma estrela


Denise Fraga  é uma estrela de cinema e TV. Às vésperas do segundo turno, ela lembrou que a frase presente na bandeira brasileira tem origem no positivismo do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857): “Amor por princípio, ordem por base e progresso por fim”. Ordem e progresso estão na bandeira, amor não está. Sem amor, a bandeira brasileira foi capturada por um falso nacionalismo em favor de uma candidatura em 2018. Virou marca de um governo entreguista e peça de propaganda na tentativa de reeleição em 2022.


Fazendo arminha e carregando a bandeira brasileira, sem amor, o presidente em exercício foi criando um clima de guerra, um clima de nós contra eles. Zombou das vítimas da covid e sucateou o SUS. Estrangulando a ciência, apostou na ignorância; desmontando a educação, apostou na estupidez. Avesso à beleza, calou a cultura, enterrou o cuidado, torturou a polidez, sufocou o carinho e desativou o amor. E quando falta amor, emerge o ódio. Ódio que ele foi estimulando com palavras e gestos violentos. Nosso passado colonial se levantou da catacumba das missões, das capitanias, da casa grande e dos porões da ditadura militar. O bolsonarismo é a expressão contemporânea de um país que naturaliza a violência, o racismo, o sexismo, o machismo, que é truculento e autoritário. A expressão do fascismo.


Em oposição ao ódio está o amor. Amor pela vida que enfrentou a pandemia nos hospitais, nas escolas, nos serviços essenciais. Amor que enfrenta a fome e a miséria, por emprego e vida digna para todos e todas. A brilhante Denise Fraga disse “votar em Lula para garantir o direito de votar novamente em 2026”. Esse desejo de liberdade e democracia enfrentou o fascismo. Um projeto político que nasce na luta popular e caminha com os movimentos sociais, com os trabalhadores e trabalhadoras, que acredita no amor e na cultura, que distribui livros e não distribui armas.


Essa frente democrática representada por Luiz Inácio Lula da Silva vai governar o Brasil reparando injustiças históricas, por direitos trabalhistas, por comida no prato, por saúde e educação, por um Brasil amoroso que respeita nossos povos originário,  povos que mantêm a floresta em pé, cuidam do clima e das águas, do cerrado e da biodiversidade. Essas são as bandeiras com amor da frente democrática que tem em Lula sua principal figura. Nas duas falas do presidente eleito ficou nítido que o esforço agora é reconstruir o Brasil, fazer pontes, conversar muito, fazer política no sentido forte da palavra. Um Brasil generoso, inclusivo, sem fome e sem medo, investindo os recursos públicos tendo a vida e os afetos de alegria no centro da ação política. Taí nossa estrela guia.


Na bandeira brasileira são 27 estrelas brancas sobre o fundo azul. Esperamos que o amor seja colocado antes e acima da ordem e do progresso. Brilha a estrela de esperança, uma estrela que orienta a caminhada nesse tempo novo que se abre em flor. Brilha uma estrela.


Ivan Rubens


A Escola como experiência: entrevista com Walter Omar Kohan


Entrevista publicada na Revista Eletrônica de Educação - REVEDUC




A escola como experiência: entrevista com Walter Omar Kohan
The school as an experience: interview with Walter Omar Kohan

Entrevistado: Prof. Dr. Walter Omar Kohan
Entrevistadores: Ivan Rubens Dário Jr. e Luciana Ferreira da Silva


Resumo
Em julho de 2015, o professor Doutor Walter Omar Kohan esteve na cidade de São José dos Campos-SP, Brasil, participando do 3º Simpósio Internacional de Educação. Ele nos recebeu muito gentilmente para uma conversa sobre experiência e tempo na escola, sobre a relação entre infância, tempo e experiência. O resultado desta breve conversa está registrado nesta entrevista.
Palavras-chave: Escola, Experiência, Tempo, Infância.

Abstract:
In July 2015, Professor Walter Omar Kohan was in the city of São José dos Campos, Brazil, participating in the 3rd International Symposium on Education. He received us very kindly for a conversation about experience and time in school, about the relationship between childhood, time and experience. The result of this brief conversation is recorded in this inter v iew.
Keywords: School, Experience, Time, Childhood.


Sonho meu ou Dança do pensamento


Leia ouvindo a canção com Ivone Lara e Clementina de Jesus.
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Ouça o texto clicando aqui


Sonho Meu é um samba de Ivone Lara e Délcio Carvalho. Provavelmente você conheça e até cantarole um pouquinho:

Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu / Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu
Vai mostrar esta saudade, sonho meu / Com a sua liberdade, sonho meu / No meu céu a estrela guia se perdeu / a madrugada fria só me traz melancolia / Sonho meu

Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora, o pai foi mecânico e violonista. Órfã de pai e mãe, estudou no internato entre os 6 aos 16 anos de idade. Foi assistente social, enfermeira, com a médica Nise da Silveira, revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940 introduzindo a arte, principalmente música e pintura, no tratamento de esquizofrenias. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Foi baiana na Escola de Samba do Império Serrano e a primeira mulher a integrar a ala dos compositores numa escola de samba. Aposentada em 1977, dedicou-se integralmente à música.

Sinto o canto da noite na boca do vento / Fazer a dança das flores no meu pensamento / Traz a pureza de um samba / Sentido, marcado de mágoas de amor / um samba que mexe o corpo da gente / E o vento vadio embalando a flor

A noite canta? o vento tem boca? As flores dançam? A canção parece sugerir que a dança das flores aconteça no pensamento, então podemos pensar como quem dança. Se o samba traz um sentido, ele mexe com a gente, o samba faz vibrar no corpo de quem ouve as marcas que o amor deixou, principalmente as marcas de alegria. O amor aqui compreendido como as relações, as relações com pessoas mas também com lugares, situações, encontros, festas, isso que dá tempero à vida.

Vento vadio? Se compreendemos vadiagem como tempo livre... Ivone e Délcio dedicaram um tempo para fazer esse samba, eu dediquei um tempo para ouvir, para pensar nas palavras que Ivone e Délcio escolheram, dediquei um tempo para produzir um sentido e, só depois, escrever este texto. Você está dedicando um tempo para ler. Esse tempo que está livre de outras preocupações, de outros fazeres, e está dedicado a essa nossa relação porque Ivone, Délcio, eu e você estamos tecendo com essas nossas linhas de raciocínio. Estamos fazendo a dança do pensamento!

Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu / Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu

Os gregos, dançarinos de pensamento, alguns séculos antes de Cristo inventaram a scholé: tempo livre das ocupações da casa, da família, da vida doméstica, dos assuntos religiosos, livre das crenças e ideologias. A scholé oferecia o tempo a ser ocupado com os temas da cidade, da pólis, tempo a ser ocupado com criação, com análise, com crítica, com produção de sentido. No latim, schola: tempo para produzir conhecimento. Escola para além de um prédio, escola como dança do pensamento.


Ivan Rubens




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 4 de outubro de 2022

Arte, ciência e professorxs nO coração da loucura

 Thu, 30 Sep 2021 in Fractal: Revista de Psicologia

clique aqui para acessar a revista Fractal


Ivan Rubens Dário Jr
Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, Brasil
DOI: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v33i2/5761
Palavras-chave: arte, educação, encontro, experiência, loucura



Resumo

O presente Relato de Experiência Profissional pretende investigar um encontro formativo integrando professores/as de Artes com professores/as de Ciências na rede municipal de São José dos Campos/SP. Foi utilizado o longa-metragem “Nise – o coração da loucura” como sustentação para debater e refletir sobre as práticas realizadas nas escolas e salas de aula. O objetivo foi registrar a experiência desse encontro de professores/as, apresentando algumas falas que denotam deslocamentos na maneira como professoras e professores enxergam a relação professor-estudante e as diversas possibilidades pedagógicas de intervenção. O pensamento de Jorge Larrosa, Romualdo Dias, Gilles Deleuze e Nise da Silveira funciona como lente para nossa observação. Música e cinema como território comum para o movimento de pensamento do grupo e abertura de possíveis. Entre pincéis e picadores de gelo, a tentativa de um texto-fluxo permite perceber pontos de contatos entre hospital e escola; a vida entre forças de interdição e forças de expansão; estar em horário de trabalho coletivo na perspectiva do encontro e da experiência.

Dia das crianças na Escola

disponível também no spotify: podiquesti Andarilhagens

Narração de Sâmila e Jaine

narração de Rafael Bento



Era 12 de outubro. Para Jaquelline e Gabrielle, 12 de outubro é o dia das crianças. Poderia ser mais do que isso, mas o que interessa para elas é o dia das crianças. Jaquelline tem 9 anos e Gabrielle tem 6 anos de idade. A história que vamos contar aconteceu numa escola. Quando você lê a palavra escola, logo pensa em uma escola assim… dessas que ficam na cidade, entre muros e grades, afinal, é preciso ter muita segurança nesse espaço dedicado a estudantes. Dessas escolas com espaço delimitado para tudo: quadra, pátio, refeitório, parquinho, sala de aula etc. E tem hora pra tudo: bate o sinal, termina uma aula e começa outra, bate o sinal começa o recreio, termina o recreio. Corre pra merendar, corre pro xixi, corre pra sala. Aliás, quando eu uso a palavra sinal, talvez você pense num apito, numa sirene ou até numa música. Pois bem, mas nossa história aconteceu numa escola um pouco diferente.

Primeiro porque não é uma escola urbana. A escola de onde falamos fica na floresta. Uma escola sem muros e nem grades, sem separação entre o espaço da escola e o espaço da floresta. A escola de onde falamos tem uma proposta pedagógica interessante: pros dotô o nome é ‘pedagogia da alternância’, na comunidade é ‘escola família’. Na escola família, adolescentes e jovens ficam 15 dias direto na escola estudando juntos, dormindo e acordando, comendo e cuidando da escola. Podemos dizer que a escola de onde falamos é uma graaande família. Agora que você conhece um pouco da beleza de uma Escola Família Agroextrativista, uma escola integrada à comunidade, integrada à floresta, podemos voltar para nossa história.  

Era 12 de outubro. O almoço na Escola Família Agroextrativista foi muito especial, afinal era o dia das crianças. Jaquelline e Gabrielle não são alunas matriculadas na Escola, mas, sendo família, comemoraram na Escola. No almoço teve uma salada especial de legumes e folhas com temperos vindos do laboratório de produção de alimentos da própria Escola. Do mesmo laboratório vieram o açaí e a farinha de tapioca. Do igarapé vieram as proteínas: peixe, Tamuatá e Acarí, e camarão. Do laboratório de frutas veio o cupú para o suco natural. A pesquisa de alunos e alunas foi descobrir qual o cupuaçuzeiro com os frutos mais maduros para o suco ficar ainda mais gostoso. No final, a deliciosa mistura de castanha do pará e farinha de tapioca. Na Escola Agroextrativista, a floresta é um grande laboratório de experimentações, a floresta é sala de aula e a sala de aula é a floresta.

Mas a surpresa ainda estava por vir. Ceci, a monitora, fez uma pequena surpresa para Jaquelline e Gabrielle. Ceci chamou as pequenas e lhes entregou um presente do dia das crianças. Era uma banheira de bonecas. Agora as bonecas de Jaque e Gabi tomam banhos no igarapé ou na banheira quando quiserem. Mas a emoção de passar o dia das crianças na Escola Família Agroextrativista é indescritível.



Este texto foi escrito junto com Sâmila e Jaine, jovens escritoras do distrito do Carvão/AP, e contadoras de histórias.

Mazagão/Amapá - Distrito Do Carvão

Ivan Rubens, Sâmila como Jaquelline e Jaine como Gabrielle.

História real produzida pelos próprios personagens.


Reflexões pedagógicas produzidas na Escola Família Agroecológica do Macacoari - EFAM e na Escola Família Agroextrativista do Carvão - EFAC.



Do interior dos interiores: bastidores da laive


Aconteceu no dia 19 de agosto de 2022, o lançamento do livro Narrativas do Interior. Aconteceu em forma da laive. Laive é um neologismo desses tempos da jovem internete. Essa tal de internete que chegou chegando. Por mais incrível que possa parecer, sobretudo para os mais jovens, o mundo já existia (e até funcionava) antes da internete. A internete chegou chegando, mexeu, remexeu. Mexe e remexe, sacode, balança. Lança. Assim realizamos a laive de lançamento numa espécie de lançalaive, um lançamento em forma de laive. Lançamento e entrelaçamento de narrativas e interiores.


Tal acontecimento exigiu grande preparação. Para tudo dar certinho, afinal era muita gente envolvida, muita história, narrativas e interiores. Um jovem quilombola se experimentando escritor das narrativas colhidas desde menino numa terra encantada: o território quilombola do Vão Grande. 

Desconhecido

Des_conhecido

Des conhecido

Se_conhecendo

Conhecendo

Conhe_sendo

Sendo conhecido


Devagar vamos conhecendo esta terra e seu povo em ações de fazer(-se) comunidade, de “produção do comum” no dizer dos dotô, “que era tudo comum” no palavreado do quilombo. Aqui no território acompanhamos de perto a preparação da laive. A laive lança o livro, lança para o mundo um livro. Um livro que lança para o mundo as narrativas e, com as narrativas, narradores e narradoras, gente que conta causos, gente que faz coisas, gente que cria objetos e, ao criar objetos, cria gentes e modos de vida. Gente que luta, luta pela terra, gente que labuta, labuta pela vida.


Gente que faz viola de cocho, gente que toca viola de cocho.

Gente que faz ganzá, gente que toca ganzá.

Gente que dança e que reza, gente que preza seus santos e santas, gente de fé.

Gente que tece, gente que fia, gente que cria.

Gente que vive da terra, que cuida da terra, gente que traz gente para esta terra.

Gente que tira remédio das plantas

Gente que canta.

Gente que segura o céu, gente que segura na mão uma vida inteira:

e viva a parteira!!!

viva

viva


Gente que luta pelo rio

no calor e no frio

o rio onde o jaú quara na beira

luta de uma vida inteira

Rio livre, vivo e sem fronteira



Jauquara, o rio emoção. Apesar do frio.


Frio. 

Certamente o dia mais frio do ano aqui neste mato grosso e trêmulo de frio. 

Bom mesmo foi ribuçar na festa de aniversário do João Batista que aconteceu na casa do pai-véio Chico. Para este povo quilombola, o verbo ribuçar significa “ficar bem quentinho debaixo de roupa quente ou de cobertores”. Pensei em ribuçar na fogueira ali no barraquinho do terreno mas não posso usar este verbo. Então ficamos ali aproveitando o calor da fogueira mesmo e brincando com as pequenas Luiza e Maria. Ribuçar veio depois, debaixo dos cobertores do Programa Aconchego. Ahâã?


No dia e na hora marcados, estávamos lá. Tudo preparado, computador ligado e a internete funcionando. Caminhando do jeitinho que gostaríamos exceto pelo vento anunciado pela chuva do dia anterior e do frio mais forte do ano. 

Rio do frio

Frio, muito frio neste Mato Grosso.

Por mais incrível que possa aparecer, passamos frio no estado do Mato Grosso.


Até o último momento, Lindalva passava o café para receber parentes. Um livro que narra os interiores. Mas que interiores?


Os parente tudo chegando: Ditos, Tonhos, Clemente, Júnio, nenê…

Uma laive que lança interiores merece que os interiores estejam na laive. E estavam ali posicionados no plano da câmera. Ali no interior do buraquinho (da câmera), os interiores narrados nas Narrativas. 

Estavam ali: Dito 1000, Dito 400, Dito Baiano, Dito Vitor, Antônio, Claudenilson, Larissa, Ivo, Clemente, Francisco, Zacarias, Lindalva, Junior, Pedro, Mila e mais alguéns que talvez me escapem às memórias. Gente muito interessada, gente muito atenta aos acontecimentos do livro e da laive. Talvez um inédito inaugura aquele momento meio mágico, meio místico, meio mítico. Estávamos ali, pouca gente acostumada com laive, talvez apenas eu, Mariana Lacerda e Pedro Paulo porque certamente Pedro Silva, o escritor inaugural inaugurando uma lançalaive e se inaugurando nela. Posicionamos o lepitopi sobre a mesa de forma que o vento não prejudicasse a tela. Diante dela, Pedro Paulo, que assina Pedro Silva como reforço no esforço do nome carregamento das tradições e narrativas de interiores. Do lado direito, Lindalva, sua mãe. Do lado esquerdo, pai-véio Chico, seu avô.


De nossa parte, tudo começou em 2019, mais precisamente em 28 de abril como canta Dito Ilino, o Dito Ilino (Dito Baiano)

Renasceu entre as colinas / suas águas sem igual / cortando serra e montanha / com destino ao Pantanal / trazendo esperança e vida / para muitos corações / seu existir é uma herança pra futuras gerações

Rio Jauquara, Rio Jauquara / faço aqui minha homenagem pra essas águas que não pára / Rio Jauquara, Rio Jauquara / suas águas cor de anil / deixo aqui minha homenagem: 28 de abril. Deixo aqui minha homenagem: 28 de abril.


Muitos olhares atentos à tela e ao buraquinho de vrido que fica em cima dela, que os sabido chama de câmera. Dois olhares atentos aos muitos olhares: enquanto a laive rolava, Mariana, “nossa dotora devogada”, dedicada, observa as expressões, olhares e percebe lágrimas. Lágrimas contidas ou corridas. E percebe gente se fazendo rio, gente vertendo, vertedoura de fortes emoções em forma de lágrimas que, pingando, alimentam a terra e o lençol freático. Gente do território quilombola, gente território de passagem de afetos alegres que metabolizam a água do rio Jauquara em corpos afetivos e, na forma de lágrima, devolvem para o rio a água limpíssima, água emocionada:


“estou muito orgulhoso de tudo isso. Obrigado pra você que agora considero filho meu também, obrigado por ajudar esse meu neto a escrever esse livro que fala de nossa gente, de nossa terra, de nossa tradição. Hoje eu me sinto com o dever cumprido. Eu que nunca pensei em chegar tão longe nessa vida…” disse o seu Francisco.


A dotôra adevogada vê no olhar do seu Francisco muita emoção, respeito, carinho. Acho que pouca gente viu isso porque enxergar exige sensibilidade. Estava ali, tudo ali naquele rosto marcado pelo tempo, marcado pela vida. Seu Francisco, o pai-véio, fez versos para este momento especial. Sua canção diz assim:


Olha meu Pedro Paulo / esses verso é pra você / mas é verdade

Com todas inteligência, então / eu quero é te agradecer / mas é verdade

Mas eu que nasci pra padecer / nesse mundo de meu Deus / Mãe, mas não há de ser nada, nao. 



Tamarindando na laive


No Vão Grande o tamarindeiro tem propriedades medicinais. Dessa medicina que acalma a alma: a_calma_a_alma


Aqui não se aceita barragem. Barragem é como o Vão Grande denomina uma Pequena Central Hidrelétrica - PCH. Em coro de vozes, gritam:

PCH, aqui não!

ou

Barragem, aqui não!


Nos bastidores da laive, percebemos uma nuance emocional: no momento de muita emoção, recorre-se ao tamarindo. Para segurar o choro, Tonho disse que ia até ali fora para comer um tamarindo. Tamarindo costumam ser frutas azedinhas mas, segundo o Tonho e o nenê, o tamarineiro lá da Lindalva é docinho que só. Sair do barraquinho da laive e ir até o tamarineiro era um jeito de conter o choro, um jeito de barrar o rio de lágimas. Mas aquele não era um tamarineiro qualquer. O encantamento dá ao tamarineiro da Lindalva as propriedades medicinais já mencionadas: acalma a alma. Segura o choro, mas o docinho do tamarindo permite o escoamento da água. Barra mas não barra tanto assim. A lágrima corre na hora de contar da laive, a emoção brota da terra no pé de tamarindo e nos permite ver a fluidez das lágrimas correndo no Tonho também.

Tonho e Chico abastecendo o rio Jauquara.

Chico, Tonho e Lindalva olhos dágua lavando a alma.

Tonho e Chico nascentes do Jauquara.



Mais um pouco da laive


Mas voltemos ao lançalaive. Para tanto, contamos com a ajuda de Milton Nascimento que também lança ao mundo narrativas de interiores das Minas Gerais. Uma canção em particular: Canções e Momentos.


Há canções e há momentos / Que eu não sei como explicar / Em que a voz é um instrumento / Que eu não posso controlar / Ela vai ao infinito / Ela amarra a todos nós / E é um só sentimento / Na platéia e na voz

Há canções e há momentos / Em que a voz vem da raiz / E eu não sei se quando triste / Ou se quando sou feliz / Eu só sei que há momentos / Que se casa com canção / De fazer tal casamento / Vive a minha profissão


Nesta canção, Milton diz que a voz é o instrumento do cantor e da cantora. Logo Milton cujo nascimento trouxe ao mundo a voz que Elis Regina considerava divina. Ela disse mais ou menos o seguinte: ‘se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento’. Pensando com ele, podemos considerar que a voz é também o instrumento de quem fala as palavras que nascem no coração. Podemos considerar o ‘coração’ como a raiz do sentimento que, quando muito forte dilui a fronteira entre tristeza e felicidade, mais ou menos daí pode vir um sentido para a palavra política, para a palavra democracia, sobretudo para a palavra parlamento. Sim, porque no parlamento, uma expressão da política e da democracia, se parlamenta. No idioma francês, parler significa falar. Mas falar o que? mas falar como? falar para quem?


Aqui no território quilombola do Vão Grande a prática da fala é muito presente. Segundo a Ana Mumbuca, nos territórios se fala muito, a transmissão das tradições, dos saberes, a produção dos saberes se dá na forma da palavra falada, da expressão da oralidade. Parlamenta-se e muito aqui. E Pedro Paulo trans_formado em Pedro Silva registra essas palavras nascidas no interior do Brasil, no Mato Grosso, no interior do Quilombo do Vão Grande com sua escrita. Palavra registrada em papel, de alguma forma, imortalizada no papel. Palavras com palavras, palavras que estão ali, uma do ladinho da outra. Palavras aos pares, ímpares, conjunto de palavras. Tudo verdade, tudo verdade. Tudo invenção, portanto, verdade. Invenção e verdade de mãos dadas e dançando São Gonçalo, registradas, cravadas em pedra bruta, em madeira feita papel. 

A laive registra palavras faladas e interiores. Do interior do seu Francisco e da finada Benedita, da Lindalva, dos Ditos, dos Tonhos, das rezadeiras e das cumades, do interior de tanta gente “nascida e criada aqui”, de tanta gente que “lutou por esta terra”, que sobreviveu às ameaças, gente que ficou escondida no mato por dias e dias, gente que escapou de facada, de bala, de fogo botado na casa de páia, de gente que venceu “mardição de atraso de vida”, “gente raiz daqui” tipo gente maniva, gente semente de pé de manga, gente ingazeiro mas também gente ipê amarelo e florido como no terreno do pai-véio Chico. 



Territórios interiores


Ao final da laive, um amigo disse: “Ivan, sinto que já podemos morrer. Fizemos uma coisa muito bonita nesta vida”


“O meu orgulho de ver esse guri escrevendo e levando para bastante lugares esse livro que ele fez através de mim e da avó dele. Grato de ver esse guri educado e cuidando desse bem preparado. Sinto feliz em ver esse meu neto me colocando nesse lugar de liderança nesses assunto de tradição. Peço que ele siga em frente nesse caminho dos estudo dele”. (Francisco, o pai-véio)


“O Pedro falou no livro a respeito do nosso território, de nossa vivência, do nosso palavreado, muita coisa sobre a nossa localidade aqui” (Benedito Ilino)


Claudenilson Bento da Guia, o nenê, guia nosso olhar. Ele também escreveu:

“A laive do dia 19/08/22 foi muito bom porque Pedro Silva falou umas coisa bom. Ele falou sobre o rio Jauquara. Ele falou como começou o dia do rio Jauquara em um dia lá em Cáceres. 

Nessa laive teve até emoção. O Dito Ilino ficou emocionado, quase ninguém viu. Eu vi no rosto dele. Ele fez uma cara de durão mas não segurou umas horas, o rosto dele mostrou. A Lindalva ficou emocionada com os elogios que deram para o Pedro. E o Chico também ficou emocionado com os elogios do Pedro e do vídeo gravado dele quando colocaram (na laive). E no fim teve até cururú para o encerramento: Chico tocando viola de cocho, Zacarias e o Dito tocando ganzá”. (texto que está numa folha de poesias, um trabalho da professora Márcia com o tema: a importância do rio Jauquara. Trabalho que desdobrou em uma brincadeira gostosa de ‘ser escritor de poesias’. Nenê tem 12 anos)


***


O sorriso estampado no rosto do Pedro, um sorriso misto de forte emoção e a tensão de falar ao vivo, um sorriso descoberta que aperta o coração, revela a gratidão. Gratidão aos amigos e amigas que caminharam ao lado do Pedro na pesquisa e na escrita, e na laive. E na caminhada do Comitê Popular de Defesa do Rio Jauquara.




Do interior dos interiores

Comitê Popular de Defesa do rio Jauquara


Benzeção, Bento e a benta

disponível também no spotify: podiquesti Andarilhagens



Um tal Antônio
Um certo tio
Num certo dia de julho naquele ano da graça de 2022.
Um tal Bento
Bento primeiro, Bento segundo, Bento terceiro
Bento, bento: re_Bento.
Rebentou

A rebenta: mais uma benta na família Bento.

O carro parou:
“Antonio Bento, sua neta nasceu no caminho da maternidade”

Parou na estrada aquele carro meia_bomba: explosão de vida!
Enfermeira, acompanhante, motorista…
Motorista… motorista que conta a história é aQuele que_mente. Um motorista clama pra vida vingar, um motorista chama pra vida chegar. Mais uma vida naquele Vão, naquele vale encantado, mais uma vida cabe porque a boa vida vale.

O motorista clama mas não mente. Melhorar uma história real é um fazer poético, é fazer beleza na hora de contar. É criar um interesse por um episódio, por um causo. Aprendemos isso com o pantaneiro Manoel de Barros. Aprendemos isso com o povo do sítio lá naquele grande Vão de morros. Prefiro falar serras, Vão de Serras, para não falar de morros. Talvez um grande Vão cujo rio do bravo jaú esculpiu a rocha das morrarias matogrossenses.

Naquela vale encantada
cheiro de terra molhada
passando pela vaca malhada
onde Saci Pererê é Subanaré
e sua traquinagem amarrando bezerro
e trançando rabos e cabelo

Mas nossa história aconteceu do outro lado do rio.
De início, uma certa expectativa tomou conta de mim.
Assim:
O Tal de Antônio, estava se transformando. O famoso pescadô, famoso pelas histórias e pelas capturas de grandes criaturas das águas doces pintadas de dourado, o Tal Antônio transformava-se. Não era noite, tampouco lua cheia. Transformação que dava vistas, ali, à luz do dia. Estava ali dentro do carro cruzando as águas do rio encantado, driblando criaturas enormes e jaús quarando nas beiras.

Besteira?
Não!

O minhocão das águas nos deu passagem,
O peixe grande, imensas rochas roladas no leito abriram passagem para a nossa embarcação, aquele pequeno fiat uno com velas imensas torneadas pelo vento derivando naquele mar de água doce.

Bem, nossa pequena embarcação passou com as rodas molhadas, mais uma vez cruzamos o Jauquara sob o sol escaldante daquele mato. Mas não um mato qualquer, um mato grosso, grosso grosso. No interior do vale encantado, no interior do Mato Grosso. Justo ali, do meu lado, o tal Antônio metamorfoseando. Logo vi…

Ele já não era o Antônio, quem estava ali era Bento,
do tal de Antônio para
o tal de Bento.

Seguimos para a casa da criança.
Uma criança que chora
que a mãe reclama
e clama por rezas
e clama por orações.
Ali estava a rebenta, pequena, num macacão vermelho.
Chegamos.
A criança não chora.
Amor
Amora
Ela vê o avô
Antonio Bento
Ele puxa uma folhinha de arruda que trouxe.
E começa o ritual

Bem, eu estava ali com o Antônio Bento para benzer a rebenta, Josiele, sua netinha recém chegada.
Antonio Bento fala as primeiras palavras quase sussurrando, a pequenina ri.
Uma ritualística que passa por um canto manso do avô, gestos com o braço direito que às vezes sugerem uma cruz rabiscada no ar, outras vezes desenham círculos sobre a menina. Os olhos da pequenina acompanham tudo atentamente. A canção é mansa, a voz do avô é doce. Faço silêncio. A criança ri.
Antônio está vestido de amarelo, Camiseta da Brigada Quilombola, gandola, calça e bota. No peito do macacão da menina, palavras: “Eu amo meu irmão”. Braços e pernas não param um minuto, parece que tenta acompanhar os movimentos do avô. Talvez uma benzeção chegue à pequena como o convite. Talvez a voz doce do avô, o Bento que benze, chegue como canção. Talvez os olhares se cruzem na graça e alegria. Sim, porque o avô é esse sujeito da palavra doce, do convite, do gesto sereno.

Olhos de jabuticaba.
Bento termina o ritual de benzeção, como ele diz, tocando a neta. As duas mãos espalmadas sobre os pés, depois no tronco. Quase tocando aquele corpinho frenético, e um breve sinal da cruz com o dedão da mão direita na testa da pequenina.

Ela ri.
Ela ri muito.
Parece gostar da brincadeira.
Para ela, brincadeira.
Para ele, benzeção.

Então, não ouvi choro nem reclamação.
Só ouvi doçuras.
Vi apenas gestos.
Apenas aqui compreendido como muita coisa.
Uma energia de vida pulsante entre aquele Bento e aquela criança.
Ele, Bento
Ela, benta

Mais uma benta na família Bento.
Eis a benzeção do Bento na pequena Josiele.


Segundo encontro:

A mãe sente dores no peito. Talvez consequência do início da amamentação, talvez uma certa angústia ou depressão como dizem no vale encantado. Tem muito canto neste vale: Siriri, Cururu, São Gonçalo, ladainhas. Pai-véio Chico, grande cantador e capelão cuja fama transita por todo canto deste Mato Grosso, observa esse encontro conosco.

A mãe sente dores e pede as bençãos do pai. Antonio Bento pergunta do choro da neta. Resposta: “não chora mais. Mas essa dor no peito, aqui no lado direito, essa não passa. Vai e volta. E volta”. Bento avô, agora Bento pai e nova benzeção.

Resultado?

Bem, quem sabe um terceiro encontro possa responder. De qualquer maneira, tudo ficará bem. Afinal, o vale encantado, esse Vão Grande de tanta música que sai das violas de cocho, da garganta afinadíssima das respondedeiras quando os capelão tiram a reza, do sotaque quase incompreensível para os ouvidos poucados do encantamento, da música linda que sai da garganta dos galos, das galinhas, vacas e bezerros, das muitas espécies de passarinho…. Vão Grande de muita beleza, das imagens e dos sons encantadores, do calor capaz de descongelar olhos e ouvidos poucados de encanto, beleza e poesia. Vão Grande de Ditos e não ditos, de Marias, Bentos e bentas, Rosas e mangas… De tanta beleza com força de cura para corpo e curas para a alma. Cura pela fé e pela beleza.


Antônio Bento, Josiele e Ivan Rubens

Força estranha

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 Clique aqui para ouvir o texto

 dica: leia o texto ouvindo a canção 


Eu vi um menino correndo / eu vi o tempo brincando ao redor / do caminho daquele menino, / eu pus os meus pés no riacho. / E acho que nunca os tirei. / O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.

No final da década de 1970, Caetano Veloso encontrou Roberto Carlos nos corredores da antiga TV Globo. Um abraço saudoso seguido de uma constatação: o tempo passa para todos. Estavam ali dois grandes artistas populares. A canção continua:

Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. / A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou. / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.

Bela e provocativa a frase: “A mulher preparando outra pessoa”. Na gravidez, uma mulher prepara outra pessoa. Vejo certa afinidade com a educação infantil: mulheres preparando pessoas outras. Desde pequeno observo barrigas e escolas. Já habitei ambas, ainda habito. O tempo para enquanto olho barrigas. Via de regra, tudo começa no ato de amor entre seres vivos, e cresce no ventre da mulher um outro ser por 40 semanas. A mulher grávida nos dá a imagem da renovação do mundo e da vida. A vida seguirá seu curso, a esperança se renova. Escola é uma espécie de gravidez que dura alguns anos. A canção continua:

Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar. / Por isso é que eu canto, não posso parar. / Por isso essa voz tamanha.

Renovação do mundo, esperança de vida melhor para todos e todas, talvez seja a tal “força estranha” que move o mundo. Uma certa utopia, um certo lugar a chegar (o paraíso para alguns), talvez inatingível, mas que ilumina a nossa caminhada. E quando digo vida melhor para todas e todos, falo da vida como um todo, incluindo a vida humana. Só há vida humana quando rios e mares estão vivos, quando chuva e sol dão saúde para a terra, quando o ar venta saúde, com plantas e bichos saudáveis, quando rochas e montanhas estão vivas. Não haverá vida humana sem a vida pulsando na natureza. E a canção continua:

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece. / Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. / É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.

Nos corredores da antiga TV Globo, Roberto Carlos comentou que Caetano Veloso “estava um garotão bonito”, como se o tempo não passasse para ele: "É, bicho, artista nunca envelhece". A frase fecundou. Sem saber, Roberto lançou a semente num fecundo Caetano: o artista está grávido. Caetano seguiu por semanas com essa frase, indo e vindo, vagando e divagando, e a imagem de dois homens com cabelos embranquecendo. Fazer uma obra de arte, seja canção, um crônica, seja uma criança, é um processo de gestação e parto. Neste sentido, são muitas barrigas grávidas gravitando por aí todos os dias, em todo canto.

Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar. / Por isso é que eu canto, não posso parar. / Por isso essa voz tamanha.

Caetano Veloso, autor de Força Estranha, tem 80 anos. O artista não envelhece.

Ivan Rubens
Educador Popular








A vida é tão rara





Lenine é cantor, compositor, ator, escritor, um pernambucano produtor de mundos por meio de sua arte. A canção Paciência diz assim:

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / Até quando o corpo pede um pouco mais de alma / A vida não para / Enquanto o tempo acelera e pede pressa / Eu me recuso faço hora vou na valsa / A vida tão rara

Lenine é ecologista. Ecologia é uma palavra de origem grega: eco deriva de oikos que significa “casa”, e logia deriva de logos que pode significar “saber”, “estudo”. Um sentido possível para a palavra ecologia é estudo dos seres vivos em suas casas. Um passarinho, por exemplo, onde é sua casa? uma arara ou um tuiuiú, um jaú, uma sucuri, uma onça pintada, onde moram? no céu, no rio, na terra, na mata, na floresta. Pensando assim, podemos considerar que a natureza é a nossa casa comum. Não uma casa de tijolos coberta com telha de barro, mas uma casa grande e bem arejada, espaçosa, com muito ar e água, com muita terra para fazer roça, para criar galinha e porco. Uma casa com uma vista maravilhosa, com árvores de fruta que adubamos com as cinzas da fogueira no dia de São João, um espaço amplo pra criançada brincar com liberdade. Paciência continua...

Enquanto todo mundo espera a cura do mal / E a loucura finge que isso tudo é normal / Eu finjo ter paciência / E o mundo vai girando cada vez mais veloz / A gente espera do mundo e o mundo espera de nós / Um pouco mais de paciência

Cuidar da casa comum. Cuidar vem do latim cogitare que significa pensar. Assim, cuidar e pensar andam de mãos dadas. Por exemplo, se eu gosto muito de Cristina, se eu penso em Cristina, eu cuido de mim para estar com Cristina, cultivo minha RELAÇÃO com Cristina, cuido para que ela se sinta bem. O mesmo serve para a natureza: se eu gosto da natureza, eu cuido dela. Parece distante mas não é: se eu gosto de respirar ar puro, se eu gosto de beber água fresca e pura, se eu gosto de comer frutas, legumes, grãos, eu cuido do ar, da água, da terra. E penso em jeitos de cuidar mais e melhor. Pensar e cuidar...

Estou aqui te convidando para pensar em pequenas atitudes, pequenos gestos, modos de fazer e de pensar no cuidado com a casa comum. Mas tem uma terceira palavra: economia. Economia e ecologia são palavras vizinhas. Portanto, quando seres humanos compreendem a natureza como recurso, os “recursos naturais”, esses animais se colocam num lugar prepotente. A Terra precisou de mais de 4 BILHÕES de anos para criar um ambiente onde a vida humana pudesse surgir. Mas a espécie humana tem, em apenas 100 anos, provocado impactos que estão comprometendo a vida (humana e não humana) na Terra. Paciência termina assim:

Será que é o tempo que lhe falta pra perceber / Será que temos esse tempo pra perder / E quem quer saber / A vida é tão rara, tão rara

Enquanto a ganância de uns tenta barrar o rio Jauquara com a construção de uma Pequena Central Hidrelétrica, a vozinha Hortênsia come a
 mandioca e banana da sua roça com o peixe que ela pesca, e queima o fumo que ela mesma planta e colhe. Aos 83 anos ela merece viver seu sossego na terra quilombola do Vão Grande.

Ivan Rubens
Educador Popular

Mais que um rio




Muitas histórias começam com ‘era uma vez’… E o contador ou contadora da história continua sua contação. Gosto de pensar a palavra 'contação' como ‘ação de contar’ uma história ou um causo. Compreendida desta maneira, a contação dá a liberdade para agir na história/causo. Partindo de um ‘causo’, um contador, uma contadora de história tem essa capacidade de torná-la mais interessante, mais agradável, mais atraente. É uma espécie de charme, um certo poder de sedução, uma certa magia que atrai a escuta, que atrai a atenção.

Pois bem, ERA UMA VEZ um grupo de pessoas no coração do Brasil. Gente que vive da terra, que cultiva banana, arroz, milho e mandioca, gente que faz farinha e polvilho no quintal das casas. Gente que vive da pesca, da criação de galinha e porco, gente que tira leite da vaca e produz manteiga. Gente que entende e sabe a língua dos ventos, dos bichos, gente que sabe da chuva, do frio e da seca, gente que canta as belezas das plantas, gente que toca viola de cocho para dançar São Gonçalo, Siriri e Cururu. Gente cabocla, gente quilombola, gente... Brasileiros e brasileiras que rezam numa língua própria, mistura de latim e bugre, mistura de nações e povos num vão grande entre Américas e Áfricas, um caldeirão de misturas culturais, poções mágicas, narrativas do interior e narrativas de interiores.

São famílias que vivem no seu território quilombola cuja paisagem é modelada pelo rio Jauquara que, entre curvas, cheias e vazantes vai tecendo, tem tecido uma comunidade tradicional. “O rio é muito mais que um rio”.

O rio não é visto como recurso natural. Não!!! Quem vê num rio apenas um recurso, precisa consultar um oftalmologista desses que cuida dos olhos da alma e da imaginação. Um rio é água e água é fonte da vida, então o rio é os peixes, o rio é o lençol freático, o rio é as frutas, os alimentos, o rio é a mata, a banana e a mandioca, os bichos, a roça. O rio passa por você na chuva ou no banho, no macarrão, no arroz e no feijão, na bolacha de água e sal. E o rio passa por dentro da gente porque eu sou água, sangue, o rio é o feto, a barriga grávida e a mãe. O rio entra em mim misturado com as uvas na taça de vinho, e sai de mim na lágrima caída. Nesta perspectiva, um rio é da família: somos parentes!

Vejo tais comunidades na bacia do rio Paraguai, no Pantanal matogrossense, comemorar o aniversário dos rios, águas e nascentes. Está na nossa cultura comemorar o aniversário das pessoas queridas. Cantamos assim: PARABÉNS PRA VOCÊ / NESTA DATA QUERIDA / MUITAS FELICIDADES / MUITOS ANOS DE VIDA. Nos reunimos em torno das pessoas que amamos para desejar alegrias e vida longa. É exatamente isso: o rio é querido. Assim celebramos o dia do rio Jauquara, afluente do rio Paraguai, fizemos uma linda festa, cortamos o bolo e cantamos o hino num lindo coro de vozes:

RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / FAÇO AQUI A MINHA LUTA PARA ESSAS ÁGUAS QUE NÃO PÁRA / RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / SUAS ÁGUAS COR DE ANIL / FAÇO AQUI A MINHA HOMENAGEM 28 DE ABRIL.

Era uma vez o Comitê Popular das Águas do rio Jauquara.

Ivan Rubens
Educador Popular

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 14 de junho 2022

Sobre (o fim de) a escola como espaço público - Jorge Larrosa Bondía


Sobre (o fim de) a escola como espaço público[1]

Jorge Larrosa Bondía[2]

Transcrição, tradução, traição: Ivan Rubens.

 

Esta fala parte do livro intitulado Em defesa da escola: uma questão pública. Esse livro tenta mostrar o que a escola é. Não o que a escola faz ou o que a escola deveria fazer, mas o que a escola é. Isto é, mostrar a escola na sua própria materialidade. O que faz uma escola ser uma escola e não outra coisa. O autor constrói a ideia de escola basicamente em três condições que fazem que uma escola seja uma escola. A primeira delas é uma doação de tempo, isto é, a escola aparece como instituição quando uma sociedade decide liberar as crianças do trabalho e dar a elas de presente tempo livre, tempo para estudar, tempo para se ocupar dos assuntos do mundo, tempo para aprender. Essa ideia de tempo livre é interessante porque a palavra escola vem de uma palavra grega: skolé significa literalmente tempo livre, um tempo que não é um tempo escravo, que não é um tempo que está capturado pelas necessidades, e o tempo livre também é constitutivo de outra invenção grega que é a democracia. A palavra política, a palavra democracia, a palavra escola e a palavra pedagogia, quatro palavras gregas. A democracia aparece quando uma sociedade decide que todos os seus cidadãos tem que ter tempo para se ocupar dos assuntos de todos, não dos assuntos particulares de cada um, mas dos assuntos da cidade, dos assuntos públicos, dos assuntos da pólis. Num regime aristocrático só algumas pessoas tem tempo para se ocupar dos assuntos de todos, mas uma democracia exige que todos cidadãos disponham de tempo livre para se ocupar dos assuntos comuns. Eu venho da cidade de Barcelona donde talvez vocês saibam que ganhou as últimas eleições municipais um estranho grupo que não estava conformado com os partidos políticos tradicionais e, das poucas coisas que eu sei que estão acontecendo na minha cidade, há duas que tem haver com o assunto do tempo livre. 1) todos vocês devem conhecer, estão nos discursos, são muito comuns, sobre a necessidade de conciliar a vida profissional e a vida laboral (social). Essa coisa de que é preciso, de que as empresas organizem horário, o tempo dos trabalhadores de maneira que as pessoas possam conciliar o tempo do trabalho com o tempo da família. Mas, a equipe da prefeitura de Barcelona começou um experimento muito interessante que não passa pela conciliação do tempo do trabalho com o tempo da família, mas de uma conciliação do tempo do trabalho com o tempo da política, isto é, como fazer que as pessoas comuns tenham tempo livre para participar, para debater e para se ocupar dos assuntos de todos. Então, essa é a primeira coisa, a democracia exige que todas as pessoas tenham tempo para se ocupar dos assuntos comuns. Mas, ao mesmo tempo, dizem que é muito difícil conciliar o tempo da democracia com o tempo da política institucional, porque a democracia exige um tempo lento. Vocês sabem que a participação, a consulta, o debate, o diálogo, quando comprometem muitas pessoas, requer um tempo lento, e o tempo das decisões, o tempo da política institucional, é um tempo diferente. As escolas compartilham com a democracia o fato de se constituir sobre um tempo livre, isto é, sobre a doação de tempo para as crianças. Um tempo liberado do trabalho para se ocupar de outras coisas que não seja trabalhar.

No livro do Jan Masschelein a escola também aparece como um espaço público. Um espaço público significa o lugar no qual as coisas são feitas em público, isto é, em presença de outros. Portanto você tem que tomar responsabilidade pelo que você faz na frente de outros, pois, é um espaço onde você não está sozinho. Você tem que fazer as coisas em presença de outros. E também espaço público, quer dizer o espaço onde alguma coisa é publicada, isto é, uma coisa é tornada pública. Alguma coisa é feita pública, vira pública, se faz pública, isso no livro do Jan Masschelein tem a ver com uma questão fundamental da política que é a questão da desprivatização. Tal palavra que nos aguça, que a escola comuniza, faz comuns os saberes e a relação com o mundo. Tem cidades onde a possessão, a posse de alguns saberes é uma posse privada, isso dá alguma autoridade, algum status que possuem saberes que só ele tem, e a escola aparece quando esses saberes privatizados são, de algum jeito, comunizados, isto é, feitos públicos. E aqui eu queria insistir que a palavra que ele usa, uma palavra linda, comunização. Não tem a ver com comunicação, mas tem haver com comunismo, isto é, com fazer comum, desprivatizar, com fazer público alguma coisa que até então estava nas mãos de algumas poucas pessoas. A escola é uma combinação de tempo livre, de espaço público e, para que a escola seja escola, precisa também de um assunto comum. O assunto seria a matéria de estudo, a escola traz forma ao mundo. O que acontece no mundo, o saber do mundo, transforma isso em matéria de estudo, então essa matéria de estudo, esse assunto comum é colocado no meio, porque uma coisa a propósito da qual todos podem falar, todos podem pensar, todos podem aprender.

Então essas seriam as três características básicas de uma escola: 1) liberar o tempo, separar o tempo, 2) constituir um espaço público e, ao mesmo tempo, 3) colocar à disposição das crianças o mundo comum, o mundo feito matéria de estudo. Desses três elementos da escola, eu vou falar apenas da questão do espaço público, o que significa que uma escola seja um espaço público.

Que a escola seja ou não um espaço público, não depende exclusivamente da sua titularidade. No Brasil e na Espanha, escola pública significa escola que não é particular, escola que é de titularidade pública, uma escola que está sob responsabilidade de administração pública, seja municipal, seja estadual, federal, escola pública. Mas o que está acontecendo agora, é a escola sendo privatizada nos seus procedimentos, na sua maneira de agir, na sua maneira de atuar, na sua maneira de fazer. Eu vou colocar um exemplo da parte da escola que eu mais conheço. Na lógica desse livro intitulado Em defesa da escola, escola é escola desde a creche até o doutorado, tudo é escola. São espécies diferentes de escolas, mas tudo é escola. Como professor universitário, habito uma parte da escola, trabalho numa universidade pública, mas independentemente da sua titularidade a lógica dos estudos universitários está se colocando cada vez mais a serviços dos interesses econômicos. Vocês sabem que a reforma de Bologna tem a ver como a Universidade tradicional declarada obsoleta e, então, teve que se adaptar as demandas dos novos agentes econômicos. Portanto, a Universidade está sendo privatizada, independentemente de qual seja a sua titularidade. Porque está sendo privatizada no seu funcionamento, na sua lógica, então, quando uma Universidade ou uma escola é administrada como se fosse uma empresa, do mesmo jeito que se fosse uma empresa, então esse espaço deixa de ser um espaço público, independentemente da sua titularidade.

Mas eu vou falar desse aspecto que significa que a escola é, ou ainda é, ou ainda é um pouquinho um espaço público, mas isso não tem a ver com exatamente o que seja ou não a sua titularidade. Por isso a minha fala terá como que duas faces. Por um lado eu vou tentar mostrar o que é a escola como um espaço público e, por outro lado, eu vou tentar mostrar também para vocês como essa dimensão da escola, o fato de ser um espaço público, está sendo progressivamente arrasada, destruída, desmantelada por outras lógicas de funcionamento que estão acabando com essa dimensão de espaço público.

Para começar o meu argumento eu vou mostrar para vocês um filme que muitos de vocês devem conhecer. É um filme que foi e é muito usado na formação de professores, mas eu acho que eu vou ler o filme de um jeito não tão comum. Eu vou ler o filme um pouquinho diferente de como normalmente ele é usado. E para introduzir a visão do filme eu queria dizer duas coisas: a primeira eu poderia dizer como uma piada, uma história, uma piada filosófica que diz o seguinte: um peixe velho, estava nadando na lagoa, e ele se encontrou com dois peixinhos mais novos, uns peixinhos pequenininhos, então o peixe velho perguntou para os meninos:

- meninos como é que está a água?

E os peixinhos responderam:

- mas o que é água?

Então, às vezes, aquilo que nós temos mais perto é exatamente aquilo que a gente não percebe. Então, para um peixe que nasceu na água e que respira na água e que vive na água, o mais difícil de perceber é precisamente a água. Então, isso que eu vou fazer é um pouquinho complicado, vocês vão me perdoar a arrogância, porque todos vocês trabalham na escola, alguns de vocês acreditam na escola e talvez alguns de vocês amam a escola. E eu vou ter a arrogância de mostrar para vocês que trabalham na escola, que talvez acreditam na escola e que talvez amam a escola, eu vou ter a arrogância de mostrar para vocês o que é a escola, isto que é um pouquinho como a água que está ao redor dos peixinhos e eles nem percebem. Então veremos o filme e depois eu faço alguns comentários.

(exibe o curta metragem 11 de setembro, dirigido por Samira Makhmalbaf)




Algumas pessoas criticam a postura da professora no filme no sentido do que a professora não deveria fazer, ou deveria fazer de outro jeito. Então essa coisa que a gente gosta tanto de se sentir superiores aos outros e olhar para os outros do ponto de vista do que eles deveriam fazer, eles deveriam fazer de outro jeito.

Mas o curta metragem mostra exatamente o que é uma escola. O filme conta um deslocamento: ao início do filme, as crianças estão ao redor do poço, e vocês sabem que o poço está secando e a água do poço está sendo utilizada para fabricar os tijolos e também dá para pensar que a pouca lenha que tem pelos arredores foi consumida também para fabricar os tijolos. Então o filme começa com as crianças ao redor do poço e o filme acaba com as crianças ao redor da torre, que são duas imagens claramente simétricas, o poço e a torre são duas imagens simétricas. O filme conta basicamente um deslocamento, onde as crianças são arrancadas do poço e são levadas até a torre. E no meio entre o poço e a torre acontece a cena escola. Quando as crianças estão ao redor do poço fabricando tijolos porque o bombardeio pode chegar em qualquer momento, então as crianças estão falando das histórias do lugar: alguém que caiu e quebrou uma perna, caíram dois, caíram quatro, estão falando das histórias do lugar, como qualquer um. Então as crianças estão ali ao redor do poço, fabricando tijolos, falando das histórias do lugar, e nesse contexto aparece a professora. A professora atravessa a cidade chamando as crianças para a escola. A escola começa às 8 horas, tem um tempo marcado e tem também um lugar marcado, uma espécie de pórtico onde a professora entra pela primeira vez, há dois meninos que estão preparando as cadeiras e, se vocês lembram, quando a professora entra pela primeira vez nessa espécie de pórtico, tem umas pessoa trabalhando no fundo. Portanto o espaço da escola está ocupado pelo trabalho e a escola não pode começar até que trabalho saia dali. Portanto, a escola separa o tempo do trabalho do tempo da escola. Então, a professora atravessa a pequena cidade chamando as crianças para a escola: “a escola começa as oito, temos que ir para escola”. E ela usa uma coisa como isca, ela diz: “crianças vocês têm que ir para a escola porque na escola há livros”.

Ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola vocês serão felizes, ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola vocês vão aprender a conviver, ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola podemos construir um mundo onde não tenha mais bombardeios, onde o bombardeio não seria mais possível – se ela falasse isso, estaria mentindo, porque os tijolos não salvam do bombardeio, mas a escola também não salva do bombardeio e, se os aviões bombardeiros chegarem essas crianças não tem salvação. Então, ela diz que tem que ir na escola porque na escola há livros. E isso para mim é fundamental, porque se a gente olha um pouquinho a história da escola como dispositivo na sua materialidade, a escola está ligada desde o seu início à o que o IVAN ILLICH[3] chamava de mentalidade alfabética. A escola é um lugar onde aprende-se a ler e a escrever. Porque nas sociedades alfabéticas, ocidentais, o saber, o saber dos adultos, está codificado na escrita e, portanto, para ter acesso a esse saber você tem que conhecer os códigos da leitura e da escrita. Talvez isso esteja começando a mudar. Eu não sou o único a dizer que talvez a época alfabética esteja chegando ao seu final e que a gente esteja entrando numa outra época onde a função principal da escola já não vai ser ensinar a ler e a escrever, mas a escola está intimamente ligada a leitura e a escrita.

A escola é uma instituição muito violenta. [por exemplo, nem todas as sociedades tiveram escola. A escola é uma invenção grega, europeia, portanto eurocêntrica; na América a escola foi imposta pelos colonizadores]. Então a escola é um mecanismo violentíssimo, violentíssimo, de deslegitimar a oralidade popular, as culturas orais e impor como a única cultura legítima a cultura escrita. Tanto, é verdade que para nós a escrita é um mecanismo emancipador. É o único mecanismo emancipador. Porque a escrita permite entrar em um mundo praticamente infinito, mas na história da coisa, a escrita, como toda a tecnologia, é violenta, isto é, tem uma capacidade enorme de destruir o que tinha antes. Mas em qualquer caso a escola, que é um invento europeu, eurocêntrico, ligado a uma cultura da escrita, etc, está intimamente ligada ao livro, ao texto, e talvez uma das invenções fundamentais da escola seja o livro de texto. É uma invenção escolar, claramente escolar...

Então, a professora no filme diz: tem que ir à escola porque na escola há livros; [insisto, ela NÃO diz “na escola vocês vão ser mais felizes”; ela NÃO diz: “vocês vão se sentir bem”; ela NÃO diz: “vocês vão aprender a conviver”. Essas crianças não precisam da escola nem para ser felizes, nem para conviver, nem para nada; também ela não diz: “para se salvar do bombardeio”.]

Ela diz: “vocês têm que ir para a escola porque, na escola, há livros”.

Depois dessa isca que ela usa a gente esperaria uma cena de leitura no interior do pórtico da escola, mas não é uma cena de leitura que acontece. A cena que acontece é de outro jeito. Então, a escola começa quando todas as crianças estão sentadas olhando para mesma direção, e então a professora estabelece um assunto.

- Crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo. Quem sabe o que aconteceu?

Ela estabelece o assunto. As crianças naturalmente continuam falando das histórias do lugar. Alguém morreu, alguém quebrou a perna, alguém nasceu. E a professora diz:

- isso não é, isso não é, isso não.

Porque a escola não tem a ver com as histórias do lugar, mas a escola tem a ver com as histórias que são importantes para todos.

Tem uma sequência que para mim é impressionante, quando aquela menina fala:

- Professora, eu posso cochichar ao ouvido?

E a professora responde:

- Não, fale em voz alta.

A escola não é um lugar de falar as coisas ao ouvido, a escola não é o lugar da confidência, a escola é um lugar onde as coisas tem que se fazer públicas. Então a menina conta, ousa contar o seu trauma particular:

- A minha tia foi enterrada até o pescoço no Afeganistão e jogaram pedra nela até ela morrer.

Ela conta o seu trauma particular. Mas, há um momento maravilhoso em que a menina que está ao lado repete a história.

- A tia dela foi enterrada até o pescoço...

No momento em que a menina do lado repete a história, a natureza da história mudou completamente. Já não é o trauma particular dessa menina (que ela queria falar no ouvido da professora) mas virou uma história pública. História que pode ser de interesse para todos, virou uma história de todos. E é muito lindo que quando a menina ao lado conta a mesma história, ela conta a história com um sorriso. Portanto a história já é uma representação da história. É um pouco o acontece com a literatura, sei lá, o que acontece com essas coisas; Nós sabemos que os mortos no cinema não são mortos reais, e ainda que a gente chore muito, e que os mortos do romance não são mortos reais, ainda que a gente chore muito. Por isso, com o cinema e com os filmes a gente aprende a brincar com a morte. A morte de brinquedo, a morte de mentira. Então, no momento em que a segunda menina conta a história da morte, a morte já é de mentira, já é uma história pública, já não é um trauma particular e a professora poderia, se ela quisesse, poderia fazer dessa história um assunto de todos, um assunto para estudar. Fazer dessa história uma matéria de estudo. Então, no momento em que a professora fizesse dessa história uma matéria de estudo, ela apresentasse isso publicamente, esse negócio deixaria de ser já um trauma psicológico de alguém, a história de alguém, e passaria ser uma história que a professora acha que é interessante para todos. Já não é a minha historinha, a minha dor, o meu trauma, mas seria uma história que é importante para todos. A professora naturalmente não usa, decide não usar esse assunto.

Ainda quando os meninos falavam das histórias do lugar, a professora diz:

- Em Nova York, nos Estados Unidos, dois aviões se chocaram contra as torres. Quem sabe o que é uma torre? Olhem lá fora: a torre onde bateram os aviões é como se fosse aquela torre dessa olaria.

Para mim, isso também é fundamental na definição da escola porque a escola não trabalha com o mundo, a escola não é o mundo, mas a escola trabalha com representações do mundo. Isto é, a escola sempre trabalha com um como se. As torres são como esta. Então a escola trabalha com desenhos, com mapas, com imagens, com palavras, trabalha com representações do mundo. Portanto, quem sabe o que é uma torre? Ninguém sabe? Olhem para fora... a torre é como a torre dessa olaria.

Então, o que ela está fazendo? Está usando o que ela tem ao redor para representar um acontecimento que aconteceu a milhares de quilômetros dali e que para a experiência das crianças é muito difícil de compreender. Então é como essa olaria. Chega um momento em que as crianças continuam com as suas coisas, e a conversa já muda um pouco: quem as destruiu? Uns dizem que foi Deus, outros dizem que não foi Deus. E a professora pega um quadro verde e desenha um relógio, então ela diz:

- vamos fazer um minuto de silêncio e um minuto vai daqui até aqui.

Portanto ela está abrindo um tempo, vai criar um minuto, ela está abrindo um tempo para se dedicar ao assunto, ao que ela está tentando mostrar para as crianças. Naturalmente, as crianças não respeitam um minuto de silêncio. Não é sua obrigação respeitar o minuto de silêncio, e a conversa continua.

Eu notei que vocês riram ao ouvir a conversa das crianças durante o vídeo. A conversa é muito linda, é uma conversa quase teológica que tem a ver não com os fatos, mas com os sentidos dos fatos. Para alguns desses meninos, e eles aprenderam isso dos seus pais, dos adultos, tudo o que acontece no mundo acontece porque deus quer. Então, as torres caíram porque deus quis. “Amanhã a gente se vê se deus quiser”. Então, tudo o que acontece no mundo, acontece porque é a vontade de deus. Portanto deus pilotava os aviões, assim como deus pilota tudo o que acontece no mundo, que é vontade de deus. Tem outra menina que diz que deus não tem aviões e que deus só destrói gente porque tem que construir gente nova. Então, essa conversa dessa menina é quase arendtiana, no livro do meu amigo belga[4] ele segue um pouco as ideias de educação da Hannah Arendt[5] onde ela diz que a educação tem a ver com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo, isto é, os seres humanos não são fabricados, mas chegam ao mundo por nascimento, chegam novos ao mundo e portanto a educação é uma relação entre os velhos e os novos. A educação tem a ver como os velhos, que já estamos no mundo, entregamos o mundo aos que chegam por nascimento. Portanto essa ideia de Hannah Arendt de que a educação está ligada à natalidade, ao fato de que os seres humanos nascem no mundo, e também significa que a educação está ligada à mortalidade. Como vocês estudaram nos livros de biologia, os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem, envelhecem e morrem. Então essa nossa condição mortal, portanto a nossa condição mortal faz com que, como essa menina diz, deus só destrói a gente porque tem que criar gente nova. Talvez a escola tenha a ver com isso que deus faz, que é ter estabelecido a nossa condição mortal e, ao mesmo tempo, a nossa condição natal, isto é, os seres humanos somos mortais e somos também natais. Chegamos ao mundo por nascimento.

O que eu queria sublinhar para vocês é que essa conversa que as crianças fazem ali, é uma conversa que é já completamente distinta da conversa do poço e da conversa dos primeiros minutos. Essa conversa já não tem a ver com as conversas locais, já tem haver com outra coisa. Ainda que a professora não controle, essa conversa só pode se produzir quando a professora abre esse tempo. Senão essa conversa não teria tido lugar nunca. Então tem essa conversa ali, as crianças continuam falando do assunto... tem um menino muito engraçado que tenta fechar a conversa dizendo: “bom, deus faz o que ele quer e ponto, não tem mais conversa; deus faz assim e a gente morre”. Então a professora diz: “vocês não estiveram calados, então vamos lá fora e vamos ao lado da torre”.

Aí entra o segundo deslocamento: as crianças saem da escola para irem à outro lugar, e isso é também muito interessante. O primeiro deslocamento, quando as crianças saem do poço para ir para a escola, é um deslocamento fundamental porque à escola tem que ir, à escola tem que ir. A escola não está na sala da sua casa, à escola você tem que ir. Então tem que acordar de manhã, tem que sair cedo, tem que pegar um ônibus, e tem que ir. A escola é um lugar diferente, tem um portão que tem que entrar. À escola você tem que ir. Mas, ao mesmo tempo, uma vez que você está na escola, a escola às vezes organiza saídas. Esse é um tema bem clássico das escolas, excursões escolares. Então, crianças vamos sair e vamos visitar, sei lá, o museu do folclore, uma oficina de mandioca que está fazendo no bairro, qualquer coisa. Então ali, nesse segundo movimento, a professora pega as crianças da escola e as leva para outro lugar, mas durante o trajeto ela quer continuar o assunto. E aí vem o finalzinho que todos vocês adoraram, quando, mesmo proibido de falar o menino diz:

- o que é que a gente faz se a gente quer falar?

E a professora disse:

- você morde os lábios.

Isso é constitutivo da escola. Aí tem uma dificuldade também porque a escola significa uma deslocação atencional: os meninos estão interessados pelo futebol, as meninas estariam interessadas pelo aniversário do próximo domingo, e o presente, e as unhas, seja lá o que for. Então, os meninos querem falar. E a gente podia imaginar uma sala como esta onde eu não tivesse conseguindo capturar a atenção de vocês, e algumas pessoas estariam aí olhando as suas maquininhas, respondendo whatsapps. É um pouco isso: se a gente quer falar a gente faz o que? Pois você não fala, você morde os lábios e você olha aqui. Portanto esse gesto da professora é um gesto constitutivo da escola. A gente quer falar, mas agora você tem que atentar ao assunto.

Eu vou voltar um pouquinho para aquele ponto do: “aconteceu uma coisa muito importante no mundo e quem sabe alguma coisa?” Vocês lembram que eu falei que com esse gesto a professora está deslocando os meninos das histórias do lugar e levando os meninos para histórias que ela acha que são interessantes para todos. Que são importantes para todos. Então eu acho que esse gesto também é constitutivo da escola. Quando um professor de História começa uma aula de história e vai falar (sei lá) de João VI e a mudança da Corte Portuguesa para o Brasil na época bloqueio napoleônico, esse professor está falando a mesma coisa: crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo, a Corte Portuguesa veio para o Brasil, quem sabe alguma coisa?

- Professora eu quero falar.

- Morda os lábios porque agora nós não estamos falando dos teus assuntos, estamos falando de uma coisa muito importante que aconteceu no mundo e que é do interesse de todos, é de interesse público.

Quando o professor de literatura portuguesa tenta ler com as crianças um conto de Guimarães Rosa e a aula poderia começar com o mesmo gesto: “crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo, pelo menos é muito importante para nós que falamos o português do Brasil, um escritor chamado Guimarães Rosa, ali onde ele estava, pegou uma caneta e escreveu um neologismo (que é a palavra nonada, que é a palavra que, como vocês sabem, começa O Grande Sertão). Então o gesto é exatamente o mesmo: “aconteceu uma coisa muito importante no mundo, quem sabe alguma coisa?”

Quando um professor começa uma aula sobre a história da escravidão no Brasil ou sobre a história de São José dos Campos e a sua relação com a abolição da escravidão, naturalmente os meninos não estariam interessados no futebol e as meninas estariam interessadas na festa da amiguinha, mas o gesto do professor é exatamente esse: “crianças, aconteceu uma coisa muito importante nesse país. Neste país teve escravos por muito tempo, e isso não é importante só para ti, ou para ti ou para ti, é importante para todos nós”. Então o gesto pedagógico é exatamente esse. E o gesto pedagógico é também exatamente... “se a gente quer falar morda os lábios e olhe aqui”. Então eu acho que neste curta filme (curta metragem) mostra precisamente o que é a água. Se a discussão fosse sobre como é a escola que queremos, como deveria ser a escola, o que a escola do futuro deveria fazer, sei lá, a leitura deste filme seria completamente distinta. Mas, na leitura do filme eu atendi exatamente à materialidade do que acontece, por isso não critiquei a professora, nem critiquei nem deixei de criticar, eu falei exatamente dos gestos que ela faz e como estes gestos constituem esse estranho dispositivo chamado escola porque abre um tempo, porque cria um espaço público e porque de algum jeito cria um assunto comum. A gente pode pensar o que essas crianças tem a ver com as torres (gêmeas) de Nova York no dia 11 de setembro de 2001, mas vocês sabem e essas crianças também deverão saber algum dia que o destino delas está ligado a isso que aconteceu a milhares de quilômetros dali, isto é, se o bombardeio chegar ali onde estão as crianças do filme, vai chegar por alguma coisa que aconteceu muito longe. Portanto, o que a professora diz, “aconteceu uma coisa muito importante no mundo, quem sabe alguma coisa?”, é algo constitutivo da vida dessas crianças ainda que elas não saibam. Até aqui a minha descrição do que é uma escola, sobretudo a minha descrição da escola como espaço público, lugar onde as coisas são feitas em presença de outros e também aonde algumas coisas são publicadas, são feitas públicas e, portanto, são tomadas como um assunto de todos, como um assunto comum.

Para finalizar, vou citar um filósofo espanhol que chama José Luis Pardo. Neste texto que fala da escola como um espaço público, José Luis Pardo diz que a escola aparece entre dois espaços sem se confundir com nenhum deles. Por um lado a escola estabelece uma separação, no que diz respeito ao espaço da família, a escola não é a família e nem é uma extensão da família, por isso as crianças têm que ir para a escola, têm que sair de casa e ir para escola; a família seria o espaço privado, o espaço onde cada um tem a sua história e cada um é filho de alguém, um é filho de coronel, outro é filha de professor universitário, outro é filho da funcionária e a outra é filha de sei lá; o lugar onde a gente tem nome e sobrenome, o lugar onde somos conhecidos pelo nosso nome e pelo nosso sobrenome. Ao sair para a escola, as crianças são arrancadas de casa, são arrancadas da família e levadas para a escola. Na escola pública ninguém tem nem nome e sobrenome. Na escola é indiferente se aquele é filho de coronel, ou se é filho de professor universitário ou se é filho de morador de rua. A escola pública recebe a todas as crianças, contanto que escolares, contanto que iguais. Pardo diz no seu texto que a escola é um espaço separado da família, que é um espaço privado, mas também é um espaço separado da fábrica, do lugar do trabalho que também é um espaço privado. Vocês sabem: a fábrica, a empresa está estruturada por um contrato privado entre o empresário o trabalhador. Então entre a família e a fábrica, se diferenciando tanto da família quanto da fábrica, a escola é um espaço público. A citação é a seguinte:

“A escola existe para fazer dos filhos adultos responsáveis, para fazer deles indivíduos. Converter-se em indivíduos significa de certa forma trair a comunidade, trair a família, trair a comunidade, então tem que sair de casa. Localizar-se em um espaço além da relação familiar ou do relato comunitário, essa traição é o que chamamos de emancipação e ou maioridade. A escola é o mecanismo que permite aos membros das distintas comunidades se tornarem adultos, quer dizer, se protegerem tanto contra os abusos das suas comunidades natais, como da fábrica”.

Portanto a escola, segundo esse primeiro trecho, deixa de ser um espaço público quando a escola é colonizada pela família ou é colonizada pela fábrica, isto é, quando a escola vira uma extensão da família ou vira uma preparação para o trabalho. Estão entendendo? Quando é colonizada pela lógica econômica ou é colonizada pela lógica familiar.

Aonde a escola é colonizada pela família? Obviamente vocês sabem muito bem, nas escolas particulares, aonde os pais pagam e, portanto, são clientes. A obrigação da escola é que os pais que pagam estejam contentes com os resultados da escola e, assim, continuem pagando. Mas a escola pública não aceita clientes, mas aceita escolares. Portanto a escola pública não tem nada a ver com que os pais estejam contentes. Então tem uma separação, não uma prolongação da família, mas como eu já falei no princípio, a escola é cada vez menos escola pública porque cada vez mais está colonizada pela família e cada vez mais trata as famílias e as crianças como que clientes. Vocês sabem também claramente que a escola é cada vez mais considerada como uma preparação para o trabalho, portanto a escola vira uma espécie de pré-trabalho. Uma espécie de espaço de preparação para o trabalho que começa a ter também a lógica das produtividades e as lógicas da rentabilidade próprias do mundo do trabalho. E quando a escola é colonizada pela economia, seguindo essa citação do Pardo, a escola também perde o seu caráter público.

Neste outro trecho, o Pardo usa a história do Pinóquio. Vocês sabem... Gepeto, que fez um boneco de madeira, envia o boneco para escola. O uso que o Pardo faz da história é interessante. Em seu caminho da casa até a escola, o menino já saiu de casa. Portanto, o pai Gepeto não está ali para protege-lo dos perigos, pois, os perigos estão sempre no caminho. E Pinóquio ainda não chegou à escola, portanto não está sobre a proteção da escola, está no caminho. No seu caminho de casa até a escola, Pinóquio se encontra com João Ninguém, que é o porta voz do mercado capitalista mundial, que o engana prometendo-lhe uma vida em Jauja. Eu não sei como é o nome na versão portuguesa, mas Jauja seria esse lugar que Pinóquio vai, vocês lembram, onde os frangos iam caindo assados, onde só tem brinquedos, o parque de diversões, exatamente! Então, Pinóquio é desviado no caminho da escola por alguém que o leva ao parque de diversões. O medo de Gepeto, é bom não esquecer que Gepeto é um artesão, ou seja, pertence ainda ao mundo do trabalho pré-industrial, é o medo infinito que todos os pais sentem é de que seus filhos sejam cooptados pela sedução do mercado, sequestrados pela Disney e arrastados ao parque de diversões, terra onde a infância é perpétua e onde nunca se cresce. Ainda hoje eu estava falando com um grupo de professores, então eu contei uma história que me aconteceu no aeroporto: eu estava pegando a avião e entrou no mesmo avião uma turma de crianças de doze anos, que iam acompanhadas dos seus professores à Disneylândia, e estavam com uma camiseta onde estava escrito “bem vindos ao mundo da diversão”. Então, essa minha tese que tem a ver com o que uma escola é, e que uma escola não pode enviar as crianças à Disneylândia, porque isso significa entregar as crianças à Mickey Mouse, que (vocês sabem) ama as crianças. Então, levar as crianças é introduzir as crianças no mundo do consumo. Mickey Mouse é um desenho antigo, hoje talvez seja à Porca Pêpa que vocês entregam os seus filhos. Quando vocês entregam os filhos de vocês ao parque de diversões, quando vocês levam os filhos de vocês ao shopping para passar o domingo, porque vocês não sabem o que fazer com os filhos, tem que se desembaraçar deles, a gente só sabe se relacionar com os filhos comprando coisas, porque a gente já não tem vida, não sabemos fazer outra coisa que não seja comprar. Então a gente leva os filhos ao parque de diversões. Porque a gente leva os filhos ao parque de diversões? Porque nós já nascemos em Disneylândia. Gepeto ainda não nasceu em Disneylândia e ainda tinha horror da Disneylândia, mas nós já nascemos em Disneylândia, já nascemos no mundo do shopping e achamos que é tão chique levar os nossos filhos a Disneylândia ou que a escola deve levar os nossos filhos à Disney. Então é a terra aonde a infância é perpétua e nunca se cresce. No shopping a infância é perpétua e nunca se cresce. E temem isso porque sabem que a Disney World se converte rapidamente em Horrolândia, quer dizer, é uma terrível fábrica onde as crianças sem chegar ao estado de adultos, se tornam animais, ou seja, burros de carga. Lembram que Pinóquio sente suas orelhas crescendo como orelhas de burro quando ele está no parque de diversões?

Sem perceber, ele é atado a um carro, portanto, sem ter chegado a ser adulto, porque no parque de diversões e no shopping nunca se cresce, ele vira burro de carga. Para os filhos das sociedades modernas o mercado aparece em primeiro lugar como um paraíso do consumo e termina por se converter em um inferno da produção.

O texto de Pardo continua: “a exigência amplamente manifestada de que a escola esteja adaptada ao mercado de trabalho, que seja atualizada como um mundo virtual. Adaptar ao mercado de trabalho significa atualizar a escola com o mundo virtual”.

Vocês devem lembrar também de acusações de que a escola está velha, está atrasada em relação a esta época. Eu acho que desde que a escola é escola tem sempre alguém que diz que a escola está obsoleta e que a escola tem que se atualizar. Isso para mim é um negócio bem impressionante porque quem decide o que é atual e o que não é atual, o que está mais avançado e o que está mais atrasado? Então virou clichê dizer que a escola está atrasada e tem que ser atualizada ao mundo do trabalho, isto é, ao mundo virtual. Então a exigência amplamente manifestada de que a escola se adapte ao mercado de trabalho, que seja atualizada com o mundo virtual não significa converter Pinóquio em burro de carga antes mesmo de se tornar adulto? Essa é a pretensão.

Com essa citação de Pardo, eu declarei Mickey Mouse como primeiro corruptor da juventude, o sedutor [etimologicamente, seduzir é uma palavra grega que tem a ver com educação, se ducere, que significa literalmente desviar do caminho], então o menino que vai de casa para a escola ele é desviado do caminho, é seduzido por Mickey Mouse que ama as crianças, então ele vai à um lugar a onde você nunca cresce e onde você, sem ter chegado a ser adulto, vira animal de trabalho. Então, se o primeiro sedutor seria Mickey Mouse, quem seria o responsável da captura econômica da escola? Não tanto a captura da escola pelo mundo do consumo, pelo mundo da diversão, pelo mundo de que tem que ser divertido, tem que ser feliz, ou sei lá, pelo mundo do shopping. Mas, a captura da escola pelo mundo da produção, aqui claramente vocês sabem, bom, pelo pouco que eu sei da realidade política e educativa do Brasil, vocês sabem que os que estão definindo agora as políticas educativas são as corporações, os bancos, os interesses industriais. Tem toda essa coisa de Todos pela Educação, essa coisa de que os ricos agora adoram fazer uma fundação para intervir na educação para a criança pobre.

Para finalizar, o que é que a escola tem que fazer? Isso seria a captura econômica da escola, portanto da vontade de fazer das crianças burros de carga antes de terem se tornado adultos. Então as três coisas: a escola colonizada pela família, a escola colonizada por Mickey Mouse e o parque de diversões, e a escola colonizada pela economia, estariam colocando em perigo essa dimensão pública da escola. Essa dimensão da escola como um espaço público. Essa é a minha tese.


MASSCHELEIN, J. e SIMONS, M. Em defesa da escola. Uma questão pública. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.


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[1] Conferência proferida no III Seminário Internacional de Educação de São José dos Campos no dia 30/julho/2015.

[2] Universidade de Barcelona, Espanha.

[3] Ivan Illich (1926-2002) foi um pensador, filósofo e pedagogo, e polímata austríaco. Crítico das instituições da cultura moderna, escreveu sobre educação, medicina, trabalho, energia, ecologia e gênero. Sobre ecologia política, figura como importante crítico da sociedade industrial.

[4] Jan Masschelein, ‘em defesa da escola: uma questão pública’, citado no início.

[5] referência ao texto “A crise na educação”, 1957.