Força estranha

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Eu vi um menino correndo / eu vi o tempo brincando ao redor / do caminho daquele menino, / eu pus os meus pés no riacho. / E acho que nunca os tirei. / O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.

No final da década de 1970, Caetano Veloso encontrou Roberto Carlos nos corredores da antiga TV Globo. Um abraço saudoso seguido de uma constatação: o tempo passa para todos. Estavam ali dois grandes artistas populares. A canção continua:

Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. / A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou. / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.

Bela e provocativa a frase: “A mulher preparando outra pessoa”. Na gravidez, uma mulher prepara outra pessoa. Vejo certa afinidade com a educação infantil: mulheres preparando pessoas outras. Desde pequeno observo barrigas e escolas. Já habitei ambas, ainda habito. O tempo para enquanto olho barrigas. Via de regra, tudo começa no ato de amor entre seres vivos, e cresce no ventre da mulher um outro ser por 40 semanas. A mulher grávida nos dá a imagem da renovação do mundo e da vida. A vida seguirá seu curso, a esperança se renova. Escola é uma espécie de gravidez que dura alguns anos. A canção continua:

Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar. / Por isso é que eu canto, não posso parar. / Por isso essa voz tamanha.

Renovação do mundo, esperança de vida melhor para todos e todas, talvez seja a tal “força estranha” que move o mundo. Uma certa utopia, um certo lugar a chegar (o paraíso para alguns), talvez inatingível, mas que ilumina a nossa caminhada. E quando digo vida melhor para todas e todos, falo da vida como um todo, incluindo a vida humana. Só há vida humana quando rios e mares estão vivos, quando chuva e sol dão saúde para a terra, quando o ar venta saúde, com plantas e bichos saudáveis, quando rochas e montanhas estão vivas. Não haverá vida humana sem a vida pulsando na natureza. E a canção continua:

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece. / Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. / É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.

Nos corredores da antiga TV Globo, Roberto Carlos comentou que Caetano Veloso “estava um garotão bonito”, como se o tempo não passasse para ele: "É, bicho, artista nunca envelhece". A frase fecundou. Sem saber, Roberto lançou a semente num fecundo Caetano: o artista está grávido. Caetano seguiu por semanas com essa frase, indo e vindo, vagando e divagando, e a imagem de dois homens com cabelos embranquecendo. Fazer uma obra de arte, seja canção, um crônica, seja uma criança, é um processo de gestação e parto. Neste sentido, são muitas barrigas grávidas gravitando por aí todos os dias, em todo canto.

Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar. / Por isso é que eu canto, não posso parar. / Por isso essa voz tamanha.

Caetano Veloso, autor de Força Estranha, tem 80 anos. O artista não envelhece.

Ivan Rubens
Educador Popular








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