Tanto mar


Dia desses, arrumando meus cadernos, textos, organizando o material de estudo na tentativa de organizar as ideias, em meio aos trabalhos de estudantes da geografia encontrei uma anotação minha. Muito interessante re_ver, re_lembrar, re_sentir o estado passado passando para o estado presente, numa espécie de atualização. O bilhete tornando atual um episódio passado.

Já não me lembrava do pequeno relato mas, ao ler o bilhete feito por mim para mim mesmo, tudo voltou imediatamente como se eu estivesse re_vivendo aquele dia. Talvez um geógrafo escreva na medida que se inscreve na paisagem, na medida em que transita na cidade. Tudo nítido em imagens coloridas, em sensações, em descobertas. Tudo isso estava nas poucas palavras daquele bilhete que, inclusive, sussurrou o fundo musical imaginário:

Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim

Aconteceu em Curitiba no ano de 2018. Durante um trabalho de campo fui parar no marco zero da cidade. Na Galeria Júlio Moreira, uma escola de xadrez com muita gente praticando. Conheci a Sala Ivo Moreira (1949-2010), músico do rock e do blues, a Igreja da Ordem datada de 1737. A Casa (historiador) Romário Martins é um Centro de Cultura e Arte onde observei remanescentes da arquitetura colonial luso-brasileira. Numa das placas eu li que Mário Soares, então presidente de Portugal, esteve ali naquela casa exatamente como eu estava naquela tarde. Pensei na revolução dos cravos e a canção do Chico Buarque surgiu em sonoridade imaginária. Tanto imaginária quanto real. Tanto mar diz assim:

Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar / Lá faz primavera, pá / Cá estou doente / Manda urgentemente / Algum cheirinho de alecrim

Saí da casa e continuei errando movido por um desejo incontido de encontrar mais marcas das camadas e camadas de humanidade e de cultura na arquitetura, na urbanidade. Até que me encontro com Paulo Leminski, curitibano, poeta e professor (1944-1989) numa parede. A poesia se chama Amor Bastante:

Quando eu vi você / Tive uma ideia brilhante / Foi como se eu olhasse / De dentro de um diamante / E meu olhar ganhasse / Mil faces num só instante / E você tem amor bastante.

Você que está lendo este texto e conhece a canção Tanto Mar de Chico Buarque talvez esteja percebendo algo diferente na letra. Esta canção teve sua primeira versão censurada pela ditadura militar em 1975. Em 1978 Chico escreveu uma segunda versão que, gravada, tornou-se conhecida do público. Iniciamos este texto falando de atualização e, de alguma maneira, brasileiros e brasileiras atualizaram a ditadura ao eleger o capitão, mero representante mal acabado do autoritarismo, do machismo, do negacionismo fascistóide que emerge das profundezas de nossas catacumbas coloniais.

Dedico a Zuza Homem de Melo, falecido no dia 04/outubro.

Ivan Rubens Dário Jr