Mais que um rio




Muitas histórias começam com ‘era uma vez’… E o contador ou contadora da história continua sua contação. Gosto de pensar a palavra 'contação' como ‘ação de contar’ uma história ou um causo. Compreendida desta maneira, a contação dá a liberdade para agir na história/causo. Partindo de um ‘causo’, um contador, uma contadora de história tem essa capacidade de torná-la mais interessante, mais agradável, mais atraente. É uma espécie de charme, um certo poder de sedução, uma certa magia que atrai a escuta, que atrai a atenção.

Pois bem, ERA UMA VEZ um grupo de pessoas no coração do Brasil. Gente que vive da terra, que cultiva banana, arroz, milho e mandioca, gente que faz farinha e polvilho no quintal das casas. Gente que vive da pesca, da criação de galinha e porco, gente que tira leite da vaca e produz manteiga. Gente que entende e sabe a língua dos ventos, dos bichos, gente que sabe da chuva, do frio e da seca, gente que canta as belezas das plantas, gente que toca viola de cocho para dançar São Gonçalo, Siriri e Cururu. Gente cabocla, gente quilombola, gente... Brasileiros e brasileiras que rezam numa língua própria, mistura de latim e bugre, mistura de nações e povos num vão grande entre Américas e Áfricas, um caldeirão de misturas culturais, poções mágicas, narrativas do interior e narrativas de interiores.

São famílias que vivem no seu território quilombola cuja paisagem é modelada pelo rio Jauquara que, entre curvas, cheias e vazantes vai tecendo, tem tecido uma comunidade tradicional. “O rio é muito mais que um rio”.

O rio não é visto como recurso natural. Não!!! Quem vê num rio apenas um recurso, precisa consultar um oftalmologista desses que cuida dos olhos da alma e da imaginação. Um rio é água e água é fonte da vida, então o rio é os peixes, o rio é o lençol freático, o rio é as frutas, os alimentos, o rio é a mata, a banana e a mandioca, os bichos, a roça. O rio passa por você na chuva ou no banho, no macarrão, no arroz e no feijão, na bolacha de água e sal. E o rio passa por dentro da gente porque eu sou água, sangue, o rio é o feto, a barriga grávida e a mãe. O rio entra em mim misturado com as uvas na taça de vinho, e sai de mim na lágrima caída. Nesta perspectiva, um rio é da família: somos parentes!

Vejo tais comunidades na bacia do rio Paraguai, no Pantanal matogrossense, comemorar o aniversário dos rios, águas e nascentes. Está na nossa cultura comemorar o aniversário das pessoas queridas. Cantamos assim: PARABÉNS PRA VOCÊ / NESTA DATA QUERIDA / MUITAS FELICIDADES / MUITOS ANOS DE VIDA. Nos reunimos em torno das pessoas que amamos para desejar alegrias e vida longa. É exatamente isso: o rio é querido. Assim celebramos o dia do rio Jauquara, afluente do rio Paraguai, fizemos uma linda festa, cortamos o bolo e cantamos o hino num lindo coro de vozes:

RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / FAÇO AQUI A MINHA LUTA PARA ESSAS ÁGUAS QUE NÃO PÁRA / RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / SUAS ÁGUAS COR DE ANIL / FAÇO AQUI A MINHA HOMENAGEM 28 DE ABRIL.

Era uma vez o Comitê Popular das Águas do rio Jauquara.

Ivan Rubens
Educador Popular

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 14 de junho 2022

Sobre (o fim de) a escola como espaço público - Jorge Larrosa Bondía


Sobre (o fim de) a escola como espaço público[1]

Jorge Larrosa Bondía[2]

Transcrição, tradução, traição: Ivan Rubens.

 

Esta fala parte do livro intitulado Em defesa da escola: uma questão pública. Esse livro tenta mostrar o que a escola é. Não o que a escola faz ou o que a escola deveria fazer, mas o que a escola é. Isto é, mostrar a escola na sua própria materialidade. O que faz uma escola ser uma escola e não outra coisa. O autor constrói a ideia de escola basicamente em três condições que fazem que uma escola seja uma escola. A primeira delas é uma doação de tempo, isto é, a escola aparece como instituição quando uma sociedade decide liberar as crianças do trabalho e dar a elas de presente tempo livre, tempo para estudar, tempo para se ocupar dos assuntos do mundo, tempo para aprender. Essa ideia de tempo livre é interessante porque a palavra escola vem de uma palavra grega: skolé significa literalmente tempo livre, um tempo que não é um tempo escravo, que não é um tempo que está capturado pelas necessidades, e o tempo livre também é constitutivo de outra invenção grega que é a democracia. A palavra política, a palavra democracia, a palavra escola e a palavra pedagogia, quatro palavras gregas. A democracia aparece quando uma sociedade decide que todos os seus cidadãos tem que ter tempo para se ocupar dos assuntos de todos, não dos assuntos particulares de cada um, mas dos assuntos da cidade, dos assuntos públicos, dos assuntos da pólis. Num regime aristocrático só algumas pessoas tem tempo para se ocupar dos assuntos de todos, mas uma democracia exige que todos cidadãos disponham de tempo livre para se ocupar dos assuntos comuns. Eu venho da cidade de Barcelona donde talvez vocês saibam que ganhou as últimas eleições municipais um estranho grupo que não estava conformado com os partidos políticos tradicionais e, das poucas coisas que eu sei que estão acontecendo na minha cidade, há duas que tem haver com o assunto do tempo livre. 1) todos vocês devem conhecer, estão nos discursos, são muito comuns, sobre a necessidade de conciliar a vida profissional e a vida laboral (social). Essa coisa de que é preciso, de que as empresas organizem horário, o tempo dos trabalhadores de maneira que as pessoas possam conciliar o tempo do trabalho com o tempo da família. Mas, a equipe da prefeitura de Barcelona começou um experimento muito interessante que não passa pela conciliação do tempo do trabalho com o tempo da família, mas de uma conciliação do tempo do trabalho com o tempo da política, isto é, como fazer que as pessoas comuns tenham tempo livre para participar, para debater e para se ocupar dos assuntos de todos. Então, essa é a primeira coisa, a democracia exige que todas as pessoas tenham tempo para se ocupar dos assuntos comuns. Mas, ao mesmo tempo, dizem que é muito difícil conciliar o tempo da democracia com o tempo da política institucional, porque a democracia exige um tempo lento. Vocês sabem que a participação, a consulta, o debate, o diálogo, quando comprometem muitas pessoas, requer um tempo lento, e o tempo das decisões, o tempo da política institucional, é um tempo diferente. As escolas compartilham com a democracia o fato de se constituir sobre um tempo livre, isto é, sobre a doação de tempo para as crianças. Um tempo liberado do trabalho para se ocupar de outras coisas que não seja trabalhar.

No livro do Jan Masschelein a escola também aparece como um espaço público. Um espaço público significa o lugar no qual as coisas são feitas em público, isto é, em presença de outros. Portanto você tem que tomar responsabilidade pelo que você faz na frente de outros, pois, é um espaço onde você não está sozinho. Você tem que fazer as coisas em presença de outros. E também espaço público, quer dizer o espaço onde alguma coisa é publicada, isto é, uma coisa é tornada pública. Alguma coisa é feita pública, vira pública, se faz pública, isso no livro do Jan Masschelein tem a ver com uma questão fundamental da política que é a questão da desprivatização. Tal palavra que nos aguça, que a escola comuniza, faz comuns os saberes e a relação com o mundo. Tem cidades onde a possessão, a posse de alguns saberes é uma posse privada, isso dá alguma autoridade, algum status que possuem saberes que só ele tem, e a escola aparece quando esses saberes privatizados são, de algum jeito, comunizados, isto é, feitos públicos. E aqui eu queria insistir que a palavra que ele usa, uma palavra linda, comunização. Não tem a ver com comunicação, mas tem haver com comunismo, isto é, com fazer comum, desprivatizar, com fazer público alguma coisa que até então estava nas mãos de algumas poucas pessoas. A escola é uma combinação de tempo livre, de espaço público e, para que a escola seja escola, precisa também de um assunto comum. O assunto seria a matéria de estudo, a escola traz forma ao mundo. O que acontece no mundo, o saber do mundo, transforma isso em matéria de estudo, então essa matéria de estudo, esse assunto comum é colocado no meio, porque uma coisa a propósito da qual todos podem falar, todos podem pensar, todos podem aprender.

Então essas seriam as três características básicas de uma escola: 1) liberar o tempo, separar o tempo, 2) constituir um espaço público e, ao mesmo tempo, 3) colocar à disposição das crianças o mundo comum, o mundo feito matéria de estudo. Desses três elementos da escola, eu vou falar apenas da questão do espaço público, o que significa que uma escola seja um espaço público.

Que a escola seja ou não um espaço público, não depende exclusivamente da sua titularidade. No Brasil e na Espanha, escola pública significa escola que não é particular, escola que é de titularidade pública, uma escola que está sob responsabilidade de administração pública, seja municipal, seja estadual, federal, escola pública. Mas o que está acontecendo agora, é a escola sendo privatizada nos seus procedimentos, na sua maneira de agir, na sua maneira de atuar, na sua maneira de fazer. Eu vou colocar um exemplo da parte da escola que eu mais conheço. Na lógica desse livro intitulado Em defesa da escola, escola é escola desde a creche até o doutorado, tudo é escola. São espécies diferentes de escolas, mas tudo é escola. Como professor universitário, habito uma parte da escola, trabalho numa universidade pública, mas independentemente da sua titularidade a lógica dos estudos universitários está se colocando cada vez mais a serviços dos interesses econômicos. Vocês sabem que a reforma de Bologna tem a ver como a Universidade tradicional declarada obsoleta e, então, teve que se adaptar as demandas dos novos agentes econômicos. Portanto, a Universidade está sendo privatizada, independentemente de qual seja a sua titularidade. Porque está sendo privatizada no seu funcionamento, na sua lógica, então, quando uma Universidade ou uma escola é administrada como se fosse uma empresa, do mesmo jeito que se fosse uma empresa, então esse espaço deixa de ser um espaço público, independentemente da sua titularidade.

Mas eu vou falar desse aspecto que significa que a escola é, ou ainda é, ou ainda é um pouquinho um espaço público, mas isso não tem a ver com exatamente o que seja ou não a sua titularidade. Por isso a minha fala terá como que duas faces. Por um lado eu vou tentar mostrar o que é a escola como um espaço público e, por outro lado, eu vou tentar mostrar também para vocês como essa dimensão da escola, o fato de ser um espaço público, está sendo progressivamente arrasada, destruída, desmantelada por outras lógicas de funcionamento que estão acabando com essa dimensão de espaço público.

Para começar o meu argumento eu vou mostrar para vocês um filme que muitos de vocês devem conhecer. É um filme que foi e é muito usado na formação de professores, mas eu acho que eu vou ler o filme de um jeito não tão comum. Eu vou ler o filme um pouquinho diferente de como normalmente ele é usado. E para introduzir a visão do filme eu queria dizer duas coisas: a primeira eu poderia dizer como uma piada, uma história, uma piada filosófica que diz o seguinte: um peixe velho, estava nadando na lagoa, e ele se encontrou com dois peixinhos mais novos, uns peixinhos pequenininhos, então o peixe velho perguntou para os meninos:

- meninos como é que está a água?

E os peixinhos responderam:

- mas o que é água?

Então, às vezes, aquilo que nós temos mais perto é exatamente aquilo que a gente não percebe. Então, para um peixe que nasceu na água e que respira na água e que vive na água, o mais difícil de perceber é precisamente a água. Então, isso que eu vou fazer é um pouquinho complicado, vocês vão me perdoar a arrogância, porque todos vocês trabalham na escola, alguns de vocês acreditam na escola e talvez alguns de vocês amam a escola. E eu vou ter a arrogância de mostrar para vocês que trabalham na escola, que talvez acreditam na escola e que talvez amam a escola, eu vou ter a arrogância de mostrar para vocês o que é a escola, isto que é um pouquinho como a água que está ao redor dos peixinhos e eles nem percebem. Então veremos o filme e depois eu faço alguns comentários.

(exibe o curta metragem 11 de setembro, dirigido por Samira Makhmalbaf)




Algumas pessoas criticam a postura da professora no filme no sentido do que a professora não deveria fazer, ou deveria fazer de outro jeito. Então essa coisa que a gente gosta tanto de se sentir superiores aos outros e olhar para os outros do ponto de vista do que eles deveriam fazer, eles deveriam fazer de outro jeito.

Mas o curta metragem mostra exatamente o que é uma escola. O filme conta um deslocamento: ao início do filme, as crianças estão ao redor do poço, e vocês sabem que o poço está secando e a água do poço está sendo utilizada para fabricar os tijolos e também dá para pensar que a pouca lenha que tem pelos arredores foi consumida também para fabricar os tijolos. Então o filme começa com as crianças ao redor do poço e o filme acaba com as crianças ao redor da torre, que são duas imagens claramente simétricas, o poço e a torre são duas imagens simétricas. O filme conta basicamente um deslocamento, onde as crianças são arrancadas do poço e são levadas até a torre. E no meio entre o poço e a torre acontece a cena escola. Quando as crianças estão ao redor do poço fabricando tijolos porque o bombardeio pode chegar em qualquer momento, então as crianças estão falando das histórias do lugar: alguém que caiu e quebrou uma perna, caíram dois, caíram quatro, estão falando das histórias do lugar, como qualquer um. Então as crianças estão ali ao redor do poço, fabricando tijolos, falando das histórias do lugar, e nesse contexto aparece a professora. A professora atravessa a cidade chamando as crianças para a escola. A escola começa às 8 horas, tem um tempo marcado e tem também um lugar marcado, uma espécie de pórtico onde a professora entra pela primeira vez, há dois meninos que estão preparando as cadeiras e, se vocês lembram, quando a professora entra pela primeira vez nessa espécie de pórtico, tem umas pessoa trabalhando no fundo. Portanto o espaço da escola está ocupado pelo trabalho e a escola não pode começar até que trabalho saia dali. Portanto, a escola separa o tempo do trabalho do tempo da escola. Então, a professora atravessa a pequena cidade chamando as crianças para a escola: “a escola começa as oito, temos que ir para escola”. E ela usa uma coisa como isca, ela diz: “crianças vocês têm que ir para a escola porque na escola há livros”.

Ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola vocês serão felizes, ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola vocês vão aprender a conviver, ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola podemos construir um mundo onde não tenha mais bombardeios, onde o bombardeio não seria mais possível – se ela falasse isso, estaria mentindo, porque os tijolos não salvam do bombardeio, mas a escola também não salva do bombardeio e, se os aviões bombardeiros chegarem essas crianças não tem salvação. Então, ela diz que tem que ir na escola porque na escola há livros. E isso para mim é fundamental, porque se a gente olha um pouquinho a história da escola como dispositivo na sua materialidade, a escola está ligada desde o seu início à o que o IVAN ILLICH[3] chamava de mentalidade alfabética. A escola é um lugar onde aprende-se a ler e a escrever. Porque nas sociedades alfabéticas, ocidentais, o saber, o saber dos adultos, está codificado na escrita e, portanto, para ter acesso a esse saber você tem que conhecer os códigos da leitura e da escrita. Talvez isso esteja começando a mudar. Eu não sou o único a dizer que talvez a época alfabética esteja chegando ao seu final e que a gente esteja entrando numa outra época onde a função principal da escola já não vai ser ensinar a ler e a escrever, mas a escola está intimamente ligada a leitura e a escrita.

A escola é uma instituição muito violenta. [por exemplo, nem todas as sociedades tiveram escola. A escola é uma invenção grega, europeia, portanto eurocêntrica; na América a escola foi imposta pelos colonizadores]. Então a escola é um mecanismo violentíssimo, violentíssimo, de deslegitimar a oralidade popular, as culturas orais e impor como a única cultura legítima a cultura escrita. Tanto, é verdade que para nós a escrita é um mecanismo emancipador. É o único mecanismo emancipador. Porque a escrita permite entrar em um mundo praticamente infinito, mas na história da coisa, a escrita, como toda a tecnologia, é violenta, isto é, tem uma capacidade enorme de destruir o que tinha antes. Mas em qualquer caso a escola, que é um invento europeu, eurocêntrico, ligado a uma cultura da escrita, etc, está intimamente ligada ao livro, ao texto, e talvez uma das invenções fundamentais da escola seja o livro de texto. É uma invenção escolar, claramente escolar...

Então, a professora no filme diz: tem que ir à escola porque na escola há livros; [insisto, ela NÃO diz “na escola vocês vão ser mais felizes”; ela NÃO diz: “vocês vão se sentir bem”; ela NÃO diz: “vocês vão aprender a conviver”. Essas crianças não precisam da escola nem para ser felizes, nem para conviver, nem para nada; também ela não diz: “para se salvar do bombardeio”.]

Ela diz: “vocês têm que ir para a escola porque, na escola, há livros”.

Depois dessa isca que ela usa a gente esperaria uma cena de leitura no interior do pórtico da escola, mas não é uma cena de leitura que acontece. A cena que acontece é de outro jeito. Então, a escola começa quando todas as crianças estão sentadas olhando para mesma direção, e então a professora estabelece um assunto.

- Crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo. Quem sabe o que aconteceu?

Ela estabelece o assunto. As crianças naturalmente continuam falando das histórias do lugar. Alguém morreu, alguém quebrou a perna, alguém nasceu. E a professora diz:

- isso não é, isso não é, isso não.

Porque a escola não tem a ver com as histórias do lugar, mas a escola tem a ver com as histórias que são importantes para todos.

Tem uma sequência que para mim é impressionante, quando aquela menina fala:

- Professora, eu posso cochichar ao ouvido?

E a professora responde:

- Não, fale em voz alta.

A escola não é um lugar de falar as coisas ao ouvido, a escola não é o lugar da confidência, a escola é um lugar onde as coisas tem que se fazer públicas. Então a menina conta, ousa contar o seu trauma particular:

- A minha tia foi enterrada até o pescoço no Afeganistão e jogaram pedra nela até ela morrer.

Ela conta o seu trauma particular. Mas, há um momento maravilhoso em que a menina que está ao lado repete a história.

- A tia dela foi enterrada até o pescoço...

No momento em que a menina do lado repete a história, a natureza da história mudou completamente. Já não é o trauma particular dessa menina (que ela queria falar no ouvido da professora) mas virou uma história pública. História que pode ser de interesse para todos, virou uma história de todos. E é muito lindo que quando a menina ao lado conta a mesma história, ela conta a história com um sorriso. Portanto a história já é uma representação da história. É um pouco o acontece com a literatura, sei lá, o que acontece com essas coisas; Nós sabemos que os mortos no cinema não são mortos reais, e ainda que a gente chore muito, e que os mortos do romance não são mortos reais, ainda que a gente chore muito. Por isso, com o cinema e com os filmes a gente aprende a brincar com a morte. A morte de brinquedo, a morte de mentira. Então, no momento em que a segunda menina conta a história da morte, a morte já é de mentira, já é uma história pública, já não é um trauma particular e a professora poderia, se ela quisesse, poderia fazer dessa história um assunto de todos, um assunto para estudar. Fazer dessa história uma matéria de estudo. Então, no momento em que a professora fizesse dessa história uma matéria de estudo, ela apresentasse isso publicamente, esse negócio deixaria de ser já um trauma psicológico de alguém, a história de alguém, e passaria ser uma história que a professora acha que é interessante para todos. Já não é a minha historinha, a minha dor, o meu trauma, mas seria uma história que é importante para todos. A professora naturalmente não usa, decide não usar esse assunto.

Ainda quando os meninos falavam das histórias do lugar, a professora diz:

- Em Nova York, nos Estados Unidos, dois aviões se chocaram contra as torres. Quem sabe o que é uma torre? Olhem lá fora: a torre onde bateram os aviões é como se fosse aquela torre dessa olaria.

Para mim, isso também é fundamental na definição da escola porque a escola não trabalha com o mundo, a escola não é o mundo, mas a escola trabalha com representações do mundo. Isto é, a escola sempre trabalha com um como se. As torres são como esta. Então a escola trabalha com desenhos, com mapas, com imagens, com palavras, trabalha com representações do mundo. Portanto, quem sabe o que é uma torre? Ninguém sabe? Olhem para fora... a torre é como a torre dessa olaria.

Então, o que ela está fazendo? Está usando o que ela tem ao redor para representar um acontecimento que aconteceu a milhares de quilômetros dali e que para a experiência das crianças é muito difícil de compreender. Então é como essa olaria. Chega um momento em que as crianças continuam com as suas coisas, e a conversa já muda um pouco: quem as destruiu? Uns dizem que foi Deus, outros dizem que não foi Deus. E a professora pega um quadro verde e desenha um relógio, então ela diz:

- vamos fazer um minuto de silêncio e um minuto vai daqui até aqui.

Portanto ela está abrindo um tempo, vai criar um minuto, ela está abrindo um tempo para se dedicar ao assunto, ao que ela está tentando mostrar para as crianças. Naturalmente, as crianças não respeitam um minuto de silêncio. Não é sua obrigação respeitar o minuto de silêncio, e a conversa continua.

Eu notei que vocês riram ao ouvir a conversa das crianças durante o vídeo. A conversa é muito linda, é uma conversa quase teológica que tem a ver não com os fatos, mas com os sentidos dos fatos. Para alguns desses meninos, e eles aprenderam isso dos seus pais, dos adultos, tudo o que acontece no mundo acontece porque deus quer. Então, as torres caíram porque deus quis. “Amanhã a gente se vê se deus quiser”. Então, tudo o que acontece no mundo, acontece porque é a vontade de deus. Portanto deus pilotava os aviões, assim como deus pilota tudo o que acontece no mundo, que é vontade de deus. Tem outra menina que diz que deus não tem aviões e que deus só destrói gente porque tem que construir gente nova. Então, essa conversa dessa menina é quase arendtiana, no livro do meu amigo belga[4] ele segue um pouco as ideias de educação da Hannah Arendt[5] onde ela diz que a educação tem a ver com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo, isto é, os seres humanos não são fabricados, mas chegam ao mundo por nascimento, chegam novos ao mundo e portanto a educação é uma relação entre os velhos e os novos. A educação tem a ver como os velhos, que já estamos no mundo, entregamos o mundo aos que chegam por nascimento. Portanto essa ideia de Hannah Arendt de que a educação está ligada à natalidade, ao fato de que os seres humanos nascem no mundo, e também significa que a educação está ligada à mortalidade. Como vocês estudaram nos livros de biologia, os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem, envelhecem e morrem. Então essa nossa condição mortal, portanto a nossa condição mortal faz com que, como essa menina diz, deus só destrói a gente porque tem que criar gente nova. Talvez a escola tenha a ver com isso que deus faz, que é ter estabelecido a nossa condição mortal e, ao mesmo tempo, a nossa condição natal, isto é, os seres humanos somos mortais e somos também natais. Chegamos ao mundo por nascimento.

O que eu queria sublinhar para vocês é que essa conversa que as crianças fazem ali, é uma conversa que é já completamente distinta da conversa do poço e da conversa dos primeiros minutos. Essa conversa já não tem a ver com as conversas locais, já tem haver com outra coisa. Ainda que a professora não controle, essa conversa só pode se produzir quando a professora abre esse tempo. Senão essa conversa não teria tido lugar nunca. Então tem essa conversa ali, as crianças continuam falando do assunto... tem um menino muito engraçado que tenta fechar a conversa dizendo: “bom, deus faz o que ele quer e ponto, não tem mais conversa; deus faz assim e a gente morre”. Então a professora diz: “vocês não estiveram calados, então vamos lá fora e vamos ao lado da torre”.

Aí entra o segundo deslocamento: as crianças saem da escola para irem à outro lugar, e isso é também muito interessante. O primeiro deslocamento, quando as crianças saem do poço para ir para a escola, é um deslocamento fundamental porque à escola tem que ir, à escola tem que ir. A escola não está na sala da sua casa, à escola você tem que ir. Então tem que acordar de manhã, tem que sair cedo, tem que pegar um ônibus, e tem que ir. A escola é um lugar diferente, tem um portão que tem que entrar. À escola você tem que ir. Mas, ao mesmo tempo, uma vez que você está na escola, a escola às vezes organiza saídas. Esse é um tema bem clássico das escolas, excursões escolares. Então, crianças vamos sair e vamos visitar, sei lá, o museu do folclore, uma oficina de mandioca que está fazendo no bairro, qualquer coisa. Então ali, nesse segundo movimento, a professora pega as crianças da escola e as leva para outro lugar, mas durante o trajeto ela quer continuar o assunto. E aí vem o finalzinho que todos vocês adoraram, quando, mesmo proibido de falar o menino diz:

- o que é que a gente faz se a gente quer falar?

E a professora disse:

- você morde os lábios.

Isso é constitutivo da escola. Aí tem uma dificuldade também porque a escola significa uma deslocação atencional: os meninos estão interessados pelo futebol, as meninas estariam interessadas pelo aniversário do próximo domingo, e o presente, e as unhas, seja lá o que for. Então, os meninos querem falar. E a gente podia imaginar uma sala como esta onde eu não tivesse conseguindo capturar a atenção de vocês, e algumas pessoas estariam aí olhando as suas maquininhas, respondendo whatsapps. É um pouco isso: se a gente quer falar a gente faz o que? Pois você não fala, você morde os lábios e você olha aqui. Portanto esse gesto da professora é um gesto constitutivo da escola. A gente quer falar, mas agora você tem que atentar ao assunto.

Eu vou voltar um pouquinho para aquele ponto do: “aconteceu uma coisa muito importante no mundo e quem sabe alguma coisa?” Vocês lembram que eu falei que com esse gesto a professora está deslocando os meninos das histórias do lugar e levando os meninos para histórias que ela acha que são interessantes para todos. Que são importantes para todos. Então eu acho que esse gesto também é constitutivo da escola. Quando um professor de História começa uma aula de história e vai falar (sei lá) de João VI e a mudança da Corte Portuguesa para o Brasil na época bloqueio napoleônico, esse professor está falando a mesma coisa: crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo, a Corte Portuguesa veio para o Brasil, quem sabe alguma coisa?

- Professora eu quero falar.

- Morda os lábios porque agora nós não estamos falando dos teus assuntos, estamos falando de uma coisa muito importante que aconteceu no mundo e que é do interesse de todos, é de interesse público.

Quando o professor de literatura portuguesa tenta ler com as crianças um conto de Guimarães Rosa e a aula poderia começar com o mesmo gesto: “crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo, pelo menos é muito importante para nós que falamos o português do Brasil, um escritor chamado Guimarães Rosa, ali onde ele estava, pegou uma caneta e escreveu um neologismo (que é a palavra nonada, que é a palavra que, como vocês sabem, começa O Grande Sertão). Então o gesto é exatamente o mesmo: “aconteceu uma coisa muito importante no mundo, quem sabe alguma coisa?”

Quando um professor começa uma aula sobre a história da escravidão no Brasil ou sobre a história de São José dos Campos e a sua relação com a abolição da escravidão, naturalmente os meninos não estariam interessados no futebol e as meninas estariam interessadas na festa da amiguinha, mas o gesto do professor é exatamente esse: “crianças, aconteceu uma coisa muito importante nesse país. Neste país teve escravos por muito tempo, e isso não é importante só para ti, ou para ti ou para ti, é importante para todos nós”. Então o gesto pedagógico é exatamente esse. E o gesto pedagógico é também exatamente... “se a gente quer falar morda os lábios e olhe aqui”. Então eu acho que neste curta filme (curta metragem) mostra precisamente o que é a água. Se a discussão fosse sobre como é a escola que queremos, como deveria ser a escola, o que a escola do futuro deveria fazer, sei lá, a leitura deste filme seria completamente distinta. Mas, na leitura do filme eu atendi exatamente à materialidade do que acontece, por isso não critiquei a professora, nem critiquei nem deixei de criticar, eu falei exatamente dos gestos que ela faz e como estes gestos constituem esse estranho dispositivo chamado escola porque abre um tempo, porque cria um espaço público e porque de algum jeito cria um assunto comum. A gente pode pensar o que essas crianças tem a ver com as torres (gêmeas) de Nova York no dia 11 de setembro de 2001, mas vocês sabem e essas crianças também deverão saber algum dia que o destino delas está ligado a isso que aconteceu a milhares de quilômetros dali, isto é, se o bombardeio chegar ali onde estão as crianças do filme, vai chegar por alguma coisa que aconteceu muito longe. Portanto, o que a professora diz, “aconteceu uma coisa muito importante no mundo, quem sabe alguma coisa?”, é algo constitutivo da vida dessas crianças ainda que elas não saibam. Até aqui a minha descrição do que é uma escola, sobretudo a minha descrição da escola como espaço público, lugar onde as coisas são feitas em presença de outros e também aonde algumas coisas são publicadas, são feitas públicas e, portanto, são tomadas como um assunto de todos, como um assunto comum.

Para finalizar, vou citar um filósofo espanhol que chama José Luis Pardo. Neste texto que fala da escola como um espaço público, José Luis Pardo diz que a escola aparece entre dois espaços sem se confundir com nenhum deles. Por um lado a escola estabelece uma separação, no que diz respeito ao espaço da família, a escola não é a família e nem é uma extensão da família, por isso as crianças têm que ir para a escola, têm que sair de casa e ir para escola; a família seria o espaço privado, o espaço onde cada um tem a sua história e cada um é filho de alguém, um é filho de coronel, outro é filha de professor universitário, outro é filho da funcionária e a outra é filha de sei lá; o lugar onde a gente tem nome e sobrenome, o lugar onde somos conhecidos pelo nosso nome e pelo nosso sobrenome. Ao sair para a escola, as crianças são arrancadas de casa, são arrancadas da família e levadas para a escola. Na escola pública ninguém tem nem nome e sobrenome. Na escola é indiferente se aquele é filho de coronel, ou se é filho de professor universitário ou se é filho de morador de rua. A escola pública recebe a todas as crianças, contanto que escolares, contanto que iguais. Pardo diz no seu texto que a escola é um espaço separado da família, que é um espaço privado, mas também é um espaço separado da fábrica, do lugar do trabalho que também é um espaço privado. Vocês sabem: a fábrica, a empresa está estruturada por um contrato privado entre o empresário o trabalhador. Então entre a família e a fábrica, se diferenciando tanto da família quanto da fábrica, a escola é um espaço público. A citação é a seguinte:

“A escola existe para fazer dos filhos adultos responsáveis, para fazer deles indivíduos. Converter-se em indivíduos significa de certa forma trair a comunidade, trair a família, trair a comunidade, então tem que sair de casa. Localizar-se em um espaço além da relação familiar ou do relato comunitário, essa traição é o que chamamos de emancipação e ou maioridade. A escola é o mecanismo que permite aos membros das distintas comunidades se tornarem adultos, quer dizer, se protegerem tanto contra os abusos das suas comunidades natais, como da fábrica”.

Portanto a escola, segundo esse primeiro trecho, deixa de ser um espaço público quando a escola é colonizada pela família ou é colonizada pela fábrica, isto é, quando a escola vira uma extensão da família ou vira uma preparação para o trabalho. Estão entendendo? Quando é colonizada pela lógica econômica ou é colonizada pela lógica familiar.

Aonde a escola é colonizada pela família? Obviamente vocês sabem muito bem, nas escolas particulares, aonde os pais pagam e, portanto, são clientes. A obrigação da escola é que os pais que pagam estejam contentes com os resultados da escola e, assim, continuem pagando. Mas a escola pública não aceita clientes, mas aceita escolares. Portanto a escola pública não tem nada a ver com que os pais estejam contentes. Então tem uma separação, não uma prolongação da família, mas como eu já falei no princípio, a escola é cada vez menos escola pública porque cada vez mais está colonizada pela família e cada vez mais trata as famílias e as crianças como que clientes. Vocês sabem também claramente que a escola é cada vez mais considerada como uma preparação para o trabalho, portanto a escola vira uma espécie de pré-trabalho. Uma espécie de espaço de preparação para o trabalho que começa a ter também a lógica das produtividades e as lógicas da rentabilidade próprias do mundo do trabalho. E quando a escola é colonizada pela economia, seguindo essa citação do Pardo, a escola também perde o seu caráter público.

Neste outro trecho, o Pardo usa a história do Pinóquio. Vocês sabem... Gepeto, que fez um boneco de madeira, envia o boneco para escola. O uso que o Pardo faz da história é interessante. Em seu caminho da casa até a escola, o menino já saiu de casa. Portanto, o pai Gepeto não está ali para protege-lo dos perigos, pois, os perigos estão sempre no caminho. E Pinóquio ainda não chegou à escola, portanto não está sobre a proteção da escola, está no caminho. No seu caminho de casa até a escola, Pinóquio se encontra com João Ninguém, que é o porta voz do mercado capitalista mundial, que o engana prometendo-lhe uma vida em Jauja. Eu não sei como é o nome na versão portuguesa, mas Jauja seria esse lugar que Pinóquio vai, vocês lembram, onde os frangos iam caindo assados, onde só tem brinquedos, o parque de diversões, exatamente! Então, Pinóquio é desviado no caminho da escola por alguém que o leva ao parque de diversões. O medo de Gepeto, é bom não esquecer que Gepeto é um artesão, ou seja, pertence ainda ao mundo do trabalho pré-industrial, é o medo infinito que todos os pais sentem é de que seus filhos sejam cooptados pela sedução do mercado, sequestrados pela Disney e arrastados ao parque de diversões, terra onde a infância é perpétua e onde nunca se cresce. Ainda hoje eu estava falando com um grupo de professores, então eu contei uma história que me aconteceu no aeroporto: eu estava pegando a avião e entrou no mesmo avião uma turma de crianças de doze anos, que iam acompanhadas dos seus professores à Disneylândia, e estavam com uma camiseta onde estava escrito “bem vindos ao mundo da diversão”. Então, essa minha tese que tem a ver com o que uma escola é, e que uma escola não pode enviar as crianças à Disneylândia, porque isso significa entregar as crianças à Mickey Mouse, que (vocês sabem) ama as crianças. Então, levar as crianças é introduzir as crianças no mundo do consumo. Mickey Mouse é um desenho antigo, hoje talvez seja à Porca Pêpa que vocês entregam os seus filhos. Quando vocês entregam os filhos de vocês ao parque de diversões, quando vocês levam os filhos de vocês ao shopping para passar o domingo, porque vocês não sabem o que fazer com os filhos, tem que se desembaraçar deles, a gente só sabe se relacionar com os filhos comprando coisas, porque a gente já não tem vida, não sabemos fazer outra coisa que não seja comprar. Então a gente leva os filhos ao parque de diversões. Porque a gente leva os filhos ao parque de diversões? Porque nós já nascemos em Disneylândia. Gepeto ainda não nasceu em Disneylândia e ainda tinha horror da Disneylândia, mas nós já nascemos em Disneylândia, já nascemos no mundo do shopping e achamos que é tão chique levar os nossos filhos a Disneylândia ou que a escola deve levar os nossos filhos à Disney. Então é a terra aonde a infância é perpétua e nunca se cresce. No shopping a infância é perpétua e nunca se cresce. E temem isso porque sabem que a Disney World se converte rapidamente em Horrolândia, quer dizer, é uma terrível fábrica onde as crianças sem chegar ao estado de adultos, se tornam animais, ou seja, burros de carga. Lembram que Pinóquio sente suas orelhas crescendo como orelhas de burro quando ele está no parque de diversões?

Sem perceber, ele é atado a um carro, portanto, sem ter chegado a ser adulto, porque no parque de diversões e no shopping nunca se cresce, ele vira burro de carga. Para os filhos das sociedades modernas o mercado aparece em primeiro lugar como um paraíso do consumo e termina por se converter em um inferno da produção.

O texto de Pardo continua: “a exigência amplamente manifestada de que a escola esteja adaptada ao mercado de trabalho, que seja atualizada como um mundo virtual. Adaptar ao mercado de trabalho significa atualizar a escola com o mundo virtual”.

Vocês devem lembrar também de acusações de que a escola está velha, está atrasada em relação a esta época. Eu acho que desde que a escola é escola tem sempre alguém que diz que a escola está obsoleta e que a escola tem que se atualizar. Isso para mim é um negócio bem impressionante porque quem decide o que é atual e o que não é atual, o que está mais avançado e o que está mais atrasado? Então virou clichê dizer que a escola está atrasada e tem que ser atualizada ao mundo do trabalho, isto é, ao mundo virtual. Então a exigência amplamente manifestada de que a escola se adapte ao mercado de trabalho, que seja atualizada com o mundo virtual não significa converter Pinóquio em burro de carga antes mesmo de se tornar adulto? Essa é a pretensão.

Com essa citação de Pardo, eu declarei Mickey Mouse como primeiro corruptor da juventude, o sedutor [etimologicamente, seduzir é uma palavra grega que tem a ver com educação, se ducere, que significa literalmente desviar do caminho], então o menino que vai de casa para a escola ele é desviado do caminho, é seduzido por Mickey Mouse que ama as crianças, então ele vai à um lugar a onde você nunca cresce e onde você, sem ter chegado a ser adulto, vira animal de trabalho. Então, se o primeiro sedutor seria Mickey Mouse, quem seria o responsável da captura econômica da escola? Não tanto a captura da escola pelo mundo do consumo, pelo mundo da diversão, pelo mundo de que tem que ser divertido, tem que ser feliz, ou sei lá, pelo mundo do shopping. Mas, a captura da escola pelo mundo da produção, aqui claramente vocês sabem, bom, pelo pouco que eu sei da realidade política e educativa do Brasil, vocês sabem que os que estão definindo agora as políticas educativas são as corporações, os bancos, os interesses industriais. Tem toda essa coisa de Todos pela Educação, essa coisa de que os ricos agora adoram fazer uma fundação para intervir na educação para a criança pobre.

Para finalizar, o que é que a escola tem que fazer? Isso seria a captura econômica da escola, portanto da vontade de fazer das crianças burros de carga antes de terem se tornado adultos. Então as três coisas: a escola colonizada pela família, a escola colonizada por Mickey Mouse e o parque de diversões, e a escola colonizada pela economia, estariam colocando em perigo essa dimensão pública da escola. Essa dimensão da escola como um espaço público. Essa é a minha tese.


MASSCHELEIN, J. e SIMONS, M. Em defesa da escola. Uma questão pública. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.


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[1] Conferência proferida no III Seminário Internacional de Educação de São José dos Campos no dia 30/julho/2015.

[2] Universidade de Barcelona, Espanha.

[3] Ivan Illich (1926-2002) foi um pensador, filósofo e pedagogo, e polímata austríaco. Crítico das instituições da cultura moderna, escreveu sobre educação, medicina, trabalho, energia, ecologia e gênero. Sobre ecologia política, figura como importante crítico da sociedade industrial.

[4] Jan Masschelein, ‘em defesa da escola: uma questão pública’, citado no início.

[5] referência ao texto “A crise na educação”, 1957.