Mais que um rio




Muitas histórias começam com ‘era uma vez’… E o contador ou contadora da história continua sua contação. Gosto de pensar a palavra 'contação' como ‘ação de contar’ uma história ou um causo. Compreendida desta maneira, a contação dá a liberdade para agir na história/causo. Partindo de um ‘causo’, um contador, uma contadora de história tem essa capacidade de torná-la mais interessante, mais agradável, mais atraente. É uma espécie de charme, um certo poder de sedução, uma certa magia que atrai a escuta, que atrai a atenção.

Pois bem, ERA UMA VEZ um grupo de pessoas no coração do Brasil. Gente que vive da terra, que cultiva banana, arroz, milho e mandioca, gente que faz farinha e polvilho no quintal das casas. Gente que vive da pesca, da criação de galinha e porco, gente que tira leite da vaca e produz manteiga. Gente que entende e sabe a língua dos ventos, dos bichos, gente que sabe da chuva, do frio e da seca, gente que canta as belezas das plantas, gente que toca viola de cocho para dançar São Gonçalo, Siriri e Cururu. Gente cabocla, gente quilombola, gente... Brasileiros e brasileiras que rezam numa língua própria, mistura de latim e bugre, mistura de nações e povos num vão grande entre Américas e Áfricas, um caldeirão de misturas culturais, poções mágicas, narrativas do interior e narrativas de interiores.

São famílias que vivem no seu território quilombola cuja paisagem é modelada pelo rio Jauquara que, entre curvas, cheias e vazantes vai tecendo, tem tecido uma comunidade tradicional. “O rio é muito mais que um rio”.

O rio não é visto como recurso natural. Não!!! Quem vê num rio apenas um recurso, precisa consultar um oftalmologista desses que cuida dos olhos da alma e da imaginação. Um rio é água e água é fonte da vida, então o rio é os peixes, o rio é o lençol freático, o rio é as frutas, os alimentos, o rio é a mata, a banana e a mandioca, os bichos, a roça. O rio passa por você na chuva ou no banho, no macarrão, no arroz e no feijão, na bolacha de água e sal. E o rio passa por dentro da gente porque eu sou água, sangue, o rio é o feto, a barriga grávida e a mãe. O rio entra em mim misturado com as uvas na taça de vinho, e sai de mim na lágrima caída. Nesta perspectiva, um rio é da família: somos parentes!

Vejo tais comunidades na bacia do rio Paraguai, no Pantanal matogrossense, comemorar o aniversário dos rios, águas e nascentes. Está na nossa cultura comemorar o aniversário das pessoas queridas. Cantamos assim: PARABÉNS PRA VOCÊ / NESTA DATA QUERIDA / MUITAS FELICIDADES / MUITOS ANOS DE VIDA. Nos reunimos em torno das pessoas que amamos para desejar alegrias e vida longa. É exatamente isso: o rio é querido. Assim celebramos o dia do rio Jauquara, afluente do rio Paraguai, fizemos uma linda festa, cortamos o bolo e cantamos o hino num lindo coro de vozes:

RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / FAÇO AQUI A MINHA LUTA PARA ESSAS ÁGUAS QUE NÃO PÁRA / RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / SUAS ÁGUAS COR DE ANIL / FAÇO AQUI A MINHA HOMENAGEM 28 DE ABRIL.

Era uma vez o Comitê Popular das Águas do rio Jauquara.

Ivan Rubens
Educador Popular

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 14 de junho 2022

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