dez_Envolvimento


Amazonas é o maior estado brasileiro em extensão territorial. Sua capital é Manaus. Parintins é a segunda cidade mais populosa do estado. É mundialmente conhecida pelo Festival de Parintins.


Bate forte o tambor / Que eu quero é tic tic tic tic tac / É nesta dança que meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar / É nesta dança que meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar...


Toada de Boi é tradição que traz muita gente para a festa de Parintins. Não foi o caso de Paulo. Paulo é professor, mas um professor andarilho. Ele não foi ao Amazonas para a festa de Parintins. Ele carregava a festa dentro de si. Por muito tempo guardou no peito um desejo muito grande, uma curiosidade imensa de conhecer a região Norte do Brasil. Esse desejo foi, durante os anos de espera, se materializando em leituras, estudos, conversas com toda a gente que trouxesse elementos, histórias, experiências amazônicas. Tinha especial interesse pela floresta e seus mistérios, pelos rios em sua imensidão de água, pela gente da floresta e pelos povos indígenas. Pela geografia enfim. Sim, Paulo é geógrafo que desconfiava do suposto des-envolvimento do Brasil, marcadamente econômico e supostamente social, talvez um equívoco em certo aspecto. Porque a exploração desenfreada e gananciosa dos recursos naturais produzem um modo de viver “sem vida”, desvitalizam, agridem a Mãe Terra, esse frágil planeta azul. Geram destruição: poluem as águas e o ar, envenenam o solo. Ele queria mesmo é comer peixe de rio, fresco, que nada rio abaixo procurando comida e rio acima procurando águas camas para desovar na piracema. Ele queria comer açaí do pé, tomar suco da fruta. Estava cansado da gastronomia dos congelados, da proteína criada em confinamento e à base de ração de soja, dos sucos de caixinha.

As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar / As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar

De Manaus partiu para o interior. Pegou a primeira “estrada”, no caso o Rio Negro já no contato com o Solimões. Primeira grande descoberta: a diferença gritante de coloração. Não se conteve, mergulhou. Precisava sentir com o corpo inteiro aquilo que conhecia pelos livros. Percebeu a diferença de temperatura, de densidade e se certificou que ambos não se misturam. As águas do Negro e do Solimões fluem lado a lado por quilômetros. Na “esquina” do Rio Amazonas com o Madeira, virou à direita e durante horas olhou, do barco, as barrancas de terra caída, a floresta, as casas em palafitas e canoas atracadas, gente roçando mandioca.

Amazonas rio da minha vida / Imagem tão linda / Que meu Deus criou / Fez o céu a mata e a terra / Uniu os caboclos / Construiu o amor

É como se devorasse tudo com a boca, os olhos, os sentidos, o corpo enfim. Sentia a exuberância de vida que pulsava nas águas e na floresta. Sobretudo a gente do interior do estado. Gente simples, gente humilde, gente boa. Que sabe esperar, sabe receber. E que ensina o professor que o ENVOLVIMENTO é o caminho para que a vida seja mais viva. Porque, no limite, o que temos de verdade é uns/umas aos outrs.

E o professor andarilha se perguntando: de que des_envolvimento fala o cara pálida? Os povos ribeirinhos do Brasil das Águas mostram para o professor andarilho que envolver é bom, envolver é 10: dez_Envolvimentos!!!

Tic tic tac é uma toada de boi composta pelo pescador Braulino Lima.

 

Ivan Rubens

Educador popular


publicado no jornal Cidade de Rio Claro em 30 de novembro de 2021

Toda Menina Baiana

Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link: 



“Toda Menina Baiana” é uma canção de Gilberto Gil. Uma canção é uma obra que nasce dentro de um corpo e vai para o mundo. Neste caso, o corpo do Gil. Claro, uma criação nasce dentro de um corpo que está no mundo e é, portanto, atravessado pelas forças vivas do mundo. Confuso? Então vamos para a obra, vamos para a canção:

Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá / Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá / Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá / Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá / Que Deus deu / Que Deus dá...

Segundo o compositor, essa canção nasceu em Salvador para a sua filha mais velha, Nara Gil. Nara estava entrando na adolescência, a primeira filha adolescente na vida do então casal Gilberto Gil e Belina de Aguiar. Na canção, Gil faz uns alertas para a primeira filha: fala do caráter fundador da Bahia, fala também das virtudes e defeitos do homem. Localizei a primeira gravação desta canção no álbum Realce de 1979 e, acredito que os comentários de Gil acerca da canção pertençam também a essa época.

Que Deus entendeu de dar a primazia / Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia / Primeira missa, primeiro índio abatido também / Que Deus deu

Nesta perspectiva, compreendemos que ele esteja se referindo à dimensão da humanidade de mulheres e homens: “Por força da busca de compreensão do divino no humano, eu me empenhava em me desvencilhar do maniqueísmo, abarcando as idéias ligadas tanto ao bem quanto ao mal, um tema básico de minhas canções: reiterar o sentido da tolerância, do perdão, da compreensão de que o homem é permeado pelo bem e pelo mal e de que a superação de um implica a superação do outro; você não se livra do mal sem se livrar do bem. A promessa das religiões reside nisso: na superação transcendental de ambos", disse Gilberto Gil a propósito dessa canção.

Que Deus entendeu de dar toda magia / Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia / Primeiro carnaval, primeiro pelourinho também / Que Deus deu

Podemos pensar o maniqueísmo como um conflito entre o bem e o mal. Para livrar-se do mal é necessário livrar-se do bem, e vice-versa. Bem e mal são as duas faces de uma mesma moeda. Bem e mal são as duas cabeças de um mesmo dragão, duas cabeças cujo olhar está carregado de magia, uma certa magia com ares de sedução.

Que Deus deu / Que Deus dá

Salvador, capital da Bahia, é considerada a cidade mais negra fora do continente africano. Na canção, toda magia, o bem e o mal aparecem como primeiro chão, como a base, uma espécie de território de dor mas também de festa porque a vida também é feita dessas antíteses, dessas contradições. Talvez seja essa a obra que nasce dentro do corpo do artista que, atravessado pelas forças vivas do mundo, sai do corpo e rebenta. E nos coloca nesse lugar e neste tempo, novembro de 2021, celebrando uma África que se faz em nós.

Viva Zumbi, viva Antônio Conselheiro, viva Corisco, Lampião e Maria Bonita. Viva Gilberto Gil cujo corpo negro vestido de Ministro da Cultura levou a menina baiana (e a Bahia menina) e fez a festa no plenário das Nações Unidas.

Ivan Rubens
Estudante




o show completo da Bahia menina no plenário da ONU pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=l7PjqJLGq7w


https://www.youtube.com/watch?v=l7PjqJLGq7w


texto publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 02 de novembro de 2021.