Quero quero
A Vida Boa de Zé Miguel
Ele poderia dizer: amanheceu! Mas um artista não fala assim. Um artista da música faz, com palavras e sons, obras de arte. Um artista nos apresenta paisagens, mostra a potência do simples, abre nossos sentidos para perceber a beleza.
A canção Vida Boa começa assim:
O dia nos chega toda manhã / Com nuvens de fogo pintando o céu / Um ventinho frio sopra sim e assim / Vez em quando se escuta o canto do Japiim.
Uma obra de arte requer atenção. O artista coloca nossa atenção nas cores da manhã, no vento, no canto do Japiim. Japiim é uma ave de plumagem preta e amarela, comum na Amazônia brasileira, que tem uma característica peculiar: não tem um canto próprio, ele imita o canto dos outros pássaros. Ou seja, o artista sugere que é possível escutar o que ainda não foi dito, é possível ler nas entrelinhas. Pura provocação.
A canção continua…
A canoa balança bem devagar / A maré vazou, encheu, é preamar, eh / O Zé vai pro mato apanhar açaí / Maria pra roça vai capinar / A vida daqui é assim devagar / Precisa mais nada não pra atrapalhar / Basta o céu, o sol, o rio e o ar. / E um pirão de açaí com tamuatá.
O artista fala de um lugar onde as pessoas vivem do jeito que lhes agrada. Uma pessoa da cidade, com cabeça de cidade, carioca ou gaúcha por exemplo, talvez tenha muita dificuldade de se libertar do ritmo frenético dos apps como o tiktok e o twitter, da rotina acelerada do Zé Delivery ou do ifood, ou de uma Maria ligada aos ritos palacianos. E, escorregando em julgamentos morais, dizer que a canção “estimula a vagabundagem”. Quem dera???
A canção apresenta uma vida onde o trabalho na roça, na coleta, na pesca, parece voltado à ‘subsistência’. O Zé vai para o mato apanhar açaí, Maria vai capinar a roça. Devagar, divagando. Me alegra pensar que a natureza nos oferece tudo o necessário para sustentação da vida: água, ar, comida. E pensar que ainda há no Brasil comida partilhada: açaí no pé, peixe no rio, mandioca na terra, banana. Aliás, Tamuatá é um peixe típico dos rios da Amazônia, saboroso, combina bem com o açaí, talvez você conheça por Cascudo.
Uma obra de arte tem a potência de colocar um mundo diante de outros mundos, uma vida diante de outras possibilidades de vida.
A canção continua…
Que vida boa sumano / Nós não tem nem que fazer planos / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa / Que vida boa suprimo / Nós só tem que fazer menino / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa
Sumano é um regionalismo para expressões de carinho, tipo “irmão querido, querida irmã”. Disse o artista: “Quando eu era criança, nas férias escolares, eu voltava ao encontro da minha família no interior do Amapá, num lugar chamado Mel. Lá vivia meu avô, e foi lá que eu tive contato com os elementos da natureza na sua essência, eu aprendi a respeitar a natureza e o homem vivendo em harmonia com ela. Essa canção foi feita para homens e mulheres do campo”. ‘Fazer menino’ é um jeito bonito de dizer que a vida tem profundidade, um jeito bonito de dizer que o que interessa na vida, bom… isso não cabe nos planos.
Vida Boa é uma canção do amapaense Zé Miguel.
Ivan Rubens
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Pérola azulada
Zé Miguel é um artista amapaense. Cantor e compositor, sua bonita obra está disponível nas plataformas de música. Em parceria com Joãozinho Gomes, a canção Pérola azulada diz assim:
Já aprendi voar dentro de você / Ancorar no espaço ao sentir cansaço / Ossos da jornada /
Já aprendi viver como vive nu / Um cacique arara cultivando aurora / Luz de sua tiara
O compositor inicia a canção dizendo que aprendeu, portanto sabe, “voar dentro de você”. Você, quem? de quem o artista está falando?
Fala do espaço e de uma jornada, cita “um cacique arara cultivando aurora”, manhã. Talvez esteja se referindo à ararinha azul, mais provável que fale de indígenas: o povo Arara. A música lança suas primeiras provocações a ouvintes curiosos da obra de arte… E a canção continua:
Eu amo você terra minha amada / Minha oca meu iglu, minha casa / Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe
A canção vai se revelando: “você” é a terra. Para Joãozinho e Zé Miguel, o planeta Terra é oca, iglu, casa. Oca é onde moram os indígenas das florestas, Iglu é onde moram os povos das geleiras, e casa é o jeito como nos referimos às habitações mais das cidades. Podemos pensar que oca, iglu e casa são lugares de recolhimento, de sossego, de acolhimento, de intimidade, de descanso do corpo. Podemos pensar também o corpo como casa, casa do espírito, casa da alma. Também podemos pensar o corpo como casa da vida. Se o coração para, se o pulmão para, se o cérebro para, ou seja, se o corpo para de funcionar, a vida acaba. Então, o corpo é a casa da vida.
Já aprendi nadar em seu mar azul / Adorar água, homem peixe, água / Fonte iluminada /
Já aprendi a ser parte de você / Respeitar a vida em sua barriga / Quantos mais vão aprender
Joãozinho e Zé Miguel nos convidam a pensar a Terra como a nossa casa, pensar a Terra como casa comum aos povos da floresta, povos das geleiras, povos das cidades. Haveria vida fora da Terra? Em que condições? Portanto, podemos pensar a Terra como casa dos peixes e dos bichos, das plantas, das águas, dos ventos, uma casa iluminada pois ensolarada e enluarada. A Terra pode ser compreendida como a casa de maneira ampla, a Terra como a casa de todas as formas de vida.
Eles amam a Terra e usam uma expressão muito bonita: “pérola azulada” pendurada no colar de deus. Como se deus vestindo um colar com uma pérola azulada, com a Terra pendurada no pescoço. Linda a imagem… Mas, perceba: terra, casa, vida, pérola, conta, palavras no feminino. Não à toa, o artista pede bênção para a mãe.
Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe
Mãe Terra, linda a associação. A mãe é suporte para a vida, a mãe é a casa do bebê. Da mãe viemos e, mesmo rompido o cordão umbilical, os laços afetivos jamais se rompem. Mãe cuida de filhos/as e filhos/as cuidam da mãe. Quem ama, cuida. É preciso cuidar da Terra.
A benção minha mãe, Sandra Jordão. A benção minha mãe, Pérola Azulada.
Ivan Rubens