Mesura na luz do dia, mizura pra todo Canto



Amanhece mais um dia chuvoso. É água pra todo canto. Chove lá fora, um professor lê. Um professor que se faz na vida, estudar é prática do professor. Professor e professora são pessoas que ensinam, têm portanto o ofício de ensinar, para tanto estar num determinado lugar e tempo marcados, num lugar chamado escola. Nesta perspectiva, ensinar e aprender têm espaço e tempo determinados. Professor e professora dão aula, dão tarefas para alunos e alunas realizarem em casa, pesquisas, idas à biblioteca, pesquisas na comunidade e etc. Olhando desta maneira, professor/a ensina, aluno/a aprende, escola é lugar de ensino e aprendizagem. Mas onde é a escola?


É água pra todo canto. Chove lá fora, um professor lê um livro escrito por outro professor. Fernando Canto é um amazônida de Óbidos no Pará, professor e pesquisador, mestre e doutor. Certamente Fernando Canto estudou com os olhos nos livros, com os olhos nas letras, ele leu e escreveu. Artista, Canto foi compositor, viveu festivais, participou do Grupo Musical Pilão com forte influência no contexto da música amapaense, publicou cerca de 15 livros de diversos gêneros literários. Canto estudou com os olhos no mundo.


Água pra todo Canto. Um professor lê “A água benta e o diabo”, conhece o marabaixo como expressão cultural de um povo. Nem ensino nem aprendizagem mas, ‘encontro’. Dois professores que leem livros, que escrevem textos, que estão atentos às coisas do mundo, atentos às diferentes culturas, atentos às artes, professores que estudam. Isso: encontro de dois professores que estudam.


A canção ‘Meu Endereço’, de Fernando Canto e Zé Miguel, diz assim:

A CASA POR ONDE PARO / QUALQUER CARTEIRO CONHECE / É FEITA DE SONHO E LINHA / QUE BRILHA QUANDO ANOITECE

A casa feita de sonho e linha é um lugar de tecelagem. A canção continua, bela e misteriosa:

NA MINHA CASA SE TECE / MESURA NA LUZ DO DIA / PRA AFUGENTAR QUEBRANTO NA HORA DA FANTASIA

Com a ajuda dos dicionários da língua portuguesa, ‘tecer’ pode ser compreendido como ‘costurar’. ‘Afugentar’ pode ser ‘espantar’ e, ‘quebranto’ pode ser ‘abatimento’, ‘fraqueza’. ‘Mesura’ pode ser compreendida como ‘cumprimento cerimonioso’, ‘cortesia’. Então, a frase pode dizer: costura de cortesia / pra espantar fraqueza / na hora da fantasia. Contudo, na Amazônia, ‘mizura’ ou ‘misura’ é uma ‘visagem’, um fantasma ou esse tipo de coisa misteriosa. Territorializada, a bela e misteriosa frase apresenta um sentido outro:

NA MINHA CASA SE TECE / visagem NA LUZ DO DIA / PRA AFUGENTAR QUEBRANTO NA HORA DA FANTASIA


É lindo, não? fantasia pura. Aliás, ‘fantasia’ pode ser a faculdade de imaginar, de criar pela imaginação. Na canção Meu Endereço, a casa é um lugar da criação, da imaginação, da fabulação, de características humanas, daquilo que humaniza. E se pensarmos que a casa do artista pode ser em muitos lugares, o mundo é o lugar da tecitura, da costura, do arranjo, das várias formas de criação, daquilo que humaniza. O mundo é uma grande escola.

Chove lá fora, é água pra todo Canto. Fernando se encantou em outubro de 2024.


Ivan Rubens



Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 18 de fevereiro de 2025


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