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Esotérico (ou) Gil Moreno


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Numa noite de outubro ao lado da Casa do Artesão na cidade de Macapá, durante o 16º Festival Amapá Jazz, a cantora Vanessa Moreno disse: “Gilberto Gil consegue chegar lá no ápice da beleza e traz pra gente, consegue chegar no ápice da dor e também traz aquela informação pra gente de um jeito possível. Ele abraça a gente…” Vanessa convidou o público presente a cantar Esotérico com ela, mas cantar de um jeito diferente. Segundo a artista, “a gente costuma cantar para o outro. Eu fiz um exercício de cantar essa canção pra mim mesma e percebi que muda tudo”. É como se você estivesse olhando nos seus próprios olhos e cantando, é como se você estivesse se olhando no espelho e cantando, falando e ouvindo cada palavra da canção do Gil.

Vanessa Moreno, paulista de São Bernardo do Campo, é uma artista brasileira. Cantora, compositora, instrumentista, aos 37 anos de idade é considerada uma das grandes revelações da música brasileira da atualidade. Sua expressividade e virtuosismo técnico como cantora são cativantes, sua capacidade de transitar por muitos ritmos da música popular, sua performance, sua percussão vocal e corporal inclusive fazendo som com objetos de uso cotidiano marcam suas apresentações. Topamos o convite de Vanessa. Esotérico, de Gilberto Gil, começa assim:

Não adianta nem me abandonar / Porque mistério sempre há de pintar por aí / Pessoas até muito mais vão lhe amar / Até muito mais difíceis que eu pra você / Que eu, que dois, que dez, que dez milhões / Todos iguais

Não adianta fugir daquilo que afeta, que incomoda, que desestabiliza. Não adianta tergiversar, não adianta escapar, adiar, procrastinar não adianta. A vida é cheia de mistérios, o mundo é um grande mistério, toda pessoa tem seus mistérios e uma dose de opacidade. Vida, mundo, gente, grande e doce mistério. Viver, conviver é estar em contato com esse mistério, circulando, fluindo, sempre em movimento. Então, seguindo a pista da Vanessa Moreno, não adianta se abandonar porque o mistério está aí, presente, ligado, circulando pelo mundo, fluindo feito rio.

Até que nem tanto esotérico assim / Se eu sou algo incompreensível / Meu Deus é mais / Mistério sempre há de pintar por aí

Exotérico tem a ver com exótico, com exterior, com o fora. Do grego eso, "dentro de", esoterismo é, então, o saber propriamente interior, que existe para lá das aparências e que exige muito esforço para atingi-lo. Mistério, incompreensível, humano.

Não adianta nem me abandonar / Nem ficar tão apaixonada, que nada! / Que não sabe nadar / Que morre afogada por mim

Para Gil, essa canção é uma tentativa de trazer para o chão a ideia de mistério divino para pensar o esotérico como atingível para o ser humano, no bojo da complexidade de nosso afeto. A canção nasceu da vontade de falar do esotérico como uma relação amorosa, portanto humana. É divino, é humano, é demasiado humano e pode ser muito mais. Pode ir “além do homem” (Nietzsche), pode “ser mais” (Paulo Freire).

Esotérico, de Gilberto Gil com o charme da Vanessa Moreno ao vento equatorial na margem esquerda do rio Amazonas: Esotérico Gil Moreno.


Ivan Rubens
Educador popular



Esotérico. com Gilberto Gil e Caetano Veloso




Esotérico. Com Vanessa Moreno.




Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 29 de outubro de 2024

Mu-dança

 



Quando me sentei para escrever esse texto, pensava no tema da ‘mudança’. Não uma mudança de casa ou de endereço, mas num movimento, algo parecido com uma dança. Foi quando pintou uma canção do Gilberto Gil.

Entre 1989 e 1992, Gil foi vereador na cidade de Salvador/BA. Interessante pensar um artista da potência criativa do Gil cumprindo as tarefas típicas de um vereador numa grande cidade, uma rotina de comissões, sessões plenárias, audiências públicas, parlatórios, rotina de um parlamentar. Um artista da música trabalha com palavras, com a estética das palavras, um parlamentar trabalha com a objetividade (ou obscuridade) das palavras. Ambos têm na palavra sua matéria prima. De 1989, a canção ‘O eterno deus Mu dança’ diz assim:

Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá / Sente-se que a coisa já não pode ficar como está / Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar / Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar: / “A gente quer mu-dança / O dia da mu-dança / A hora da mu-dança / O gesto da mu-dança”

Gil fala da moçada descontente, de uma massa gritando por mu-dança. A canção continua:

Sente-se – e não é somente aqui, mas em qualquer lugar: / Terras, povos diferentes – outros sonhos pra sonhar / Mesmo e até principalmente onde menos queixas há / Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está / Clamando por mu-dança / O tempo da mu-dança / O sinal da mu-dança / O ponto da mu-dança

É como se o fermento ainda executasse o seu trabalho de crescer a massa do pão. Terras e povos diferentes querem sonhar outros sonhos, reivindica-se o direito de sonhar por si, sonhar outros sonhos coletivos como fazem muitos povos indígenas. A canção sugere que algo ainda desconhecido se move no subterrâneo das cidades, em setores da sociedade, no inconsciente das pessoas e das comunidades. Note que até aqui Gil escreve ‘mu-dança’.

Quando da composição ainda no século passado, Gil “pensava em Lemúria, uma região pré-Atlântica de onde ter-se-ia originado a raça negra”.

Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar / O deus Mu dança! / O eterno deus Mu dança! / Talvez em paz Mu dança! / Talvez com sua lança (...)

Uma canção que celebra a mudança não poderia ser fixa, estática, imóvel. Em Gil, as palavras dançam, o texto dança, ele dá movimento. Desloca um grito por ‘mudança’ para ‘mu-dança’ chegando até ‘Mu dança’. E dá a Mu o status de deus, um deus que dança. Se deus, eterno. Então podemos, com o artista, celebrar a eternidade da mudança. Mudança enquanto condição, mudança desejável, mudança utópica como aquele horizonte que nos faz caminhar. Celebremos a mudança como abertura de horizontes possíveis, livres das amarras do certo/errado. Pelo contrário, aproveitemos as mudanças enquanto andanças, enquanto possibilidades de errar. E errando, nos movimentemos, caminhemos, mudemos, dancemos.

Quando me sentei para escrever esse texto, pensava no tema da ‘mudança’. Ao final desta escrita, sinto que alguma mudança aconteceu. Mudança, mu-dança ou Mu dança? Não sei. Aconteceu.

Ivan Rubens




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 11 de junho de 2024