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Deus me proteja


Para ouvir a canção durante sua leitura, clique aqui: 


Chico César é um artista brasileiro, nordestino da Paraíba, nascido em janeiro de 1964. A canção Deus me Proteja, diz assim:

DEUS ME PROTEJA DE MIM / E DA MALDADE DE GENTE BOA / DA BONDADE DA PESSOA RUIM / DEUS ME GOVERNE E GUARDE, ILUMINE E ZELE ASSIM

É comum as pessoas pedirem proteção contra algum mal. Veja, o artista pede proteção de 3 coisas: 1) proteção dele mesmo, 2) proteção da maldade de gente boa e 3) proteção da bondade da pessoa ruim. Maldade não é exclusividade de gente má assim como bondade não é exclusividade de gente boa. Ninguém é sempre bom, ninguém é sempre mau, nós carregamos toda essa complexidade dentro da gente.

Um amigo me perguntou se “gente ruim pode fazer bondades”. Para ele, quando uma pessoa ruim faz uma bondade, é fake, é maldade com máscara de bondade. Estávamos no interior do Mato Grosso quando, numa audiência pública, um fazendeiro da soja disse: “Eu também quero salvar o rio Paraguai”. Salvar um rio sufocando suas nascentes com monocultura? Salvar o rio jogando veneno no solo? Salvar o rio com o veneno no lençol freático? Salvar o rio com o veneno que escorre para o leito do rio com as águas da chuva?

Eu posso (me) fazer algo ruim, você pode fazer, todos podem fazer algo ruim. Então, a maldade não está necessariamente vinculada ao outro, à ação ou ao desejo de outrem. Até pode ser, mas não necessariamente. Eu não estou livre da prática de maldades, deliberadas ou escondidas, claras ou escamoteadas, conscientes ou inconsciente. Seres humanos não são transparentes, somos opacos, a transparência é ilusão. O caminho se faz caminhando…

CAMINHO SE CONHECE ANDANDO / ENTÃO VEZ EM QUANDO É BOM SE PERDER / PERDIDO FICA PERGUNTANDO / VAI SÓ PROCURANDO / E ACHA SEM SABER

Podemos falar em deriva, palavra de origem latina que significa ‘mudar o lugar da corrente de um rio’. Mudar é bom, mas mudar como? Mudar para onde? Mudar por que? Não sei. Talvez tais respostas sejam o fim da deriva. Porque as perguntas disparam movimentos, boas perguntas nos colocam na deriva, na busca, na procura, na caminhada. E nesse movimento, pode ser até que você encontre algo, que ache mesmo sem se dar conta que achou. Mas há um perigo...

PERIGO É SE ENCONTRAR PERDIDO / DEIXAR SEM TER SIDO / NÃO OLHAR, NÃO VER / BOM MESMO É TER SEXTO SENTIDO / SAIR DISTRAÍDO, ESPALHAR BEM-QUERER

Se encontrar perdido é um perigo. Se perder é se encontrar. Se perder de si, tem muita música popular que fala desse processo, dessa busca, desse risco, desse perigo de se perder e se encontrar. De encontrar dentro de si monstros maléficos, eles nos habitam sim da mesma forma que criaturas de rara beleza também nos habitam. Em cada um ou cada uma de nós rola esse jogo, esse balanço, esse fluxo de contradições, é como se o nosso corpo fosse um campo onde rola uma partida de futebol: as forças que dão vontade de viver X as forças que nos deprimem, que nos amedrontam. Forças de vida X forças de morte. E está tudo bem. O grande desafio é olhar o jogo sem medo e sem julgamentos. Olhar para tudo isso em si mesmo mesmo sabendo que é mais fácil enxergar as contradições dos outros.

Deus me proteja é uma canção do Chico César.

Ivan Rubens


Chico César e Mestrinho muito bem acompanhados.



Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 21 de janeiro de 2025

Velas Içadas


leia o texto ouvindo a canção.                
clique aqui: 


Velas Içadas é uma canção de Ivan Lins e Victor Martins e está no álbum de 1979 chamado A Noite. Velas Içadas diz assim:

SEU CORAÇÃO É UM BARCO DE VELAS IÇADAS / LONGE DOS MARES, DO TEMPO, DAS LOUCAS MARÉS / SEU CORAÇÃO É UM BARCO DE VELAS IÇADAS / SEM NEVOEIROS, TORMENTAS, SEQUER UM REVÉS

Os artistas usam o barco como metáfora para falar de um coração que nunca se lançou, que ainda não se aventurou nas ondas dos mares de amor. Um coração que nunca se aventurou apesar das ‘velas içadas’, ou seja, apesar de preparado e pronto para navegar, prefere permanecer naquele mesmo lugar, num porto ou num cais, distante das tormentas, longe dos mares, do tempo, das loucas marés. A canção continua:

SEU CORAÇÃO É UM BARCO JAMAIS NAVEGADO / NUNCA MOSTROU-SE POR DENTRO, ABRINDO OS PORÕES / SEU CORAÇÃO É UM BARCO QUE VIVE ANCORADO / NUNCA ARRISCOU-SE AO VENTO, ÀS GRANDES PAIXÕES

O coração é descrito como um barco que, mesmo diante das possibilidades, dos mistérios e das aventuras de imensos mares e oceanos, de águas e marés, de ventos e tempestades, de sóis e de luas, de belezas e calmarias, de silêncios e canto de pássaros, de surpresas e imprevistos, que mesmo diante de inimagináveis possibilidades, escolheu manter-se fechado e ancorado evitando, assim, o risco. Existem perigos nas experiências. Toda experiência carrega algum perigo. Vitor e, sobretudo, Ivan podem estar falando dos perigos e riscos que envolvem as grandes paixões, parecem estar falando daquilo que dá mais sabor à vida. Assim, ‘nunca soltou as amarras, nunca ficou à deriva’ pode dizer de uma vida contida onde uma certa obsessão por segurança e certezas dificultam, para não dizer impedem, experimentações. Falo aqui de experiência não como o acúmulo do tempo cronológico, não como acúmulo de saberes específicos, mas a experiência compreendida como aquilo que se experimenta, como experimentação e, no limite, como viver uma vida em intensidade, na potência, naquilo que a vida pode.

NUNCA SOLTOU AS AMARRAS / NUNCA FICOU À DERIVA / NUNCA SOFREU UM NAUFRÁGIO / NUNCA CRUZOU COM PIRATAS E AVENTUREIROS / NUNCA CUMPRIU O DESTINO DAS EMBARCAÇÕES

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. Diante da imensidão do mar, o barco precisa de orientação. Astrolábio, bússola, mapas, cartas náuticas, o GPS, radares e computadores garantem a chegada a um destino. Navegar é, portanto, necessário: marinheiros e aventureiros têm necessidade de navegação, ambicionam o desconhecidos, não conseguem ficar muito tempo em terra. Viver, por sua vez, não tem precisão, viver é incerto, viver é arriscar-se. Sem isso a vida pode parecer oca, a vida parece ficar sem sentido. Inerte, parada, ancorada, a vida parece insossa, inerte, desvitalizada e a consequência é a perda da esperança, opacidade da alma, adoecimento do corpo, enfraquecimento dos sentidos. Abrir mão de olhar, ouvir, cheirar o mundo, de tocar e se deixar tocar pelas belezas do mundo, impermeabilizar a pele para o mundo e suas belezas é tornar a humanidade fraca. É como vestir uma armadura, vestir uma capa para se proteger da chuva, do vento, da alegria-destino das embarcações. E, de tão protegidos, deixamos de viver ao ponto de aceitar qualquer coisa como arte, aceitar qualquer coisa como vida, aceitar qualquer coisa como amor.

Ivan Rubens