Em 17 de dezembro de 2024
conversa boa sobre as Andarilhagens Pantaneiras
conversa boa sobre Andarilhagens
disponível Canal de tv do Jornal Cidade de Rio Claro. Acesso em janeiro de 2025
Acesso ao livro: Acesso ao livro Andarilhagens - crônicas de uma pedagogia em movimento
Deus me proteja
Chico César é um artista brasileiro, nordestino da Paraíba, nascido em janeiro de 1964. A canção Deus me Proteja, diz assim:
DEUS ME PROTEJA DE MIM / E DA MALDADE DE GENTE BOA / DA BONDADE DA PESSOA RUIM / DEUS ME GOVERNE E GUARDE, ILUMINE E ZELE ASSIM
É comum as pessoas pedirem proteção contra algum mal. Veja, o artista pede proteção de 3 coisas: 1) proteção dele mesmo, 2) proteção da maldade de gente boa e 3) proteção da bondade da pessoa ruim. Maldade não é exclusividade de gente má assim como bondade não é exclusividade de gente boa. Ninguém é sempre bom, ninguém é sempre mau, nós carregamos toda essa complexidade dentro da gente.
Um amigo me perguntou se “gente ruim pode fazer bondades”. Para ele, quando uma pessoa ruim faz uma bondade, é fake, é maldade com máscara de bondade. Estávamos no interior do Mato Grosso quando, numa audiência pública, um fazendeiro da soja disse: “Eu também quero salvar o rio Paraguai”. Salvar um rio sufocando suas nascentes com monocultura? Salvar o rio jogando veneno no solo? Salvar o rio com o veneno no lençol freático? Salvar o rio com o veneno que escorre para o leito do rio com as águas da chuva?
Eu posso (me) fazer algo ruim, você pode fazer, todos podem fazer algo ruim. Então, a maldade não está necessariamente vinculada ao outro, à ação ou ao desejo de outrem. Até pode ser, mas não necessariamente. Eu não estou livre da prática de maldades, deliberadas ou escondidas, claras ou escamoteadas, conscientes ou inconsciente. Seres humanos não são transparentes, somos opacos, a transparência é ilusão. O caminho se faz caminhando…
CAMINHO SE CONHECE ANDANDO / ENTÃO VEZ EM QUANDO É BOM SE PERDER / PERDIDO FICA PERGUNTANDO / VAI SÓ PROCURANDO / E ACHA SEM SABER
Podemos falar em deriva, palavra de origem latina que significa ‘mudar o lugar da corrente de um rio’. Mudar é bom, mas mudar como? Mudar para onde? Mudar por que? Não sei. Talvez tais respostas sejam o fim da deriva. Porque as perguntas disparam movimentos, boas perguntas nos colocam na deriva, na busca, na procura, na caminhada. E nesse movimento, pode ser até que você encontre algo, que ache mesmo sem se dar conta que achou. Mas há um perigo...
PERIGO É SE ENCONTRAR PERDIDO / DEIXAR SEM TER SIDO / NÃO OLHAR, NÃO VER / BOM MESMO É TER SEXTO SENTIDO / SAIR DISTRAÍDO, ESPALHAR BEM-QUERER
Se encontrar perdido é um perigo. Se perder é se encontrar. Se perder de si, tem muita música popular que fala desse processo, dessa busca, desse risco, desse perigo de se perder e se encontrar. De encontrar dentro de si monstros maléficos, eles nos habitam sim da mesma forma que criaturas de rara beleza também nos habitam. Em cada um ou cada uma de nós rola esse jogo, esse balanço, esse fluxo de contradições, é como se o nosso corpo fosse um campo onde rola uma partida de futebol: as forças que dão vontade de viver X as forças que nos deprimem, que nos amedrontam. Forças de vida X forças de morte. E está tudo bem. O grande desafio é olhar o jogo sem medo e sem julgamentos. Olhar para tudo isso em si mesmo mesmo sabendo que é mais fácil enxergar as contradições dos outros.
Deus me proteja é uma canção do Chico César.
Ivan Rubens
Vieste
Sabe quando você pensa num assunto meio nebuloso, meio sem clareza, meio sem saber com alguma precisão do que é que você está pensando? pois é… E é meio assim mesmo porque o pensamento pode começar como uma massa disforme que, com o tempo, pode ser esculpido. É como uma argila bruta que vai ganhando uma forma de vaso, de cerâmica, de escultura, de artesanato. Uma porção de argila bruta que vai se transformando em obra de arte por força do trabalho de mãos humanas, de esforço humano, do trabalho que é ao mesmo tempo manual e criativo. São as mãos e a cabeça, as mãos e o coração, as mãos movidas por uma força que vem de dentro, do sentimento e das emoções, da alma ou do espírito, do trabalho humano.
Estava ali um pensamento disforme, um embolado na cabeça, um pensamento que voltava. Daqueles que você se pega pensando naquilo sem perceber que era naquilo que você estava pensando. Estava ali um sentimento disforme, um embolado no peito, um sentimento que voltava. Daqueles que você se pega sentindo aquilo sem perceber que era aquilo que você estava sentindo. Não se dispunha das palavras para nomear. Até que uma canção trouxe as primeiras palavras, foi uma canção que trouxe linguagem e, com linguagem, a argila bruta foi se transformando em uma obra concreta, um embolado no peito foi ganhando palavras da cabeça para os dedos que marcam uma folha de papel. A canção diz assim:
Vieste na hora exata / Com ares de festa e luas de prata / Vieste com encantos, vieste / Com beijos silvestres colhidos pra mim / Vieste com a natureza / Com as mãos camponesas plantadas em mim / Vieste com a cara e a coragem / Com malas, viagens pra dentro de mim / Meu amor
Ivan Rubens
#Ivan Lins #Vieste #MPB #Jazz na calçada
Andarilhagens Pantaneiras
Deus me proteja
Francisco César Gonçalves é um artista brasileiro. Nascido no interior da Paraíba, município de Catolé do Rocha em janeiro de 1964, Chico César é um dos grandes nomes da MPB na atualidade. Cantor, compositor, escritor, Chico estudou jornalismo na Universidade Federal da Paraíba onde passou pelo grupo Jaguaribe Carne, fazendo poesia de vanguarda. Uma canção direta, curtinha e muito cantada durante a pandemia do Covid, Deus me Proteja, diz assim...
Deus me proteja de mim / E da maldade de gente boa / Da bondade da pessoa ruim / Deus me governe e guarde, ilumine e zele assim
Eu posso me fazer algum mal? É comum as pessoas pedirem proteção contra algum mal que possa lhe ocorrer, algum mal que alguém possa lhe fazer ou lhe desejar. A canção do Chico Cesar nos convida a pensar que eu posso fazer mal a mim mesmo, neste caso melhor pedir proteção divina: “Deus me proteja de mim” porque eu não sou totalmente bonzinho, eu não sou totalmente boazinha, tenho uma porção de maldade aqui dentro também.
Gente boa pode fazer mal? Sim, pode. O artista parece estar dizendo que a prática da maldade não é exclusividade de gente má. Então ele pede proteção das mandades praticadas por gente boa. Então, melhor pedir proteção divina: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa” porque ninguém é totalmente bonzinho, ninguém é totalmente boazinha, todos têm uma porção de maldade dentro de si também.
Estamos seguindo parte por parte, pedacinho por pedacinho desta primeira frase que, na nossa modesta opinião, é muito densa e muito complexa. E chegamos na parte mais difícil. Gente ruim pode fazer bondades? Meu amigo Silvio parece pensar que não, que gente ruim é ruim e, portanto, quando gente ruim resolve fazer uma bondade trata-se da pior bondade, aquela maldade mascarada de bondade. Então, neste caso, é melhor pedir proteção divina: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa, da bondade da pessoa ruim”.
Podemos pensar na perspectiva da hipocrisia. Dia desses, Silvio e eu ouvimos de um fazendeiro que planta soja, mares de soja, um grande sojeiro anunciando numa audiência pública: “Eu também quero salvar o rio Paraguai”. Salvar o rio paraguai com monocultura de soja? Hipocrisia!!! Ou aquela pessoa muito presente na igreja, seja lá qual igreja for, que se apresenta socialmente temente a deus mas não titubeia em passar rasteira nos outros, que prejudica as pessoas, que faz dos fieis mero rebanho eleitoral, temente a deus que defende golpe de estado, que defende o uso de armas. Arma não serve como peso de papel, não serve para evitar que a porta bata com o vento, não. Arma serve para matar!!! Hipocrisia.
A canção é um convite ao pensamento... Eu posso me fazer algo de ruim, algo maléfico? Sim, posso. Você pode fazer, todos podem fazer algo maléfico e ruim. Neste caso, qualquer maldade não está necessariamente vinculada ao outro, a ação de outrem, ao desejo de outra pessoa. Até pode ser, mas não necessariamente. Eu não estou livre da prática de maldades, deliberadas ou escondidas, claras ou escamoteadas em nossas próprias práticas de proteção inconsciente. Seres humanos não têm nada de transparência. A transparência é pura ilusão, ou mais uma prática de escamoteamento. Afinal, o caminho se faz caminhando...
Caminho se conhece andando / Então vez em quando é bom se perder / Perdido fica perguntando / Vai só procurando / E acha sem saber
Bonito pensar nessa deriva. Deriva que também é uma palavra muito bonita. Do latim, significa ‘mudar o lugar da corrente de um rio’, significa portanto mudar, alterar. Que bom. Gosto que as coisas mudem. Na verdade, eu ficaria em pânico se soubesse que as coisas não mudariam. Claro, tem coisa que preferimos conservar mas tem coisas que preferimos mudar. Mas mudar como? Mudar para onde? Mudar por que? Não sei. E talvez tais respostas signifiquem o final da deriva. Neste caso, prefiro as perguntas, elas disparam movimentos, as perguntas, boas perguntas nos colocam na deriva, na busca, na procura, na caminhada. E nesse movimento, pode ser até que você encontre algo, que ache mesmo sem se dar conta que achou. Mas há um perigo...
Perigo é se encontrar perdido / Deixar sem ter sido / Não olhar, não ver
Se encontrar perdido é um perigo. Se perder é se encontrar. Se perder de si, tem muita música popular que fala desse processo, dessa busca, desse risco, desse perigo de se perder e se achar, de se perder e de se encontrar. De encontrar dentro de si monstros maléficos, eles nos habitam sim da mesma forma que criaturas de rara beleza também nos habitam. E cada um de nós é esse jogo, esse balanço, esse fluxo de contradições, de forças de vida e forças de morte. E está tudo bem. O grande desafio é não deixar de olhar para tudo isso, sem medo e sem julgamentos. Olhar para tudo isso em si mesmo mesmo sabendo que é muito mais fácil perceber contradições e sobretudo hipocrisias nos outros. Contradições e hipocrisias que estão nos outros e estão também, de alguma forma, em cada um e cada uma de nós.
Não, Silvio, você não defende o rio Paraguai fazendo monocultura. Muito pelo contrário, você defende o rio Paraguai pisoteando a soja e carregando sua bandeira de lutas. Você é um bom educador popular, você faz diferença (e não estou usando um modismo), mais do que bio-diversidades você produz bio-diferenças.
Bom mesmo é ter sexto sentido / Sair distraído, espalhar bem-querer
Deus me proteja é uma canção do Chico Cesar. E este texto é um encontro com ele e Silvio Munari.
Ivan Rubens
Um pouquinho por dia
Nasce um bebê. É linda essa cena. O choro da criança aparece como um grito: CHEGUEI!!! Mas, cheguei onde? que mundo é esse?
Coloque-se no lugar do bebê. Você fica cerca de 40 semanas dentro de uma barriga, protegido ou protegida, recebendo tudo que precisa para sobreviver. Até que um dia, você, bebê, sai da barriga e vai para o mundo. Mas que mundo é esse?
Um bebê não fala. Mas, se falasse, o que diria?
O que você, bebê, diria na chegada a este nosso mundo?
Então você deixa aquele mundo de água, passa por um estreito apertadíssimo e é lançado/a para fora. Mãos te tocam, te enrolam em panos, dedo na tua boca, no teu nariz e teus olhos… E tem um choque térmico: se num hospital, certamente uma sala com ar condicionado em baixa temperatura, se numa aldeia na floresta provavelmente calor, muito calor. E seus braços se movem, pernas, mãos se movem, e coisas que você não conhece tocam no seu corpo, toalhas, paninhos, mãos, algodão. E um monte de ruído toca seus ouvidos, cheiros e tal, um mamilo encontra tua boca… o que te resta é sentir, sentir e sentir.
Ou seja, sua primeira relação com este mundo extra_uterino acontece nos cinco sentidos: audição, olfato, tato e, até, visão e paladar. Ouvidos, nariz, pele, e até os olhos e a língua são intensamente estimulados, mas você não tem palavras para dizer o que te acontece, ainda não tem linguagem, consciência, razão, isso virá com o tempo. Pelo menos não esta linguagem e esta razão que mobilizamos ao ler (e escrever) este texto. O que está operando em você, bebê, talvez uma experimentação intensiva. Você está nascendo para uma (muitas) vida(s) neste mundo. A primeira relação com este mundo fora do útero é sensível e, acredito, a sensibilidade pode ser cultivada durante a vida.
Tem uma palavra para dizer da “apreensão pelos sentidos”. Estética deriva da palavra grega ‘aisthesis’, é uma forma de conhecer, de apreender o mundo através dos cinco sentidos. Uma música, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos ouvidos. Uma tela, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos olhos. Uma poesia, literatura, dança, ou o cheiro de uma comida, um prato bonito, o barulho da cerveja caindo no copo, o cheiro do vinho, a cor do suco da fruta colhida do pé, tudo isso vai criando um desejo. Estamos falando de um cultivo da sensibilidade que nos torna mais humanos, um pouquinho por dia.
O contrário também pode acontecer, podemos cultivar sementinhas de medo e ódio, um pouquinho por dia. Bem, eu acredito nas belezas como produtoras de sensibilidades e de uma humanidade mais interessante. E também acredito na natureza como produtora de uma humanidade mais interessante… quem nunca se sentiu pequenino diante da exuberância e da força da natureza? Diante da imensidão do mar, diante de um por de sol, diante da chuva intensa, diante da força de um rio, diante da lua cheia, diante de um cânion ou de uma cachoeira? Tudo isso pode nos tornar seres vivos mais interessantes, um pouquinho por dia.
Ivan Rubens
Educador popular
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 25 de novembro de 2024
Esotérico (ou) Gil Moreno
Velas Içadas
Igarapé das mulheres (parte II)
Osmar Jr é um artista brasileiro. Nortista de Macapá, é cantor, compositor, poeta, na constelação da música popular amapaense. Iniciou seus estudos musicais aos 14 anos de idade. A canção "Igarapé das Mulheres" diz assim:
O tempo leva tudo / O tempo leva a vida / Lá fora as margaridas fazem cor / Eu lembro a alegria / Boiar naquelas águas / E ver as lavadeiras lavando a dor / E lavavam a minha esperança perdida / De crescer lá no igarapé / E lavavam o medo que tinha da vida / E agora o meu medo o que é?
“Igarapé” está no título, "tempo" inicia a canção. Se igarapé é uma espécie de rio, podemos associar rio e tempo. Rio tem fluxo, tempo tem fluxo. Rio passa, tempo passa. Se o tempo passa, a vida passa. É feito um rio: flui. Rio flui, vida flui. Quantas vezes não nos pegamos pensando: "se eu pudesse voltar no tempo, faria diferente". Mas isso não é possível. Então, “o tempo leva tudo, o tempo leva a vida”. O artista fala de um tempo de alegria, boiar naquelas águas, brincar no igarapé ali mesmo onde mulheres lavavam as roupas, onde margaridas fazem cor. Linda a imagem trazida pelo poeta. A canção continua…
A minha nave, um tronco navegava / As estrelas, entre as palafitas / E as lavadeiras / Nas minhas aventuras, Poraquê / Pirarara, Piranha Peixe-Boi, Boto, Igara / E lavavam a minha paixão corrompida / As mulheres do igarapé / As Joanas, Marias, deusas, Margaridas / Lavarão o que ainda vier
O artista continua nos apresentando paisagens: um tronco que navega levando o artista a uma viagem imaginária, estrelas brilhando, palafitas, lavadeiras. Podemos imaginar mulheres, os pés molhados de igarapé, cantando enquanto lavam roupas, panos, toalhas etc. Peixe elétrico, pirararas, piranhas, bichos perigosos e encantados pela poesia. Quem seriam as mulheres que lavam a paixão corrompida?
Joanas, Marias, deusas, Margaridas. Se Margaridas, mulheres. Mulheres-flores.
Osmar fala de uma paixão corrompida que foi lavada. Mas o que seria uma paixão corrompida? paixão corrompida pode ser compreendida como uma paixão contaminada, paixão estragada, subornada. Paixão destruída, paixão que foi maculada por alguma força de repressão, alguma força de negação. Numa perspectiva mais alegre, podemos pensar que a paixão está sendo restaurada. Sobretudo se considerarmos que a paixão foi lavada pelas mulheres do igarapé. Dada a extraordinária das mulheres e das flores, e da água do igarapé (palavra musical), a corrupção realizada na paixão foi lavada e, não bastasse, o artista sabe o risco permanente que a paixão está submetida. A paixão está ameaçada pela corrupção do mundo humano, das forças que corrompem a paixão ontem, hoje e sempre. Há paixões corrompidas que esperam ser lavadas para virar paixão renovada, e, neste processo de estragar a paixão e reapaixonar, podemos usar a palavra reencanto. Cantar e reencantar, com todos os riscos da corrupção humana.
Corromper a paixão pode ser compreendida como estragar uma paixão. Quem nunca? errar e desejar que o tempo volte para seguir por outros caminhos. Mas foi, e o tempo não volta. É como rio que flui da nascente até a foz, a vida flui do nascimento até a morte. Princípio, meio e fim.
Ivan Rubens
Tempo com você
Tempo com você
(Cláudio Bolão e Ivan Rubens)
Quero te levar pra conhecer
o amanhecer, ver o sol nascer
Mas que dia lindo
É você sorrindo
O vento assanhando teus cabelos
o seu olhar perdido em tom de apelo
Na aurora então, surge uma paixão
Quero é provar o teu sabor
deliciar o puro mel da flor
Onde o dia é mais puro
e o tempo é mais seguro
Vamos nos deliciar nesse prazer
da nascente até o entardecer
Mais um dia de domingo
ver o teu rosto sorrindo
Felicidade é ter tempo com você
Quero te levar pra ver o mundo
quando a vida passa num segundo
chove agora, então
Macapá, Carvão
Vamos nos deliciar nesse prazer
da nascente até o entardecer
Mais um dia de domingo
ver o teu rosto sorrindo
Felicidade é ter tempo com você
Maré cheia
Maré cheia
(Claudio Bolão e Ivan Rubens)
uma criança pés na areia
olhos para o rio
imenso e misterioso rio
uma criança pés na areia
olhos para o mar
imenso e misterioso mar
Uma criança brincando na areia
pulando as ondas, virando sereia
É maré cheia
Uma criança brincando na areia
pulando as ondas, virando sereia
É maré cheia
Uma criança entrando na mata
colhendo maracujá,
brincadeira, taperabá.
Uma criança entrando na mata
colhendo burití,
brincadeira, uxí, bacurí.
Uma criança, uma meninota,
o tempo passando outra vida que brota
É maricota.
Uma criança, uma meninota,
o tempo passando outra vida que brota
É maricota.
(solo longo)
Uma criança brincando na areia
pulando as ondas, virando sereia
É maré cheia
É maricota
É mar e flora
É maré cheia
Um voo mais bonito
Depois de refutar a si próprio pensando no sonho de igualdade, e um canoeiro vencendo a força do majestoso rio Amazonas com seu remo em punho...
Das terras tucujus onde a floresta é diversidade pura, diferença pura em perfeita harmonia
Assim como o açaí e farinha d'água com peixe ou camarão
Assim como o queijo com goiabada que chegam de fora contribuindo com a diferença e a harmonia
Tudo isso que a vida nos oferece de beleza e alegria,
Natureza viva...
em respeito a tudo isso, em respeito a todos e todas nós, um sonho de igualdade em direitos e oportunidades.... Um voo mais bonito
Lá na margem longa, cotovelo de um rio
no encontro de horizontes
no céu puro, uma fonte a me desaguar
Avisto_o revoar
Avisto_o revoar
Há norteador de coragem
quanta certeza dentro desses corações
No voo mais bonito, como alcançar?
Vem nos acordar
Vem nos acordar
no despontar do sol a cada manhã
toda verdade ali, naquela alvorada de passarinhos
Que sejamos gaivotas
sejamos pardais
que sejais curruíras, curió, tanto faz
de pluma branca, mestiça, amarela
nós somos iguais.
Que sejamos gaivotas
sejamos pardais
que sejais curruíras, curió, tanto faz
Cantando, voando, horizontes abertos
nós somos iguais.
(Cláudio Bolão e Ivan Rubens)
Igarapé das mulheres (parte I)
Inicio a primeira parte deste texto com uma afirmação: cada palavra é um mundo! Se você conhece o museu da língua portuguesa na capital paulista, ouviu uma frase que é repetida como um refrão: "penetra surdamente no reino das palavras, penetra surdamente no reino das palavras, no reino das palavras, das palavras"... Trata-se do fragmento de um poema de Carlos Drummond de Andrade:
Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (…) / Chega mais perto e contempla as palavras. / Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra / e te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível, que lhe deres: "Trouxeste a chave?"
Para Drummond, cada pessoa carrega (talvez dentro do coração) a chave para entrar no reino das palavras, lugar onde estão os poemas que ainda não foram escritos. O poeta te convida para chegar mais perto, te convida para contemplar as mil facetas das palavras. São faces secretas, facetas escondidas debaixo de uma face aparentemente neutra. Mas as palavras não são neutras, as palavras não são neutras! Por algum motivo meu inconsciente me coloca neste poema do Drummond com uma outra palavra. No lugar de ‘reino, sempre vem a palavra ‘mundo’. Inconscientemente, ‘mundo’ substitui ‘reino’. Na minha leitura mais íntima fica assim: penetra surdamente no mundo das palavras. Penetra surdamente no mundo das palavras, no mundo das palavras, das palavras... Desatento, aquele estado que o inconsciente (danadinho) se manifesta, troco ‘reino’ por ‘mundo’. Gosto dessa manobra inconsciente. Particularmente, gosto mais de mundos do que de reinos. Reino pressupõe um castelo com uma porta imensa, rodeada de soldados, trancas e chaves. Mundos talvez não tenham portas, nem trancas, nem soldados, nem chaves. Pelo menos os mundos aqui imaginados.
Que bom poder imaginar livremente... imaginar mundos abertos, sem portas nem chaves, nem grades de todo tipo, grades físicas como aquelas que protegem janelas das casas nas cidades, tampouco as grades que limitam nossa capacidade de pensar, grades que estão dentro das cabeças, grades que impedem o corpo de sentir, o coração de sentir, grades não físicas mas, por assim dizer, grades imateriais, grades subjetivas.
Uma palavra muito presente na Amazônia e no Pantanal, tem uma sonoridade adorável: Igarapé. A palavra foi adotada do tupi e significa literalmente "caminho de canoa", dada a junção dos termos ‘ygara’ (canoa) e ‘apé’ (caminho). Lindo, não? Na língua Tupi, igarapé é "caminho da canoa"! Podemos dizer que igarapé é um curso d'água constituído por um braço longo de rio ou canal. Apenas pequenas embarcações, como canoas e pequenos barcos, podem navegar pelas águas de um igarapé devido a sua baixa profundidade e por ser estreito.
Na cidade de Macapá/AP, o Igarapé das Mulheres lança suas águas no rio Amazonas, e recebe influência do rio Amazonas. No próximo artigo você conhecerá a canção ‘Igarapé das Mulheres’. Até lá.
Ivan Rubens
Mu-dança
Ébrios
Que sejamos nós os ébrios
Os que espalham, régios,
O mundano evangelho das esquinas!
Proclamemos, nós, sinais
Do fígado das horas
E as canções profanas!
Não nos dobremos, nós
À putrefata voz do algoz
Que nos sublima!
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Intrépidos? Profanos!
Que sejamos nós os bêbados
que caminham, trôpegos,
As esquinas mundanas da cidade fria
Beberemos, nós, sinais
Do trânsito acelerado
E dos carros violentos
Só nos dobremos, nós
À marquise úmida
Que nos abriga
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Artrópodes? Profanos!
Que sejamos nós os loucos
Os que empurram, poucos,
Carrinhos, papelões, amigos fiéis
Reclamemos, nós, sinais
Do muro alto que separa
E do portão que aprisiona
Só nos dobremos, nós
À beleza da arte
Que nos liberta
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Antropófagos profanos!
Nuno Moraes e Ivan Rubena
Quero quero
Jatobá
(introdução com o som dos jatobás)
O som da cachoeira vindo do Jatobá / Nasci na cordilheira desaguei no Guamá / Tesouro escondido que atrai o olhar / Banzeiro diferente, Araxá, Macapá.
Paisagem, simetria, coração por um fio / Poesia rabiscada, ensaiada num canto do Brasil
Lampejo, gravidade / estou saindo do chão / Vestindo um chapéu / de palha “azul confusão” / Na aba o mistério, tão intensa atração! / Maria que o diga, acordes desta canção.
Ensaio, fim de tarde, bossa, blue, um café / E eu tiro o chapéu, retiro meu chapéu só pr'aquela mulher
É nessa onda carimbó, marabaixo / que eu saio pro mato sem pressa de voltar / Visto o chapéu azul que controla o tempo, / no preciso momento, à sombra do jatobá.
Cláudio Bolão e Ivan Rubens
Falsete da emoção
Falsete de emoção
Pare na ladeira / descida traiçoeira / Mudança de Estação
Em raios lancinantes / Manhã tão cintilante / torrente de paixão
Num cofre ali guardado / Um ponto iluminado / E pulsa o coração
Se abro a janela / Solfejo em aquarelas / Falsete da emoção
Se a noite ali está / um poeta a pensar / Um acorde, um violão
Se o tempo não passar / Que não é de se estranhar / o poder da criação
Seja do jeito que for / mas que seja uma canção / que toque a alma e dê sabor / que sapeca, o coração
Seja do jeito que for / seja lá o que Deus quiser / que agrade o coração / no peito de uma mulher
Cláudio Bolão e Ivan Rubens
Igarapé de mulheres
As palavras são um mundo, cada palavra é um mundo inteiro ou pode ser um mundo inteiro. Me lembro que no museu da língua portuguesa na capital paulista, uma frase é repetida como um refrão: "penetra surdamente no reino das palavras, penetra surdamente no reino das palavras, no reino das palavras, das palavras"... Trata-se do fragmento de um poema do Carlos Drummond de Andrade, que diz assim:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
"Trouxeste a chave?"
Para Drummond, cada pessoa carrega (talvez dentro do coração) a chave para entrar no reino das palavras, lugar onde estão os poemas ainda não escritos. Ele te convida para chegar mais perto e te convida ainda para contemplar as palavras, afinal, cada palavra tem mil faces. São faces secretas escondidas debaixo de uma face aparentemente neutra. Mas as palavras não são neutras, as palavras não são neutras! Meu inconsciente, por algum motivo, me coloca neste poema do Drummond com uma outra palavra. Meu inconsciente me traz mundo no lugar de reino. Na minha leitura mais íntima: "penetra surdamente no mundo das palavras. Penetra surdamente no mundo das palavras, no mundo das palavras, das palavras"... Desatento, aquele estado que o consciente (danadinho) se manifesta, troco reuni por mundo. Gosto dessa manobra inconsciente. Particularmente, gosto mais de mundos do que de reinos. Reinos pressupõe um castelo com uma porta imensa, rodeada de soldados, trancas e chaves. Mundos talvez não tenham portas, nem trancas, nem soldados, nem chaves. Pelo menos os "mundos" aqui imaginados. Que bom poder imaginar livremente... mundos abertos, sem portas nem chaves, nem grades de todo tipo, grades físicas como aquelas que protegem janelas das casas nas cidades, tampouco as grades que limitam nossa capacidade de pensar, grades que estão dentro das cabeças, grades que impedem o corpo de sentir, o coração de sentir, grades não físicas mas, por assim dizer, grades imateriais, grades subjetivas.
Uma palavra muito presente na amazônia, tem uma sonoridade adorável: Igarapé. Uma palavra musical. A palavra foi adotada do tupi. Significa, literalmente, "caminho de canoa", através da junção dos termos ygara (canoa) e apé (caminho). Lindo, não? Na língua Tupi, igarapé é "caminho da canoa"! Podemos dizer que igarapé é um curso d'água amazônico (de primeira, segunda ou terceira ordem,) constituído por um braço longo de rio ou canal. Existem em grande número na Bacia amazônica. Caracterizam-se pela pouca profundidade e por correrem quase no interior da mata. Apenas pequenas embarcações, como canoas e pequenos barcos, podem navegar pelas águas de um igarapé devido a sua baixa profundidade e por ser estreito.
O tempo leva tudo / O tempo leva a vida / Lá fora as margaridas fazem cor / Eu lembro a alegria / Boiar naquelas águas / E ver as lavadeiras lavando a dor / E lavavam a minha esperança perdida / De crescer lá no igarapé / E lavavam o medo que tinha da vida / E agora o meu medo o que é?
Igarapé está no título da canção, e a letra começa com a palavra-mundo "tempo". Um afeto inicial produzido pela obra de arte, então, associa Igarapé e tempo. Se igarapé é um curso d'água, é (por assim dizer) um rio, podemos associar o rio ao tempo. O rio passa, o tempo passa. O rio tem fluxo, o tempo tem fluxo. Uma boa imagem para nos ajudar a pensar é a ampulheta, a areia que, passando pelo funil da ampulheta, cai do recipiente superior para o inferior. A areia da ampulheta não volta, a água do rio não volta, o tempo não volta. O tempo passa e, com ele, a vida passa. É feito um rio: flui. O rio flui, a vida flui. Quantas vezes não nos pegamos pensando: "se eu pudesse voltar no tempo, faria diferente". mas isso não é possível.
Então, o tempo leva tudo, o tempo leva a vida. O artista fala de um tempo de alegria quando era possível brincar no igarapé, de boiar nas águas, ali mesmo onde as lavadeiras realizavam seu trabalho se lavar roupas, ali mesmo onde as margaridas fazem flor. Linda a imagem trazida pelo poeta, linda.
A canção continua:
A minha nave, um tronco navegava / As estrelas, entre as palafitas / E as lavadeiras / Nas minhas aventuras, Poraquê / Pirarara, Piranha Peixe-Boi, Boto, Igara / E lavavam a minha paixão corrompida / As mulheres do igarapé / As Joanas, Marias, deusas, Margaridas / Lavarão o que ainda vier
O artista continua nos apresentando paisagens, belas paisagens: um tronco que navega provavelmente boiando sobre as águas, com a capacidade de transportar o artista numa viagem imaginária, uma noite de céu estrelado cujo brilho pode ser observado entre as palafitas, as lavadeiras. Podemos imaginar mulheres com os pés molhados de igarapé, cantam lindamente enquanto lavam suas roupas, seus panos, suas toalhas, suas redes etc. E os bichos, seres encantados pela maravilha da obra de arte:peixe elétrico, Pirararas, Piranhas, peixes perigosos mas também bichos encantados. Tudo isso lava a paixão corrompida, sobretudo as mulheres do igarapé. Aqui vale um olhar mais cuidadoso:
são Joanas, são Marias, deusas, são Margaridas. Olha ela aparecendo novamente: a margarida da primeira frase aparece com letra minúscula, sinalizando a planta, a flor, uma margarida em flor, colorida. Se me permitem imaginar, uma margarida amarela cor de sol, margaridas amarelas e uma margarida em Sol, linda, exuberante, uma paisagem florida como um dia claro, quente, um dia de sol.
Osmar fala de uma paixão lavada. Mas ele não para por aí, ela qualifica essa paixão: uma paixão corrompida que foi lavada. Talvez as mulheres do igarapé tenham lavado a paixão, tenham lhe tirado a corrupção. Uma paixão corrompida foi lavada. Mas o que seria uma paixão corrompida? paixão corrompida pode ser compreendida como uma paixão contaminada, uma paixão pervertida, uma paixão viciada. Uma paixão estragada, uma paixão subornada. Ou seja, podemos compreender que a paixão destruída. Destruída, estragada, contaminada, pervertida, viciada... uma paixão que perdeu suas características originais, que foi maculada por alguma força de repressão, de negação, por algum afecção triste. Olhando numa perspectiva positiva, uma perspectiva da alegria, podemos pensar que a paixão está sendo restaurada porque lavada. Sobretudo se considerarmos que não foi lavada de qualquer jeito, pelo contrário, foi lavada por mulheres extraordinárias: as mulheres do igarapé. Dada a extraordinária das mulheres e das flores (amareladas de sol), e da água do igarapé (palavra musical), a corrupção realizada na paixão foi lavada e, não bastasse, o artista sabe o risco permanente que a paixão está submetida. A paixão está ameaçada pela corrupção do mundo povoado pelo humano, das forças que corrompem a paixão ontem, hoje e sempre. Conheço paixões corrompidas que teimam em manter-se viva à espera da delicadeza das mulheres do igarapé em lavá-la e, lavando, a paixão se restabelece. Para virar paixão renovada, e, neste processo de estragar a paixão e reapaixonar, como estamos falando de uma canção podemos usar a palavra reencanto, ou na ação de reencantar. Cantar e reencantar, apaixonar e amar. Com todos os riscos de ter corrompidos tais sentimentos. Cantar e reencantar, apaixonar e amar.
Deixa chover, ô ô ô
A cidade de Belém/PA é conhecida por muitas coisas, inclusive pela chuva. Dizem que em Belém chove quase todos os dias sempre no final da tarde. Dizem que é comum as pessoas marcarem compromissos para depois da chuva: "nos encontramos depois da chuva". Uma pesquisa rápida apresenta várias cidades brasileiras onde a chuva ultrapassa os 3.000 milímetros no período de um ano, a maioria delas situadas na região Norte do Brasil. O ano de 2023 foi bastante chuvoso na cidade de Rio Claro/SP também: 1.837 milímetros.
Guilherme Arantes é um artista brasileiro, cantor e compositor, nascido na cidade de São Paulo no ano de 1953. A canção “Deixa Chover” começa assim:
CERTOS DIAS DE CHUVA / NEM É BOM SAIR DE CASA, AGITAR / É MELHOR DORMIR / SE VOCÊ TENTOU E NÃO ACONTECEU... VALEU! / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER
A cantora Vanessa Moreno diz que, quando era criança e tinha algum pedido negado pela mãe, tal negativa se justificava com a canção do Guilherme na voz materna: "Infelizmente nem tudo é / Exatamente como a gente quer". Aqui vemos um trecho bem pedagógico, desses que educa para a vida. Porque a vida nos ensina exatamente isso: nem tudo é exatamente do jeitinho que a gente quer. O nosso desejo é ilimitado, mas a vida nos coloca limites, o mundo nos coloca limites, a sociedade nos coloca limites. O tempo nos dá limites, as outras pessoas nos colocam limites. Nosso próprio corpo nos coloca limites. Tudo isso que nos dá limites, também nos dá possibilidades... A canção continua:
AS PESSOAS SEMPRE TÊM CHANCE DE JOGAR / DE NOVO E ERRAR / VER O QUE CONVÉM / RECEBER ALGUÉM / NO SEU CORAÇÃO... OU NÃO / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER
Que bom!!! poder errar e continuar tentando. A canção nos convida a pensar na errância, o erro livre do acerto, do certo em oposição ao errado, mas pensar e experimentar o erro como errância, e a errância como movimento. O movimento mesmo da vida, possibilidades de vida dentro do tempo determinado da vida, porque o corpo tem limites e a vida que habita um corpo tem fim, o fim determinado pela morte.
DEIXA CHOVER Ô Ô Ô / DEIXA A CHUVA MOLHAR / DENTRO DO PEITO TEM UM FOGO ARDENDO / QUE NUNCA VAI SE APAGAR
Fogo que arde no peito pode ser compreendido como a chama do desejo, da vontade. Desejo de viver, vontade de lutar pela vida, uma força que alimenta, que anima, que coloca nosso corpo na ativa. Mas tudo isso tem o limite inexorável da morte. A canção “Deixa Chover” estourou no Brasil em 1981 na voz do próprio Guilherme Arantes mas, para mim e para as minhas irmãs Graziella e Ivanessa, a canção fez sucesso mesmo na voz grave de um rioclarense que, violão no colo e bigode proeminente, cantava para as crianças embalando aquela década mágica de nossas vidas.
João Afonso Faglioni, nos encontramos depois da chuva.
DEIXA CHOVER Ô Ô Ô…
Ivan Rubens
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 16 de abril de 2024
Um Homem Comum
sobre Nietzsche, Peter Gast e Caetano Veloso
O baiano Caetano Veloso tem uma obra vastíssima. Você, certamente, conhece alguma canção deste artista baiano, talvez nem saiba tratar-se de uma canção de Caetano ao cantarolar. Neste texto vamos falar de uma canção pouco conhecida intitulada 'Peter Gast'. A canção está no álbum chamado UNS, de 1983, onde aparecem clássicos como o samba enredo É Hoje, como Eclipse Oculto e outras canções. A canção ‘Peter Gast’ começa assim:
SOU UM HOMEM COMUM, QUALQUER UM / ENGANANDO ENTRE A DOR E O PRAZER / HEI DE VIVER E MORRER COMO UM HOMEM COMUM / MAS O MEU CORAÇÃO DE POETA PROJETA-ME EM TAL SOLIDÃO...
Sou um homem comum.... O artista pode estar falando de si mesmo, mas se Caetano estiver falando de um eu lírico, ‘Sou’ pode ser qualquer pessoa. Assim ele nos empurra a pensar para fora do ego, para fora ou para além do sujeito, pensar sem sujeito. Então, ‘sou um homem comum’, sou uma mulher comum. Qualquer homem, qualquer mulher, apenas mais um, apenas mais uma, na multidão. Assim a canção começa nos convidando para um passeio pelo comunal, por esta dimensão daquilo que pode ser de todos, de todas, de cada um e cada uma, que ao mesmo tempo não é de ninguém. Mas (e sempre tem um mas...), um coração de poeta, mas a poesia pode projetar, a poesia pode lançar, a poesia pode ascender a alma, elevar o espírito, a poesia pode ampliar os horizontes, pode nos fazer voar. Um outro verso da mesma 'Peter Gast' diz assim:
NINGUÉM É COMUM, E EU SOU NINGUÉM. NO MEIO DE TANTA GENTE / DE REPENTE VEM (...) O PROFUNDO SILÊNCIO / DA MÚSICA LÍMPIDA DE PETER GAST
Mas (e sempre tem um mas), ninguém é igual, mesmo gêmeos não são iguais. Toda pessoa é singular, se faz na singularidade do percurso da vida.
ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST / PETER GAST, O HÓSPEDE DO PROFETA SEM MORADA / O MENINO BONITO, PETER GAST / ROSA DO CREPÚSCULO DE VENEZA / MESMO AQUI NO SAMBA-CANÇÃO DO MEU ROCK'N'ROLL / ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST
Você talvez esteja se perguntando: quem é esse tal de Peter Gast? de onde a inspiração para o artista criar a sua obra de arte? Acontece que Caetano Veloso estava muito interessado no filósofo alemão Friedrich Nietzsche, leu um livro a respeito da vida do filósofo e ficou fascinado com a personalidade de Johann Köselitz, igualmente músico e compositor, amigo de Nietzsche até o final de sua vida, que dedicou parte significativa de sua vida à amizade com seu ex-professor e sua produção filosófica e intelectual. A propósito do livro ‘Humano, demasiado humano’, Nietzsche dizia: “fundamentalmente, Gast foi o escritor enquanto eu fui apenas o autor”. Assim ficou conhecido Köselitz: Peter Gast.
ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST / PETER GAST
Composição: Gast pode significar ‘hóspede’, pode significar ‘visitante’ ou ‘convidado’. Um homem comum, um homem ninguém, um menino bonito, um músico e compositor que se fez conhecido na voz e nas palavras do amigo Nietzsche.
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 19 de março de 2024