Pasajera de la moto amarilla (Garupa de Moto Amarela)
Um Jeito Tucujú
Sobre escrever
Por Janaina Freitas Calado e Ivan Rubens
A escrita te escolheu
A escrita me escolheu
Escrevendo, te convido a escrever.
Vamos escrever juntos? Escrever pelo simples prazer de escrever.
Escrever sobre ESCREVER?
Mas como?
Você me escolheu para escrever ou foi a escrita que nos juntou para ela?
Será que já estamos escrevendo?
Talvez. Em comum temos o fato de escrevermos pela alegria de escrever.
Não escrevemos pela obrigação, mas pela alegria.
Sim!! Já topei! O texto começou no convite.
Mas eu só escrevo o óbvio.
Não pretendemos escrever nada complexo, mas algo simples.
Tão simples quanto o desejo que nos toma neste momento da escrita.
Neste encontro inusitado que começou nas leituras de um e outro.
É preciso dizer o óbvio, por mais que ele seja óbvio.
Mas um óbvio que salta aos olhos.
Um óbvio que pode passar despercebido.
Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?
Eu não sabia que sabia escrever.
Mas eu escrevia, e ainda escrevo, com amor.
Acho que o amor faz a gente transbordar em palavras o que sente,
aí, a gente escreve.
Escrevemos pelo simples prazer de escrever.
Escrevemos por uma escolha,
mas não uma escolha nossa,
não por uma escolha desse sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá…
Mas por uma escolha modesta,
Uma escolha que não foi nossa mas foi do texto.
O texto que nos escolheu!!
É, acho que é isso.
Por isso escrevemos, porque não temos escolha.
Quando você dá fé, já saiu.
O dedo no teclado, a caneta no papel são mais rápidos em expressar nosso querer.
Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente.
Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever.
Seja uma carta, seja uma dissertação
Seja um bilhete, seja uma tese.
Seja um texto, seja um livro.
Basta pensar, pensar, pensar, sentar e escrever.
Que coisa bonita de se dizer,
Quero dizer, de se escrever!
“Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente”
Acho que tenho muita coisa enrolada dentro de mim,
e quando escrevo, me sinto aliviada.
Eu tenho um monte de cartas escritas e não enviadas,
bilhetes de amor, textos não publicados, fragmentos que não servem de nada.
Escrever torna o pesado leve,
torna o superficial profundo.
É um suspiro de amor aliviado.
….Por fora da cabeça, os fios de cabelo podem estar lisos,
podem estar cacheados, podem estar enrolados.
Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados.
Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas,
dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado.
Escrever é um jeito de desenrolar.
Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue.
Mas realmente se a gente parar pra pensar assim,
desse jeito que você me propôs,
fica tudo muito complexo mesmo.
Até quando se escreve o óbvio.
O óbvio se torna óbvio depois de descoberto.
Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é ‘não saber’.
Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio,
Como transformar o óbvio num conjunto de palavras?
Porque mesmo óbvio tem uma complexidade.
E escrever é parte também
Pois de tudo que a gente vive, sente e experimenta,
a gente só consegue expressar uma parte.
A parte que transborda na escrita.
Acho importante Ser Parte na escrita,
Porque a escrita só se completa quando o outro ler
E quando o outro ler já não é mais o que a gente quis escrever,
mas o que atravessou quem leu.
Entendo escrever como um processo de elaboração.
Os fios de cabelo enrolado ou os fios,
as linhas enroladas são uma imagem do pensamento.
No início, é uma massa disforme. Com nosso trabalho de elaboração,
vai ganhando contorno, vai ganhando forma. Escrever é, entre outras possibilidades,
esse trabalho de elaboração, de escultura, de dar alguma forma.
Agora, o que o/a outro/a, leitor e leitora farão com o texto, aí é com eles.
Trata-se de uma experiência de liberdade: a liberdade de pensar.
Quando releio textos antigos, fragmentos abandonados, anotações esparsas,
sinto como se me encontrasse com alguém que eu já fui.
Eu também, esse encontro me causa sensações diferentes.
Eu tento entender o que eu estava vivendo naquela hora, para ter escrito aquilo.
Aquele texto antigo me atravessa diferente.
Às vezes dói, dá saudade.
Às vezes dá orgulho e sinto esperança.
Quando sinto beleza em algo que escrevi
quando leio e sinto que ficou realmente bonito,
isso me dá esperança. A beleza me dá esperança,
uma esperança freiriana, uma esperança ativa.
E me faz escrever mais pois a beleza é forte
A arte, a beleza, a estética pode produzir uma nova ética
A beleza é capaz de abrir possibilidades de uma nova sensibilidade
Acho que a escrita é esperança.
Não é uma esperança parada, inerte, que espera o sol inevitavelmente se pôr.
É uma esperança ativa, que faz acontecer o que a gente quer.
Aí depois de ter muito feito, de ter muito agido, de ter muito escrito...
Você espera…
Espera o alívio de ter desenrolado um pouquinho o nó que tinha na cabeça,
espera alguém ler
e espera que aquilo faça algum sentido.
A escrita espera com esperança.
A escrita nos moveu, nos escolheu
Éramos um, dois e, juntos, somos mais que três
Escrever é verbo, é o ato de pôr palavra com palavra.
Por COM, com por.
Compor.
Palavra que se abraçam,
palavras de mãos dadas,
palavras faladas,
palavras coladas,
palavras contadas,
palavras inventadas,
palavras caladas,
palavras vividas.
Palavras que vão se compondo, compondo frases.
O destino dos escritores
desembaraçar ideias
criar estratégias
Escritores amadores, criadores de possibilidades,
fazedores de convites, relógios
despertadores de interesses, de sonhos e desejos
O destino dos escritores
eternizar suas dores, temores,
saberes, sabores e amores.
Você ainda está aí?
Estou.
Estou escrevendo.
Às vezes, tenho dificuldades de parar de escrever
Será que alguém vai nos ler?
Talvez.
Mas agora isso não é mais conosco.
Espero que esta composição toque
toque cabeças e corações,
toque flautas e violões,
e que faça alguém sorrir.
Quem escreve?
Dia desses, numa conversa com uma amiga professora e escritora, nos perguntávamos: quem é escritor? quem é escritora? e essa pergunta acende, ecoa, ascende, ressoa. E a conversa rolava:
- Escrevemos pelo simples prazer se escrever. Escrevemos por uma escolha, mas não uma escolha nossa, não por uma escolha de um suposto sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá… Mas por uma escolha modesta, uma escolha que não foi nossa mas uma escolha que foi do próprio texto. O texto é quem escolhe.
- Ao sentar para escrever, não se pretende escrever nada complexo, mas algo simples. Tão simples quanto o desejo que nos toma no momento da escrita. Neste encontro inusitado que via de regra começa ou recomeça na leitura de outros textos, nesse encontro inusitado de ser e texto, texto e ser, tanto texto quanto escritores se fazem no processo da escrita. Parece óbvio e, por mais que ele seja óbvio, que salte aos olhos, pode passar despercebido. Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?
O óbvio se torna óbvio depois de descoberto. Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é não saber. Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio, como transformar o óbvio num conjunto de palavras? porque mesmo óbvio tem uma complexidade. Por fora da cabeça os fios de cabelo podem estar lisos, podem estar cacheados, podem estar enrolados. Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados. Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas, dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado. Escrever é um jeito de desembolar, escrever é um jeito de desenrolar. Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue. Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente.
Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever. Seja uma carta, seja uma dissertação, seja um bilhete, seja uma tese. Seja um texto, seja um livro. Claro que cada texto tem seu rigor, uns tem o rigor acadêmico, o rigor científico, rigor metodológico, rigor temático. Rigor ético, rigor estético, rigor político. Rigor ético-estético-político. Escrever é também um exercício de liberdade, de libertação, de elaboração, é como se você tirando de dentro de si algo que nem mesmo você sabe bem o que é, liberando o espaço para começar tudo de novo. Algo que te tocou, algo que te atravessou, que te incomodou, algo que ficou em ti e, elaborado, já pode ganhar alguma forma e, saindo, liberar o espaço para começar tudo de novo.
No fundo é muito simples: deixar-se afetar pelo mundo, ler, pensar, pensar, pensar, sentar e escrever. Então, quem é escritor? quem é escritora?
Talvez seja mais fácil dizer quem não é. Não é escritor, não é escritora quem não escreve. Porque Escrever é inscrever-se. Então, quem escreve é...
Garupa de moto amarela
alegria do samba
entro na roda com pandeiro e tamborim
Ébrios, bêbados e loucos
Que sejamos nós os ébrios
Os que espalham, régios,
O mundano evangelho das esquinas!
Proclamemos, nós, sinais
Do fígado das horas
E as canções profanas!
Não nos dobremos, nós
À putrefata voz do algoz
Que nos sublima!
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Intrépidos? Profanos!
Que sejamos nós os bêbados
que caminham, trôpegos,
As esquinas mundanas da cidade fria
Beberemos, nós, sinais
Do trânsito acelerado
E da vida q circula intensa.
Só nos dobremos, nós
À marquise úmida
Que nos abriga
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Artrópodes? Profanos!
Que sejamos nós os loucos
Os que empurram, poucos,
Carrinhos, papelões, amigos fiéis
Reclamemos, nós, sinais
Do muro alto que separa
E do portão que aprisiona
Só nos dobremos, nós
À beleza da arte
Que nos liberta
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Antropófagos profanos!
(Nuno Moraes e Ivan Rubens)
Enquanto houver Sol
pensamento e sonho
Penso em ti todos os dias
sempre que pisco, penso em ti
quando respiro, penso em ti
logo que acordo, penso em ti
na caminhada, penso em ti
Só quando durmo não penso em ti
dormir é a melhor parte da saudade
dormir é sonhar contigo.
Sonho que andamos na rua de mãos dadas
que paramos na esquina a rir da cidade
sonho que escolhemos vestidos
sonho que espio você violando a cortina do provador
sonho com teu corpo doando beleza aos vestidos
sonho que toco tua mão no banco de trás do uber
sonho com você na minha cama
cama onde te amo.
te amo como se fosse a primeira vez
te amo como se fosse a última vez
te amo em pé diante da pista vazia esperando aviões
te amo no sofá
te amo na rede
te amo debaixo do chuveiro
te amo de todo jeito
com beijos intermináveis
beijos longos e infinitos
te amo do jeito mais bonito, com amor e sexo
latifúndio e invasão
selvagerias, paganismos,
divino e animal
um casal que conseguiu fazer a mistura fina
sentiu tudo isso junto
mas não teve tempo para viver tudo isso junto
um sonho
bonito e divinal
belíssimo início
Fruta de rua
Feira?
Feira eu faço lá fora.
Fruta eu pego na rua.
Figo não tem,
mas tem mamão, jambo, cajú.
Manga tem de sobra, fartura açaí.
Procurando bem tem acerola, goiaba, talvez amora
tudo com gosto de rua,
tudo pra coletar
coletar
Feira de fruta faço lá fora.
Feira de fruta faço na rua.
Ivan Rubens
Esperando aviões ou Pista vazia
A canção chamada Esperando aviões diz assim:
Meus olhos te viram triste / Olhando pro infinito / Tentando ouvir o som do próprio grito / E o louco que ainda me resta / Só quis te levar pra festa / Você me amou de um jeito tão aflito / Que eu queria poder te dizer sem palavras / Eu queria poder te cantar sem canções / Eu queria viver morrendo em sua teia / Seu sangue correndo em minha veia / Seu cheiro morando em meus pulmões /
O eu lírico vê alguém triste, com olhar perdido, com um grito que vibra dentro do próprio corpo. Um grito surdo. Ao observar a cena, o eu lírico da canção percebe haver um procura, uma busca aflita como se um grito de dor, não imagino que uma dor física tipo quando a gente bate o dedinho do pé na quina da porta entreaberta. Mas uma dor que dói fundo na alma, nesta parte invisível do corpo. Ouvir o som do próprio grito desesperado de uma dor que vem do fundo da alma. Em reação, o eu lírico toma uma atitude tresloucada que resultou em festa, amor. Mas um amor aflito como uma pessoa dividida em dois amores por exemplo. São muitos amores nesta vida mas vivê-los ao mesmo tempo pode, imagino, gerar aflição. Sim porque deve ser difícil estar inteira neste ou naquele, por isso “amou de um jeito tão aflito”. Trata-se de uma leitura possível.
Então o eu lírico da canção faz uma lista dos desejos de mistura dos dois corpos: dizer sem palavras pode ser compreendida como a linguagem dos corpos, pode ser compreendida como a cumplicidade de pensamento, pode ser entendida como uma linguagem de gestos, de toques, de carinho, uma espécie de telepatia que se dá na intensidade dos encontros e na cumplicidade dos sentimentos comuns, pode ser entendida como a linguagem do amor por exemplo. É como cantar sem canções…
Então chegam imagens que considero muito bonitas:
eu queria viver morrendo em sua teia: a aranha tece a sua teia e captura os insetos para o jantar. A mulher aflita bate na porta de um antigo amor que, diante da sua figura aflita, se joga na sua teia. Mulher aranha, tecelã de encantamentos, aracniana dos mais finos fios de vida, escavadora dos sentimentos mais profundos como os amores adormecidos bem lá no fundo do coração. E é bonito pensar nesse confronto entre vida e morte. Ele queria viver morrendo na teia da aranha, viver morrendo. Mas como seria possível viver morrendo? Se morreu, acabou. Só que não. Por que?
Porque ele quer o sangue dela correndo nas veias dele. Teu sangue correndo em minhas veias pode significar que ambos estão misturados, um no outro, ele nela e ela nele. Não seria um pouco isso que acontece quando o sexo está carregado de muito desejo? nesta perspectiva, talvez a palavra amor ganhe uma pitada de pimenta, ganhe um tempero todo especial. Amor aqui compreendido como essa mistura dos corpos cujo desejo, o desejo mais profundo conduz os corpos para esse encontro. Um encontro de corpos desejosos e desejantes, um encontro vermelho cor de sangue e coração. Talvez….
Tudo isso já nos parece muito intenso. Mas o eu lírico quer mais: quer o cheiro dela morando nos pulmões dele. Alguns podem dizer de uma memória olfativa. Verdade. Mas o amor, o desejo, a alma, isso tudo tem cheiro. Eu acho até que tem cheiro e tem cor. E tem peso, e tem porosidade, e tem fantasia. Tem. Quando ela apareceu na casa dele, o sol brilhou, o dia nasceu, renasceu a vida desde as cinzas da morte. Ressurreição de amor que havia se declarado morto na decepção de uma despedida mal feita, precipitada, assustada. E basta um olhar, um toque, um cheiro para que a vida renasça em toda sua potência de amor. Amor, que palavra mais bonita. Paixão, outra palavra bonita, forte, intensa.
A canção continua:
Cada dia que passo sem sua presença / Sou um presidiário cumprindo sentença / Sou um velho diário perdido na areia / Esperando que você me leia / Sou pista vazia esperando aviões
Essa canção me provoca a pensar. Ela tem um ‘quê’ enigmático, talvez a melodia ou a voz do Vander Lee, talvez sua interpretação me apresentem um caminho entre tantos caminhos possíveis. Penso na prisão, na cadeia, mas não essa que as histórias policiais ou os programas sensacionalistas de televisão mostram todos os dias. Estou pensando numa prisão subjetiva, uma prisão que criamos para nos mesmos a partir dos preconceitos que carregamos, a partir dos dogmas, a partir dos moralismos. Penso também na polícia que criamos dentro de nós, essa parte da gente que fica o tempo todo policiando nossos pensamentos, nossas atitudes, que fica censurando as nossas palavras e os nossos desejos. Penso numa prisão subjetiva e numa polícia subjetiva, numa auto prisão e numa auto polícia. Essa por exemplo que nos leva para os caminhos da segurança e fecha o trânsito pelos caminhos mais misteriosos, incertos, esses mesmos que guardam à meia luz as possibilidades mais incríveis. Veja o exemplo de uma pessoa que escolhe a segurança em detrimento de um grande amor. Verdade que para viver um grande amor é preciso muita coragem, assim dizia um poeta que entendia de amores intensos: Vinícius de Moraes. Entendo que nos aprisionamos quando abrimos mão de viver as intensidades e as belezas, nos aprisionamos no medo, o medo como aprisionamento que impede que amores emerjam em sua força máxima, em sua enésima potência.
Diário é onde escrevemos aquilo que acontece e aquilo que nos acontece no dia a dia. Na areia ele espera para cumprir sua função. Ao ser lido, ele cumpre sua função de material portador de texto. Melancólica a imagem de uma pista vazia esperando aviões.
Cada dia que passo sem sua presença / Sou um presidiário cumprindo sentença / Sou um velho diário perdido na areia / Esperando que você me leia / Sou pista vazia esperando aviões / Sou o lamento no canto da sereia / Esperando o naufrágio das embarcações
Conheço muito bem um casal que passou, ou ainda passa, por uma situação de afastamento. Trata-se do maior amor que eu já vi, amor entre duas pessoas. Amor que tenta ser três, amor que deseja uma quarta pessoa. Ela se prende, se esconde no ciúme que sente dele. Na minha modesta opinião, no meu olhar de fora, ela se esconde de si mesma, ela tem medo do imenso amor que sente por ele e se esconde atrás do ciúme que sente dele, ela busca refúgio na segurança e tenta dar a nascer um outro amor para ofuscar o outro amor, o amor que a amedronta. É como o mar: imenso… de uma imensidão que amedronta. Quanto a ele, demorou um pouco para perceber, para aceitar para si mesmo todo o sentimento que tem por ela.
Falo de um casal girassol.
Ela brilha, ele gira e gira à procura do calor.
Ela, Sol. Ele, calor.
Sol e girassol, girassol e sol, sempre em movimento, um não vive sem o outro. Ambos se precisam, ambos se buscam, ambos se procuram, e olha que o girassol vive distante do sol, muito distante. Sol flutua na imensidão do universo e ao redor do sol todo um sistema solar. Girassol aqui na terra. Mas os raios do sol viajam anos luz e atingem docemente as flores de girassol. Se precisam, se completam. Assim eu vejo o amor desse casal, apesar dos medos dela, apesar dos medos dele, apesar das decisões dela que os afastam, apesar das tentativas dele que a assustam. Apesar das interferências de terceiros, apesar do canto das sereias com segurança e conforto, apesar das negativas, apesar dos pesares, o amor de ambos continua, permanece porque girassol gira à procura do sol, e sol faz todo o sistema solar girar em torno dele. Sol alimenta as águas, as plantas, o planeta. Sol acende corações.
Vander Lee disse numa entrevista que a canção surgiu quando ele chegava à cidade de Montes Claros, interior de Minas Gerais. Do avião ele vê a cena da pista: pista vazia esperando aviões. Sentia uma saudade imensa de casa e do seu grande amor, de onde veio a metáfora “sou pista vazia esperando aviões”. A frase ficou ali ecoando, ecoando, ecoando…
Sou pista vazia esperando aviões. Um homem só que sente saudade do seu grande amor, feito uma pista de pouso ali parada à espera de aviões para cumprir sua função de pista no aeroporto. “Sou pista vazia esperando aviões”… Tal imagem me é deveras familiar. Frequento aeroportos, frequento aviões e, das janelas observo com muita frequência pistas vazias, solitárias e talvez saudosas, esperando aviões. Bonita a imagem e mais bonita ainda a metáfora, a criação do Vander Lee: “sou pista vazia esperando aviões”. Ele, solitário numa cidade desconhecida, sentindo um vazio repleto de saudade, um vazio cheio da pessoa ausente. Saudade. “Sou pista vazia esperando aviões”. Um homem prenhe de uma ausência, ausência que se faz presença, uma presença distante. E um homem que se sente pista vazia.
Vander Lee disse ainda que concluiu rapidamente a canção assim que chegou ao hotel. E às 4h da manhã ligou para sua companheira e cantou para ela. O que será que ela sentiu neste momento, neste encontro com uma obra de arte cuja criação conta com a ausência, conta com a presença dela? Bem, isso é assunto para um outro dia…
Mais ou menos assim, veio ao mundo essa obra de arte: Sou pista vazia esperando aviões.
Sem sol
Na linha do equador, brilha forte sol
calor, aquecimento, chuva.
O sol aumenta as temperaturas.
O sol esquenta, aquece.
Aquece as águas dos igarapés, do rio-mar, do mar.
Sol e lua dão o ritmo,
cheias e vazantes
rios fluindo em dois sentidos.
Descobri recentemente um fenômeno muito interessante:
Sol que esfria
Sol que congela
Sol que apaga
Não estou falando da noite ou do sol encoberto por nuvens de chuva.
Digo do sol que apaga, sol opaco, sol sem brilho.
Quando sol se apaga na ilusão
contraria a mãe terra:
"vou repeti-la, mas comigo será diferente"
Negacionismo amoroso é opacidade
Sol opaco é frio. Dá conforto térmico mas renuncia vida na sua potência.
Sol opaco é triste. Abre-se mão da alegria na intensidade.
É viver sem viver
Vida desvitalizada.
Café descafeinado.
Sol sem sol, vida sem brilho.
Dia sem cor, amargor, desamor.
Que mundo é esse?
ouça este texto na voz doce da professora Graziella Jordão Marcucci
clique no link acima para ouvir
Este texto tem como título: Que mundo é esse?
mas poderia ser: Um pouquinho por dia...
Nasce um bebê. É linda essa cena. O choro da criança aparece como um símbolo, como um grito: cheguei! Mas, cheguei onde? que mundo é esse?
Coloque-se no lugar do bebê. Você fica cerca de 40 semanas dentro de uma barriga, protegido, protegida, recebendo tudo que precisa para sobreviver. Até que um dia, você, bebê, sai da barriga e vai para o mundo. Mas que mundo é esse?
Um bebê não fala. Mas, se falasse, o que diria?
O que você, bebê, diria na chegada a este nosso mundo?
Então você deixa aquele mundo de água, passa por um aperto danado, uma passagem estreita e é lançado/a para fora. Mãos te tocam, te enrolam em panos, dedo na tua boca, no teu nariz e teus olhos… E tem um choque térmico: se num hospital, certamente uma sala com ar condicionado em baixa temperatura, se numa aldeia na floresta provavelmente calor, muito calor. E seus braços se movem, pernas, mãos se movem, e coisas que você não conhece tocam no seu corpo, toalhas, paninhos, mãos, algodão. E um monte de ruído toca seus ouvidos, cheiros e tal, um mamilo encontra tua boca… o que te resta é sentir, sentir e sentir.
Ou seja, sua primeira relação com este mundo extra_uterino acontece nos cinco sentidos: audição, olfato, tato e, até, visão e paladar. Ouvidos, nariz, pele, e até os olhos e a língua são intensamente estimulados, mas você não tem palavras para dizer o que te acontece, ainda não tem linguagem, consciência, razão, isso virá com o tempo. Pelo menos não esta linguagem e esta razão que mobilizamos ao ler (e escrever) este texto. O que está operando em você, bebê, talvez uma experimentação intensiva. Você está nascendo para uma (muitas) vida(s) neste mundo. A primeira relação com este mundo fora do útero é sensível e, acredito, a sensibilidade pode ser cultivada durante a vida.
Tem uma palavra para dizer da “apreensão pelos sentidos”, dessa “percepção”. Estética deriva da palavra grega ‘aisthesis’, é uma forma de conhecer, de apreender o mundo através dos cinco sentidos. Uma música, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos ouvidos. Uma tela, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos olhos. Uma poesia, literatura, dança, ou o cheiro de uma comida, um prato bonito, o barulho da cerveja caindo no copo, o cheiro do vinho, a cor do suco da fruta colhida do pé, tudo isso vai criando um desejo. Estamos falando de um cultivo da sensibilidade que nos torna mais humanos, um pouquinho por dia.
‘O contrário também sei que pode acontecer’: podemos cultivar sementinhas de medo e ódio, um pouquinho por dia. Acredito nas belezas como produtoras de sensibilidades e de uma humanidade mais interessante. Quero sugerir duas obras de arte: JEITO TUCUJÚ, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem, (hino popular do Amapá); e SABOR AÇAÍ, de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves, homenagem a esse alimento maravilhoso que é o açaí. A Música Popular Amapaense é um mundo de beleza e poesia. Um pouquinho por dia.
Ivan Rubens
Educador popular
Todo seu querer
No dia dos namorados encontrei uma bela canção. Trata-se de TODO SEU QUERER, interpretada por Mariene de Castro e Roberto Mendes. Pesquisando um pouco a respeito da canção, descobri tratar-se de uma composição dos baianos Roberto Mendes e José Carlos Capinan. Fazer música e fazer poesia é uma espécie de artesanato, músico e poeta são um tanto escultores. O poeta escolhe criteriosamente algumas palavras e vai esculpindo uma a uma, palavra por palavra, depois começa a juntar as palavras esculpidas, vai esculpindo as frases, linha por linha, vai esculpindo sua obra de arte. Com o músico imagino que seja parecido, escolhe sons, acordes, vai esculpindo, esculpindo, vai esculpindo cuidadosa e criteriosamente sua obra de arte.
No dia dos namorados uma bela canção me encontrou. Eu estava distraído quando a canção passou por mim produzindo um primeiro afeto quase imperceptível. Insistente, a canção se fez presença. Então pensei: “opa, aí tem coisa”. Ato contínuo, peguei o celular, abri o aplicativo e coloquei minha atenção tanto na letra quanto na melodia. A canção diz assim:
Quando o amor olha pra você querendo te prender nos braços de alguém / quando o amor fala pra você com palavras loucas todo o seu querer / E quando o amor tem sabor de fruta colhe em tua boca a manga madura / em tua mão em fogo acende o teu corpo tira a tua roupa procurando a flor.
Ai amor diga sorrindo / ai amor / seja bem vindo / ai amor / diga chorando, amor, você chegou / Ai amor diga que volta / ai amor / beijo de adeus quando se for.
Os afetos iniciais produzidos nesse lindo encontro canção e ouvinte me levaram pelo caminho de pensar numa declaração de amor. Uma pessoa dizendo palavras verdadeiras, belas e apaixonadas para uma outra pessoa. Desconfiado que uma obra de arte guarda belezas com força de produzir mais e mais beleza, lancei ainda mais atenção para a escultura. O que estaria escondendo nessa letra o poeta? e isso me levou a um segundo afeto.
O amor da canção não é um sentimento mas um personagem. É o amor que olha, é o amor que deseja, é o amor que fala com poucas palavras. Na obra, o amor tem sabor de fruta, o amor colhe, é o amor quem coloca fogo nas mãos e tocam um corpo que, em chamas, tira a roupa. Mas não tira a toa. Motivado pela força do amor, a mão procura uma flor. Uma flor. É muito bonito isso: a mão em chama de amor procurando a flor.
Então o poeta pede ao amor para dizer, o poeta pede ao amor para sorrir. O poeta dá as boas vindas ao amor e chora, certamente de alegria para celebrar a chegada do amor. Nós, ouvintes e admiradores da obra, nós que sentimos a beleza enchendo o peito com esperança na vida, nas belezas da vida e na maravilhosa oportunidade de viver, de respirar, nós que sentimos os raios de sol queimando a pele, nós que sentimos as gotas da chuva molhando a pele, o vento beijando o rosto, ainda seremos capazes de sentir a alegria e a leveza de não precisar carregar nada para poder sentir e pensar. Sentir e pensar, fechar os olhos e sentir a beleza atravessar e, atravessando, produzir novidades: novas formas de sentir e pensar.
E assim como vem, o amor vai. Então vá, que seja leve e que seja forte o suficiente para voltar. Para ir quando for o momento de ir e voltar quando for momento de voltar. Voltar modificado, voltar verdadeiro, voltar saboroso. Nas idas e vindas, vamos esculpindo o amor, vamos fazendo da vida uma obra de arte.
Ivan Rubens
Artesão de palavras
dedico ao artista José Celso Martinez Corrêa
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 11/julho/2023
Sobre escola, água e felicidade
Aconteceu na cidade de Cáceres, Mato Grosso, nas cabeceiras do rio Paraguai. O rio Paraguai é afluente do rio Paraná, bacia do rio da Prata. O rio Paraguai nasce na cidade de Alto Paraguai/MT, passa pela Bolívia, atravessa o Paraguai e derrama suas águas no rio Paraná, lá na Argentina.
Observando papagaios, periquitos, araras, maracanãs, calopsitas frequentando o rio, os povos indígenas diziam ‘Ysyry Paraguái’ que na língua guarani antiga quer dizer ‘rio dos paraguás’. ‘Paraguá’ é uma espécie de psitacídeo (ordem de aves), e ‘y’ significa rio.
Pois bem, aconteceu na margem esquerda do rio Paraguai. Dois amigos, desses que compartilham uma vida de estudo, de trabalho e de luta, experimentavam a alegria de ser professor em mais uma tentativa. Ambos envolvidos com um livro (sobre o ofício de professor) do espanhol Jorge Larrosa. E lá pelas tantas, apareceu uma frase atribuída a Maria Bethânia: “Perto de muita água, tudo é feliz”.
Estavam numa situação de estudo, trabalho e luta, mais um encontro da Escola de Militância Pantaneira. Trata-se da reunião de 13 Comitês Populares de Defesa das Águas, das nascentes (e do clima) do rio Paraguai e seus afluentes. Escola porque oferece tempo (livre dos temas ordinários) para colocar a atenção nos temas selecionados para estudo, neste caso, os “direitos da natureza”: leram “A Carta da Terra”, ouviram Leonardo Boff, estiveram em aula com uma professora que trouxe dados, números, experiências de outros países onde os rios são sujeitos de direito, onde montanhas e territórios sagrados são sujeitos de direito. Escreveram um projeto de emenda visando à inclusão dos direitos da natureza na Lei Orgânica do município de Cáceres/MT.
Durante o Encontro da Escola de Militância Pantaneira, uma frase ficou muito forte: “eu sou natureza”. E as pessoas repetiam: “eu sou natureza”, “eu sou natureza”. Bem, se ‘eu’, um ser vivo chamado humano, é sujeito de direitos e, ‘eu’ é natureza, logo… Mas quero colocar nossa atenção numa dimensão outra da mesma frase. “Eu sou natureza” nos convida a pensar que está em construção uma ponte para vencer a distância, o abismo que separa humano e natureza, natureza e cultura. Estamos falando de uma razão liberal, industrial, neoliberal, desenvolvimentista que nos leva a pensar um rio como recurso hídrico, que nos leva a pensar floresta como recursos florestais, natureza como recursos naturais, e pasmem, homens e mulheres como recursos humanos. Deste ponto de vista produtivo e desenvolvimentista, crianças e idosos, doentes e loucos, se improdutivos, nem recursos são. Portanto, não são nada.
Mas no encontro da Escola de Militância Pantaneira o pressuposto parecia outro. Partiram do pressuposto que envolvimento é mais importante que desenvolvimento. Envolvidos entre si e envolvidos com o tema selecionado para estudo (direitos da natureza), homens e mulheres, jovens e velhos criaram para si outras possibilidades de ver, de pensar e de sentir(-se) natureza.
Aconteceu ali, na margem esquerda do rio Paraguai. Maria Bethânia e Jorge Larrosa deram a letra: “perto de muita água, tudo é feliz”.
Ivan Rubens
Mergulhador e canoeiro
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro edição de 13 de junho de 2023.
Com o caderno de campo
Lá vai ela com seu caderno de campo
Lá vai ela, usa pantufas não usa tamanco
Lá vai ela habitando território
com rede e mosquiteiro que monta no dormitório
Entre cidades, rios e aldeia
Ela, aranha, vai tecendo sua teia
Em aviões, carros, barcos, voadeira
ela vai, ela vem, transitando
faz sua casa no caminho, sua oca, sua aldeia
seu quilombo, sua tapera
ela espera, tempo duração, corre
quase morre diante da onça pintada
e volta.
Lá vem ela com seu caderno de campo
usa pantufas, não usa tamanco
pisa devagarinho no chão-território.
Alguém me avisou, alguém me avisou
que ela carrega caderno de campo.
Agora
quero teu corpo
suado, molhado
quero
cheirar teu cabelo
quero
lamber teu joelho
quero
naufragar teu umbigo
quero
Delírio?
quero
te dar meu sabor
torpor?
quero
deleitar o teu ventre
repente, semente de outro dia
frio, arrepio, mal olhado?
quero
encantar
de sabores, das cores
demoro nos nomes,
temperos aromas, amoras, amores
se vai, vem
se não vai, vem também
quero te dar meu tempero
pra enfeitar teu cabelo
e andar por aí
com trôpegos versos, improvisados, na memória
pela cidade afora
agouro?
agora, agora, agora!
Corredores bio culturais ou A Terra Querida do Benedito
ver o video da TV Prefeitura de Barra do Bugres/MT
Há, no estado do Mato Grosso, um movimento muito interessante em defesa da Vida: Comitês Populares em Defesa das Águas e do Clima. São 13 Comitês Populares distribuídos nos rios que compõem a bacia do rio Paraguai, cujas águas e as lutas pela vida vão tecendo uma rede. Assim como a rede de drenagem compostas pelos rios e afluentes, cada rio contribuindo com suas águas na formação dos rios maiores, as pessoas organizadas em Comitês Populares vão contribuindo com sua luta pela Vida, mas também com sua cultura, com suas danças, sua gastronomia, com seus modos de vida, e assim vão tecendo uma rede social. Uma rede social real onde as pessoas se encontram no movimento e na luta.
Essa luta pela vida se materializa em ações concretas como a defesa dos rios, contra empreendimentos como hidrelétricas e hidrovias, contra o veneno utilizado na monocultura da soja que polui as terras e mata a vida nas águas. Contra o garimpo e a mineração em terras produtivas, contra a invasão e a grilagem da terra onde as famílias produzem alimento para sobreviver. E nesse movimento de luta, as pessoas no campo vão tecendo suas redes de vida e suas redes de cultura.
Benedito Ilino é um pequeno produtor. Ele produz mandioca, banana, abóbora, feijão e milho, cria porco e de galinha. Benedito também cria obras de arte e produz cultura: ele escreveu a canção do rio Jauquara, uma obra cantada pelo povo no Território Quilombola do Vão Grande todo ano no dia 28 de abril, quando se comemora o dia do rio Jauquara. A canção Terra Querida fala da vida no bioma Pantanal:
Mato Grosso terra querida / suas cores me satisfaz / os verdes dos campos e os cheiros dos pantanais / É o jardim da natureza, sua beleza tão magistrais / Águas vivas dos ribeirinhos e o repouso dos animais
Nesta primeira parte, o artista nos apresenta um pouco da sua terra em cores, cheiro, águas e beleza.
A lua surgiu nos montes / deixando raias pra trás / visitando o rio Jauquara e banhando o rio Paraguai / Iluminando os povos de luta e a fé que neles traz / nossos rios por inteiro e os corredores bioculturais / quem bebe de suas águas com certeza não esquece mais
O artista pede os rios por inteiro, sem barragens, sem interdições. Rios cujo fluxo nos remete à vida de povos em luta, povos de fé, rios que são corredores de vida e de cultura. E o refrão é marcante:
Pantanal, pantanal, sua beleza tão natural / Pantanal, recanto na anhuma, olhar das Jumas eu passo mal / Pantanal, aqui é selva / só quando tô com reiva sou animal.
Anhuma é uma ave da região. Mas é no olhar das Jumas que o artista “passa mal”. Quem não se lembra da Juma Marruá, personagem da novela Pantanal? a mulher que vira onça, ou seria uma onça que vira mulher? a selvageria da vida em suas diferentes formas. Diante da vida selvagem, o 'eu lírico' da canção passa mal: pode ser por medo mas pode ser encanto... e uma “réiva” que também o transforma em animal: um homem anhuma, homem arara, tucano, homem peixe jaú, dourado?
Rios como metáfora da vida, corredores por onde passam vida e cultura. A 'Terra Querida' do Benedito Ilino.
Ivan Rubens
Estudante
Territorializar ou Pertencer ao Território
Dois amigos seguem para mais um encontro de educação popular. Estão num desses carros nem grande e nem pequeno, desses tipo furgão cuja porta lateral desliza paralela à lataria, se é que carro tem lata… Aliás, você já notou que carro muda muito de nome e de modelo? difícil acompanhar a velocidade de tais mudanças.
No interior do Mato Grosso, seguem para uma Terra Quilombola. São cinco comunidades que lutam pela terra, lutam pelo rio vivo em peixes e a água pra beber, pra cozinhar, pra molhar a horta de temperos e de ervas medicinais. Fazem roça de mandioca, de banana, de milho, feijão, abóbora, alimentos para as famílias e para “as criação”. Criam “galinha sorta” no terreno, “uns porquinho”, vaca de leite, um ou outro boi para servir nas festas de santo. Essa Terra Quilombola fica entre morros na planície de inundação do rio Jauquara, no alto curso da bacia do rio Paraguai, bioma Pantanal.
Pois bem, os dois amigos seguem para o Território Quilombola do Vão Grande. São amigos de estudo, amigos de trabalho e amigos de luta porque partilham a vida de estudantes, partilham o tempo dedicado aos trabalhos remunerados e, ainda, partilham a fé. Fé aqui compreendida como as ações nas lutas que, crêem, necessárias para trans_formação do mundo. Estudo_trabalho_luta compondo, pouco a pouco, uma amizade tecida na lida da vida.
O pequeno furgão circula numa sojeira sem fim: fazendas de soja, soja, soja, soja, monocultura da soja, carretas carregadas de soja enfileiradas na estrada. Fora do furgão, a monocultura da soja; dentro do furgão, a multicultura das conversas, do pantanal vivo nos poemas do Manoel de Barros, da saudade do povo quilombola do Vão Grande, da expectativa com a festa de aniversário do rio Jauquara e a curiosidade com o sabor do bolo deste ano, da lembrança de episódios a propósito da Canção para o rio Jauquara… os amigos transitavam “na paralela do impossível”.
Carregavam um "sentimento de aldeia", cultivavam um "sentimento de quilombo". Era como andar contra o tempo cada vez mais acelerado das grande cidades, ao encontro do en_canto de pintassilgo, um gosto de passado, uma sociedade de ATRASO no melhor sentido da palavra: um tempo lento, tempo de respiro, tempo de bezerro e saci pererê, da pressa de galinha ciscando o terreno, pressa do corpo deitado na rede cuja sombra da mangueira alivia o calor de 38 graus. Estavam chegando, chegando, cada vez mais perto, estavam territorializando..
Há lugares onde o vínculo com a terra é muito forte. A vinculação do sujeito com a terra é forte porque o laço é afetivo: laço mais forte que nó. É como se não houvesse separação, terra não existe sem a gente e a gente não existe sem a terra e tudo o que flui nela, toda a vida, toda a cultura. Diante do cemitério quilombola, ouviram: “aqui estão enterrados meu pai e minha mãe, o corpo deles já virou terra. Tá vendo aquela mangueira logo ali? dá a manga mais doce de toda região, tem a doçura da saudade”.
Pertencer ao território é ser parte do seu chão!
Ivan Rubens
Geógrafo
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 18 de abril de 2023
Na aldeia
No meio da floresta
três pequenos curumins
um olho coberto
outro olho aberto
roupa cobre o pingulim
O chão de terra batida
ao sol da tarde compriiiida
barrancas de terra caída
moldura da cena real
Cinco olhos espiam Arara
pitanga vermelha laçada
olhares te guiam na mata.
Crianças brincando com ela,
fotógrafa de fita amarela
registra imagem mais bela.
A Vida Boa de Zé Miguel
Ele poderia dizer: amanheceu! Mas um artista não fala assim. Um artista da música faz, com palavras e sons, obras de arte. Um artista nos apresenta paisagens, mostra a potência do simples, abre nossos sentidos para perceber a beleza.
A canção Vida Boa começa assim:
O dia nos chega toda manhã / Com nuvens de fogo pintando o céu / Um ventinho frio sopra sim e assim / Vez em quando se escuta o canto do Japiim.
Uma obra de arte requer atenção. O artista coloca nossa atenção nas cores da manhã, no vento, no canto do Japiim. Japiim é uma ave de plumagem preta e amarela, comum na Amazônia brasileira, que tem uma característica peculiar: não tem um canto próprio, ele imita o canto dos outros pássaros. Ou seja, o artista sugere que é possível escutar o que ainda não foi dito, é possível ler nas entrelinhas. Pura provocação.
A canção continua…
A canoa balança bem devagar / A maré vazou, encheu, é preamar, eh / O Zé vai pro mato apanhar açaí / Maria pra roça vai capinar / A vida daqui é assim devagar / Precisa mais nada não pra atrapalhar / Basta o céu, o sol, o rio e o ar. / E um pirão de açaí com tamuatá.
O artista fala de um lugar onde as pessoas vivem do jeito que lhes agrada. Uma pessoa da cidade, com cabeça de cidade, carioca ou gaúcha por exemplo, talvez tenha muita dificuldade de se libertar do ritmo frenético dos apps como o tiktok e o twitter, da rotina acelerada do Zé Delivery ou do ifood, ou de uma Maria ligada aos ritos palacianos. E, escorregando em julgamentos morais, dizer que a canção “estimula a vagabundagem”. Quem dera???
A canção apresenta uma vida onde o trabalho na roça, na coleta, na pesca, parece voltado à ‘subsistência’. O Zé vai para o mato apanhar açaí, Maria vai capinar a roça. Devagar, divagando. Me alegra pensar que a natureza nos oferece tudo o necessário para sustentação da vida: água, ar, comida. E pensar que ainda há no Brasil comida partilhada: açaí no pé, peixe no rio, mandioca na terra, banana. Aliás, Tamuatá é um peixe típico dos rios da Amazônia, saboroso, combina bem com o açaí, talvez você conheça por Cascudo.
Uma obra de arte tem a potência de colocar um mundo diante de outros mundos, uma vida diante de outras possibilidades de vida.
A canção continua…
Que vida boa sumano / Nós não tem nem que fazer planos / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa / Que vida boa suprimo / Nós só tem que fazer menino / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa
Sumano é um regionalismo para expressões de carinho, tipo “irmão querido, querida irmã”. Disse o artista: “Quando eu era criança, nas férias escolares, eu voltava ao encontro da minha família no interior do Amapá, num lugar chamado Mel. Lá vivia meu avô, e foi lá que eu tive contato com os elementos da natureza na sua essência, eu aprendi a respeitar a natureza e o homem vivendo em harmonia com ela. Essa canção foi feita para homens e mulheres do campo”. ‘Fazer menino’ é um jeito bonito de dizer que a vida tem profundidade, um jeito bonito de dizer que o que interessa na vida, bom… isso não cabe nos planos.
Vida Boa é uma canção do amapaense Zé Miguel.
Ivan Rubens
Florescer, florestar.
Saiu de casa cedinho. Partiu da cidade até o porto, uma horinha de estrada. Choveu muito naquela noite. Começo de ano na linha do equador é inverno, chuvoso e quente, mas nuvens de chuva dão um certo conforto térmico. Ele carregava rede, mosquiteiro, corda e um computador com livros e filmes gravados. Aconselhado pelos povos do lugar, carregava uma camisa de manga longa para proteger do frio da noite.
O professor chegou ao porto fluvial, embarcou na voadeira e navegou lentamente pelo igarapé que estava enchendo. No rio Ipixuna Miranda a velocidade aumentou; certa calmaria no imenso rio Amazonas até a foz do rio Macacoari. Mais um igarapé… jogaram a corda, saltaram. O trapiche recebe os professores com a alegria de uma escola na floresta. Adoro essa palavra: FLORESTA. Na minha imaginação a palavra entoa verde, como céu entoa azul, água salobra aflora exuberante. A palavra floresta já chega com bichos, com chuva, com mato, palmeiras carregadas de açaí. E penso em gente, porque na floresta tem gente, sempre teve. Floresce gente desde sempre na floresta.
Uma gente que “vive em harmonia com a floresta”. Quem pensa assim talvez nunca tenha passado pela floresta, talvez não conheça a floresta e a sua gente. Talvez pense assim quem nunca teve contato com a floresta em sua bio_diversidade. Essa ideia de “harmonia” parece um tanto exótica, parece o olhar de fora. Na floresta, o professor vê uma outra coisa. Na escola da floresta, o professor escuta um produtor rural que participa da Cooperativa de produtores de açaí insistindo na palavra pertencimento. Abre-se aí uma perspectiva nova de pensar, colocando o conhecimento teórico de um professor em contato com a vida real dos povos na floresta. Portanto, não se trata de viver em harmonia, mas de pertencer a um território.
Pronto, encontrei o que procurava na escrita deste texto: pertencer!
Um fazendeiro, proprietário de terra, diria: “essa terra me pertence!”, “essa terra é minha, sou proprietário!” Já os povos da floresta dizem: “pertencemos a essa terra”. Gente que é da terra dizendo pertencer à terra, que pertence ao território, que são próprios do lugar, que são nascidos deste chão. Gente que está na terra há muito tempo, mas muito tempo mesmo... Muito antes de Pedro Álvares Cabral e a máquina colonial, muito antes de reduzirem a terra à mera mercadoria, essa gente já estava na terra, essa gente florescia. Gente que pertence à terra, gente que é terra, terra com roupa de gente.
Por isso não se trata de estar em harmonia com a terra. Trata-se de pertencer à terra, de ser parte da Terra, de pertencer à Floresta e de ser floresta também. Todo nascimento, de um bichinho ou de uma criança, é uma espécie de florada como um botão de rosa que se abre, vida desabrochando, florescer de uma vida nova. Não há dicotomia entre natureza e cultura. É uma questão de ser e de estar: ser terra, ser rio, ser flor, ser vivo, ser natureza. Ser e estar floresta: florescer, florestar.
Ivan Rubens
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 21/fevereiro/2023