Florescer, florestar.


Saiu de casa cedinho. Partiu da cidade até o porto, uma horinha de estrada. Choveu muito naquela noite. Começo de ano na linha do equador é inverno, chuvoso e quente, mas nuvens de chuva dão um certo conforto térmico. Ele carregava rede, mosquiteiro, corda e um computador com livros e filmes gravados. Aconselhado pelos povos do lugar, carregava uma camisa de manga longa para proteger do frio da noite.

O professor chegou ao porto fluvial, embarcou na voadeira e navegou lentamente pelo igarapé que estava enchendo. No rio Ipixuna Miranda a velocidade aumentou; certa calmaria no imenso rio Amazonas até a foz do rio Macacoari. Mais um igarapé… jogaram a corda, saltaram. O trapiche recebe os professores com a alegria de uma escola na floresta. Adoro essa palavra: FLORESTA. Na minha imaginação a palavra entoa verde, como céu entoa azul, água salobra aflora exuberante. A palavra floresta já chega com bichos, com chuva, com mato, palmeiras carregadas de açaí. E penso em gente, porque na floresta tem gente, sempre teve. Floresce gente desde sempre na floresta.

Uma gente que “vive em harmonia com a floresta”. Quem pensa assim talvez nunca tenha passado pela floresta, talvez não conheça a floresta e a sua gente. Talvez pense assim quem nunca teve contato com a floresta em sua bio_diversidade. Essa ideia de “harmonia” parece um tanto exótica, parece o olhar de fora. Na floresta, o professor vê uma outra coisa. Na escola da floresta, o professor escuta um produtor rural que participa da Cooperativa de produtores de açaí insistindo na palavra pertencimento. Abre-se aí uma perspectiva nova de pensar, colocando o conhecimento teórico de um professor em contato com a vida real dos povos na floresta. Portanto, não se trata de viver em harmonia, mas de pertencer a um território.

Pronto, encontrei o que procurava na escrita deste texto: pertencer!

Um fazendeiro, proprietário de terra, diria: “essa terra me pertence!”, “essa terra é minha, sou proprietário!” Já os povos da floresta dizem: “pertencemos a essa terra”. Gente que é da terra dizendo pertencer à terra, que pertence ao território, que são próprios do lugar, que são nascidos deste chão. Gente que está na terra há muito tempo, mas muito tempo mesmo... Muito antes de Pedro Álvares Cabral e a máquina colonial, muito antes de reduzirem a terra à mera mercadoria, essa gente já estava na terra, essa gente florescia. Gente que pertence à terra, gente que é terra, terra com roupa de gente.

Por isso não se trata de estar em harmonia com a terra. Trata-se de pertencer à terra, de ser parte da Terra, de pertencer à Floresta e de ser floresta também. Todo nascimento, de um bichinho ou de uma criança, é uma espécie de florada como um botão de rosa que se abre, vida desabrochando, florescer de uma vida nova. Não há dicotomia entre natureza e cultura. É uma questão de ser e de estar: ser terra, ser rio, ser flor, ser vivo, ser natureza. Ser e estar floresta: florescer, florestar.

Ivan Rubens


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 21/fevereiro/2023


22 comentários:

  1. Linda interpretação do Ser ribeirinho amazonida.

    ResponderExcluir
  2. Que bom ter desabrochado à vida junto de você, compartilhando a aventura da vida na Terra, da terra, pertencendo a uma família, como sua irmã! O texto é inspirador!!!

    ResponderExcluir
  3. Pertencimento é a chave da nossa sobrevivência. Ou somos parte ou não sobreviveremos. Grande abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. querido prof. Aldair, seu modo de conceituar PERTENCIMENTO é muito potente. Obrigado, amigo. Forte abraço a todos os amigos e todas as amigas da Escola Família Agroecológica, e ao pessoal da foz do rio Macacoari.

      Excluir
  4. Que sorte em conhecer um professor/escritor tão sábio em suas palavras. Desbrave mais nossa Floresta.

    ResponderExcluir
  5. Que maravilha! Bela interpretação de vida , de amor à floresta ao campo , sou uma
    ribeirinha com paixão com orgulho.😍👏👏👏👏

    ResponderExcluir
  6. Que bela maneira de homenagear sua paixão pela natureza e pelas palavras....cada trecho desse texto me fizeram relembrar as lindas paisagens que vislumbrei, cheiros,perfumes,sons,sintonia e um colorido inexplicável...Realmente quem sente o pulsar da floresta,o acariciar do vento e o embalar das águas terá compreendido que todos somos um e podemos viver em junção FLORESTA E HOMEM.
    PARABÉNS pelas lindas palavra Ivan Rubens e obrigado pelas lembranças..

    Um grande abraço

    ResponderExcluir
  7. Boa noite Ivan! Li a sua crônica "Florescer, florestar". Você escreve esta crônica no fluxo das águas e ao sabor dos ventos da floresta, até parece que tem um fundo musical também. Soa e ressoa forte mente esta combinação do florescer com o florestar. A diferença entre ser próprio da terrra e ser proprietário da terra é muito provocadora, só mostra o quanto nós, ao assumirmos a condição de ser proprietários, e perder a condição de pertencimento, só regredimos em nossa humanidade. O seu texto está excelente! Parabéns! Ficou um gosto de quero mais!!!!!
    Romualdo Dias.

    ResponderExcluir
  8. Quem pertence à floresta preserva,protege,porque sabe reconhecer o seu valor

    ResponderExcluir
  9. Muito interessante!!! nesse seu ver amazônico floresce seu pensamento junto ao frio e o vento do rio Amazonas!! Pertencimento de fazer parte , de algo que vai muito além do eu, samos amazônia!!

    ResponderExcluir
  10. Danilo Fabriciano Da silva22 de fevereiro de 2023 às 15:52

    Que maravilha de Texto, transcende o amor a vida o amor nas pessoas, quem vive na Amazônia e dela se sustentar! Da sentido que vidas amazônidas importam.... Viva à Amazônia e viva à você por trazer essa História vivida e que agora se eterniza , Parabéns!!!!🌼🌻

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. querido diretor, agradeço a generosidade da sua leitura. Saudade da Escola Família do carvão, forte abraço a todos e todas.

      Excluir
  11. Que lindeza de análise!!! Viva a vida!

    ResponderExcluir
  12. Toda semente quer florescer, nascer, se fixar. Essa é a grande doideira do que não controlamos. Somos a natureza, fazemos parte e adoecemos quando esquecemos dessa importante mensagem. Amapá e suas lindezas

    ResponderExcluir
  13. Toda semente quer florescer, nascer, se fixar. Essa é a grande doideira do que não controlamos. Somos a natureza, fazemos parte e adoecemos quando esquecemos dessa importante mensagem. Amapá e suas lindezas

    ResponderExcluir