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Sobre escola, água e felicidade


Aconteceu na cidade de Cáceres, Mato Grosso, nas cabeceiras do rio Paraguai. O rio Paraguai é afluente do rio Paraná, bacia do rio da Prata. O rio Paraguai nasce na cidade de Alto Paraguai/MT, passa pela Bolívia, atravessa o Paraguai e derrama suas águas no rio Paraná, lá na Argentina.


Observando papagaios, periquitos, araras, maracanãs, calopsitas frequentando o rio, os povos indígenas diziam ‘Ysyry Paraguái’ que na língua guarani antiga quer dizer ‘rio dos paraguás’. ‘Paraguá’ é uma espécie de psitacídeo (ordem de aves), e ‘y’ significa rio.


Pois bem, aconteceu na margem esquerda do rio Paraguai. Dois amigos, desses que compartilham uma vida de estudo, de trabalho e de luta, experimentavam a alegria de ser professor em mais uma tentativa. Ambos envolvidos com um livro (sobre o ofício de professor) do espanhol Jorge Larrosa. E lá pelas tantas, apareceu uma frase atribuída a Maria Bethânia: “Perto de muita água, tudo é feliz”.


Estavam numa situação de estudo, trabalho e luta, mais um encontro da Escola de Militância Pantaneira. Trata-se da reunião de 13 Comitês Populares de Defesa das Águas, das nascentes (e do clima) do rio Paraguai e seus afluentes. Escola porque oferece tempo (livre dos temas ordinários) para colocar a atenção nos temas selecionados para estudo, neste caso, os “direitos da natureza”: leram “A Carta da Terra”, ouviram Leonardo Boff, estiveram em aula com uma professora que trouxe dados, números, experiências de outros países onde os rios são sujeitos de direito, onde montanhas e territórios sagrados são sujeitos de direito. Escreveram um projeto de emenda visando à inclusão dos direitos da natureza na Lei Orgânica do município de Cáceres/MT.


Durante o Encontro da Escola de Militância Pantaneira, uma frase ficou muito forte: “eu sou natureza”. E as pessoas repetiam: “eu sou natureza”, “eu sou natureza”. Bem, se ‘eu’, um ser vivo chamado humano, é sujeito de direitos e, ‘eu’ é natureza, logo… Mas quero colocar nossa atenção numa dimensão outra da mesma frase. “Eu sou natureza” nos convida a pensar que está em construção uma ponte para vencer a distância, o abismo que separa humano e natureza, natureza e cultura. Estamos falando de uma razão liberal, industrial, neoliberal, desenvolvimentista que nos leva a pensar um rio como recurso hídrico, que nos leva a pensar floresta como recursos florestais, natureza como recursos naturais, e pasmem, homens e mulheres como recursos humanos. Deste ponto de vista produtivo e desenvolvimentista, crianças e idosos, doentes e loucos, se improdutivos, nem recursos são. Portanto, não são nada.


Mas no encontro da Escola de Militância Pantaneira o pressuposto parecia outro. Partiram do pressuposto que envolvimento é mais importante que desenvolvimento. Envolvidos entre si e envolvidos com o tema selecionado para estudo (direitos da natureza), homens e mulheres, jovens e velhos criaram para si outras possibilidades de ver, de pensar e de sentir(-se) natureza. 


Aconteceu ali, na margem esquerda do rio Paraguai. Maria Bethânia e Jorge Larrosa deram a letra: “perto de muita água, tudo é feliz”.


Ivan Rubens

Mergulhador e canoeiro




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro edição de 13 de junho de 2023.

Territorializar ou Pertencer ao Território


Dois amigos seguem para mais um encontro de educação popular. Estão num desses carros nem grande e nem pequeno, desses tipo furgão cuja porta lateral desliza paralela à lataria, se é que carro tem lata… Aliás, você já notou que carro muda muito de nome e de modelo? difícil acompanhar a velocidade de tais mudanças.


No interior do Mato Grosso, seguem para uma Terra Quilombola. São cinco comunidades que lutam pela terra, lutam pelo rio vivo em peixes e a água pra beber, pra cozinhar, pra molhar a horta de temperos e de ervas medicinais. Fazem roça de mandioca, de banana, de milho, feijão, abóbora, alimentos para as famílias e para “as criação”. Criam “galinha sorta” no terreno, “uns porquinho”, vaca de leite, um ou outro boi para servir nas festas de santo. Essa Terra Quilombola fica entre morros na planície de inundação do rio Jauquara, no alto curso da bacia do rio Paraguai, bioma Pantanal.


Pois bem, os dois amigos seguem para o Território Quilombola do Vão Grande. São amigos de estudo, amigos de trabalho e amigos de luta porque partilham a vida de estudantes, partilham o tempo dedicado aos trabalhos remunerados e, ainda, partilham a fé. Fé aqui compreendida como as ações nas lutas que, crêem, necessárias para trans_formação do mundo. Estudo_trabalho_luta compondo, pouco a pouco, uma amizade tecida na lida da vida.  


O pequeno furgão circula numa sojeira sem fim: fazendas de soja, soja, soja, soja, monocultura da soja, carretas carregadas de soja enfileiradas na estrada. Fora do furgão, a monocultura da soja; dentro do furgão, a multicultura das conversas, do pantanal vivo nos poemas do Manoel de Barros, da saudade do povo quilombola do Vão Grande, da expectativa com a festa de aniversário do rio Jauquara e a curiosidade com o sabor do bolo deste ano, da lembrança de episódios a propósito da Canção para o rio Jauquara… os amigos transitavam “na paralela do impossível”.


Carregavam um "sentimento de aldeia", cultivavam um "sentimento de quilombo". Era como andar contra o tempo cada vez mais acelerado das grande cidades, ao encontro do en_canto de pintassilgo, um gosto de passado, uma sociedade de ATRASO no melhor sentido da palavra: um tempo lento, tempo de respiro, tempo de bezerro e saci pererê, da pressa de galinha ciscando o terreno, pressa do corpo deitado na rede cuja sombra da mangueira alivia o calor de 38 graus. Estavam chegando, chegando, cada vez mais perto, estavam territorializando..


Há lugares onde o vínculo com a terra é muito forte. A vinculação do sujeito com a terra é forte porque o laço é afetivo: laço mais forte que nó. É como se não houvesse separação, terra não existe sem a gente e a gente não existe sem a terra e tudo o que flui nela, toda a vida, toda a cultura. Diante do cemitério quilombola, ouviram: “aqui estão enterrados meu pai e minha mãe, o corpo deles já virou terra. Tá vendo aquela mangueira logo ali? dá a manga mais doce de toda região, tem a doçura da saudade”. 


Pertencer ao território é ser parte do seu chão!


Ivan Rubens

Geógrafo


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 18 de abril de 2023