entro na roda com pandeiro e tamborim
alegria do samba
entro na roda com pandeiro e tamborim
Ébrios, bêbados e loucos
Que sejamos nós os ébrios
Os que espalham, régios,
O mundano evangelho das esquinas!
Proclamemos, nós, sinais
Do fígado das horas
E as canções profanas!
Não nos dobremos, nós
À putrefata voz do algoz
Que nos sublima!
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Intrépidos? Profanos!
Que sejamos nós os bêbados
que caminham, trôpegos,
As esquinas mundanas da cidade fria
Beberemos, nós, sinais
Do trânsito acelerado
E da vida q circula intensa.
Só nos dobremos, nós
À marquise úmida
Que nos abriga
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Artrópodes? Profanos!
Que sejamos nós os loucos
Os que empurram, poucos,
Carrinhos, papelões, amigos fiéis
Reclamemos, nós, sinais
Do muro alto que separa
E do portão que aprisiona
Só nos dobremos, nós
À beleza da arte
Que nos liberta
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Antropófagos profanos!
(Nuno Moraes e Ivan Rubens)
Fruta de rua
Feira?
Feira eu faço lá fora.
Fruta eu pego na rua.
Figo não tem,
mas tem mamão, jambo, cajú.
Manga tem de sobra, fartura açaí.
Procurando bem tem acerola, goiaba, talvez amora
tudo com gosto de rua,
tudo pra coletar
coletar
Feira de fruta faço lá fora.
Feira de fruta faço na rua.
Ivan Rubens
Que mundo é esse?
ouça este texto na voz doce da professora Graziella Jordão Marcucci
clique no link acima para ouvir
Este texto tem como título: Que mundo é esse?
mas poderia ser: Um pouquinho por dia...
Nasce um bebê. É linda essa cena. O choro da criança aparece como um símbolo, como um grito: cheguei! Mas, cheguei onde? que mundo é esse?
Coloque-se no lugar do bebê. Você fica cerca de 40 semanas dentro de uma barriga, protegido, protegida, recebendo tudo que precisa para sobreviver. Até que um dia, você, bebê, sai da barriga e vai para o mundo. Mas que mundo é esse?
Um bebê não fala. Mas, se falasse, o que diria?
O que você, bebê, diria na chegada a este nosso mundo?
Então você deixa aquele mundo de água, passa por um aperto danado, uma passagem estreita e é lançado/a para fora. Mãos te tocam, te enrolam em panos, dedo na tua boca, no teu nariz e teus olhos… E tem um choque térmico: se num hospital, certamente uma sala com ar condicionado em baixa temperatura, se numa aldeia na floresta provavelmente calor, muito calor. E seus braços se movem, pernas, mãos se movem, e coisas que você não conhece tocam no seu corpo, toalhas, paninhos, mãos, algodão. E um monte de ruído toca seus ouvidos, cheiros e tal, um mamilo encontra tua boca… o que te resta é sentir, sentir e sentir.
Ou seja, sua primeira relação com este mundo extra_uterino acontece nos cinco sentidos: audição, olfato, tato e, até, visão e paladar. Ouvidos, nariz, pele, e até os olhos e a língua são intensamente estimulados, mas você não tem palavras para dizer o que te acontece, ainda não tem linguagem, consciência, razão, isso virá com o tempo. Pelo menos não esta linguagem e esta razão que mobilizamos ao ler (e escrever) este texto. O que está operando em você, bebê, talvez uma experimentação intensiva. Você está nascendo para uma (muitas) vida(s) neste mundo. A primeira relação com este mundo fora do útero é sensível e, acredito, a sensibilidade pode ser cultivada durante a vida.
Tem uma palavra para dizer da “apreensão pelos sentidos”, dessa “percepção”. Estética deriva da palavra grega ‘aisthesis’, é uma forma de conhecer, de apreender o mundo através dos cinco sentidos. Uma música, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos ouvidos. Uma tela, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos olhos. Uma poesia, literatura, dança, ou o cheiro de uma comida, um prato bonito, o barulho da cerveja caindo no copo, o cheiro do vinho, a cor do suco da fruta colhida do pé, tudo isso vai criando um desejo. Estamos falando de um cultivo da sensibilidade que nos torna mais humanos, um pouquinho por dia.
‘O contrário também sei que pode acontecer’: podemos cultivar sementinhas de medo e ódio, um pouquinho por dia. Acredito nas belezas como produtoras de sensibilidades e de uma humanidade mais interessante. Quero sugerir duas obras de arte: JEITO TUCUJÚ, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem, (hino popular do Amapá); e SABOR AÇAÍ, de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves, homenagem a esse alimento maravilhoso que é o açaí. A Música Popular Amapaense é um mundo de beleza e poesia. Um pouquinho por dia.
Ivan Rubens
Educador popular
Todo seu querer
No dia dos namorados encontrei uma bela canção. Trata-se de TODO SEU QUERER, interpretada por Mariene de Castro e Roberto Mendes. Pesquisando um pouco a respeito da canção, descobri tratar-se de uma composição dos baianos Roberto Mendes e José Carlos Capinan. Fazer música e fazer poesia é uma espécie de artesanato, músico e poeta são um tanto escultores. O poeta escolhe criteriosamente algumas palavras e vai esculpindo uma a uma, palavra por palavra, depois começa a juntar as palavras esculpidas, vai esculpindo as frases, linha por linha, vai esculpindo sua obra de arte. Com o músico imagino que seja parecido, escolhe sons, acordes, vai esculpindo, esculpindo, vai esculpindo cuidadosa e criteriosamente sua obra de arte.
No dia dos namorados uma bela canção me encontrou. Eu estava distraído quando a canção passou por mim produzindo um primeiro afeto quase imperceptível. Insistente, a canção se fez presença. Então pensei: “opa, aí tem coisa”. Ato contínuo, peguei o celular, abri o aplicativo e coloquei minha atenção tanto na letra quanto na melodia. A canção diz assim:
Quando o amor olha pra você querendo te prender nos braços de alguém / quando o amor fala pra você com palavras loucas todo o seu querer / E quando o amor tem sabor de fruta colhe em tua boca a manga madura / em tua mão em fogo acende o teu corpo tira a tua roupa procurando a flor.
Ai amor diga sorrindo / ai amor / seja bem vindo / ai amor / diga chorando, amor, você chegou / Ai amor diga que volta / ai amor / beijo de adeus quando se for.
Os afetos iniciais produzidos nesse lindo encontro canção e ouvinte me levaram pelo caminho de pensar numa declaração de amor. Uma pessoa dizendo palavras verdadeiras, belas e apaixonadas para uma outra pessoa. Desconfiado que uma obra de arte guarda belezas com força de produzir mais e mais beleza, lancei ainda mais atenção para a escultura. O que estaria escondendo nessa letra o poeta? e isso me levou a um segundo afeto.
O amor da canção não é um sentimento mas um personagem. É o amor que olha, é o amor que deseja, é o amor que fala com poucas palavras. Na obra, o amor tem sabor de fruta, o amor colhe, é o amor quem coloca fogo nas mãos e tocam um corpo que, em chamas, tira a roupa. Mas não tira a toa. Motivado pela força do amor, a mão procura uma flor. Uma flor. É muito bonito isso: a mão em chama de amor procurando a flor.
Então o poeta pede ao amor para dizer, o poeta pede ao amor para sorrir. O poeta dá as boas vindas ao amor e chora, certamente de alegria para celebrar a chegada do amor. Nós, ouvintes e admiradores da obra, nós que sentimos a beleza enchendo o peito com esperança na vida, nas belezas da vida e na maravilhosa oportunidade de viver, de respirar, nós que sentimos os raios de sol queimando a pele, nós que sentimos as gotas da chuva molhando a pele, o vento beijando o rosto, ainda seremos capazes de sentir a alegria e a leveza de não precisar carregar nada para poder sentir e pensar. Sentir e pensar, fechar os olhos e sentir a beleza atravessar e, atravessando, produzir novidades: novas formas de sentir e pensar.
E assim como vem, o amor vai. Então vá, que seja leve e que seja forte o suficiente para voltar. Para ir quando for o momento de ir e voltar quando for momento de voltar. Voltar modificado, voltar verdadeiro, voltar saboroso. Nas idas e vindas, vamos esculpindo o amor, vamos fazendo da vida uma obra de arte.
Ivan Rubens
Artesão de palavras
dedico ao artista José Celso Martinez Corrêa
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 11/julho/2023
Sobre escola, água e felicidade
Aconteceu na cidade de Cáceres, Mato Grosso, nas cabeceiras do rio Paraguai. O rio Paraguai é afluente do rio Paraná, bacia do rio da Prata. O rio Paraguai nasce na cidade de Alto Paraguai/MT, passa pela Bolívia, atravessa o Paraguai e derrama suas águas no rio Paraná, lá na Argentina.
Observando papagaios, periquitos, araras, maracanãs, calopsitas frequentando o rio, os povos indígenas diziam ‘Ysyry Paraguái’ que na língua guarani antiga quer dizer ‘rio dos paraguás’. ‘Paraguá’ é uma espécie de psitacídeo (ordem de aves), e ‘y’ significa rio.
Pois bem, aconteceu na margem esquerda do rio Paraguai. Dois amigos, desses que compartilham uma vida de estudo, de trabalho e de luta, experimentavam a alegria de ser professor em mais uma tentativa. Ambos envolvidos com um livro (sobre o ofício de professor) do espanhol Jorge Larrosa. E lá pelas tantas, apareceu uma frase atribuída a Maria Bethânia: “Perto de muita água, tudo é feliz”.
Estavam numa situação de estudo, trabalho e luta, mais um encontro da Escola de Militância Pantaneira. Trata-se da reunião de 13 Comitês Populares de Defesa das Águas, das nascentes (e do clima) do rio Paraguai e seus afluentes. Escola porque oferece tempo (livre dos temas ordinários) para colocar a atenção nos temas selecionados para estudo, neste caso, os “direitos da natureza”: leram “A Carta da Terra”, ouviram Leonardo Boff, estiveram em aula com uma professora que trouxe dados, números, experiências de outros países onde os rios são sujeitos de direito, onde montanhas e territórios sagrados são sujeitos de direito. Escreveram um projeto de emenda visando à inclusão dos direitos da natureza na Lei Orgânica do município de Cáceres/MT.
Durante o Encontro da Escola de Militância Pantaneira, uma frase ficou muito forte: “eu sou natureza”. E as pessoas repetiam: “eu sou natureza”, “eu sou natureza”. Bem, se ‘eu’, um ser vivo chamado humano, é sujeito de direitos e, ‘eu’ é natureza, logo… Mas quero colocar nossa atenção numa dimensão outra da mesma frase. “Eu sou natureza” nos convida a pensar que está em construção uma ponte para vencer a distância, o abismo que separa humano e natureza, natureza e cultura. Estamos falando de uma razão liberal, industrial, neoliberal, desenvolvimentista que nos leva a pensar um rio como recurso hídrico, que nos leva a pensar floresta como recursos florestais, natureza como recursos naturais, e pasmem, homens e mulheres como recursos humanos. Deste ponto de vista produtivo e desenvolvimentista, crianças e idosos, doentes e loucos, se improdutivos, nem recursos são. Portanto, não são nada.
Mas no encontro da Escola de Militância Pantaneira o pressuposto parecia outro. Partiram do pressuposto que envolvimento é mais importante que desenvolvimento. Envolvidos entre si e envolvidos com o tema selecionado para estudo (direitos da natureza), homens e mulheres, jovens e velhos criaram para si outras possibilidades de ver, de pensar e de sentir(-se) natureza.
Aconteceu ali, na margem esquerda do rio Paraguai. Maria Bethânia e Jorge Larrosa deram a letra: “perto de muita água, tudo é feliz”.
Ivan Rubens
Mergulhador e canoeiro
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro edição de 13 de junho de 2023.
Com o caderno de campo
Lá vai ela com seu caderno de campo
Lá vai ela, usa pantufas não usa tamanco
Lá vai ela habitando território
com rede e mosquiteiro que monta no dormitório
Entre cidades, rios e aldeia
Ela, aranha, vai tecendo sua teia
Em aviões, carros, barcos, voadeira
ela vai, ela vem, transitando
faz sua casa no caminho, sua oca, sua aldeia
seu quilombo, sua tapera
ela espera, tempo duração, corre
quase morre diante da onça pintada
e volta.
Lá vem ela com seu caderno de campo
usa pantufas, não usa tamanco
pisa devagarinho no chão-território.
Alguém me avisou, alguém me avisou
que ela carrega caderno de campo.
Agora
quero teu corpo
suado, molhado
quero
cheirar teu cabelo
quero
lamber teu joelho
quero
naufragar teu umbigo
quero
Delírio?
quero
te dar meu sabor
torpor?
quero
deleitar o teu ventre
repente, semente de outro dia
frio, arrepio, mal olhado?
quero
encantar
de sabores, das cores
demoro nos nomes,
temperos aromas, amoras, amores
se vai, vem
se não vai, vem também
quero te dar meu tempero
pra enfeitar teu cabelo
e andar por aí
com trôpegos versos, improvisados, na memória
pela cidade afora
agouro?
agora, agora, agora!
A Terra Querida do Benedito
ver o video da TV Prefeitura de Barra do Bugres/MT
Há, no estado do Mato Grosso, um movimento muito interessante em defesa da Vida: Comitês Populares em Defesa das Águas e do Clima. São 13 Comitês Populares distribuídos nos rios que compõem a bacia do rio Paraguai, cujas águas e as lutas pela vida vão tecendo uma rede. Assim como a rede de drenagem compostas pelos rios e afluentes, cada rio contribuindo com suas águas na formação dos rios maiores, as pessoas organizadas em Comitês Populares vão contribuindo com sua luta pela Vida, mas também com sua cultura, com suas danças, sua gastronomia, com seus modos de vida, e assim vão tecendo uma rede social. Uma rede social real onde as pessoas se encontram no movimento e na luta.
Essa luta pela vida se materializa em ações concretas como a defesa dos rios, contra empreendimentos como hidrelétricas e hidrovias, contra o veneno utilizado na monocultura da soja que polui as terras e mata a vida nas águas. Contra o garimpo e a mineração em terras produtivas, contra a invasão e a grilagem da terra onde as famílias produzem alimento para sobreviver. E nesse movimento de luta, as pessoas no campo vão tecendo suas redes de vida e suas redes de cultura.
Benedito Ilino é um pequeno produtor. Ele produz mandioca, banana, abóbora, feijão e milho, cria porco e de galinha. Benedito também cria obras de arte e produz cultura: ele escreveu a canção do rio Jauquara, uma obra cantada pelo povo no Território Quilombola do Vão Grande todo ano no dia 28 de abril, quando se comemora o dia do rio Jauquara. A canção Terra Querida fala da vida no bioma Pantanal:
Mato Grosso terra querida / suas cores me satisfaz / os verdes dos campos e os cheiros dos pantanais / É o jardim da natureza, sua beleza tão magistrais / Águas vivas dos ribeirinhos e o repouso dos animais
Nesta primeira parte, o artista nos apresenta um pouco da sua terra em cores, cheiro, águas e beleza.
A lua surgiu nos montes / deixando raias pra trás / visitando o rio Jauquara e banhando o rio Paraguai / Iluminando os povos de luta e a fé que neles traz / nossos rios por inteiro e os corredores bioculturais / quem bebe de suas águas com certeza não esquece mais
O artista pede os rios por inteiro, sem barragens, sem interdições. Rios cujo fluxo nos remete à vida de povos em luta, povos de fé, rios que são corredores de vida e de cultura. E o refrão é marcante:
Pantanal, pantanal, sua beleza tão natural / Pantanal, recanto na anhuma, olhar das Jumas eu passo mal / Pantanal, aqui é selva / só quando tô com reiva sou animal.
Anhuma é uma ave da região. Mas é no olhar das Jumas que o artista “passa mal”. Quem não se lembra da Juma Marruá, personagem da novela Pantanal? a mulher que vira onça, ou seria uma onça que vira mulher? a selvageria da vida em suas diferentes formas. Diante da vida selvagem, o 'eu lírico' da canção passa mal: pode ser por medo mas pode ser encanto... e uma “réiva” que também o transforma em animal: um homem anhuma, homem arara, tucano, homem peixe jaú, dourado?
Rios como metáfora da vida, corredores por onde passam vida e cultura. A 'Terra Querida' do Benedito Ilino.
Ivan Rubens
Estudante
Territorializar ou Pertencer ao Território
Dois amigos seguem para mais um encontro de educação popular. Estão num desses carros nem grande e nem pequeno, desses tipo furgão cuja porta lateral desliza paralela à lataria, se é que carro tem lata… Aliás, você já notou que carro muda muito de nome e de modelo? difícil acompanhar a velocidade de tais mudanças.
No interior do Mato Grosso, seguem para uma Terra Quilombola. São cinco comunidades que lutam pela terra, lutam pelo rio vivo em peixes e a água pra beber, pra cozinhar, pra molhar a horta de temperos e de ervas medicinais. Fazem roça de mandioca, de banana, de milho, feijão, abóbora, alimentos para as famílias e para “as criação”. Criam “galinha sorta” no terreno, “uns porquinho”, vaca de leite, um ou outro boi para servir nas festas de santo. Essa Terra Quilombola fica entre morros na planície de inundação do rio Jauquara, no alto curso da bacia do rio Paraguai, bioma Pantanal.
Pois bem, os dois amigos seguem para o Território Quilombola do Vão Grande. São amigos de estudo, amigos de trabalho e amigos de luta porque partilham a vida de estudantes, partilham o tempo dedicado aos trabalhos remunerados e, ainda, partilham a fé. Fé aqui compreendida como as ações nas lutas que, crêem, necessárias para trans_formação do mundo. Estudo_trabalho_luta compondo, pouco a pouco, uma amizade tecida na lida da vida.
O pequeno furgão circula numa sojeira sem fim: fazendas de soja, soja, soja, soja, monocultura da soja, carretas carregadas de soja enfileiradas na estrada. Fora do furgão, a monocultura da soja; dentro do furgão, a multicultura das conversas, do pantanal vivo nos poemas do Manoel de Barros, da saudade do povo quilombola do Vão Grande, da expectativa com a festa de aniversário do rio Jauquara e a curiosidade com o sabor do bolo deste ano, da lembrança de episódios a propósito da Canção para o rio Jauquara… os amigos transitavam “na paralela do impossível”.
Carregavam um "sentimento de aldeia", cultivavam um "sentimento de quilombo". Era como andar contra o tempo cada vez mais acelerado das grande cidades, ao encontro do en_canto de pintassilgo, um gosto de passado, uma sociedade de ATRASO no melhor sentido da palavra: um tempo lento, tempo de respiro, tempo de bezerro e saci pererê, da pressa de galinha ciscando o terreno, pressa do corpo deitado na rede cuja sombra da mangueira alivia o calor de 38 graus. Estavam chegando, chegando, cada vez mais perto, estavam territorializando..
Há lugares onde o vínculo com a terra é muito forte. A vinculação do sujeito com a terra é forte porque o laço é afetivo: laço mais forte que nó. É como se não houvesse separação, terra não existe sem a gente e a gente não existe sem a terra e tudo o que flui nela, toda a vida, toda a cultura. Diante do cemitério quilombola, ouviram: “aqui estão enterrados meu pai e minha mãe, o corpo deles já virou terra. Tá vendo aquela mangueira logo ali? dá a manga mais doce de toda região, tem a doçura da saudade”.
Pertencer ao território é ser parte do seu chão!
Ivan Rubens
Geógrafo
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 18 de abril de 2023
Na aldeia
No meio da floresta
três pequenos curumins
um olho coberto
outro olho aberto
roupa cobre o pingulim
O chão de terra batida
ao sol da tarde compriiiida
barrancas de terra caída
moldura da cena real
Cinco olhos espiam Arara
pitanga vermelha laçada
olhares te guiam na mata.
Crianças brincando com ela,
fotógrafa de fita amarela
registra imagem mais bela.
A Vida Boa de Zé Miguel
Ele poderia dizer: amanheceu! Mas um artista não fala assim. Um artista da música faz, com palavras e sons, obras de arte. Um artista nos apresenta paisagens, mostra a potência do simples, abre nossos sentidos para perceber a beleza.
A canção Vida Boa começa assim:
O dia nos chega toda manhã / Com nuvens de fogo pintando o céu / Um ventinho frio sopra sim e assim / Vez em quando se escuta o canto do Japiim.
Uma obra de arte requer atenção. O artista coloca nossa atenção nas cores da manhã, no vento, no canto do Japiim. Japiim é uma ave de plumagem preta e amarela, comum na Amazônia brasileira, que tem uma característica peculiar: não tem um canto próprio, ele imita o canto dos outros pássaros. Ou seja, o artista sugere que é possível escutar o que ainda não foi dito, é possível ler nas entrelinhas. Pura provocação.
A canção continua…
A canoa balança bem devagar / A maré vazou, encheu, é preamar, eh / O Zé vai pro mato apanhar açaí / Maria pra roça vai capinar / A vida daqui é assim devagar / Precisa mais nada não pra atrapalhar / Basta o céu, o sol, o rio e o ar. / E um pirão de açaí com tamuatá.
O artista fala de um lugar onde as pessoas vivem do jeito que lhes agrada. Uma pessoa da cidade, com cabeça de cidade, carioca ou gaúcha por exemplo, talvez tenha muita dificuldade de se libertar do ritmo frenético dos apps como o tiktok e o twitter, da rotina acelerada do Zé Delivery ou do ifood, ou de uma Maria ligada aos ritos palacianos. E, escorregando em julgamentos morais, dizer que a canção “estimula a vagabundagem”. Quem dera???
A canção apresenta uma vida onde o trabalho na roça, na coleta, na pesca, parece voltado à ‘subsistência’. O Zé vai para o mato apanhar açaí, Maria vai capinar a roça. Devagar, divagando. Me alegra pensar que a natureza nos oferece tudo o necessário para sustentação da vida: água, ar, comida. E pensar que ainda há no Brasil comida partilhada: açaí no pé, peixe no rio, mandioca na terra, banana. Aliás, Tamuatá é um peixe típico dos rios da Amazônia, saboroso, combina bem com o açaí, talvez você conheça por Cascudo.
Uma obra de arte tem a potência de colocar um mundo diante de outros mundos, uma vida diante de outras possibilidades de vida.
A canção continua…
Que vida boa sumano / Nós não tem nem que fazer planos / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa / Que vida boa suprimo / Nós só tem que fazer menino / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa
Sumano é um regionalismo para expressões de carinho, tipo “irmão querido, querida irmã”. Disse o artista: “Quando eu era criança, nas férias escolares, eu voltava ao encontro da minha família no interior do Amapá, num lugar chamado Mel. Lá vivia meu avô, e foi lá que eu tive contato com os elementos da natureza na sua essência, eu aprendi a respeitar a natureza e o homem vivendo em harmonia com ela. Essa canção foi feita para homens e mulheres do campo”. ‘Fazer menino’ é um jeito bonito de dizer que a vida tem profundidade, um jeito bonito de dizer que o que interessa na vida, bom… isso não cabe nos planos.
Vida Boa é uma canção do amapaense Zé Miguel.
Ivan Rubens
Florescer, florestar.
Saiu de casa cedinho. Partiu da cidade até o porto, uma horinha de estrada. Choveu muito naquela noite. Começo de ano na linha do equador é inverno, chuvoso e quente, mas nuvens de chuva dão um certo conforto térmico. Ele carregava rede, mosquiteiro, corda e um computador com livros e filmes gravados. Aconselhado pelos povos do lugar, carregava uma camisa de manga longa para proteger do frio da noite.
O professor chegou ao porto fluvial, embarcou na voadeira e navegou lentamente pelo igarapé que estava enchendo. No rio Ipixuna Miranda a velocidade aumentou; certa calmaria no imenso rio Amazonas até a foz do rio Macacoari. Mais um igarapé… jogaram a corda, saltaram. O trapiche recebe os professores com a alegria de uma escola na floresta. Adoro essa palavra: FLORESTA. Na minha imaginação a palavra entoa verde, como céu entoa azul, água salobra aflora exuberante. A palavra floresta já chega com bichos, com chuva, com mato, palmeiras carregadas de açaí. E penso em gente, porque na floresta tem gente, sempre teve. Floresce gente desde sempre na floresta.
Uma gente que “vive em harmonia com a floresta”. Quem pensa assim talvez nunca tenha passado pela floresta, talvez não conheça a floresta e a sua gente. Talvez pense assim quem nunca teve contato com a floresta em sua bio_diversidade. Essa ideia de “harmonia” parece um tanto exótica, parece o olhar de fora. Na floresta, o professor vê uma outra coisa. Na escola da floresta, o professor escuta um produtor rural que participa da Cooperativa de produtores de açaí insistindo na palavra pertencimento. Abre-se aí uma perspectiva nova de pensar, colocando o conhecimento teórico de um professor em contato com a vida real dos povos na floresta. Portanto, não se trata de viver em harmonia, mas de pertencer a um território.
Pronto, encontrei o que procurava na escrita deste texto: pertencer!
Um fazendeiro, proprietário de terra, diria: “essa terra me pertence!”, “essa terra é minha, sou proprietário!” Já os povos da floresta dizem: “pertencemos a essa terra”. Gente que é da terra dizendo pertencer à terra, que pertence ao território, que são próprios do lugar, que são nascidos deste chão. Gente que está na terra há muito tempo, mas muito tempo mesmo... Muito antes de Pedro Álvares Cabral e a máquina colonial, muito antes de reduzirem a terra à mera mercadoria, essa gente já estava na terra, essa gente florescia. Gente que pertence à terra, gente que é terra, terra com roupa de gente.
Por isso não se trata de estar em harmonia com a terra. Trata-se de pertencer à terra, de ser parte da Terra, de pertencer à Floresta e de ser floresta também. Todo nascimento, de um bichinho ou de uma criança, é uma espécie de florada como um botão de rosa que se abre, vida desabrochando, florescer de uma vida nova. Não há dicotomia entre natureza e cultura. É uma questão de ser e de estar: ser terra, ser rio, ser flor, ser vivo, ser natureza. Ser e estar floresta: florescer, florestar.
Ivan Rubens
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 21/fevereiro/2023
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Pérola azulada
Zé Miguel é um artista amapaense. Cantor e compositor, sua bonita obra está disponível nas plataformas de música. Em parceria com Joãozinho Gomes, a canção Pérola azulada diz assim:
Já aprendi voar dentro de você / Ancorar no espaço ao sentir cansaço / Ossos da jornada /
Já aprendi viver como vive nu / Um cacique arara cultivando aurora / Luz de sua tiara
O compositor inicia a canção dizendo que aprendeu, portanto sabe, “voar dentro de você”. Você, quem? de quem o artista está falando?
Fala do espaço e de uma jornada, cita “um cacique arara cultivando aurora”, manhã. Talvez esteja se referindo à ararinha azul, mais provável que fale de indígenas: o povo Arara. A música lança suas primeiras provocações a ouvintes curiosos da obra de arte… E a canção continua:
Eu amo você terra minha amada / Minha oca meu iglu, minha casa / Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe
A canção vai se revelando: “você” é a terra. Para Joãozinho e Zé Miguel, o planeta Terra é oca, iglu, casa. Oca é onde moram os indígenas das florestas, Iglu é onde moram os povos das geleiras, e casa é o jeito como nos referimos às habitações mais das cidades. Podemos pensar que oca, iglu e casa são lugares de recolhimento, de sossego, de acolhimento, de intimidade, de descanso do corpo. Podemos pensar também o corpo como casa, casa do espírito, casa da alma. Também podemos pensar o corpo como casa da vida. Se o coração para, se o pulmão para, se o cérebro para, ou seja, se o corpo para de funcionar, a vida acaba. Então, o corpo é a casa da vida.
Já aprendi nadar em seu mar azul / Adorar água, homem peixe, água / Fonte iluminada /
Já aprendi a ser parte de você / Respeitar a vida em sua barriga / Quantos mais vão aprender
Joãozinho e Zé Miguel nos convidam a pensar a Terra como a nossa casa, pensar a Terra como casa comum aos povos da floresta, povos das geleiras, povos das cidades. Haveria vida fora da Terra? Em que condições? Portanto, podemos pensar a Terra como casa dos peixes e dos bichos, das plantas, das águas, dos ventos, uma casa iluminada pois ensolarada e enluarada. A Terra pode ser compreendida como a casa de maneira ampla, a Terra como a casa de todas as formas de vida.
Eles amam a Terra e usam uma expressão muito bonita: “pérola azulada” pendurada no colar de deus. Como se deus vestindo um colar com uma pérola azulada, com a Terra pendurada no pescoço. Linda a imagem… Mas, perceba: terra, casa, vida, pérola, conta, palavras no feminino. Não à toa, o artista pede bênção para a mãe.
Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe
Mãe Terra, linda a associação. A mãe é suporte para a vida, a mãe é a casa do bebê. Da mãe viemos e, mesmo rompido o cordão umbilical, os laços afetivos jamais se rompem. Mãe cuida de filhos/as e filhos/as cuidam da mãe. Quem ama, cuida. É preciso cuidar da Terra.
A benção minha mãe, Sandra Jordão. A benção minha mãe, Pérola Azulada.
Ivan Rubens
há lugares, alugueres
há um lugar, sei que há
um lugar devido
um lugar abismo
um lugar a encontrar
sei que há
No mundo há lugares
alugueres, alugar, alugares
na cidade há lugares pra morar
mas há lugares dentro de si
há buscar
na andança por lugares, aqui e ali
lugar dentro de si
aconchegos, acalantos
lugares de descanso
de encontros
Lugares a esmo
encontro consigo mesmo
superfícies, mergulhos
altos e baixos
vão grande e pequeno
encontros consigo mesmo
Ivan Rubens
Jair, o cão raivoso
Ela saia de casa para trabalhar bem cedinho. Não sei sua profissão, não sei onde trabalha, mas sei que ela sai da casa toda manhã. Sei disso porque um cão dá o sinal da passagem da mulher. O cão é macho e não foi castrado. Não sei qual a satisfação de um cão macho ao ver uma mulher passando toda manhã, vestida de branco até os pés. Imagino que seja enfermeira e que o dono do cão seja homem. Apenas imagino e, imaginando, vou criando aqui uma realidade da mulher e o cão.
Ela acorda cedinho, imagino que se arruma e saia para o trabalho. Os latidos raivosos do cão chegam com os primeiros anúncios da manhã. Ela passa, ele late. Ele late muito, ele baba, amedronta. Ele pula, arranha o portão do cercadinho. Ela se assusta. Toda manhã é assim. Talvez ela esteja sonolenta pois, mesmo sabendo da diária repetição, ela se assusta e salta amedrontada na direção do meio fio.
Ela é uma mulher de 30 e poucos anos. Ele é um cão raivoso, medonho, assustador. Escuto os gritos de censura do dono: “cala boca, Jair!!!” Portanto, o cão raivoso é Jair. A casa fica numa ladeira, a mulher passa lentamente no início do dia, o que alonga o escândalo produzido por Jair em seus latidos de ódio e raiva. No final da tarde ela desce rapidamente a ladeira, o que abrevia o escândalo canino.
Jair é raivoso no geral, mas com a mulher que veste branco o comportamento do cão é exagerado. O que provocaria a raiva de Jair na caminhada da mulher de branco? seria o cheiro? dizem que os cães têm o olfato aguçado. Seria o ruído da passagem, do caminhar, seria o impacto da chinela na calçadinha portuguesa? Mas talvez o incômodo disparador da raiva não esteja nela.
Se o problema estiver nele, podemos pensar que o Jair carrega sentimentos pouco (ou nada) carinhosos, nada solidários, que Jair não goste das mulheres. Podemos pensar também que Jair se comporta como uma criança mimada que se joga no chão gritando quando contrariado pela mãe. Seria a mulher de branco, ao passar, o despertar das frustrações e traumas na relação de Jair com sua mãe? Neste caso, Jair poderia procurar a psicanálise freudiana, clássica, mas isso depende do desejo dele e, até onde eu saiba, cães raivosos se acham superiores e, portanto, não precisam disso. Cães raivosos não cuidam de si, tampouco cuidam do outro. Cães raivosos ignoram a presença viva do outro, menosprezam o desejo e a liberdade do outro. A raiva e o ódio são afetos que cegam, que ensurdecem, que despertam latidos e baba. Jair é um cão raivoso.
No dia 30 a cena mudou. A mulher de branco bateu palma e, apesar do escândalo de Jair, seu dono apareceu. Da minha janela observei o diálogo: Jair raivoso, a mulher tentando dialogar. Jair é a imagem e semelhança de seu dono, igualmente raivoso e barulhento na sua pregação com normas do comportamento feminino sob a cortina de latidos de Jair. Quando não há espaço para o diálogo, está na hora de já ir embora. Ela seguiu o seu caminho. Desde o dia 30, Jair vive seu melhor momento: de boca calada, é um poeta.
Ivan Rubens
Brilha uma estrela
Denise Fraga é uma estrela de cinema e TV. Às vésperas do segundo turno, ela lembrou que a frase presente na bandeira brasileira tem origem no positivismo do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857): “Amor por princípio, ordem por base e progresso por fim”. Ordem e progresso estão na bandeira, amor não está. Sem amor, a bandeira brasileira foi capturada por um falso nacionalismo em favor de uma candidatura em 2018. Virou marca de um governo entreguista e peça de propaganda na tentativa de reeleição em 2022.
Fazendo arminha e carregando a bandeira brasileira, sem amor, o presidente em exercício foi criando um clima de guerra, um clima de nós contra eles. Zombou das vítimas da covid e sucateou o SUS. Estrangulando a ciência, apostou na ignorância; desmontando a educação, apostou na estupidez. Avesso à beleza, calou a cultura, enterrou o cuidado, torturou a polidez, sufocou o carinho e desativou o amor. E quando falta amor, emerge o ódio. Ódio que ele foi estimulando com palavras e gestos violentos. Nosso passado colonial se levantou da catacumba das missões, das capitanias, da casa grande e dos porões da ditadura militar. O bolsonarismo é a expressão contemporânea de um país que naturaliza a violência, o racismo, o sexismo, o machismo, que é truculento e autoritário. A expressão do fascismo.
Em oposição ao ódio está o amor. Amor pela vida que enfrentou a pandemia nos hospitais, nas escolas, nos serviços essenciais. Amor que enfrenta a fome e a miséria, por emprego e vida digna para todos e todas. A brilhante Denise Fraga disse “votar em Lula para garantir o direito de votar novamente em 2026”. Esse desejo de liberdade e democracia enfrentou o fascismo. Um projeto político que nasce na luta popular e caminha com os movimentos sociais, com os trabalhadores e trabalhadoras, que acredita no amor e na cultura, que distribui livros e não distribui armas.
Essa frente democrática representada por Luiz Inácio Lula da Silva vai governar o Brasil reparando injustiças históricas, por direitos trabalhistas, por comida no prato, por saúde e educação, por um Brasil amoroso que respeita nossos povos originário, povos que mantêm a floresta em pé, cuidam do clima e das águas, do cerrado e da biodiversidade. Essas são as bandeiras com amor da frente democrática que tem em Lula sua principal figura. Nas duas falas do presidente eleito ficou nítido que o esforço agora é reconstruir o Brasil, fazer pontes, conversar muito, fazer política no sentido forte da palavra. Um Brasil generoso, inclusivo, sem fome e sem medo, investindo os recursos públicos tendo a vida e os afetos de alegria no centro da ação política. Taí nossa estrela guia.
Na bandeira brasileira são 27 estrelas brancas sobre o fundo azul. Esperamos que o amor seja colocado antes e acima da ordem e do progresso. Brilha a estrela de esperança, uma estrela que orienta a caminhada nesse tempo novo que se abre em flor. Brilha uma estrela.
Ivan Rubens
A Escola como experiência: entrevista com Walter Omar Kohan
Sonho meu ou Dança do pensamento
Sonho Meu é um samba de Ivone Lara e Délcio Carvalho. Provavelmente você conheça e até cantarole um pouquinho:
Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu / Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu
Vai mostrar esta saudade, sonho meu / Com a sua liberdade, sonho meu / No meu céu a estrela guia se perdeu / a madrugada fria só me traz melancolia / Sonho meu
Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora, o pai foi mecânico e violonista. Órfã de pai e mãe, estudou no internato entre os 6 aos 16 anos de idade. Foi assistente social, enfermeira, com a médica Nise da Silveira, revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940 introduzindo a arte, principalmente música e pintura, no tratamento de esquizofrenias. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Foi baiana na Escola de Samba do Império Serrano e a primeira mulher a integrar a ala dos compositores numa escola de samba. Aposentada em 1977, dedicou-se integralmente à música.
Sinto o canto da noite na boca do vento / Fazer a dança das flores no meu pensamento / Traz a pureza de um samba / Sentido, marcado de mágoas de amor / um samba que mexe o corpo da gente / E o vento vadio embalando a flor
A noite canta? o vento tem boca? As flores dançam? A canção parece sugerir que a dança das flores aconteça no pensamento, então podemos pensar como quem dança. Se o samba traz um sentido, ele mexe com a gente, o samba faz vibrar no corpo de quem ouve as marcas que o amor deixou, principalmente as marcas de alegria. O amor aqui compreendido como as relações, as relações com pessoas mas também com lugares, situações, encontros, festas, isso que dá tempero à vida.
Vento vadio? Se compreendemos vadiagem como tempo livre... Ivone e Délcio dedicaram um tempo para fazer esse samba, eu dediquei um tempo para ouvir, para pensar nas palavras que Ivone e Délcio escolheram, dediquei um tempo para produzir um sentido e, só depois, escrever este texto. Você está dedicando um tempo para ler. Esse tempo que está livre de outras preocupações, de outros fazeres, e está dedicado a essa nossa relação porque Ivone, Délcio, eu e você estamos tecendo com essas nossas linhas de raciocínio. Estamos fazendo a dança do pensamento!
Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu / Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu
Os gregos, dançarinos de pensamento, alguns séculos antes de Cristo inventaram a scholé: tempo livre das ocupações da casa, da família, da vida doméstica, dos assuntos religiosos, livre das crenças e ideologias. A scholé oferecia o tempo a ser ocupado com os temas da cidade, da pólis, tempo a ser ocupado com criação, com análise, com crítica, com produção de sentido. No latim, schola: tempo para produzir conhecimento. Escola para além de um prédio, escola como dança do pensamento.
Ivan Rubens
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 4 de outubro de 2022
Arte, ciência e professorxs nO coração da loucura
Thu, 30 Sep 2021 in Fractal: Revista de Psicologia
clique aqui para acessar a revista Fractal
DOI: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v33i2/5761
Palavras-chave: arte, educação, encontro, experiência, loucura
O presente Relato de Experiência Profissional pretende investigar um encontro formativo integrando professores/as de Artes com professores/as de Ciências na rede municipal de São José dos Campos/SP. Foi utilizado o longa-metragem “Nise – o coração da loucura” como sustentação para debater e refletir sobre as práticas realizadas nas escolas e salas de aula. O objetivo foi registrar a experiência desse encontro de professores/as, apresentando algumas falas que denotam deslocamentos na maneira como professoras e professores enxergam a relação professor-estudante e as diversas possibilidades pedagógicas de intervenção. O pensamento de Jorge Larrosa, Romualdo Dias, Gilles Deleuze e Nise da Silveira funciona como lente para nossa observação. Música e cinema como território comum para o movimento de pensamento do grupo e abertura de possíveis. Entre pincéis e picadores de gelo, a tentativa de um texto-fluxo permite perceber pontos de contatos entre hospital e escola; a vida entre forças de interdição e forças de expansão; estar em horário de trabalho coletivo na perspectiva do encontro e da experiência.
Dia das crianças na Escola
disponível também no spotify: podiquesti Andarilhagens
Era 12 de outubro. Para Jaquelline e Gabrielle, 12 de outubro é o dia das crianças. Poderia ser mais do que isso, mas o que interessa para elas é o dia das crianças. Jaquelline tem 9 anos e Gabrielle tem 6 anos de idade. A história que vamos contar aconteceu numa escola. Quando você lê a palavra escola, logo pensa em uma escola assim… dessas que ficam na cidade, entre muros e grades, afinal, é preciso ter muita segurança nesse espaço dedicado a estudantes. Dessas escolas com espaço delimitado para tudo: quadra, pátio, refeitório, parquinho, sala de aula etc. E tem hora pra tudo: bate o sinal, termina uma aula e começa outra, bate o sinal começa o recreio, termina o recreio. Corre pra merendar, corre pro xixi, corre pra sala. Aliás, quando eu uso a palavra sinal, talvez você pense num apito, numa sirene ou até numa música. Pois bem, mas nossa história aconteceu numa escola um pouco diferente.
Primeiro porque não é uma escola urbana. A escola de onde falamos fica na floresta. Uma escola sem muros e nem grades, sem separação entre o espaço da escola e o espaço da floresta. A escola de onde falamos tem uma proposta pedagógica interessante: pros dotô o nome é ‘pedagogia da alternância’, na comunidade é ‘escola família’. Na escola família, adolescentes e jovens ficam 15 dias direto na escola estudando juntos, dormindo e acordando, comendo e cuidando da escola. Podemos dizer que a escola de onde falamos é uma graaande família. Agora que você conhece um pouco da beleza de uma Escola Família Agroextrativista, uma escola integrada à comunidade, integrada à floresta, podemos voltar para nossa história.
Era 12 de outubro. O almoço na Escola Família Agroextrativista foi muito especial, afinal era o dia das crianças. Jaquelline e Gabrielle não são alunas matriculadas na Escola, mas, sendo família, comemoraram na Escola. No almoço teve uma salada especial de legumes e folhas com temperos vindos do laboratório de produção de alimentos da própria Escola. Do mesmo laboratório vieram o açaí e a farinha de tapioca. Do igarapé vieram as proteínas: peixe, Tamuatá e Acarí, e camarão. Do laboratório de frutas veio o cupú para o suco natural. A pesquisa de alunos e alunas foi descobrir qual o cupuaçuzeiro com os frutos mais maduros para o suco ficar ainda mais gostoso. No final, a deliciosa mistura de castanha do pará e farinha de tapioca. Na Escola Agroextrativista, a floresta é um grande laboratório de experimentações, a floresta é sala de aula e a sala de aula é a floresta.
Mas a surpresa ainda estava por vir. Ceci, a monitora, fez uma pequena surpresa para Jaquelline e Gabrielle. Ceci chamou as pequenas e lhes entregou um presente do dia das crianças. Era uma banheira de bonecas. Agora as bonecas de Jaque e Gabi tomam banhos no igarapé ou na banheira quando quiserem. Mas a emoção de passar o dia das crianças na Escola Família Agroextrativista é indescritível.
Este texto foi escrito junto com Sâmila e Jaine, jovens escritoras do distrito do Carvão/AP, e contadoras de histórias.
Mazagão/Amapá - Distrito Do Carvão
Ivan Rubens, Sâmila como Jaquelline e Jaine como Gabrielle.
História real produzida pelos próprios personagens.
Reflexões pedagógicas produzidas na Escola Família Agroecológica do Macacoari - EFAM e na Escola Família Agroextrativista do Carvão - EFAC.