Há, no estado do Mato Grosso, um movimento muito interessante em defesa da Vida: Comitês Populares em Defesa das Águas e do Clima. São 13 Comitês Populares distribuídos nos rios que compõem a bacia do rio Paraguai, cujas águas e as lutas pela vida vão tecendo uma rede. Assim como a rede de drenagem compostas pelos rios e afluentes, cada rio contribuindo com suas águas na formação dos rios maiores, as pessoas organizadas em Comitês Populares vão contribuindo com sua luta pela Vida, mas também com sua cultura, com suas danças, sua gastronomia, com seus modos de vida, e assim vão tecendo uma rede social. Uma rede social real onde as pessoas se encontram no movimento e na luta.
Essa luta pela vida se materializa em ações concretas como a defesa dos rios, contra empreendimentos como hidrelétricas e hidrovias, contra o veneno utilizado na monocultura da soja que polui as terras e mata a vida nas águas. Contra o garimpo e a mineração em terras produtivas, contra a invasão e a grilagem da terra onde as famílias produzem alimento para sobreviver. E nesse movimento de luta, as pessoas no campo vão tecendo suas redes de vida e suas redes de cultura.
Benedito Ilino é um pequeno produtor. Ele produz mandioca, banana, abóbora, feijão e milho, cria porco e de galinha. Benedito também cria obras de arte e produz cultura: ele escreveu a canção do rio Jauquara, uma obra cantada pelo povo no Território Quilombola do Vão Grande todo ano no dia 28 de abril, quando se comemora o dia do rio Jauquara. A canção Terra Querida fala da vida no bioma Pantanal:
Mato Grosso terra querida / suas cores me satisfaz / os verdes dos campos e os cheiros dos pantanais / É o jardim da natureza, sua beleza tão magistrais / Águas vivas dos ribeirinhos e o repouso dos animais
Nesta primeira parte, o artista nos apresenta um pouco da sua terra em cores, cheiro, águas e beleza.
A lua surgiu nos montes / deixando raias pra trás / visitando o rio Jauquara e banhando o rio Paraguai / Iluminando os povos de luta e a fé que neles traz / nossos rios por inteiro e os corredores bioculturais / quem bebe de suas águas com certeza não esquece mais
O artista pede os rios por inteiro, sem barragens, sem interdições. Rios cujo fluxo nos remete à vida de povos em luta, povos de fé, rios que são corredores de vida e de cultura. E o refrão é marcante:
Pantanal, pantanal, sua beleza tão natural / Pantanal, recanto na anhuma, olhar das Jumas eu passo mal / Pantanal, aqui é selva / só quando tô com reiva sou animal.
Anhuma é uma ave da região. Mas é no olhar das Jumas que o artista “passa mal”. Quem não se lembra da Juma Marruá, personagem da novela Pantanal? a mulher que vira onça, ou seria uma onça que vira mulher? a selvageria da vida em suas diferentes formas. Diante da vida selvagem, o 'eu lírico' da canção passa mal: pode ser por medo mas pode ser encanto... e uma “réiva” que também o transforma em animal: um homem anhuma, homem arara, tucano, homem peixe jaú, dourado?
Rios como metáfora da vida, corredores por onde passam vida e cultura. A 'Terra Querida' do Benedito Ilino.
Ivan Rubens
Estudante
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro edição 16 de maio de 2023
Dois amigos seguem para mais um encontro de educação popular. Estão num desses carros nem grande e nem pequeno, desses tipo furgão cuja porta lateral desliza paralela à lataria, se é que carro tem lata… Aliás, você já notou que carro muda muito de nome e de modelo? difícil acompanhar a velocidade de tais mudanças.
No interior do Mato Grosso, seguem para uma Terra Quilombola. São cinco comunidades que lutam pela terra, lutam pelo rio vivo em peixes e a água pra beber, pra cozinhar, pra molhar a horta de temperos e de ervas medicinais. Fazem roça de mandioca, de banana, de milho, feijão, abóbora, alimentos para as famílias e para “as criação”. Criam “galinha sorta” no terreno, “uns porquinho”, vaca de leite, um ou outro boi para servir nas festas de santo. Essa Terra Quilombola fica entre morros na planície de inundação do rio Jauquara, no alto curso da bacia do rio Paraguai, bioma Pantanal.
Pois bem, os dois amigos seguem para o Território Quilombola do Vão Grande. São amigos de estudo, amigos de trabalho e amigos de luta porque partilham a vida de estudantes, partilham o tempo dedicado aos trabalhos remunerados e, ainda, partilham a fé. Fé aqui compreendida como as ações nas lutas que, crêem, necessárias para trans_formação do mundo. Estudo_trabalho_luta compondo, pouco a pouco, uma amizade tecida na lida da vida.
O pequeno furgão circula numa sojeira sem fim: fazendas de soja, soja, soja, soja, monocultura da soja, carretas carregadas de soja enfileiradas na estrada. Fora do furgão, a monocultura da soja; dentro do furgão, a multicultura das conversas, do pantanal vivo nos poemas do Manoel de Barros, da saudade do povo quilombola do Vão Grande, da expectativa com a festa de aniversário do rio Jauquara e a curiosidade com o sabor do bolo deste ano, da lembrança de episódios a propósito da Canção para o rio Jauquara… os amigos transitavam “na paralela do impossível”.
Carregavam um "sentimento de aldeia", cultivavam um "sentimento de quilombo". Era como andar contra o tempo cada vez mais acelerado das grande cidades, ao encontro do en_canto de pintassilgo, um gosto de passado, uma sociedade de ATRASO no melhor sentido da palavra: um tempo lento, tempo de respiro, tempo de bezerro e saci pererê, da pressa de galinha ciscando o terreno, pressa do corpo deitado na rede cuja sombra da mangueira alivia o calor de 38 graus. Estavam chegando, chegando, cada vez mais perto, estavam territorializando..
Há lugares onde o vínculo com a terra é muito forte. A vinculação do sujeito com a terra é forte porque o laço é afetivo: laço mais forte que nó. É como se não houvesse separação, terra não existe sem a gente e a gente não existe sem a terra e tudo o que flui nela, toda a vida, toda a cultura. Diante do cemitério quilombola, ouviram: “aqui estão enterrados meu pai e minha mãe, o corpo deles já virou terra. Tá vendo aquela mangueira logo ali? dá a manga mais doce de toda região, tem a doçura da saudade”.
Pertencer ao território é ser parte do seu chão!
Ivan Rubens
Geógrafo
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 18 de abril de 2023
Ele poderia dizer: amanheceu! Mas um artista não fala assim. Um artista da música faz, com palavras e sons, obras de arte. Um artista nos apresenta paisagens, mostra a potência do simples, abre nossos sentidos para perceber a beleza.
A canção Vida Boa começa assim:
O dia nos chega toda manhã / Com nuvens de fogo pintando o céu / Um ventinho frio sopra sim e assim / Vez em quando se escuta o canto do Japiim.
Uma obra de arte requer atenção. O artista coloca nossa atenção nas cores da manhã, no vento, no canto do Japiim. Japiim é uma ave de plumagem preta e amarela, comum na Amazônia brasileira, que tem uma característica peculiar: não tem um canto próprio, ele imita o canto dos outros pássaros. Ou seja, o artista sugere que é possível escutar o que ainda não foi dito, é possível ler nas entrelinhas. Pura provocação. A canção continua…
A canoa balança bem devagar / A maré vazou, encheu, é preamar, eh / O Zé vai pro mato apanhar açaí / Maria pra roça vai capinar / A vida daqui é assim devagar / Precisa mais nada não pra atrapalhar / Basta o céu, o sol, o rio e o ar. / E um pirão de açaí com tamuatá.
O artista fala de um lugar onde as pessoas vivem do jeito que lhes agrada. Uma pessoa da cidade, com cabeça de cidade, carioca ou gaúcha por exemplo, talvez tenha muita dificuldade de se libertar do ritmo frenético dos apps como o tiktok e o twitter, da rotina acelerada do Zé Delivery ou do ifood, ou de uma Maria ligada aos ritos palacianos. E, escorregando em julgamentos morais, dizer que a canção “estimula a vagabundagem”. Quem dera???
A canção apresenta uma vida onde o trabalho na roça, na coleta, na pesca, parece voltado à ‘subsistência’. O Zé vai para o mato apanhar açaí, Maria vai capinar a roça. Devagar, divagando. Me alegra pensar que a natureza nos oferece tudo o necessário para sustentação da vida: água, ar, comida. E pensar que ainda há no Brasil comida partilhada: açaí no pé, peixe no rio, mandioca na terra, banana. Aliás, Tamuatá é um peixe típico dos rios da Amazônia, saboroso, combina bem com o açaí, talvez você conheça por Cascudo.
Uma obra de arte tem a potência de colocar um mundo diante de outros mundos, uma vida diante de outras possibilidades de vida.
A canção continua…
Que vida boa sumano / Nós não tem nem que fazer planos / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa / Que vida boa suprimo / Nós só tem que fazer menino / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa
Sumano é um regionalismo para expressões de carinho, tipo “irmão querido, querida irmã”. Disse o artista: “Quando eu era criança, nas férias escolares, eu voltava ao encontro da minha família no interior do Amapá, num lugar chamado Mel. Lá vivia meu avô, e foi lá que eu tive contato com os elementos da natureza na sua essência, eu aprendi a respeitar a natureza e o homem vivendo em harmonia com ela. Essa canção foi feita para homens e mulheres do campo”. ‘Fazer menino’ é um jeito bonito de dizer que a vida tem profundidade, um jeito bonito de dizer que o que interessa na vida, bom… isso não cabe nos planos.
Vida Boa é uma canção do amapaense Zé Miguel.
Ivan Rubens
Publicado também no Jornal Cidade de Rio Claro em de março de 2023
Saiu de casa cedinho. Partiu da cidade até o porto, uma horinha de estrada. Choveu muito naquela noite. Começo de ano na linha do equador é inverno, chuvoso e quente, mas nuvens de chuva dão um certo conforto térmico. Ele carregava rede, mosquiteiro, corda e um computador com livros e filmes gravados. Aconselhado pelos povos do lugar, carregava uma camisa de manga longa para proteger do frio da noite.
O professor chegou ao porto fluvial, embarcou na voadeira e navegou lentamente pelo igarapé que estava enchendo. No rio Ipixuna Miranda a velocidade aumentou; certa calmaria no imenso rio Amazonas até a foz do rio Macacoari. Mais um igarapé… jogaram a corda, saltaram. O trapiche recebe os professores com a alegria de uma escola na floresta. Adoro essa palavra: FLORESTA. Na minha imaginação a palavra entoa verde, como céu entoa azul, água salobra aflora exuberante. A palavra floresta já chega com bichos, com chuva, com mato, palmeiras carregadas de açaí. E penso em gente, porque na floresta tem gente, sempre teve. Floresce gente desde sempre na floresta.
Uma gente que “vive em harmonia com a floresta”. Quem pensa assim talvez nunca tenha passado pela floresta, talvez não conheça a floresta e a sua gente. Talvez pense assim quem nunca teve contato com a floresta em sua bio_diversidade. Essa ideia de “harmonia” parece um tanto exótica, parece o olhar de fora. Na floresta, o professor vê uma outra coisa. Na escola da floresta, o professor escuta um produtor rural que participa da Cooperativa de produtores de açaí insistindo na palavra pertencimento. Abre-se aí uma perspectiva nova de pensar, colocando o conhecimento teórico de um professor em contato com a vida real dos povos na floresta. Portanto, não se trata de viver em harmonia, mas de pertencer a um território.
Pronto, encontrei o que procurava na escrita deste texto: pertencer!
Um fazendeiro, proprietário de terra, diria: “essa terra me pertence!”, “essa terra é minha, sou proprietário!” Já os povos da floresta dizem: “pertencemos a essa terra”. Gente que é da terra dizendo pertencer à terra, que pertence ao território, que são próprios do lugar, que são nascidos deste chão. Gente que está na terra há muito tempo, mas muito tempo mesmo... Muito antes de Pedro Álvares Cabral e a máquina colonial, muito antes de reduzirem a terra à mera mercadoria, essa gente já estava na terra, essa gente florescia. Gente que pertence à terra, gente que é terra, terra com roupa de gente.
Por isso não se trata de estar em harmonia com a terra. Trata-se de pertencer à terra, de ser parte da Terra, de pertencer à Floresta e de ser floresta também. Todo nascimento, de um bichinho ou de uma criança, é uma espécie de florada como um botão de rosa que se abre, vida desabrochando, florescer de uma vida nova. Não há dicotomia entre natureza e cultura. É uma questão de ser e de estar: ser terra, ser rio, ser flor, ser vivo, ser natureza. Ser e estar floresta: florescer, florestar.
Ivan Rubens
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 21/fevereiro/2023
O Brasil é um país muito grande. Dizem que “vai do Oiapoque e Chuí”. Oiapoque é um município no estado do Amapá, fronteira com a Guiana Francesa. A origem da palavra Amapá é controversa: para os Tupi significa ‘morada da chuva’. No nheengatu, ‘terra que acaba’ ou ‘ilha’. Dizem ainda que a palavra Amapá vem do nome de uma árvore típica da região.
A capital, Macapá, está na linha do equador, a linha imaginária que “divide” a Terra ao meio. Na linha do equador, o dia tem 12 horas, e a noite também tem 12h. O estádio estadual Milton de Souza Corrêa, o Zerão, tem a linha do meio de campo coincidindo com a linha do equador. No início da partida, um time está no hemisfério Sul e o outro time está no hemisfério Norte.
Fernando Canto e Zé Miguel são artistas. Na canção Meu Endereço, eles dizem o seguinte:
MEU ENDEREÇO É BEM FÁCIL / É ALI NO MEIO DO MUNDO / ONDE ESTÁ MEU CORAÇÃO, MEUS LIVROS, MEU VIOLÃO / MEU ALIMENTO FECUNDO. A CASA POR ONDE PARO / QUALQUER CARTEIRO CONHECE / É FEITA DE SONHO E LINHA QUE BRILHA QUANDO ANOITECE / NA MINHA CASA SE TECE / MESURA NA LUZ DO DIA / PRA AFUGENTAR QUEBRANTO NA HORA DA FANTASIA
Os artistas falam de um endereço que é muito fácil de encontrar, o endereço de uma casa feita de sonho e linha que guarda objetos importantes como livros e violão. Tais objetos ricos em significado são o alimento que fecunda o coração dos artistas e, com os pores de sol, com o brilho da lua cheia nas águas do rio Amazonas, com a gente e a cultura, com a exuberância da floresta, toda essa paisagem estimula o sonho. Sonhar pode ser a nossa capacidade de fantasiar, de imaginar, de criar (que é o fazer de artistas), de caminhar na direção da utopia. O sonho nos faz caminhar, ou seja, nos coloca em movimento. A linha que costura tudo isso, pode ser a linha de pesca, pode ser um pescador tecendo a rede de pesca, pode ser uma indígena tecendo a rede de deitar. O endereço é de uma casa onde se tece, casa situada “no meio do mundo”. Linda a imagem: uma casa encantada que fica no meio do mundo. O meio do mundo…
A letra da canção tem uma sutileza bem bonita. Os artistas falam de uma casa de paradas. Poderiam dizer: a casa onde moro, a casa onde fico, mas dizem “a casa por onde paro”. São artistas e, já disse o brilhante Milton Nascimento, “todo artista tem que ir aonde o povo está”. Artistas são pessoas em movimento, param um pouco mas logo se colocam em movimento novamente. Artistas são andarilhos, se movimentam nos territórios, se movimentam no sonho, na fantasia, na imaginação. São antenas captando as sutilezas, as imagens, as belezas do mundo e produzindo obras de arte. A arte e a beleza alargam a vida e produzem uma humanidade interessante.
Vi o Zé Miguel cantando na orla do rio Amazonas. Ele cantou Meu Endereço e o povo cantou com ele palavra por palavra. O refrão diz assim:
É FÁCIL O MEU ENDEREÇO / VÁ LÁ QUANDO O SOL SE PÔR / NA ESQUINA DO RIO MAIS BELO / COM LINHA DO EQUADOR
Meu Endereço é música popular amapaense.
Ivan Rubens
Estudante
Meu Endereço.
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 24 de janeiro de 2023.
Zé Miguel é um artista amapaense. Cantor e compositor, sua bonita obra está disponível nas plataformas de música. Em parceria com Joãozinho Gomes, a canção Pérola azulada diz assim:
Já aprendi voar dentro de você / Ancorar no espaço ao sentir cansaço / Ossos da jornada /
Já aprendi viver como vive nu / Um cacique arara cultivando aurora / Luz de sua tiara
O compositor inicia a canção dizendo que aprendeu, portanto sabe, “voar dentro de você”. Você, quem? de quem o artista está falando?
Fala do espaço e de uma jornada, cita “um cacique arara cultivando aurora”, manhã. Talvez esteja se referindo à ararinha azul, mais provável que fale de indígenas: o povo Arara. A música lança suas primeiras provocações a ouvintes curiosos da obra de arte… E a canção continua:
Eu amo você terra minha amada / Minha oca meu iglu, minha casa / Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe
A canção vai se revelando: “você” é a terra. Para Joãozinho e Zé Miguel, o planeta Terra é oca, iglu, casa. Oca é onde moram os indígenas das florestas, Iglu é onde moram os povos das geleiras, e casa é o jeito como nos referimos às habitações mais das cidades. Podemos pensar que oca, iglu e casa são lugares de recolhimento, de sossego, de acolhimento, de intimidade, de descanso do corpo. Podemos pensar também o corpo como casa, casa do espírito, casa da alma. Também podemos pensar o corpo como casa da vida. Se o coração para, se o pulmão para, se o cérebro para, ou seja, se o corpo para de funcionar, a vida acaba. Então, o corpo é a casa da vida.
Já aprendi nadar em seu mar azul / Adorar água, homem peixe, água / Fonte iluminada /
Já aprendi a ser parte de você / Respeitar a vida em sua barriga / Quantos mais vão aprender
Joãozinho e Zé Miguel nos convidam a pensar a Terra como a nossa casa, pensar a Terra como casa comum aos povos da floresta, povos das geleiras, povos das cidades. Haveria vida fora da Terra? Em que condições? Portanto, podemos pensar a Terra como casa dos peixes e dos bichos, das plantas, das águas, dos ventos, uma casa iluminada pois ensolarada e enluarada. A Terra pode ser compreendida como a casa de maneira ampla, a Terra como a casa de todas as formas de vida.
Eles amam a Terra e usam uma expressão muito bonita: “pérola azulada” pendurada no colar de deus. Como se deus vestindo um colar com uma pérola azulada, com a Terra pendurada no pescoço. Linda a imagem… Mas, perceba: terra, casa, vida, pérola, conta, palavras no feminino. Não à toa, o artista pede bênção para a mãe.
Eu amo você pérola azulada conta / No colar de deus, pendurada / A benção minha mãe
Mãe Terra, linda a associação. A mãe é suporte para a vida, a mãe é a casa do bebê. Da mãe viemos e, mesmo rompido o cordão umbilical, os laços afetivos jamais se rompem. Mãe cuida de filhos/as e filhos/as cuidam da mãe. Quem ama, cuida. É preciso cuidar da Terra.
A benção minha mãe, Sandra Jordão. A benção minha mãe, Pérola Azulada.
Ivan Rubens
Zé Miguel cantando na praça Araxá, Macapá/AP em novembro de 2022.
Pérola azulada. Com Zé Miguel e Nilson Chaves
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro, edição impressa de 27 de dezembro de 2022.
Ela saia de casa para trabalhar bem cedinho. Não sei sua profissão, não sei onde trabalha, mas sei que ela sai da casa toda manhã. Sei disso porque um cão dá o sinal da passagem da mulher. O cão é macho e não foi castrado. Não sei qual a satisfação de um cão macho ao ver uma mulher passando toda manhã, vestida de branco até os pés. Imagino que seja enfermeira e que o dono do cão seja homem. Apenas imagino e, imaginando, vou criando aqui uma realidade da mulher e o cão.
Ela acorda cedinho, imagino que se arruma e saia para o trabalho. Os latidos raivosos do cão chegam com os primeiros anúncios da manhã. Ela passa, ele late. Ele late muito, ele baba, amedronta. Ele pula, arranha o portão do cercadinho. Ela se assusta. Toda manhã é assim. Talvez ela esteja sonolenta pois, mesmo sabendo da diária repetição, ela se assusta e salta amedrontada na direção do meio fio.
Ela é uma mulher de 30 e poucos anos. Ele é um cão raivoso, medonho, assustador. Escuto os gritos de censura do dono: “cala boca, Jair!!!” Portanto, o cão raivoso é Jair. A casa fica numa ladeira, a mulher passa lentamente no início do dia, o que alonga o escândalo produzido por Jair em seus latidos de ódio e raiva. No final da tarde ela desce rapidamente a ladeira, o que abrevia o escândalo canino.
Jair é raivoso no geral, mas com a mulher que veste branco o comportamento do cão é exagerado. O que provocaria a raiva de Jair na caminhada da mulher de branco? seria o cheiro? dizem que os cães têm o olfato aguçado. Seria o ruído da passagem, do caminhar, seria o impacto da chinela na calçadinha portuguesa? Mas talvez o incômodo disparador da raiva não esteja nela.
Se o problema estiver nele, podemos pensar que o Jair carrega sentimentos pouco (ou nada) carinhosos, nada solidários, que Jair não goste das mulheres. Podemos pensar também que Jair se comporta como uma criança mimada que se joga no chão gritando quando contrariado pela mãe. Seria a mulher de branco, ao passar, o despertar das frustrações e traumas na relação de Jair com sua mãe? Neste caso, Jair poderia procurar a psicanálise freudiana, clássica, mas isso depende do desejo dele e, até onde eu saiba, cães raivosos se acham superiores e, portanto, não precisam disso. Cães raivosos não cuidam de si, tampouco cuidam do outro. Cães raivosos ignoram a presença viva do outro, menosprezam o desejo e a liberdade do outro. A raiva e o ódio são afetos que cegam, que ensurdecem, que despertam latidos e baba. Jair é um cão raivoso.
No dia 30 a cena mudou. A mulher de branco bateu palma e, apesar do escândalo de Jair, seu dono apareceu. Da minha janela observei o diálogo: Jair raivoso, a mulher tentando dialogar. Jair é a imagem e semelhança de seu dono, igualmente raivoso e barulhento na sua pregação com normas do comportamento feminino sob a cortina de latidos de Jair. Quando não há espaço para o diálogo, está na hora de já ir embora. Ela seguiu o seu caminho. Desde o dia 30, Jair vive seu melhor momento: de boca calada, é um poeta.
Denise Fraga é uma estrela de cinema e TV. Às vésperas do segundo turno, ela lembrou que a frase presente na bandeira brasileira tem origem no positivismo do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857): “Amor por princípio, ordem por base e progresso por fim”. Ordem e progresso estão na bandeira, amor não está. Sem amor, a bandeira brasileira foi capturada por um falso nacionalismo em favor de uma candidatura em 2018. Virou marca de um governo entreguista e peça de propaganda na tentativa de reeleição em 2022.
Fazendo arminha e carregando a bandeira brasileira, sem amor, o presidente em exercício foi criando um clima de guerra, um clima de nós contra eles. Zombou das vítimas da covid e sucateou o SUS. Estrangulando a ciência, apostou na ignorância; desmontando a educação, apostou na estupidez. Avesso à beleza, calou a cultura, enterrou o cuidado, torturou a polidez, sufocou o carinho e desativou o amor. E quando falta amor, emerge o ódio. Ódio que ele foi estimulando com palavras e gestos violentos. Nosso passado colonial se levantou da catacumba das missões, das capitanias, da casa grande e dos porões da ditadura militar. O bolsonarismo é a expressão contemporânea de um país que naturaliza a violência, o racismo, o sexismo, o machismo, que é truculento e autoritário. A expressão do fascismo.
Em oposição ao ódio está o amor. Amor pela vida que enfrentou a pandemia nos hospitais, nas escolas, nos serviços essenciais. Amor que enfrenta a fome e a miséria, por emprego e vida digna para todos e todas. A brilhante Denise Fraga disse “votar em Lula para garantir o direito de votar novamente em 2026”. Esse desejo de liberdade e democracia enfrentou o fascismo. Um projeto político que nasce na luta popular e caminha com os movimentos sociais, com os trabalhadores e trabalhadoras, que acredita no amor e na cultura, que distribui livros e não distribui armas.
Essa frente democrática representada por Luiz Inácio Lula da Silva vai governar o Brasil reparando injustiças históricas, por direitos trabalhistas, por comida no prato, por saúde e educação, por um Brasil amoroso que respeita nossos povos originário, povos que mantêm a floresta em pé, cuidam do clima e das águas, do cerrado e da biodiversidade.Essas são as bandeiras com amor da frente democrática que tem em Lula sua principal figura. Nas duas falas do presidente eleito ficou nítido que o esforço agora é reconstruir o Brasil, fazer pontes, conversar muito, fazer política no sentido forte da palavra. Um Brasil generoso, inclusivo, sem fome e sem medo, investindo os recursos públicos tendo a vida e os afetos de alegria no centro da ação política. Taí nossa estrela guia.
Na bandeira brasileira são 27 estrelas brancas sobre o fundo azul. Esperamos que o amor seja colocado antes e acima da ordem e do progresso. Brilha a estrela de esperança, uma estrela que orienta a caminhada nesse tempo novo que se abre em flor. Brilha uma estrela.
A escola como experiência: entrevista com Walter Omar Kohan
The school as an experience: interview with Walter Omar Kohan
Entrevistado: Prof. Dr. Walter Omar Kohan
Entrevistadores: Ivan Rubens Dário Jr. e Luciana Ferreira da Silva
Resumo
Em julho de 2015, o professor Doutor Walter Omar Kohan esteve na cidade de São José dos Campos-SP, Brasil, participando do 3º Simpósio Internacional de Educação. Ele nos recebeu muito gentilmente para uma conversa sobre experiência e tempo na escola, sobre a relação entre infância, tempo e experiência. O resultado desta breve conversa está registrado nesta entrevista.
In July 2015, Professor Walter Omar Kohan was in the city of São José dos Campos, Brazil, participating in the 3rd International Symposium on Education. He received us very kindly for a conversation about experience and time in school, about the relationship between childhood, time and experience. The result of this brief conversation is recorded in this inter v iew.
Sonho Meu é um samba de Ivone Lara e Délcio Carvalho. Provavelmente você conheça e até cantarole um pouquinho:
Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu / Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu Vai mostrar esta saudade, sonho meu / Com a sua liberdade, sonho meu / No meu céu a estrela guia se perdeu / a madrugada fria só me traz melancolia / Sonho meu
Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora, o pai foi mecânico e violonista. Órfã de pai e mãe, estudou no internato entre os 6 aos 16 anos de idade. Foi assistente social, enfermeira, com a médica Nise da Silveira, revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940 introduzindo a arte, principalmente música e pintura, no tratamento de esquizofrenias. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Foi baiana na Escola de Samba do Império Serrano e a primeira mulher a integrar a ala dos compositores numa escola de samba. Aposentada em 1977, dedicou-se integralmente à música.
Sinto o canto da noite na boca do vento / Fazer a dança das flores no meu pensamento / Traz a pureza de um samba / Sentido, marcado de mágoas de amor / um samba que mexe o corpo da gente / E o vento vadio embalando a flor
A noite canta? o vento tem boca? As flores dançam? A canção parece sugerir que a dança das flores aconteça no pensamento, então podemos pensar como quem dança. Se o samba traz um sentido, ele mexe com a gente, o samba faz vibrar no corpo de quem ouve as marcas que o amor deixou, principalmente as marcas de alegria. O amor aqui compreendido como as relações, as relações com pessoas mas também com lugares, situações, encontros, festas, isso que dá tempero à vida.
Vento vadio? Se compreendemos vadiagem como tempo livre... Ivone e Délcio dedicaram um tempo para fazer esse samba, eu dediquei um tempo para ouvir, para pensar nas palavras que Ivone e Délcio escolheram, dediquei um tempo para produzir um sentido e, só depois, escrever este texto. Você está dedicando um tempo para ler. Esse tempo que está livre de outras preocupações, de outros fazeres, e está dedicado a essa nossa relação porque Ivone, Délcio, eu e você estamos tecendo com essas nossas linhas de raciocínio. Estamos fazendo a dança do pensamento!
Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu / Sonho meu, sonho meu / Vá buscar quem mora longe, sonho meu
Os gregos, dançarinos de pensamento, alguns séculos antes de Cristo inventaram a scholé: tempo livre das ocupações da casa, da família, da vida doméstica, dos assuntos religiosos, livre das crenças e ideologias. A scholé oferecia o tempo a ser ocupado com os temas da cidade, da pólis, tempo a ser ocupado com criação, com análise, com crítica, com produção de sentido. No latim, schola: tempo para produzir conhecimento. Escola para além de um prédio, escola como dança do pensamento.
Ivan Rubens
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 4 de outubro de 2022
O presente Relato de Experiência Profissional pretende investigar um encontro formativo integrando professores/as de Artes com professores/as de Ciências na rede municipal de São José dos Campos/SP. Foi utilizado o longa-metragem “Nise – o coração da loucura” como sustentação para debater e refletir sobre as práticas realizadas nas escolas e salas de aula. O objetivo foi registrar a experiência desse encontro de professores/as, apresentando algumas falas que denotam deslocamentos na maneira como professoras e professores enxergam a relação professor-estudante e as diversas possibilidades pedagógicas de intervenção. O pensamento de Jorge Larrosa, Romualdo Dias, Gilles Deleuze e Nise da Silveira funciona como lente para nossa observação. Música e cinema como território comum para o movimento de pensamento do grupo e abertura de possíveis. Entre pincéis e picadores de gelo, a tentativa de um texto-fluxo permite perceber pontos de contatos entre hospital e escola; a vida entre forças de interdição e forças de expansão; estar em horário de trabalho coletivo na perspectiva do encontro e da experiência.
Era 12 de outubro. Para Jaquelline e Gabrielle, 12 de outubro é o dia das crianças. Poderia ser mais do que isso, mas o que interessa para elas é o dia das crianças. Jaquelline tem 9 anos e Gabrielle tem 6 anos de idade. A história que vamos contar aconteceu numa escola. Quando você lê a palavra escola, logo pensa em uma escola assim… dessas que ficam na cidade, entre muros e grades, afinal, é preciso ter muita segurança nesse espaço dedicado a estudantes. Dessas escolas com espaço delimitado para tudo: quadra, pátio, refeitório, parquinho, sala de aula etc. E tem hora pra tudo: bate o sinal, termina uma aula e começa outra, bate o sinal começa o recreio, termina o recreio. Corre pra merendar, corre pro xixi, corre pra sala. Aliás, quando eu uso a palavra sinal, talvez você pense num apito, numa sirene ou até numa música. Pois bem, mas nossa história aconteceu numa escola um pouco diferente.
Primeiro porque não é uma escola urbana. A escola de onde falamos fica na floresta. Uma escola sem muros e nem grades, sem separação entre o espaço da escola e o espaço da floresta. A escola de onde falamos tem uma proposta pedagógica interessante: pros dotô o nome é ‘pedagogia da alternância’, na comunidade é ‘escola família’. Na escola família, adolescentes e jovens ficam 15 dias direto na escola estudando juntos, dormindo e acordando, comendo e cuidando da escola. Podemos dizer que a escola de onde falamos é uma graaande família. Agora que você conhece um pouco da beleza de uma Escola Família Agroextrativista, uma escola integrada à comunidade, integrada à floresta, podemos voltar para nossa história.
Era 12 de outubro. O almoço na Escola Família Agroextrativista foi muito especial, afinal era o dia das crianças. Jaquelline e Gabrielle não são alunas matriculadas na Escola, mas, sendo família, comemoraram na Escola. No almoço teve uma salada especial de legumes e folhas com temperos vindos do laboratório de produção de alimentos da própria Escola. Do mesmo laboratório vieram o açaí e a farinha de tapioca. Do igarapé vieram as proteínas: peixe, Tamuatá e Acarí, e camarão. Do laboratório de frutas veio o cupú para o suco natural. A pesquisa de alunos e alunas foi descobrir qual o cupuaçuzeiro com os frutos mais maduros para o suco ficar ainda mais gostoso. No final, a deliciosa mistura de castanha do pará e farinha de tapioca. Na Escola Agroextrativista, a floresta é um grande laboratório de experimentações, a floresta é sala de aula e a sala de aula é a floresta.
Mas a surpresa ainda estava por vir. Ceci, a monitora, fez uma pequena surpresa para Jaquelline e Gabrielle. Ceci chamou as pequenas e lhes entregou um presente do dia das crianças. Era uma banheira de bonecas. Agora as bonecas de Jaque e Gabi tomam banhos no igarapé ou na banheira quando quiserem. Mas a emoção de passar o dia das crianças na Escola Família Agroextrativista é indescritível.
Este texto foi escrito junto com Sâmila e Jaine, jovens escritoras do distrito do Carvão/AP, e contadoras de histórias.
Mazagão/Amapá - Distrito Do Carvão
Ivan Rubens, Sâmila como Jaquelline e Jaine como Gabrielle.
História real produzida pelos próprios personagens.
Reflexões pedagógicas produzidas na Escola Família Agroecológica do Macacoari - EFAM e na Escola Família Agroextrativista do Carvão - EFAC.
Aconteceu no dia 19 de agosto de 2022, o lançamento do livro Narrativas do Interior. Aconteceu em forma da laive. Laive é um neologismo desses tempos da jovem internete. Essa tal de internete que chegou chegando. Por mais incrível que possa parecer, sobretudo para os mais jovens, o mundo já existia (e até funcionava) antes da internete. A internete chegou chegando, mexeu, remexeu. Mexe e remexe, sacode, balança. Lança. Assim realizamos a laive de lançamento numa espécie de lançalaive, um lançamento em forma de laive. Lançamento e entrelaçamento de narrativas e interiores.
Tal acontecimento exigiu grande preparação. Para tudo dar certinho, afinal era muita gente envolvida, muita história, narrativas e interiores. Um jovem quilombola se experimentando escritor das narrativas colhidas desde menino numa terra encantada: o território quilombola do Vão Grande.
Desconhecido
Des_conhecido
Des conhecido
Se_conhecendo
Conhecendo
Conhe_sendo
Sendo conhecido
Devagar vamos conhecendo esta terra e seu povo em ações de fazer(-se) comunidade, de “produção do comum” no dizer dos dotô, “que era tudo comum” no palavreado do quilombo. Aqui no território acompanhamos de perto a preparação da laive. A laive lança o livro, lança para o mundo um livro. Um livro que lança para o mundo as narrativas e, com as narrativas, narradores e narradoras, gente que conta causos, gente que faz coisas, gente que cria objetos e, ao criar objetos, cria gentes e modos de vida. Gente que luta, luta pela terra, gente que labuta, labuta pela vida.
Gente que faz viola de cocho, gente que toca viola de cocho.
Gente que faz ganzá, gente que toca ganzá.
Gente que dança e que reza, gente que preza seus santos e santas, gente de fé.
Gente que tece, gente que fia, gente que cria.
Gente que vive da terra, que cuida da terra, gente que traz gente para esta terra.
Gente que tira remédio das plantas
Gente que canta.
Gente que segura o céu, gente que segura na mão uma vida inteira:
e viva a parteira!!!
viva
viva
Gente que luta pelo rio
no calor e no frio
o rio onde o jaú quara na beira
luta de uma vida inteira
Rio livre, vivo e sem fronteira
Jauquara, o rio emoção. Apesar do frio.
Frio.
Certamente o dia mais frio do ano aqui neste mato grosso e trêmulo de frio.
Bom mesmo foi ribuçar na festa de aniversário do João Batista que aconteceu na casa do pai-véio Chico. Para este povo quilombola, o verbo ribuçar significa “ficar bem quentinho debaixo de roupa quente ou de cobertores”. Pensei em ribuçar na fogueira ali no barraquinho do terreno mas não posso usar este verbo. Então ficamos ali aproveitando o calor da fogueira mesmo e brincando com as pequenas Luiza e Maria. Ribuçar veio depois, debaixo dos cobertores do Programa Aconchego. Ahâã?
No dia e na hora marcados, estávamos lá. Tudo preparado, computador ligado e a internete funcionando. Caminhando do jeitinho que gostaríamos exceto pelo vento anunciado pela chuva do dia anterior e do frio mais forte do ano.
Rio do frio
Frio, muito frio neste Mato Grosso.
Por mais incrível que possa aparecer, passamos frio no estado do Mato Grosso.
Até o último momento, Lindalva passava o café para receber parentes. Um livro que narra os interiores. Mas que interiores?
Os parente tudo chegando: Ditos, Tonhos, Clemente, Júnio, nenê…
Uma laive que lança interiores merece que os interiores estejam na laive. E estavam ali posicionados no plano da câmera. Ali no interior do buraquinho (da câmera), os interiores narrados nas Narrativas.
Estavam ali: Dito 1000, Dito 400, Dito Baiano, Dito Vitor, Antônio, Claudenilson, Larissa, Ivo, Clemente, Francisco, Zacarias, Lindalva, Junior, Pedro, Mila e mais alguéns que talvez me escapem às memórias. Gente muito interessada, gente muito atenta aos acontecimentos do livro e da laive. Talvez um inédito inaugura aquele momento meio mágico, meio místico, meio mítico. Estávamos ali, pouca gente acostumada com laive, talvez apenas eu, Mariana Lacerda e Pedro Paulo porque certamente Pedro Silva, o escritor inaugural inaugurando uma lançalaive e se inaugurando nela. Posicionamos o lepitopi sobre a mesa de forma que o vento não prejudicasse a tela. Diante dela, Pedro Paulo, que assina Pedro Silva como reforço no esforço do nome carregamento das tradições e narrativas de interiores. Do lado direito, Lindalva, sua mãe. Do lado esquerdo, pai-véio Chico, seu avô.
De nossa parte, tudo começou em 2019, mais precisamente em 28 de abril como canta Dito Ilino, o Dito Ilino (Dito Baiano)
Renasceu entre as colinas / suas águas sem igual / cortando serra e montanha / com destino ao Pantanal / trazendo esperança e vida / para muitos corações / seu existir é uma herança pra futuras gerações
Rio Jauquara, Rio Jauquara / faço aqui minha homenagem pra essas águas que não pára / Rio Jauquara, Rio Jauquara / suas águas cor de anil / deixo aqui minha homenagem: 28 de abril. Deixo aqui minha homenagem: 28 de abril.
Muitos olhares atentos à tela e ao buraquinho de vrido que fica em cima dela, que os sabido chama de câmera. Dois olhares atentos aos muitos olhares: enquanto a laive rolava, Mariana, “nossa dotora devogada”, dedicada, observa as expressões, olhares e percebe lágrimas. Lágrimas contidas ou corridas. E percebe gente se fazendo rio, gente vertendo, vertedoura de fortes emoções em forma de lágrimas que, pingando, alimentam a terra e o lençol freático. Gente do território quilombola, gente território de passagem de afetos alegres que metabolizam a água do rio Jauquara em corpos afetivos e, na forma de lágrima, devolvem para o rio a água limpíssima, água emocionada:
“estou muito orgulhoso de tudo isso. Obrigado pra você que agora considero filho meu também, obrigado por ajudar esse meu neto a escrever esse livro que fala de nossa gente, de nossa terra, de nossa tradição. Hoje eu me sinto com o dever cumprido. Eu que nunca pensei em chegar tão longe nessa vida…” disse o seu Francisco.
A dotôra adevogada vê no olhar do seu Francisco muita emoção, respeito, carinho. Acho que pouca gente viu isso porque enxergar exige sensibilidade. Estava ali, tudo ali naquele rosto marcado pelo tempo, marcado pela vida. Seu Francisco, o pai-véio, fez versos para este momento especial. Sua canção diz assim:
Olha meu Pedro Paulo / esses verso é pra você / mas é verdade
Com todas inteligência, então / eu quero é te agradecer / mas é verdade
Mas eu que nasci pra padecer / nesse mundo de meu Deus / Mãe, mas não há de ser nada, nao.
Tamarindando na laive
No Vão Grande o tamarindeiro tem propriedades medicinais. Dessa medicina que acalma a alma: a_calma_a_alma
Aqui não se aceita barragem. Barragem é como o Vão Grande denomina uma Pequena Central Hidrelétrica - PCH. Em coro de vozes, gritam:
PCH, aqui não!
ou
Barragem, aqui não!
Nos bastidores da laive, percebemos uma nuance emocional: no momento de muita emoção, recorre-se ao tamarindo. Para segurar o choro, Tonho disse que ia até ali fora para comer um tamarindo. Tamarindo costumam ser frutas azedinhas mas, segundo o Tonho e o nenê, o tamarineiro lá da Lindalva é docinho que só. Sair do barraquinho da laive e ir até o tamarineiro era um jeito de conter o choro, um jeito de barrar o rio de lágimas. Mas aquele não era um tamarineiro qualquer. O encantamento dá ao tamarineiro da Lindalva as propriedades medicinais já mencionadas: acalma a alma. Segura o choro, mas o docinho do tamarindo permite o escoamento da água. Barra mas não barra tanto assim. A lágrima corre na hora de contar da laive, a emoção brota da terra no pé de tamarindo e nos permite ver a fluidez das lágrimas correndo no Tonho também.
Tonho e Chico abastecendo o rio Jauquara.
Chico, Tonho e Lindalva olhos dágua lavando a alma.
Tonho e Chico nascentes do Jauquara.
Mais um pouco da laive
Mas voltemos ao lançalaive. Para tanto, contamos com a ajuda de Milton Nascimento que também lança ao mundo narrativas de interiores das Minas Gerais. Uma canção em particular: Canções e Momentos.
Há canções e há momentos / Que eu não sei como explicar / Em que a voz é um instrumento / Que eu não posso controlar / Ela vai ao infinito / Ela amarra a todos nós / E é um só sentimento / Na platéia e na voz
Há canções e há momentos / Em que a voz vem da raiz / E eu não sei se quando triste / Ou se quando sou feliz / Eu só sei que há momentos / Que se casa com canção / De fazer tal casamento / Vive a minha profissão
Nesta canção, Milton diz que a voz é o instrumento do cantor e da cantora. Logo Milton cujo nascimento trouxe ao mundo a voz que Elis Regina considerava divina. Ela disse mais ou menos o seguinte: ‘se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento’. Pensando com ele, podemos considerar que a voz é também o instrumento de quem fala as palavras que nascem no coração. Podemos considerar o ‘coração’ como a raiz do sentimento que, quando muito forte dilui a fronteira entre tristeza e felicidade, mais ou menos daí pode vir um sentido para a palavra política, para a palavra democracia, sobretudo para a palavra parlamento. Sim, porque no parlamento, uma expressão da política e da democracia, se parlamenta. No idioma francês, parler significa falar. Mas falar o que? mas falar como? falar para quem?
Aqui no território quilombola do Vão Grande a prática da fala é muito presente. Segundo a Ana Mumbuca, nos territórios se fala muito, a transmissão das tradições, dos saberes, a produção dos saberes se dá na forma da palavra falada, da expressão da oralidade. Parlamenta-se e muito aqui. E Pedro Paulo trans_formado em Pedro Silva registra essas palavras nascidas no interior do Brasil, no Mato Grosso, no interior do Quilombo do Vão Grande com sua escrita. Palavra registrada em papel, de alguma forma, imortalizada no papel. Palavras com palavras, palavras que estão ali, uma do ladinho da outra. Palavras aos pares, ímpares, conjunto de palavras. Tudo verdade, tudo verdade. Tudo invenção, portanto, verdade. Invenção e verdade de mãos dadas e dançando São Gonçalo, registradas, cravadas em pedra bruta, em madeira feita papel.
A laive registra palavras faladas e interiores. Do interior do seu Francisco e da finada Benedita, da Lindalva, dos Ditos, dos Tonhos, das rezadeiras e das cumades, do interior de tanta gente “nascida e criada aqui”, de tanta gente que “lutou por esta terra”, que sobreviveu às ameaças, gente que ficou escondida no mato por dias e dias, gente que escapou de facada, de bala, de fogo botado na casa de páia, de gente que venceu “mardição de atraso de vida”, “gente raiz daqui” tipo gente maniva, gente semente de pé de manga, gente ingazeiro mas também gente ipê amarelo e florido como no terreno do pai-véio Chico.
Territórios interiores
Ao final da laive, um amigo disse: “Ivan, sinto que já podemos morrer. Fizemos uma coisa muito bonita nesta vida”
“O meu orgulho de ver esse guri escrevendo e levando para bastante lugares esse livro que ele fez através de mim e da avó dele. Grato de ver esse guri educado e cuidando desse bem preparado. Sinto feliz em ver esse meu neto me colocando nesse lugar de liderança nesses assunto de tradição. Peço que ele siga em frente nesse caminho dos estudo dele”. (Francisco, o pai-véio)
“O Pedro falou no livro a respeito do nosso território, de nossa vivência, do nosso palavreado, muita coisa sobre a nossa localidade aqui” (Benedito Ilino)
Claudenilson Bento da Guia, o nenê, guia nosso olhar. Ele também escreveu:
“A laive do dia 19/08/22 foi muito bom porque Pedro Silva falou umas coisa bom. Ele falou sobre o rio Jauquara. Ele falou como começou o dia do rio Jauquara em um dia lá em Cáceres.
Nessa laive teve até emoção. O Dito Ilino ficou emocionado, quase ninguém viu. Eu vi no rosto dele. Ele fez uma cara de durão mas não segurou umas horas, o rosto dele mostrou. A Lindalva ficou emocionada com os elogios que deram para o Pedro. E o Chico também ficou emocionado com os elogios do Pedro e do vídeo gravado dele quando colocaram (na laive). E no fim teve até cururú para o encerramento: Chico tocando viola de cocho, Zacarias e o Dito tocando ganzá”. (texto que está numa folha de poesias, um trabalho da professora Márcia com o tema: a importância do rio Jauquara. Trabalho que desdobrou em uma brincadeira gostosa de ‘ser escritor de poesias’. Nenê tem 12 anos)
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O sorriso estampado no rosto do Pedro, um sorriso misto de forte emoção e a tensão de falar ao vivo, um sorriso descoberta que aperta o coração, revela a gratidão. Gratidão aos amigos e amigas que caminharam ao lado do Pedro na pesquisa e na escrita, e na laive. E na caminhada do Comitê Popular de Defesa do Rio Jauquara.