Mu-dança
Andarilhagens Pantaneiras
Quero quero
Jatobá
(introdução com o som dos jatobás)
O som da cachoeira vindo do Jatobá / Nasci na cordilheira desaguei no Guamá / Tesouro escondido que atrai o olhar / Banzeiro diferente, Araxá, Macapá.
Paisagem, simetria, coração por um fio / Poesia rabiscada, ensaiada num canto do Brasil
Lampejo, gravidade / estou saindo do chão / Vestindo um chapéu / de palha “azul confusão” / Na aba o mistério, tão intensa atração! / Maria que o diga, acordes desta canção.
Ensaio, fim de tarde, bossa, blue, um café / E eu tiro o chapéu, retiro meu chapéu só pr'aquela mulher
É nessa onda carimbó, marabaixo / que eu saio pro mato sem pressa de voltar / Visto o chapéu azul que controla o tempo, / no preciso momento, à sombra do jatobá.
Cláudio Bolão e Ivan Rubens
Falsete da emoção
Falsete de emoção
Pare na ladeira / descida traiçoeira / Mudança de Estação
Em raios lancinantes / Manhã tão cintilante / torrente de paixão
Num cofre ali guardado / Um ponto iluminado / E pulsa o coração
Se abro a janela / Solfejo em aquarelas / Falsete da emoção
Se a noite ali está / um poeta a pensar / Um acorde, um violão
Se o tempo não passar / Que não é de se estranhar / o poder da criação
Seja do jeito que for / mas que seja uma canção / que toque a alma e dê sabor / que sapeca, o coração
Seja do jeito que for / seja lá o que Deus quiser / que agrade o coração / no peito de uma mulher
Cláudio Bolão e Ivan Rubens
Deixa chover, ô ô ô
A cidade de Belém/PA é conhecida por muitas coisas, inclusive pela chuva. Dizem que em Belém chove quase todos os dias sempre no final da tarde. Dizem que é comum as pessoas marcarem compromissos para depois da chuva: "nos encontramos depois da chuva". Uma pesquisa rápida apresenta várias cidades brasileiras onde a chuva ultrapassa os 3.000 milímetros no período de um ano, a maioria delas situadas na região Norte do Brasil. O ano de 2023 foi bastante chuvoso na cidade de Rio Claro/SP também: 1.837 milímetros.
Guilherme Arantes é um artista brasileiro, cantor e compositor, nascido na cidade de São Paulo no ano de 1953. A canção “Deixa Chover” começa assim:
CERTOS DIAS DE CHUVA / NEM É BOM SAIR DE CASA, AGITAR / É MELHOR DORMIR / SE VOCÊ TENTOU E NÃO ACONTECEU... VALEU! / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER
A cantora Vanessa Moreno diz que, quando era criança e tinha algum pedido negado pela mãe, tal negativa se justificava com a canção do Guilherme na voz materna: "Infelizmente nem tudo é / Exatamente como a gente quer". Aqui vemos um trecho bem pedagógico, desses que educa para a vida. Porque a vida nos ensina exatamente isso: nem tudo é exatamente do jeitinho que a gente quer. O nosso desejo é ilimitado, mas a vida nos coloca limites, o mundo nos coloca limites, a sociedade nos coloca limites. O tempo nos dá limites, as outras pessoas nos colocam limites. Nosso próprio corpo nos coloca limites. Tudo isso que nos dá limites, também nos dá possibilidades... A canção continua:
AS PESSOAS SEMPRE TÊM CHANCE DE JOGAR / DE NOVO E ERRAR / VER O QUE CONVÉM / RECEBER ALGUÉM / NO SEU CORAÇÃO... OU NÃO / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER
Que bom!!! poder errar e continuar tentando. A canção nos convida a pensar na errância, o erro livre do acerto, do certo em oposição ao errado, mas pensar e experimentar o erro como errância, e a errância como movimento. O movimento mesmo da vida, possibilidades de vida dentro do tempo determinado da vida, porque o corpo tem limites e a vida que habita um corpo tem fim, o fim determinado pela morte.
DEIXA CHOVER Ô Ô Ô / DEIXA A CHUVA MOLHAR / DENTRO DO PEITO TEM UM FOGO ARDENDO / QUE NUNCA VAI SE APAGAR
Fogo que arde no peito pode ser compreendido como a chama do desejo, da vontade. Desejo de viver, vontade de lutar pela vida, uma força que alimenta, que anima, que coloca nosso corpo na ativa. Mas tudo isso tem o limite inexorável da morte. A canção “Deixa Chover” estourou no Brasil em 1981 na voz do próprio Guilherme Arantes mas, para mim e para as minhas irmãs Graziella e Ivanessa, a canção fez sucesso mesmo na voz grave de um rioclarense que, violão no colo e bigode proeminente, cantava para as crianças embalando aquela década mágica de nossas vidas.
João Afonso Faglioni, nos encontramos depois da chuva.
DEIXA CHOVER Ô Ô Ô…
Ivan Rubens
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 16 de abril de 2024
Um Homem Comum
sobre Nietzsche, Peter Gast e Caetano Veloso
O baiano Caetano Veloso tem uma obra vastíssima. Você, certamente, conhece alguma canção deste artista baiano, talvez nem saiba tratar-se de uma canção de Caetano ao cantarolar. Neste texto vamos falar de uma canção pouco conhecida intitulada 'Peter Gast'. A canção está no álbum chamado UNS, de 1983, onde aparecem clássicos como o samba enredo É Hoje, como Eclipse Oculto e outras canções. A canção ‘Peter Gast’ começa assim:
SOU UM HOMEM COMUM, QUALQUER UM / ENGANANDO ENTRE A DOR E O PRAZER / HEI DE VIVER E MORRER COMO UM HOMEM COMUM / MAS O MEU CORAÇÃO DE POETA PROJETA-ME EM TAL SOLIDÃO...
Sou um homem comum.... O artista pode estar falando de si mesmo, mas se Caetano estiver falando de um eu lírico, ‘Sou’ pode ser qualquer pessoa. Assim ele nos empurra a pensar para fora do ego, para fora ou para além do sujeito, pensar sem sujeito. Então, ‘sou um homem comum’, sou uma mulher comum. Qualquer homem, qualquer mulher, apenas mais um, apenas mais uma, na multidão. Assim a canção começa nos convidando para um passeio pelo comunal, por esta dimensão daquilo que pode ser de todos, de todas, de cada um e cada uma, que ao mesmo tempo não é de ninguém. Mas (e sempre tem um mas...), um coração de poeta, mas a poesia pode projetar, a poesia pode lançar, a poesia pode ascender a alma, elevar o espírito, a poesia pode ampliar os horizontes, pode nos fazer voar. Um outro verso da mesma 'Peter Gast' diz assim:
NINGUÉM É COMUM, E EU SOU NINGUÉM. NO MEIO DE TANTA GENTE / DE REPENTE VEM (...) O PROFUNDO SILÊNCIO / DA MÚSICA LÍMPIDA DE PETER GAST
Mas (e sempre tem um mas), ninguém é igual, mesmo gêmeos não são iguais. Toda pessoa é singular, se faz na singularidade do percurso da vida.
ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST / PETER GAST, O HÓSPEDE DO PROFETA SEM MORADA / O MENINO BONITO, PETER GAST / ROSA DO CREPÚSCULO DE VENEZA / MESMO AQUI NO SAMBA-CANÇÃO DO MEU ROCK'N'ROLL / ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST
Você talvez esteja se perguntando: quem é esse tal de Peter Gast? de onde a inspiração para o artista criar a sua obra de arte? Acontece que Caetano Veloso estava muito interessado no filósofo alemão Friedrich Nietzsche, leu um livro a respeito da vida do filósofo e ficou fascinado com a personalidade de Johann Köselitz, igualmente músico e compositor, amigo de Nietzsche até o final de sua vida, que dedicou parte significativa de sua vida à amizade com seu ex-professor e sua produção filosófica e intelectual. A propósito do livro ‘Humano, demasiado humano’, Nietzsche dizia: “fundamentalmente, Gast foi o escritor enquanto eu fui apenas o autor”. Assim ficou conhecido Köselitz: Peter Gast.
ESCUTO A MÚSICA SILENCIOSA DE PETER GAST / PETER GAST
Composição: Gast pode significar ‘hóspede’, pode significar ‘visitante’ ou ‘convidado’. Um homem comum, um homem ninguém, um menino bonito, um músico e compositor que se fez conhecido na voz e nas palavras do amigo Nietzsche.
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 19 de março de 2024
De volta pro Aconchego
Dominguinhos e Luiz Gonzaga são artistas. Artistas são pessoas dotadas de grande sensibilidade, são pessoas à flor da pele. Artistas são pessoas que carregam dentro de si a energia da criação. Sem a criação, artistas talvez não conseguissem viver, talvez implodiriam. Trata-se do contrário: artistas são seres em explosão, seres em erupção. Imagine uma bexiga de festa infantil que explode quando cheia demais. Imagine um vulcão que dá passagem ao magma incandescente desde as profundezas da Terra para a superfície, derramando lava, a rocha em estado líquido. A imagem do vulcão nos ajuda a pensar como eu imagino que aconteça no corpo dos artistas: a criação como uma fervura que está nas profundezas da alma humana, que passa pelo corpo do artista e chega à superfície, que derrama no mundo sua beleza em forma de arte. Uma canção, por exemplo.
De Dominguinhos e Nando Cordel, a canção “De volta pro aconchego” diz assim:
Estou de volta pro meu aconchego / Trazendo na mala bastante saudade / Querendo um sorriso sincero, um abraço / Para aliviar meu cansaço / E toda essa minha vontade
O eu lírico fala da alegria de retornar a um lugar. Um lugar que, neste caso, pode ser uma cidade, uma casa, um lugar de aconchego. Ele chega trazendo na mala saudade, o desejo de um sorriso e um abraço. Um abraço como o lugar do aconchego. A canção continua…
Que bom poder tá contigo de novo / Roçando o teu corpo e beijando você / Pra mim tu és a estrela mais linda / Seus olhos me prendem, fascinam / A paz que eu gosto de ter
Contigo, "roçando o teu corpo e beijando você", indica ser o lugar do aconchego uma pessoa. Uma pessoa com o brilho da estrela mais linda, cujo olhar fascina, cuja presença produz um ambiente de paz. Afinal, “quando a gente ama, brilha mais que o Sol”, mas essa é outra canção (rs).
É duro ficar sem você, vez em quando / Parece que falta um pedaço de mim / Me alegro na hora de regressar / Parece que eu vou mergulhar / Na felicidade sem fim
Se é duro ficar sem esse lugar de aconchego (e é), por outro lado, acessar este lugar do aconchego é sentir uma felicidade sem fim, uma alegria eterna. Uma eternidade no sentido da ternura, da chama acesa, da vida que pulsa. E do desejo de mergulhar mais profundo, mesmo que um pouquinho mais profundo, num encontro potente, um encontro que significa um tempo e um espaço à parte, um tempo e espaço separado da rotina, separado do dia-a-dia, um tempo e um espaço para contemplação e sublimação. Sublimação como observar um amanhecer, um nascer de Sol, um ser novo que vem à luz do dia, ou um golfinho que salta nas águas, um boto, uma preguiça na árvore. Uma criança que pedala a bicicleta sem as rodinhas e sem as mãos de um adulto, que caminha pela primeira vez, uma criança desenhando ou lendo sozinha as primeiras letras. Uma castanheira na floresta amazônica. Comer fruta do pé.
Ivan Rubens
Aconchego
Dominguinhos (José Domingos de Morais, 1941-2013) é pernambucano, sanfoneiro, cantor e compositor. Amigo de Luiz Gonzaga, sua formação musical passa pelo baião, bossa-nova, choro, forró, xote e jazz.
Dominguinhos e Luiz Gonzaga são artistas. Artistas são pessoas dotadas de grande sensibilidade, são pessoas à flor da pele. Artistas são pessoas que carregam dentro de si a energia da criação. Sem a criação, artistas talvez não conseguissem viver, talvez implodiriam. Pelo contrário, os artistas são seres em explosão, seres em erupção. Imagine uma bexiga de festa infantil que explode quando cheia demais. Imagine um vulcão que dá passagem ao magma incandescente desde as profundezas da Terra para a superfície, derramando em lava a rocha em estado líquido. A imagem do vulcão nos ajuda a pensar como eu imagino que aconteça no corpo dos artistas: a criação como uma fervura que está nas profundezas da alma humana, que passa pelo corpo do artista e chega à superfície, que derrama no mundo sua beleza em forma de arte. Uma canção, por exemplo.
Em parceria com Nando Cordel, a canção “De volta pro aconchego” diz assim:
Estou de volta pro meu aconchego / Trazendo na mala bastante saudade / Querendo um sorriso sincero, um abraço / Para aliviar meu cansaço / E toda essa minha vontade
O eu lírico fala da alegria de retornar a um lugar. Um lugar que, neste caso, pode ser uma cidade, uma casa, um lugar de aconchego. Ele chega trazendo na mala saudade, o desejo de um sorriso e um abraço. Este lugar de aconchego poderia ser um abraço? A canção continua…
Que bom poder tá contigo de novo / Roçando o teu corpo e beijando você / Pra mim tu és a estrela mais linda / Seus olhos me prendem, fascinam / A paz que eu gosto de ter
Contigo, "roçando o teu corpo e beijando você", indica ser o lugar do aconchego uma pessoa. Uma pessoa com o brilho da estrela mais linda, cujo olhar fascina, cuja presença produz um ambiente de paz.
É duro ficar sem você, vez em quando / Parece que falta um pedaço de mim / Me alegro na hora de regressar / Parece que eu vou mergulhar / Na felicidade sem fim
Se é duro ficar sem esse lugar de aconchego (e é), por outro lado, acessar este lugar do aconchego é como se tomado por uma sensação de felicidade sem fim, uma espécie de alegria eterna. Mas lembremos que eterno não é para sempre. Talvez seja e_terno no sentido de uma ternura, da chama acesa, da vida que pulsa. E do desejo de mergulhar mais profundo, mesmo que um pouquinho mais profundo, num encontro potente, um encontro que significa um tempo e um espaço à parte, um tempo e espaço separado da rotina, separado do dia-a-dia, um tempo e um espaço para contemplação e sublimação. Como observar um amanhecer, um nascer de Sol, ou mesmo imaginar o sol nascendo como se fosse uma criança, rompendo barriga da noite e trazendo a luz, a força, o calor e a alegria. Imagino que seja contemplar uma barriga que cresce, contar os dias em 40 semanas, ouvir o primeiro choro da criança que nasce.
Cidades me habitam
Eu adoro Brasília
Vista de cima, a cidade tem o desenho de um avião.
É o Plano Piloto
No corpo do avião ficam os ministérios. Na cabine do avião fica a sede dos 3 poderes: executivo (Palácio do Planalto onde fica o presidente da república), legislativo (congresso nacional onde ficam deputados e senadores) e judiciário (o supremo tribunal federal). Isso que a TV mostra todos os dias
Já trabalhei em Brasília. Adoro a cidade.
Nas asas do avião são a asa sul e a asa norte. Casas, apartamentos, comércio e serviços.
Cidade cara demais. Museu a céu aberto, no corpo do avião, prédios são obras de arte.
Uma cidade linda e toda planejada. tudo feito da melhor qualidade. paisagem de rara beleza, se ha natureza é construída por mãos humanas. a natureza de uma certa humanidade.
uma cidade mto diferente das outras.
fazia um tempão q eu não vinha a Brasília. Vim na posse do Lula em primeiro de janeiro de 2023.
eu sinto saudade das cidades que eu conheço. E até das cidades que ainda não conheço eu sinto saudade. Sinto saudade de Barcelona e Madri. Sinto saudade de Sevilha. Sinto saudade de Lisboa. Sinto saudade do museu do Louvre em Paris, das ruas de Roma, até de Montevidéo, Caracas e Bogotá que estão pertinho eu sinto saudade. Sinto muita saudade de Havana. Cidades que ainda não conheço mas sinto saudade. Budapeste, Moscou, Pequim, Tokyo, Cidade do Cabo, Luanda, Nairóbi, Dakar, Lomé, Porto Novo, Lagos. Sinto saudade de Bombaim, de Kuala Lumpur, de Hanói. Se acaso conhecê-las, ainda sentirei saudade dessas cidades. Conhecer uma cidade é estar em contato com um pedacinho dela, um pedacinho de sua matéria. Passamos pelas cidades mas nunca conheceremos as cidades. E as cidades passam por nós em sua concretude e seu misterio. Portanto sentiremos saudade das cidades que nos habitam.
Eu moro na cidade e as cidades me habitam. Morar e habitar, morar e habitar e conhecer. Uma busca eterna, uma busca com ternura.
rios, ruas e risos
Para quem vive na cidade, transporte e trânsito pressupõem rodas. tudo sobre rodas: caminhões, ônibus, carros, motos, bicicletas. Tudo transitando sobre estradas, ruas e avenidas, de asfalto ou chão de terra batida.
Imagine você um lugar onde rios são mais e maiores que as ruas. Ilhas onde carros não transitam, onde asfalto não faz lá muita diferença. Um lugar onde roda que mais interessa é a roda do carrinho de mão que transporta nos quintais e terrenos as bananas e mandioca. Imagine você um lugar onde a rua é menos importante que o rio. Um lugar onde o rio é mais importante que a rua.
Rio mais que rua
Rio maior que rua
rio mais importante que rua
Quando cheguei ao Norte do Brasil, ri muito disso: rio mais que rua.
Eu ria disso, ainda rio. Ainda rio disso: rio mais que rua.
Neste Norte do Brasil, pessoas e mercadorias transitam pelos rios mais que pelas ruas. Trânsito maior por rios que ruas.
rios são ruas
rios que são estradas
rios ruas
rios estrada
Rios por onde transitam, por onde passam, por onde circulam pessoas e mercadorias. Tudo isso dá p ver porque estão passando por cima do rio. mas por baixo, dentro das águas, o que tem ? peixes, bichos, sedimentos, e histórias fantásticas. histórias de boto, de sereias, história do minhocão d'água, história de encantados. História da deusa que levou pela mão o homem para morar no fundo do rio.
Rios por onde passam catráias encantadas entre Brasil e França. Brasil indígena que vive dentro da água, de gente q toma banho de rio, vários banhos por dia para aliviar o calor. Vários banhos por dia para viver com o calor, para conviver na quentura. A França, famosa por seus perfumes, está na outra beira do rio Oiapoque.
Aqui no Brasil do hemisfério Norte, eu busco, eu procuro, me encanto em todo canto, rio. Eu rio, meu eu rio ri de gente que não gosta de rio.
Mergulho no rio
(M)eu rio
Eu rio
Rio como metáfora da vida. Rio e vida... rio passa, vida passa. Nem rio nem vida voltam atrás. Olhar atentamente para um rio é entender um pouco mais a vida, a fluidez da vida, o movimento da vida, a vida que passa. A vida que passa e não volta atrás. A vida sem o movimento da maré, a vida que passa como a areia que passa pela ampulheta e, ao final, repousa no fundo de terra.
Ivan Rubens
Flor da idade
Suavidade
sua idade,
tenra idade.
toda idade é tempo,
tempo de flor
flor da idade
idade da flor
floridade
florada
mulher florada florida
criança querida
nascida na Flórida
É só pensar…
Corpos e movimento: uma pedagogia da cidade
Corpos e movimento: uma pedagogia da cidade foi tema do 104o bate papo cultural.
realizado no dia 1 de setembro de 2016
O que é o amor?
Tem pergunta que pede resposta objetiva, tem pergunta que exige reflexão, tem pergunta que aparece como um convite para pensar, tem pergunta que faz pensar e sentir. Arlindo Cruz é um sambista carioca originário das rodas de samba do Cacique de Ramos. Em parceria com Maurição e Fred Camacho, Arlindo lança uma pergunta aparentemente simples mas muito complexa. A canção O QUE É O AMOR? começa assim:
SE PERGUNTAREM O QUE O AMOR PARA MIM / NÃO SEI RESPONDER, NÃO SEI EXPLICAR / MAS SEI QUE O AMOR NASCEU DENTRO DE MIM / ME FEZ RENASCER, ME FEZ DESPERTAR / ME DISSERAM UMA VEZ QUE O DANADO DO AMOR PODE SER FATAL / DOR SEM TER REMÉDIO PARA CURAR. / ME DISSERAM TAMBÉM QUE O AMOR FAZ BEM E QUE VENCE O MAL / E ATÉ HOJE NINGUÉM CONSEGUIU DEFINIR O QUE É O AMOR
A palavra amor, na língua portuguesa, pode significar afeição, compaixão, misericórdia, ou ainda inclinação, atração, apetite, paixão, querer bem, satisfação, conquista, desejo, libido. No popular, fala da formação de um vínculo emocional com alguém que seja capaz de receber o comportamento amoroso e enviar os estímulos necessários para manutenção e motivação do amor. Amar também tem o sentido de gostar muito.
Para Adélia Prado, o amor é a vitalidade. A filósofa e poetisa mineira diz mais ou menos assim: “quando se ama uma pessoa, cabe tudo, só não tem espaço para o tédio”. Vitalidade no sentido de animação, no sentido de energia vital, de vontade de viver mais. No contato, o corpo ganha leveza. O beijo derruba as máscaras e expõe olhos e alma, transforma tensão em riso. ‘No vinho está a verdade’, diziam os antigos romanos: a língua fica mais solta e a verdade aparece. Ouvi recentemente num quilombo no interior do Mato Grosso que “verdade é a palavra que nasce no coração”. Amantes estão despidos de preconceitos e pudores, amantes estão vestidos de sabores, cores, odores, enfim: amores. A canção continua….
QUANDO A GENTE AMA, BRILHA MAIS QUE O SOL / É MUITA LUZ, É EMOÇÃO O AMOR / QUANDO A GENTE AMA, É O CLARÃO DO LUAR / QUE VEM ABENÇOAR O NOSSO AMOR.
Sol é estrela, Sol é um corpo celeste, Sol produz energia, Sol emite energia pelo espaço. Parte dessa energia é luz. Sol pulsa, Sol brilha, Sol é luz, Sol ilumina, Sol aquece, Sol anima. Arlindo Cruz associa a chama do seu amor ao brilho do sol. Sol brilha, Sol dá vida…
Um escritor carrega um sol desenhado na pele desde muito novo. Um desenho que pigmenta a derme, aquece, incendeia a alma e a vida. Sol tatuado no braço. Sol aquecendo o coração. Sol segue no horizonte, destino de uma caminhada sem destino, como diria o uruguaio Eduardo Galeano em suas ‘Janelas para a Utopia’. Sol no horizonte inatingível, como se estivesse do outro lado do mundo (e talvez esteja). O poeta uruguaio tranquiliza essa breve reflexão sobre o amor em altas temperaturas. Sob e sobre sol. Sol e amor são palavras que podem caminhar de mãos dadas porque Sol não apaga.
E para você, o que é o amor?
Ivan Rubens
escritor ensolarado
Um Jeito Tucujú
Sobre escrever
Por Janaina Freitas Calado e Ivan Rubens
A escrita te escolheu
A escrita me escolheu
Escrevendo, te convido a escrever.
Vamos escrever juntos? Escrever pelo simples prazer de escrever.
Escrever sobre ESCREVER?
Mas como?
Você me escolheu para escrever ou foi a escrita que nos juntou para ela?
Será que já estamos escrevendo?
Talvez. Em comum temos o fato de escrevermos pela alegria de escrever.
Não escrevemos pela obrigação, mas pela alegria.
Sim!! Já topei! O texto começou no convite.
Mas eu só escrevo o óbvio.
Não pretendemos escrever nada complexo, mas algo simples.
Tão simples quanto o desejo que nos toma neste momento da escrita.
Neste encontro inusitado que começou nas leituras de um e outro.
É preciso dizer o óbvio, por mais que ele seja óbvio.
Mas um óbvio que salta aos olhos.
Um óbvio que pode passar despercebido.
Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?
Eu não sabia que sabia escrever.
Mas eu escrevia, e ainda escrevo, com amor.
Acho que o amor faz a gente transbordar em palavras o que sente,
aí, a gente escreve.
Escrevemos pelo simples prazer de escrever.
Escrevemos por uma escolha,
mas não uma escolha nossa,
não por uma escolha desse sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá…
Mas por uma escolha modesta,
Uma escolha que não foi nossa mas foi do texto.
O texto que nos escolheu!!
É, acho que é isso.
Por isso escrevemos, porque não temos escolha.
Quando você dá fé, já saiu.
O dedo no teclado, a caneta no papel são mais rápidos em expressar nosso querer.
Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente.
Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever.
Seja uma carta, seja uma dissertação
Seja um bilhete, seja uma tese.
Seja um texto, seja um livro.
Basta pensar, pensar, pensar, sentar e escrever.
Que coisa bonita de se dizer,
Quero dizer, de se escrever!
“Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente”
Acho que tenho muita coisa enrolada dentro de mim,
e quando escrevo, me sinto aliviada.
Eu tenho um monte de cartas escritas e não enviadas,
bilhetes de amor, textos não publicados, fragmentos que não servem de nada.
Escrever torna o pesado leve,
torna o superficial profundo.
É um suspiro de amor aliviado.
….Por fora da cabeça, os fios de cabelo podem estar lisos,
podem estar cacheados, podem estar enrolados.
Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados.
Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas,
dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado.
Escrever é um jeito de desenrolar.
Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue.
Mas realmente se a gente parar pra pensar assim,
desse jeito que você me propôs,
fica tudo muito complexo mesmo.
Até quando se escreve o óbvio.
O óbvio se torna óbvio depois de descoberto.
Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é ‘não saber’.
Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio,
Como transformar o óbvio num conjunto de palavras?
Porque mesmo óbvio tem uma complexidade.
E escrever é parte também
Pois de tudo que a gente vive, sente e experimenta,
a gente só consegue expressar uma parte.
A parte que transborda na escrita.
Acho importante Ser Parte na escrita,
Porque a escrita só se completa quando o outro ler
E quando o outro ler já não é mais o que a gente quis escrever,
mas o que atravessou quem leu.
Entendo escrever como um processo de elaboração.
Os fios de cabelo enrolado ou os fios,
as linhas enroladas são uma imagem do pensamento.
No início, é uma massa disforme. Com nosso trabalho de elaboração,
vai ganhando contorno, vai ganhando forma. Escrever é, entre outras possibilidades,
esse trabalho de elaboração, de escultura, de dar alguma forma.
Agora, o que o/a outro/a, leitor e leitora farão com o texto, aí é com eles.
Trata-se de uma experiência de liberdade: a liberdade de pensar.
Quando releio textos antigos, fragmentos abandonados, anotações esparsas,
sinto como se me encontrasse com alguém que eu já fui.
Eu também, esse encontro me causa sensações diferentes.
Eu tento entender o que eu estava vivendo naquela hora, para ter escrito aquilo.
Aquele texto antigo me atravessa diferente.
Às vezes dói, dá saudade.
Às vezes dá orgulho e sinto esperança.
Quando sinto beleza em algo que escrevi
quando leio e sinto que ficou realmente bonito,
isso me dá esperança. A beleza me dá esperança,
uma esperança freiriana, uma esperança ativa.
E me faz escrever mais pois a beleza é forte
A arte, a beleza, a estética pode produzir uma nova ética
A beleza é capaz de abrir possibilidades de uma nova sensibilidade
Acho que a escrita é esperança.
Não é uma esperança parada, inerte, que espera o sol inevitavelmente se pôr.
É uma esperança ativa, que faz acontecer o que a gente quer.
Aí depois de ter muito feito, de ter muito agido, de ter muito escrito...
Você espera…
Espera o alívio de ter desenrolado um pouquinho o nó que tinha na cabeça,
espera alguém ler
e espera que aquilo faça algum sentido.
A escrita espera com esperança.
A escrita nos moveu, nos escolheu
Éramos um, dois e, juntos, somos mais que três
Escrever é verbo, é o ato de pôr palavra com palavra.
Por COM, com por.
Compor.
Palavra que se abraçam,
palavras de mãos dadas,
palavras faladas,
palavras coladas,
palavras contadas,
palavras inventadas,
palavras caladas,
palavras vividas.
Palavras que vão se compondo, compondo frases.
O destino dos escritores
desembaraçar ideias
criar estratégias
Escritores amadores, criadores de possibilidades,
fazedores de convites, relógios
despertadores de interesses, de sonhos e desejos
O destino dos escritores
eternizar suas dores, temores,
saberes, sabores e amores.
Você ainda está aí?
Estou.
Estou escrevendo.
Às vezes, tenho dificuldades de parar de escrever
Será que alguém vai nos ler?
Talvez.
Mas agora isso não é mais conosco.
Espero que esta composição toque
toque cabeças e corações,
toque flautas e violões,
e que faça alguém sorrir.
Quem escreve?
Dia desses, numa conversa com uma amiga professora e escritora, nos perguntávamos: quem é escritor? quem é escritora? e essa pergunta acende, ecoa, ascende, ressoa. E a conversa rolava:
- Escrevemos pelo simples prazer se escrever. Escrevemos por uma escolha, mas não uma escolha nossa, não por uma escolha de um suposto sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá… Mas por uma escolha modesta, uma escolha que não foi nossa mas uma escolha que foi do próprio texto. O texto é quem escolhe.
- Ao sentar para escrever, não se pretende escrever nada complexo, mas algo simples. Tão simples quanto o desejo que nos toma no momento da escrita. Neste encontro inusitado que via de regra começa ou recomeça na leitura de outros textos, nesse encontro inusitado de ser e texto, texto e ser, tanto texto quanto escritores se fazem no processo da escrita. Parece óbvio e, por mais que ele seja óbvio, que salte aos olhos, pode passar despercebido. Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?
O óbvio se torna óbvio depois de descoberto. Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é não saber. Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio, como transformar o óbvio num conjunto de palavras? porque mesmo óbvio tem uma complexidade. Por fora da cabeça os fios de cabelo podem estar lisos, podem estar cacheados, podem estar enrolados. Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados. Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas, dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado. Escrever é um jeito de desembolar, escrever é um jeito de desenrolar. Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue. Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente.
Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever. Seja uma carta, seja uma dissertação, seja um bilhete, seja uma tese. Seja um texto, seja um livro. Claro que cada texto tem seu rigor, uns tem o rigor acadêmico, o rigor científico, rigor metodológico, rigor temático. Rigor ético, rigor estético, rigor político. Rigor ético-estético-político. Escrever é também um exercício de liberdade, de libertação, de elaboração, é como se você tirando de dentro de si algo que nem mesmo você sabe bem o que é, liberando o espaço para começar tudo de novo. Algo que te tocou, algo que te atravessou, que te incomodou, algo que ficou em ti e, elaborado, já pode ganhar alguma forma e, saindo, liberar o espaço para começar tudo de novo.
No fundo é muito simples: deixar-se afetar pelo mundo, ler, pensar, pensar, pensar, sentar e escrever. Então, quem é escritor? quem é escritora?
Talvez seja mais fácil dizer quem não é. Não é escritor, não é escritora quem não escreve. Porque Escrever é inscrever-se. Então, quem escreve é...
alegria do samba
entro na roda com pandeiro e tamborim
Ébrios, bêbados e loucos
Que sejamos nós os ébrios
Os que espalham, régios,
O mundano evangelho das esquinas!
Proclamemos, nós, sinais
Do fígado das horas
E as canções profanas!
Não nos dobremos, nós
À putrefata voz do algoz
Que nos sublima!
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Intrépidos? Profanos!
Que sejamos nós os bêbados
que caminham, trôpegos,
As esquinas mundanas da cidade fria
Beberemos, nós, sinais
Do trânsito acelerado
E da vida q circula intensa.
Só nos dobremos, nós
À marquise úmida
Que nos abriga
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Artrópodes? Profanos!
Que sejamos nós os loucos
Os que empurram, poucos,
Carrinhos, papelões, amigos fiéis
Reclamemos, nós, sinais
Do muro alto que separa
E do portão que aprisiona
Só nos dobremos, nós
À beleza da arte
Que nos liberta
Devoremos, sim, a vida
A sina, os dias, os anos
Antropófagos profanos!
(Nuno Moraes e Ivan Rubens)
Fruta de rua
Feira?
Feira eu faço lá fora.
Fruta eu pego na rua.
Figo não tem,
mas tem mamão, jambo, cajú.
Manga tem de sobra, fartura açaí.
Procurando bem tem acerola, goiaba, talvez amora
tudo com gosto de rua,
tudo pra coletar
coletar
Feira de fruta faço lá fora.
Feira de fruta faço na rua.
Ivan Rubens
Que mundo é esse?
ouça este texto na voz doce da professora Graziella Jordão Marcucci
clique no link acima para ouvir
Este texto tem como título: Que mundo é esse?
mas poderia ser: Um pouquinho por dia...
Nasce um bebê. É linda essa cena. O choro da criança aparece como um símbolo, como um grito: cheguei! Mas, cheguei onde? que mundo é esse?
Coloque-se no lugar do bebê. Você fica cerca de 40 semanas dentro de uma barriga, protegido, protegida, recebendo tudo que precisa para sobreviver. Até que um dia, você, bebê, sai da barriga e vai para o mundo. Mas que mundo é esse?
Um bebê não fala. Mas, se falasse, o que diria?
O que você, bebê, diria na chegada a este nosso mundo?
Então você deixa aquele mundo de água, passa por um aperto danado, uma passagem estreita e é lançado/a para fora. Mãos te tocam, te enrolam em panos, dedo na tua boca, no teu nariz e teus olhos… E tem um choque térmico: se num hospital, certamente uma sala com ar condicionado em baixa temperatura, se numa aldeia na floresta provavelmente calor, muito calor. E seus braços se movem, pernas, mãos se movem, e coisas que você não conhece tocam no seu corpo, toalhas, paninhos, mãos, algodão. E um monte de ruído toca seus ouvidos, cheiros e tal, um mamilo encontra tua boca… o que te resta é sentir, sentir e sentir.
Ou seja, sua primeira relação com este mundo extra_uterino acontece nos cinco sentidos: audição, olfato, tato e, até, visão e paladar. Ouvidos, nariz, pele, e até os olhos e a língua são intensamente estimulados, mas você não tem palavras para dizer o que te acontece, ainda não tem linguagem, consciência, razão, isso virá com o tempo. Pelo menos não esta linguagem e esta razão que mobilizamos ao ler (e escrever) este texto. O que está operando em você, bebê, talvez uma experimentação intensiva. Você está nascendo para uma (muitas) vida(s) neste mundo. A primeira relação com este mundo fora do útero é sensível e, acredito, a sensibilidade pode ser cultivada durante a vida.
Tem uma palavra para dizer da “apreensão pelos sentidos”, dessa “percepção”. Estética deriva da palavra grega ‘aisthesis’, é uma forma de conhecer, de apreender o mundo através dos cinco sentidos. Uma música, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos ouvidos. Uma tela, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos olhos. Uma poesia, literatura, dança, ou o cheiro de uma comida, um prato bonito, o barulho da cerveja caindo no copo, o cheiro do vinho, a cor do suco da fruta colhida do pé, tudo isso vai criando um desejo. Estamos falando de um cultivo da sensibilidade que nos torna mais humanos, um pouquinho por dia.
‘O contrário também sei que pode acontecer’: podemos cultivar sementinhas de medo e ódio, um pouquinho por dia. Acredito nas belezas como produtoras de sensibilidades e de uma humanidade mais interessante. Quero sugerir duas obras de arte: JEITO TUCUJÚ, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem, (hino popular do Amapá); e SABOR AÇAÍ, de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves, homenagem a esse alimento maravilhoso que é o açaí. A Música Popular Amapaense é um mundo de beleza e poesia. Um pouquinho por dia.
Ivan Rubens
Educador popular
Todo seu querer
No dia dos namorados encontrei uma bela canção. Trata-se de TODO SEU QUERER, interpretada por Mariene de Castro e Roberto Mendes. Pesquisando um pouco a respeito da canção, descobri tratar-se de uma composição dos baianos Roberto Mendes e José Carlos Capinan. Fazer música e fazer poesia é uma espécie de artesanato, músico e poeta são um tanto escultores. O poeta escolhe criteriosamente algumas palavras e vai esculpindo uma a uma, palavra por palavra, depois começa a juntar as palavras esculpidas, vai esculpindo as frases, linha por linha, vai esculpindo sua obra de arte. Com o músico imagino que seja parecido, escolhe sons, acordes, vai esculpindo, esculpindo, vai esculpindo cuidadosa e criteriosamente sua obra de arte.
No dia dos namorados uma bela canção me encontrou. Eu estava distraído quando a canção passou por mim produzindo um primeiro afeto quase imperceptível. Insistente, a canção se fez presença. Então pensei: “opa, aí tem coisa”. Ato contínuo, peguei o celular, abri o aplicativo e coloquei minha atenção tanto na letra quanto na melodia. A canção diz assim:
Quando o amor olha pra você querendo te prender nos braços de alguém / quando o amor fala pra você com palavras loucas todo o seu querer / E quando o amor tem sabor de fruta colhe em tua boca a manga madura / em tua mão em fogo acende o teu corpo tira a tua roupa procurando a flor.
Ai amor diga sorrindo / ai amor / seja bem vindo / ai amor / diga chorando, amor, você chegou / Ai amor diga que volta / ai amor / beijo de adeus quando se for.
Os afetos iniciais produzidos nesse lindo encontro canção e ouvinte me levaram pelo caminho de pensar numa declaração de amor. Uma pessoa dizendo palavras verdadeiras, belas e apaixonadas para uma outra pessoa. Desconfiado que uma obra de arte guarda belezas com força de produzir mais e mais beleza, lancei ainda mais atenção para a escultura. O que estaria escondendo nessa letra o poeta? e isso me levou a um segundo afeto.
O amor da canção não é um sentimento mas um personagem. É o amor que olha, é o amor que deseja, é o amor que fala com poucas palavras. Na obra, o amor tem sabor de fruta, o amor colhe, é o amor quem coloca fogo nas mãos e tocam um corpo que, em chamas, tira a roupa. Mas não tira a toa. Motivado pela força do amor, a mão procura uma flor. Uma flor. É muito bonito isso: a mão em chama de amor procurando a flor.
Então o poeta pede ao amor para dizer, o poeta pede ao amor para sorrir. O poeta dá as boas vindas ao amor e chora, certamente de alegria para celebrar a chegada do amor. Nós, ouvintes e admiradores da obra, nós que sentimos a beleza enchendo o peito com esperança na vida, nas belezas da vida e na maravilhosa oportunidade de viver, de respirar, nós que sentimos os raios de sol queimando a pele, nós que sentimos as gotas da chuva molhando a pele, o vento beijando o rosto, ainda seremos capazes de sentir a alegria e a leveza de não precisar carregar nada para poder sentir e pensar. Sentir e pensar, fechar os olhos e sentir a beleza atravessar e, atravessando, produzir novidades: novas formas de sentir e pensar.
E assim como vem, o amor vai. Então vá, que seja leve e que seja forte o suficiente para voltar. Para ir quando for o momento de ir e voltar quando for momento de voltar. Voltar modificado, voltar verdadeiro, voltar saboroso. Nas idas e vindas, vamos esculpindo o amor, vamos fazendo da vida uma obra de arte.
Ivan Rubens
Artesão de palavras
dedico ao artista José Celso Martinez Corrêa
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 11/julho/2023
Sobre escola, água e felicidade
Aconteceu na cidade de Cáceres, Mato Grosso, nas cabeceiras do rio Paraguai. O rio Paraguai é afluente do rio Paraná, bacia do rio da Prata. O rio Paraguai nasce na cidade de Alto Paraguai/MT, passa pela Bolívia, atravessa o Paraguai e derrama suas águas no rio Paraná, lá na Argentina.
Observando papagaios, periquitos, araras, maracanãs, calopsitas frequentando o rio, os povos indígenas diziam ‘Ysyry Paraguái’ que na língua guarani antiga quer dizer ‘rio dos paraguás’. ‘Paraguá’ é uma espécie de psitacídeo (ordem de aves), e ‘y’ significa rio.
Pois bem, aconteceu na margem esquerda do rio Paraguai. Dois amigos, desses que compartilham uma vida de estudo, de trabalho e de luta, experimentavam a alegria de ser professor em mais uma tentativa. Ambos envolvidos com um livro (sobre o ofício de professor) do espanhol Jorge Larrosa. E lá pelas tantas, apareceu uma frase atribuída a Maria Bethânia: “Perto de muita água, tudo é feliz”.
Estavam numa situação de estudo, trabalho e luta, mais um encontro da Escola de Militância Pantaneira. Trata-se da reunião de 13 Comitês Populares de Defesa das Águas, das nascentes (e do clima) do rio Paraguai e seus afluentes. Escola porque oferece tempo (livre dos temas ordinários) para colocar a atenção nos temas selecionados para estudo, neste caso, os “direitos da natureza”: leram “A Carta da Terra”, ouviram Leonardo Boff, estiveram em aula com uma professora que trouxe dados, números, experiências de outros países onde os rios são sujeitos de direito, onde montanhas e territórios sagrados são sujeitos de direito. Escreveram um projeto de emenda visando à inclusão dos direitos da natureza na Lei Orgânica do município de Cáceres/MT.
Durante o Encontro da Escola de Militância Pantaneira, uma frase ficou muito forte: “eu sou natureza”. E as pessoas repetiam: “eu sou natureza”, “eu sou natureza”. Bem, se ‘eu’, um ser vivo chamado humano, é sujeito de direitos e, ‘eu’ é natureza, logo… Mas quero colocar nossa atenção numa dimensão outra da mesma frase. “Eu sou natureza” nos convida a pensar que está em construção uma ponte para vencer a distância, o abismo que separa humano e natureza, natureza e cultura. Estamos falando de uma razão liberal, industrial, neoliberal, desenvolvimentista que nos leva a pensar um rio como recurso hídrico, que nos leva a pensar floresta como recursos florestais, natureza como recursos naturais, e pasmem, homens e mulheres como recursos humanos. Deste ponto de vista produtivo e desenvolvimentista, crianças e idosos, doentes e loucos, se improdutivos, nem recursos são. Portanto, não são nada.
Mas no encontro da Escola de Militância Pantaneira o pressuposto parecia outro. Partiram do pressuposto que envolvimento é mais importante que desenvolvimento. Envolvidos entre si e envolvidos com o tema selecionado para estudo (direitos da natureza), homens e mulheres, jovens e velhos criaram para si outras possibilidades de ver, de pensar e de sentir(-se) natureza.
Aconteceu ali, na margem esquerda do rio Paraguai. Maria Bethânia e Jorge Larrosa deram a letra: “perto de muita água, tudo é feliz”.
Ivan Rubens
Mergulhador e canoeiro
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro edição de 13 de junho de 2023.
Com o caderno de campo
Lá vai ela com seu caderno de campo
Lá vai ela, usa pantufas não usa tamanco
Lá vai ela habitando território
com rede e mosquiteiro que monta no dormitório
Entre cidades, rios e aldeia
Ela, aranha, vai tecendo sua teia
Em aviões, carros, barcos, voadeira
ela vai, ela vem, transitando
faz sua casa no caminho, sua oca, sua aldeia
seu quilombo, sua tapera
ela espera, tempo duração, corre
quase morre diante da onça pintada
e volta.
Lá vem ela com seu caderno de campo
usa pantufas, não usa tamanco
pisa devagarinho no chão-território.
Alguém me avisou, alguém me avisou
que ela carrega caderno de campo.
Agora
quero teu corpo
suado, molhado
quero
cheirar teu cabelo
quero
lamber teu joelho
quero
naufragar teu umbigo
quero
Delírio?
quero
te dar meu sabor
torpor?
quero
deleitar o teu ventre
repente, semente de outro dia
frio, arrepio, mal olhado?
quero
encantar
de sabores, das cores
demoro nos nomes,
temperos aromas, amoras, amores
se vai, vem
se não vai, vem também
quero te dar meu tempero
pra enfeitar teu cabelo
e andar por aí
com trôpegos versos, improvisados, na memória
pela cidade afora
agouro?
agora, agora, agora!