Uma Marcha Fúnebre
Desenredo
Numa partida de futebol em 1976, Dori Caymmi se contundiu. “Cheguei a operar. Fiquei deprimido e senti raiva do mundo”. Seu pai, Dorival Caymmi, disse: “Coloquem o violão perto do Dori que ele logo se acalma”.
A recuperação foi longa. Na cama, Dori dedilhava o violão. Foram chegando as imagens da Zona da Mata mineira e a saudade das Minas Gerais. Lembrou dos amigos do colégio, professoras/es, lembrou da cidade. “Deu aquela nostalgia, os primeiros acordes foram chegando. Eu estava lendo Guimarães Rosa e me lembrei de minha mãe cantando uma canção que me remetia aos hinos de Ouro Preto”. E surgiu o refrão: Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe. Dori se considera ⅓ carioca, ⅓ baiano e ⅓ mineiro: nascido no Rio de Janeiro, filho do soteropolitano Dorival Caymmi, filho de Stella Maris, mineira do interior.
Recuperado, Dori Caymmi mostrou a melodia e o refrão para o amigo e poeta Paulo César Pinheiro que escreveu algumas linhas. “À medida que fui escrevendo, imagens mineiras passavam na minha cabeça. Lugares como Sabará, São João del-Rei. Tudo surgia como imagens: ‘Por toda a terra que passo/ Me espanta tudo o que vejo’...
Por toda terra que
passo / Me espanta tudo o que vejo / A morte tece seu fio / De vida feita ao
avesso. / O olhar que prende anda solto / O olhar que solta anda preso / Mas
quando eu chego / Eu me enredo / Nas tramas do teu desejo.
O mundo todo marcado / A ferro, fogo e desprezo / A vida é o fio do tempo
A morte é o fim do
novelo. / O olhar que assusta / Anda morto / O olhar que avisa / Anda aceso. /
Mas quando eu chego / Eu me perco / Nas tramas do teu segredo.
Pinheiro aprendeu também a escrever a partir dessas imagens que apareciam na sua cabeça. “Conheci Minas dos livros de Guimarães. Quando me casei com a Clara, desbravamos os interiores de Minas Gerais”. Pinheiro foi casado com a cantora mineira Clara Nunes.
Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe.
Composição: Dori se recompondo de um trauma, re_compondo consigo mesmo, se procurando no território e na própria história, compondo e recompondo no espaço e no tempo, compondo com o violão, com as imagens e as paisagens; Ao mesmo tempo em que Pinheiro está compondo, está tecendo suas próprias linhas. As linhas de vida se encontram, as linhas vão tecendo. Os artistas usam a palavra ENREDO para dizer que a vida é tecer as redes, ou seja, enredar. A imagem que me ocorre é o corpo de uma criança indígena acolhido numa rede, seguro, tranquilo e calmo, repousando e balançando na rede. A canção termina assim:
A cera da vela queimando / O homem fazendo o seu preço / A morte que a vida anda armando / A vida que a morte anda tendo. / O olhar mais fraco anda afoito / O olhar mais forte, indefeso / Mas quando eu chego / Eu me enrosco / Nas cordas do teu cabelo.
Desenredo dá ideia de desembaraço, o desenlace de uma rede. “Inclusive, digo isso como se estivesse desembaraçando o fio do tempo, à medida que ia passando por lugares centenários de MG”, afirma o poeta.
Desenredo é uma canção de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro.
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição impressa de 23 de março de 2021
Mascarada
Aconteceu no Rio de Janeiro. Um sambista muito gente boa brincava o carnaval no “Bloco das Piranhas”. Neste bloco, como era comum na década de 1950, os homens desfilavam vestidos de mulher. Pois bem, o sambista muito gente boa encontrou uma moça no bloco. A moça também encontrou o sambista. Ambos se gostaram, não deu outra: romance! O sambista não foi mais visto naquele carnaval. Dias depois ele revelou a um amigo, também sambista, que a moça não tirou a máscara. Ele, portanto, não conseguiria identificar o rosto daquela mulher.
No ano seguinte a história se repetiu. O sambista gente boa já sabia onde encontrar a Mascarada. E o romance emergiu... mas o mistério se manteve porque ela novamente não tirou a máscara. Apenas no terceiro ano a mulher revelou seu rosto. Apenas no terceiro carnaval ela se permitiu tirar a máscara.
Talvez você não acredite nessa história. Talvez você pense assim: mais uma história de carnaval. Olha, vou te dizer que eu acredito. Verdade ou mentira é um detalhe menor. Não se trata disso. Vamos colocar a questão de um jeito mais bonito: realidade ou invenção? O poeta mato-grossense Manoel de Barros diria memórias inventadas ou 10% é verdade e 90% é invenção! Mas, se considerarmos invenção como criação humana, não dá para dizer que uma história inventada é mentira.
Tem um samba que diz assim: O corpo, a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobre pra’as trevas / O nome a obra imortaliza. Ou seja, a obra imortaliza o artista, a criação torna a vida do criador mais longa do que a sua carne. Aliás, se você olhar direitinho, dentro da palavra ‘carnaval’ tem a palavra ‘carne’.
Então, o sambista gente boa de que falamos é Zé Keti. Um dia, Zé Keti apareceu acompanhado de “uma bonita senhora” e disse: “Elton, essa aqui é a mascarada”. Mais ou menos assim nasceu o samba canção Mascarada, de Elton Medeiros e Zé Keti.
Vejo agora esse seu lindo olhar / Olhar que eu sonhei / E sonhei conquistar / E que um dia afinal conquistei, enfim / Findou-se o carnaval / E só nos carnavais / Encontrava-te sem / Encontrar esse seu lindo olhar, porque / O poeta era eu / Cujas rimas eram compostas / Na esperança de que / Tirasses essa máscara / Que sempre me fez mal / Mal que findou só / Depois do carnaval.
Neste 2021 comemoramos o centenário de Zé Keti. Mais do que nunca e por razões bem particulares, Mascarada faz-se atual. A mulher mascarada que inspirou a canção se mostraria prudente na pandemia. Porque, apesar dos pesares, apesar da pandemia, hoje é terça-feira de carnaval. Apesar de você, Jair, apesar da sua ignorância e truculência, apesar do rio de leite condensado e dos mares de lama onde naufraga seu governo incompetente, apesar da cerveja e do whisky, do bacalhau e da picanha de alta patente, apesar de você amanhã há de ser outro dia. E as ruas estarão cheias de gente colorida, alegre e cheia de vida: Unidos do Fora Bozonaro, nota 1000.
Faça como a Mascarada: use máscara!
Ivan Rubens Dário Jr
Uma Travessia
Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar / Minha casa não é minha / E nem é meu este lugar / Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar
A pessoa se foi. Teria acabado o amor? Teria nascido um novo amor? um laço está desfazendo... O dia se fez noite, o sol se fez lua, toda cor desbotou, empalideceu.
Um laço vai se transformando rapidamente em um nó. Um aperto no peito, um nó na garganta. É como se o chão fugisse e não sabemos mais onde pisar. É uma espécie de desterritorialização: você se sente perdido, sem chão, sem lugar. É preciso botar para fora esse mal estar em forma de desabafo. É preciso falar, contar, lamentar… para que o nó não se transforme em nódulo.
Solto a voz nas estradas / Já não quero parar / Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar
Ao soltar a voz, parece que o grito preso na garganta vai desatando o nó. Então, falamos sem parar. O chão que era firme para a caminhada da vida, torna-se um sem chão, um chão pedregoso, perigoso, onde cada passo demanda um tempo e cuidado: as pedras estão soltas. É como andar sobre as pedras dispostas no leito do rio. Se o sofrimento se alonga, chega-se a estar cara a cara com a morte. Uma morte simbólica, uma morte como encerramento, como finalidade. Fim de uma história, final de um amor. Não se trata de uma morte física mas de uma morte em vida. Neste sentido existem mortes... e vida segue!
Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver / Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver
O tempo vai passando lentamente porque a memória se mantém viva. Como diz Chico Buarque na linda canção chamada Romance: “com todas as canções, os momentos bons e as horas más que a memória coa”. Imagine que dentro da cabeça existe um pequeno coador de café, daqueles de pano, onde as tristezas vividas, as amarguras, as chateações ficam presas no pano. E apenas passa pelo coador tudo aquilo que houve de bom. Os momentos bons, as alegrias, a felicidade mesmo que breve, que instantes vividos. Esses ficam eternizados na memória. Porque o tempo vai fazendo seu trabalho de deixar o excesso de peso pelo caminho e guardar no corpo apenas aquilo que realmente importa, aquilo que dá leveza, que facilita a caminhada pois a vida segue seu curso. Aquela velha imagem vai se apagando, outros mundos vão surgindo. É a vida renascendo... até que um novo amor acontece. Ou não. Mas isso nem importa tanto assim. O que importa mesmo é avançar no sentido de tomar para si a própria vida. Esta é uma leitura possível, dentre tantas, da canção Travessia (Fernando Brant e Milton Nascimento).
A descolonização do poder
No desenvolvimento do capitalismo, o Estado ocidental amparou seu poder no monopólio da força e na centralização do poder. Assim como existia apenas um deus, ou um rei, também deveria existir apenas um soberano. Essa visão de Estado fez com que povos fossem dizimados em meio a colonização das Américas. Entretanto, muitos povos lutaram e resistiram. Como é o caso do Brasil, onde indígenas resistem há mais 500 anos processo sanguinário de dominação. Para debater sobre a resistência dos povos indígenas e suas linhas de fuga, convidamos a guerreira indígena Are Rete (Guarani Nhandewa-Paraty) e dramaturgo antropofágico Zé Celso (Teatro Oficina). A mediação de Jean Tible, autor de Marx selvagem.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UEBmSTvxdME&t=1975s> Acessado em janeiro de 2021.
Jean Tible
Boa tarde. Vamos
começar nossa conversa sobre a descolonização do Poder. A deputada estadual
Érica Malunguinho, lá do Aparelha Luzia e deputada estadual pelo PSOL de São
Paulo, não pode comparecer. Nós temos a presença da indígena Are Rete (Guarani
Nhandewa-Paraty) e dramaturgo antropofágico Zé Celso (Teatro Oficina).
A FLIPEI é o
barco pirata. Os piratas têm uma imagem forte, qualquer pessoa que ouvir pirata
já aparece todo um imaginário. Mas vários historiadores recuperaram as imagens
dos piratas, é interessante porque os piratas eram meio contra poder de um
mundo extremamente autoritário. Os piratas eram um dos coletivos mais
democráticos do seu tempo, com uma política menos hierárquicas, uma política
diferente. Eles eram o oposto do abjeto navio negreiro que foi uma das
primeiras prisões modernas e, ao mesmo tempo, uma das primeiras fábricas modernas,
e esse vínculo tem tudo a ver até hoje. Eles também eram grupos multirraciais, escravos
que haviam escapados, tinham outro contato com as populações ameríndias, outra
relação com os povos do continente africano, então aqui chamamos barco pirata.
E essa mesa, porque se a gente fala de descolonização do poder talvez seja também
almejar e criar o fim do poder. Então nós somos aqui um barco pirata em terra Guarani
e, por esse motivo, acho que faz todo o sentido começar com a Sandra Benites Ara
Rete.
Sandra Ara Reté
Primeiramente
quero agradecer ao convite, me sinto honrada em poder falar na beira da praia
em Parati. Sou Guarani Nhandewa de origem no Mato Grosso do Sul. Parati é Para Ty
(foneticamente é algo parecido com o som de ã mais puxado para o i). Na língua Tupy
e na língua Guarani, Para é mar, ty é onde tem muitos mares, ilhas. A língua portuguesa
tem muita dificuldade de falar Y que pra gente é água. Em português usa I para
Y mas para a gente tem outro significado.
(Zé Celso
convida o público presente para falar na língua tupy PARA Tÿ)
Atualmente
existem no Brasil 305 etnias que são identificadas como etnias, mas aqueles que
são aldeados, que moram nas aldeias, e 274 línguas faladas. Por exemplo Guarani
e tantos outros, os Kaingang tem a língua como se fosse um espanhol com alemão.
Eu sou Guarani falando com os Kaingang, é totalmente diferente. Por isso que o português
vem sendo importante para a gente por conta da comunicação entre nós indígenas.
Esses são identificados como indígenas e tem vários outros, por exemplo na
cidade do Rio de Janeiro tem muitos indígenas que se chama do contexto urbano,
tem indígena que não se reconhecem como indígena, nem como negro, nem como
branco. E isso nem se discute porque tem muitos parentes indígenas que perderam
o vínculo e perderam suas origens, de onde vieram, a qual etnia pertenciam.
Eles ficam nessa angústia também. Isso não tem sido discutido, isso é uma questão.
No Brasil, as cidades que invadiu a aldeia. Isso aqui era uma aldeia e hoje é
uma cidade. Como Patary tem tantas outras.
Itaorna: ita –
pedra mas que não é resistente. (Orna[1] – como se fosse podre.
Pedra mole ou pedra podre). Vocês viram que a usina nuclear[2] na época. Na língua existe
conhecimento, quero falar um pouco disso.
O que é
DESCOLONIZAR? Eu não entendo o que é isso na língua portuguesa porque não é a
minha língua. Eu tenho que adaptar essa palavra de uma forma que faça sentido
para mim. Eu entendo que é... a gente fala oim-iporã[3]:
encaixar no lugar. Esse ‘encaixar algo no lugar’ quer dizer ‘guardar no lugar
certo’, falar oim-iporã é coisa boa, encaixar a coisa no seu devido
lugar, encaixar. É o desafio para todos nós hoje. Por que digo isso? Eu entendo,
enquanto guarani, enquanto mulher indígena, eu entendo que nós temos as nossas
políticas. Aí já vem outro termo que eu tenho dificuldade de entender na língua
portuguesa mas vamos, digamos assim, comparar... quando eu pergunto para os
meus parentes, na nossa língua não existe uma palavra para política. Palavras políticas,
para os meus parentes independente da etnia, eles dizem que é conversatório.
Io-manguetá: conversar, conversa grande...
Atê guaçú: atê é isso que a gente está aqui, se
juntar para a gente falar. Falatório não é negativo, é uma fala de todos. E aí
está um desafio nosso porque eu acredito que enquanto acadêmica também, para eu
aprender e entender esse outro corpo que eu chamo de corpo território, porque o
nosso corpo também é um lugar de sabedoria. O nosso corpo é o lugar da nossa
sabedoria porque é o lugar do nosso corpo é a gente... onde tem história, tem
espaço, tem o seu lugar. Por isso a educação precisa ser diferenciada para nós indígenas,
tem lei que ampara isso, foi muita luta e sangue derramado de lideranças
indígenas para conquistar essa educação específica para garantir... inclusive
isso está sendo atacado hoje também. Mas isso é importante porque cada lugar
tem sua própria história, tem seu próprio corpo. Estou dizendo isso porque eu
comecei a percorrer e a compreender um pouco enquanto indígena porque eu vim de
lugar diferente, eu tive que não me adaptar mas eu tive que me INCLINAR para
conhecer o outro. Quero dizer que conhecer o outro não é tarefa fácil. Isso te
causa dor também mas eu tive que me desafiar para poder equilibrar o meu
conhecimento. O que é conhecimento? Conhecimento pr’agente é assim... porque se
tem uma outra forma de pensar e, a partir disso que a gente tem que começar a
dialogar para se entender, ou seja, pr’agente respeitar o limite do outro, quer
dizer, o próprio corpo. Por isso que o nosso corpo tem trajetórias, tem
experiência, tem sua história. Tem o seu próprio lugar também. Por exemplo,
quem nora na cidade vai achar que os indígenas que moram nas casas de estuque é
pobrezinho (já ouvi uma criança falar isso)... já ouvi tanta coisa... eu não
culpo porque as crianças ainda não compreenderam o que é ser pobre. Um parente dizia:
pode ser que a gente é pobre hoje porque empobreceram a gente. Mas ele não está
falando de coisas, de objetos, ele está falando de conhecimento, de sabedoria,
de bem estar, do bem estar do seu próprio corpo, ele está falando de ter
autonomia. Quer dizer, pra você colocar, encaixar aquela peça que, da forma que
você pensa, é um enorme desafio porque o outro pensa diferente de você. É por
isso que eu acho que, infelizmente, as nossas sabedorias ainda não foram ouvidas.
Eu vim de uma
aldeia e eu fui para a cidade, eu tive que me inclinar várias vezes, e isso foi
importante apesar da dor que me causou, hoje eu posso dizer o que eu penso. Eu tive
que aprender a falar português, tive que dançar de acordo com a música do local.
Eu tive que aprender a falar, muitas vezes, palavras que não existam equivalentes
na língua Guarani. Por exemplo, na língua guarani não existe palavrão e eu
gostei de aprender os palavrões em português. O palavrão que eu gostei de
aprender e que acho que faz sentido, é o foda-se (rs e aplausos).
Tem tanta coisa
pra falar... vou apenas provocar ou sei lá como chamar isso... eu queria pensar
que hoje eu acho que temos que pensar em dois aspectos o que é o Brasil de
fato. O primeiro aspecto pr’agente entender, para a gente não ser muito... eu
falei que as vezes dá uma tristeza porque o Brasil nos nega enquanto indígenas.
Mas quando a gente aparece em alguma mídia ou algum lugar para falar, pra lutar
pelos nossos direitos, somos mal vistos: “o indígena não tem nada o que fazer”...
A gente recebe isso sempre. O indígena se manifesta, “ele é vagabundo”. “Esses
seres humanos ainda existem?” É assim que a gente vive hoje, como refugiados do
nosso próprio país. E falando em país, pelo menos eu pergunto para os meus
parentes: o que é país? Eles dizem que não existe pais, quem colocou esse nome
e essa divisão foram os não indígenas, esses que querem dominar o outro. Para a
gente não existe país, existe fronteira para respeitar a diferença do outro e
não a terra. Meus parentes dizem isso!
O segundo aspecto
é o processo histórico: como foi construído o Brasil? os indígenas massacrados,
que foram escravizados. Os Arcos da Lapa que foi construído pela mão escrava
indígena, e outras várias coisas que foram acontecendo... toda a violência
contra nós indígenas, isso não é contado. Então, apesar de ser muito triste
para nós, só nós podemos contar isso. Então, como a gente vai descolonizar as
coisas se a gente nega o outro e quer tapar o buraco, quer esconder toda a violência
que o outro sofreu. Nós indígenas somos muito hospitaleiros, a gente recebe
muito bem, quando a gente recebe o outro é sempre com muito carinho o que não é,
muitas vezes, feito com a gente.
Por fim, um
último ponto é esse: saber o saber do outro. Cada lugar tem os seus saberes,
cada corpo tem os seus saberes. Esse é um grande desafio para nós enquanto
seres humanos, enquanto instituições também. É importante se questionar sobre
essas diferenças, eu me questiono todo dia sobre como eu vou lidar com essas
diferenças do outro... nós indígenas não temos essa dificuldade de saber lidar
com o outro, a gente é muito educado para saber receber o outro. Por exemplo: para
nós Guaranis, todas as coisas têm o seu espírito. Por exemplo a água, o mar, o
rio, a mata, os seres da natureza existem seus espíritos. Por isso que quando a
gente vai tirar uma casca, uma árvore para fazer a casa, a gente pede para uydjá[4]. O que é uydjá? São os espíritos
daquele que a gente vai tirar porque é pr’agente consumir por necessidade e não
para a gente devastar porque isso prejudica o outro. Por exemplo, a pedra tem
um uydjá muito bravo. Os nossos antigos dizem que as pedras dos uydjás são
resistentes mas quando elas se desencantam, podem se mudar. Mas para que os
espíritos das pedras se mudem, eles podem fazer tragédias. Isso é o desencantamento
do espírito da pedra.
Ainda sobre
essa questão do espírito, para nós não existem saberes genéricos. As mulheres
tem os seus saberes a partir do seu próprio corpo. Os homens tem também os
saberes a partir do seu próprio corpo. Eu fiz meu mestrado sobre isso para
poder tentar explicar o que é o corpo, porque o corpo é importante, porque o
espírito é importante. Fui pesquisar... por ser guarani e moradora numa aldeia
não significa que eu saiba de tudo, não é isso. Então eu tive que pesquisar com
os mais velhos, e eles disseram que as mulheres (meu trabalho foi com mulheres)
e eu fui percebendo que as mulheres guaranis mais velhas geralmente, quem
ensina os meninos são as mulheres, ou seja, as mulheres ensinam os homens. Isso
acontece porque o nosso Nhandecy (a nossa mãe) é da terra. Ela é chão. A nossa
mãe é a terra. Elas contavam essa história para os meninos e diziam: tem que
saber pisar. Os Guaranis tem dança do guerreiro, mas o pisar da dança do
guerreiro não é para ser forte, é para ter corpo leve e pisar leve. Homem de
verdade significa pisar leve. Temos aí todas as danças, esse corpo que eles vão
ensinar a ter um corpo paciente exatamente depende de vários elementos que tem
entorno, por exemplo o rio, mata e tal. Eles vão aprender a retirar, fazer
ritual para ir retirar essa árvore, fazer ritual para pescar. Então, se não
existe mais terra, não existe mais mata suficiente para eles darem continuidade
a essa sua sabedoria enquanto homem, isso está resultando em vários suicídios
de meninos indígenas no Mato Grosso do Sul. No meu entendimento (não sou
especialista), percebo, me parece que eles não estão encontrando o seu próprio
lugar. Lugar de ensinamento, lugar de aprendizado porque isso depende muito de
lugar também. O espaço e o movimento e os elementos que dão suporte para esses meninos
para eles se identificarem como meninos... estou falando de ser, como devem
agir, eles vão construindo durante esse ritual, durante cada etapa da vida
deles. Para finalizar, eu pude perceber esses problemas que a gente está
enfrentando hoje, e as mães dizem que (eu lembro da minha avó que me dizia...)
toda vez que elas ensinam os meninos a terem corpo ativo, um corpo alegre.
Homem verdadeiro na língua Guarani significa homem alegre, ativo, homem
saudável é isso. Os homens tem que desconstruir aquele mal humor, tem que ter
paciência... E tudo isso os meninos vão construindo durante esse processo do
ritual. Esses problemas são as tragédias para a gente.
Falando da
Nhandecy que é o corpo da mãe terra, o chão que a gente pisa, é o corpo feminino
por isso que a gente tem que respeitar... no dia que o corpo feminino não seja
respeitado, eles diziam que o mundo pode se revoltar contra a gente mesmo. Não à
toa a gente fala do homem, a humanidade, o homem.... essas coisas todas eu
venho tentando entender a partir da minha língua, da sabedoria dos meus
parentes para poder entender um pouco. Eles falam essas questões... A gente tem
essa ideia de que a gente tem que aprender a abraçar o mundo porque o mundo não
vai te abraçar. Porque o mundo são vários, ou seja, o mundo somos nós mesmos.
O que mundo nós
queremos para nós enquanto humanos? Enquanto mulher, enquanto criança... a
gente olha e cumprimenta o outro. O Nhandecyr é o chão, e a figura masculina é o
próprio o ar, o vento que a gente respira. Um cumprimenta o outro, em
equilíbrio. Não existe na nossa língua uma palavra para igualdade, o que existe
é equilíbrio. Obrigada.
José Celso
A tua fala é a fala de uma das melhores filósofas brasileiras atualmente. O pensamento indígena atualmente é o pensamento
mais comunicativo que existe. Eu acho que nessa feira talvez a sua fala tenha
sido das mais tocantes porque é muito concreto, muito concreta. Minha avó era
índia, então eu tenho um verdadeiro culto à cultura indígena. Minha avó era
índia tupi lá em São Paulo, casada com um português celta, mas a minha avó me
ensinou muita coisa. E minha bisavó que já estava doida, plantando bananeira e
rindo, velhinha.
Desde que descobriu um grande autor brasileiro,
acho que um dos maiores poetas do
mundo que é Oswald de Andrade, ele é muito conhecido
no Brasil por ter feito o modernismo mas de repente 1928 e falou: “Eu não sou
mais moderno. Agora eu sou o primeiro poeta do mundo pós-moderno fazer uma pós
moderno”. Mas pós moderno para ele é um retorno à perspectiva dos índios, ele
retorna à antropofagia e ele ensinou demais com a antropofagia. Eu pude ir
atrás de saber que eu vejo em você é muito concreto.
A psicanalista Suely Rolnik, é muito parecido com o que você disse. A subjetividade como um corpo, como o lugar que ocupa... Tudo o que você disse é novo e, ao mesmo tempo, tudo o que você disse é o que existe de mais... (não gosto dessa palavra) vanguarda. Esse povo aqui presente, eu acho que esse povo está muito próximo do que você fala. As pessoas que estão te ouvindo, talvez nem elas imaginem o quão próximo elas estão do que você está falando. Por exemplo, pro movimento das mulheres, o que ela falou aqui é uma coisa cósmica, uma coisa maravilhosa, filha da mãe Terra, uma coisa extraordinária.
O Ailton Krenak, fiz uma mesa com ele e ele fez uma pajelança, me pintou todo. Adoro ele. Eu falei: “me vira índio de uma vez”. Na frente de todo mundo ele fez uma pajelança e eu fiquei muito feliz e me sinto cada vez mais índio. A tendência cultural do Brasil neste momento... Este homem aqui: Jean Tible. Parece nome daqueles franceses que escreveram sobre o Brasil no tampo da França Antártida... mas ele é de agora e escreve Marx Selvagem. Ele parte do Oswald de Andrade, esse antropófago, dizia para comer o marxismo, comer. Marxilar... Jean partiu daí e fez um estudo profundo do tempo que o Marx estudava, com o Engels, as sociedades primitivas. O Jean chega aos Yanomamis e a uma equação contemporânea que é... porque a grande contradição hoje do capitalismo especulativo, aquele de renda, o Thomas Piketty diz que viaja até lá em cima e fica para uma pequena minoria, a contradição é o índio, o pensamento do índio, não é mais o operário. Nós temos que aprender com os índios. Eu acredito nisso como eu acredito em mim, eu acredito na vida... Então vamos aplaudir mais o que a Are Reté falou... porque ela está séculos avançadas porque a grande coisa agora é voltar no tempo. É como dia o Oswald: as qualidades bárbaras mas tecnizadas. E o índio sempre foi tecnizado.
Quando nós
começamos a trabalhar no teatro oficina com o vídeo, a gente vê os índios
entrando nas repartições logo depois da ditadura e cercando as mesas, e todo
mundo queria ver o vídeo... nós mostramos que foram os índios que começaram. O
Oswald falava que nós temos que conservar as qualidades bárbaras, ou seja,
aquelas que não são ocidentais cristãs como a pátria, família e essa merda
toda. São as qualidades bárbaras... porque o Bárbaro, o Euclides dizia: Eu
quero ser bárbaro, quero ser antigo como os antigos. Porque o chamado bárbaro é
aquele que não está nessa sociedade, é o que está fora. E nós somos bárbaros
porque nós conservamos as qualidades mais primitivas do ser humano: a grande
paixão pela terra, o amor pela terra. O Euclides da Cunha, ele escreveu um
livro porque ficou apaixonado pelo lugar, pelo povo do lugar. Ele foi junto com
o exército para matar mas, de repente, ele viu a natureza, levou um susto com a
natureza... com a seca, com aquelas árvores que estão na seca e quem tem água
dentro. E de repente, o povo.
Mas voltando ao
Marx Selvagem. Esse livro é muito importante, está na terceira edição (mostra o
Marx Selvagem) e é importante. Eu fiz dois prefácios para esse livro porque o
Marx Selvagem que interessa. Marxilar, aquilo que se liga a esta cultura da Ara
Reté, que ela traz no corpo, de que ela fala e fala bem. Ela fala bem! É demais
porque na busca da tradução da língua dela para a nossa língua ela encontra uma
coisa maravilhosa e que é rara: a eloquência. Não é a eloquência da
universidade, aquela coisa abstrata. Ela fala concretamente mesmo. Eu acredito
em cada palavra que ela fala. Eu não sei se vocês sacaram a grande qualidade
desta mulher, desta mensageira. Eu saquei, eu fiquei muito impressionado.
Transformado, muito.
Amanhã eu quero
voltar aqui para ler um texto do Machado de Assis sobre Canudos: Tudo Pirata.
Éééé, ele ficou apaixonado com o que aconteceu em Canudos. Disse: Isso é poesia
pura. Porque, veja: ele estava naquela vidinha rotineira, Machado de Assis,
tudo é marcado, até o túmulo tem uma marca... é um texto extraordinário e que
eu felizmente trouxe e tenho que ler aqui. Eu quero sagrar a pirataria através
do Machado de Assis, um escritor negro que teve a grandeza de captar a
importância do surgimento do povo de Canudos, que era um povo mestiço. Lá tinha
negro, lá tinha índio, ex-escravos, tinha branco, enfim tinha de tudo, tudo
misturado. Eram as pessoas que foram seguindo ele porque... ele amava uma
mulher que dava para muita gente, uma mulher livre de sexo livre. O Antônio
Maciel[1], primeiro nome do Antônio
Conselheiro, em cada cidade que ele ia a mulher traia ele (eu não gosto dessa
palavra porque não se trata de traição. É outra coisa. Como diz o Sócrates: a
fidelidade não a uma pessoa mas a fidelidade ao amor, onde quer que ele soa)
Então uma mulher livre, vai de cidade em cidade mudando porque no nordeste
quando acontecia isso eram MATA, MATA, MATA e tinha que mudar de cidade. Até
chegar num lugar que a mulher se apaixona por um sargento e some com ele. O
Antonio fica doido e desbunda, saiu andando feito um maluco. Ele não se vingou
como fez Euclídes da Cunha... a mulher do Euclides foi viver com o Dilermano,
um oficial do exercito que era mais jovem que ele e o Euclídes foi com um
revólver para tentar matar Dilermano. Ele não aprendeu nada com o Conselheiro
porque este fez diferente... em vez de matar os homens que ficavam com a mulher
dele, ele foi se dando e foi se dando ao mundo, começou a andar, comprou uma
roupa daquele algodão azul... eu fiz o papel do Antonio Conselheiro e aprendi
muito com esse cara. Na USP dizem do messianismo brasileiro e blábláblá... não
é nada disso. Ele fez a segunda cidade maior da Bahia com 25 mil habitantes. Se
ele estava preocupado com o céu na terra e ele conseguiu uma comunidade de uma
organização tremenda, pessoas que se auto-organizavam. Ele não cuidava de nada,
ele apenas falava como um pajé. Quem quiser seguir, segue. Quem não quiser
seguir, não segue. Tinha os que se ocupavam da guerra, os que ocupavam da
igreja, da comida, das roupas, uma organização autogerida. Esse povo foi todo
fugido para lá porque, quando veio a república quiseram cobrar impostos numa
cidadezinha e o povo... por exemplo, impostos sobre quem tinha carneiro, quem
tinha um bode, quem vendia comida no mercado, aí houve uma rebelião popular.
Houve uma rebelião violenta e os seguidores do conselheiro fugiram com ele para
um lugar onde se escondiam os bandidos, no centro da Bahia, um lugar muito
seco, terrível. Pouso Tabú, o lugar onde ninguém ia, um esconderijo. No teatro
a gente estuda muito, foram praticamente 10 anos dedicados tanto a construir e
mostrar as 5 partes da peça no Brasil, na Alemanha.
Na linguagem da
época falavam raça inferior mas não se tratava de racismo. Eu sempre soube que
eu sou de uma raça inferior. Adoro ser de uma raça inferior, assim somos
chamados. Eu sou descendente de índio, de Celta, imigrante pobre da Itália e da
Espanha. Sou um vira lata. Mas todo vira latas tem qualidades que as pessoas
que são do sangue puro, do sangue azul nem imaginam. Os que colonizam nem
imaginam porque colonizar é chegar no lugar, tomar o poder com armas e
evangelizar. Hoje tem a evangelização e tem a tomada de poder.
O Brasil hoje é
um grande Canudos. Quando a guerra acabou, os soldados voltaram para o Rio de
Janeiro que era a capital e não receberam o soldo por seus trabalhos. Então,
foram morar no morro e, a exemplo do que viram em Canudos, denominaram Favela[2]. E hoje, aquela imensa favela
e aquele imenso litoral é O Sertões. Está em tudo hoje no Brasil esse povo que
agora tomou o poder, um povo ignorante, nem imagina... olha, Are Reté, você
precisa dar uma aula para eles. Eles acreditam em mito, são estúpidos. Eu tenho
82 anos e nunca vi tanta ignorância no Poder, nem no período militar. Essa
ignorância é prepotente, ela se arma, ela quer colonizar e ela tem uma religião
para colonizar. O capitalismo descobriu uma religião aqui que é o
neopentecostal que espetaculiza, faz as pessoas quererem enriquecer, uma
revolução do dinheiro. Para ficar rico tem que ser pentecostal... só pensa em
dinheiro. Só tem $$ na cabeça, não vê as coisas como são.
O Brasil está
sendo recolonizado pelas igrejas evangélicas. Eu sei que tem exceção mas a
maioria é colonizadora porque mistifica... pra ficar evangélico o cara não
precisa fazer nada, ele se torna e começa a pregar besteira para as pessoas.
Quer fazer a cabeça para a pessoa ficar rica. A primeira coisa a fazer é ficar
rica, é se vestir de escuro. No sertão as pessoas de chinelo, à vontade, e os
evangélicos vestidos de preto, de terno e tal. Tem que subir na vida com a
bíblia do lado. A bíblia não é nada perto dos Sertões. Os Sertões é um
ensinamento muito maior que a bíblia para nós brasileiros. Poque a bíblia
depende de você acreditar num messias que vai chegar. Isso não existe. Oswald de
Andrade escreveu uma tese filosófica, A crise da Filosofia Messiânica[3], que não passou na USP, a
crise da filosofia messiânica: não tem messias, não tem uma coisa que virá do
além, não tem um mito (o mito micou, micou). Mas a colonização está se dando
sempre através dessa religião messiânica que é a religião do dinheiro mesmo.
Isso entra na cabeça da pessoa e ela vira burra mesmo, a pessoa não conhece
nada além da bíblia e... então só o messias mesmo para salvar, mais nada. E,
pior, o messias é o dinheiro porque é ficar rico. Deus é um cifrão, na cruz
está enrolado um cifrão como o símbolo. As pessoas rezam pela cruz do cifrão. É
JESU$. Essa é a colonização agora.
A pessoa perde
a cabeça, perde a autonomia, perde o corpo, não sabe de si. É como diz o Luiz
Melodia: não sabe das coisas.
Tente entender
esse seu novo engano[4].
Luiz Melodia
foi preciso na filosofia sobre as coisas: é preciso saber das coisas como a Are
Reté sabe das coisas, sagra as coisas, inventa em torno das coisas.
Fala de Jenifer
Nascimento, pela mandata de Érica Malunguinho, deputada estadual por SP,
primeira deputada trans do Brasil.
- Microfone
aberto, provocações e falas posteriores.
Are Reté:
Quando eu falo de nossos saberes, do nosso corpo, usando as tecnologias, é
importante nós indígenas se reinventar. Mas reinvenção dá ideia de civilização.
Ainda bem que nós não somos civilizados totalmente no Brasil. Estaríamos
perdidos. Como se diz em português, estaríamos ainda mais fodidos. E a nossa
resistência enquanto quilombo, enquanto indígena, os indígenas aldeados
enfrentam a questão do suicídio mais de perto por que? Porque a agressão aos
indígenas é de muitas formas... na aldeia está sua sabedoria, sua resistência,
nossa forma de estratégias de resistir também está ali, nossa sabedir aiestá
ali. Quando se fala ‘emburreceram a gente’, eu entendo: quando você não
consegue ouvir o outro, você está sendo colonizador. A escola faz muito isso:
você estuda a questão de outo lugar mas nunca... sou professora. A gente não
estuda a história local, não estuda a história do estado... A gente quer
discutir, quer saber da guerra mundial. A gente está vivendo lá ainda... para
cegar a gente. Para a gente não resistir, iludir a gente, nos levar a pensar
que ficaremos rios. A nossa sabedoria é super importantes. Para você saber
criar outra estratégia. Mas eles estão fazendo com a gente há muitos anos, por
exemplo: eu moro na cidade, percebo que matam...
Vou dar o
exemplo da Aldeia. Em 2016 foram assassinados 3 adolescentes. Não tem mais mata
ao redor da nossa aldeia, o que tem é fazenda com rio, com mata, com gado numa
terra enorme. Do nosso lado não tem mais nada. Mas para existir nosso ritual,
os meninos começaram a pular a cerca... para chegar no rio tem uma cerca. Onde
os meninos vão aprender a nadar, construir um corpo paciente? Mas os
fazendeiros mataram e depois alegaram que os meninos invadiram a fazenda para
roubar. Mas roubar o que no rio? Mataram os meninos e ninguém foi preso... A
coisa vai por aí. Os meninos se sentem inúteis, literalmente, porque não tem
mais o que fazer dentro da aldeia. Eles vão se matando. Eu ouvi dizer: Não
larga a mão de ninguém... e um desafio. Realmente temos que pegar a mão do outro,
mas respeitando a diferença, e isso é um grande desafio para todos nós. Pegar a
mão e respeitar o limite do outro. Se o indígena não consegue chegar aqui,
alguém tem que falar.
Eu corro para
lá e para cá falando sobre as mulheres indígenas. As mulheres indígenas no
Brasil não discutiram o que é ser mulher indígena porque ainda estamos
discutindo o genocídio, a discriminação que a gente sofre. Por exemplo, quando
eu chego arrumadinha, bonitinha como estou agora, entro em qualquer lugar, todo
mundo fala comigo em espanhol. Ou sou peruana, ou colombiana, menos brasileira.
Isto significa o nosso apagamento, somos desconhecidas, discriminadas e sequer
lembradas. Então é uma coisa muito terrível, mas as mulheres tem uma questão, o
nosso corpo é o chão, a gente resiste. Lembrei quando o José Celso falou que na
nossa língua as mulheres são loucas naturalmente. Nós somos loucas mesmo. A
gente arrasa quando quer arrasar! Somos malucas e poderosas. Maluquice também
quer dizer o poder.
Para piorar,
bem recentemente, 3 parentes indígenas foram presos por policiais ambientais.
Eles foram tirar taquara, instrumento típico para as mulheres, mas os homens
que buscam na mata. Não tinha no entorno da aldeia, eles pegaram 3 taquaras
cada um no total de 9 taquaras. Foram presos e obrigados a pagar 5 mil reais
por danos ambientais... como é isso? É muito violento. Como a gente vai
reverter essas questões. Estou pedindo pra vocês pensarem conosco como
construir um processo de reverter isso.
Os parente
presos foram no Paraná. Os meninos que se suicidam são do Mato Grosso do Sul.
Zé Celso
É importante
que esta fala chegue lá nesses lugares. Porque tem muita gente no Brasil e no
mundo procurando soluções para essas questões. Descobre-se maneiras de
trabalhar isso. Agora é preciso que isso chegue em muitos lugares. O que é dito
aqui devia ser muito divulgado nacional e internacionalmente. Porque é um saber
novo e que salva a vida.
Are Reté
Os fazendeiros
não foram presos. Alegaram que os meninos pularam cerca pra roubar. Por
legítima defesa, 3 crianças foram assassinadas. Crianças com vara de anzol e
homens com revolver. Se eu não falar, isso não aparece. E quando alguém conta
isso diz: são vagabundos, não trabalham, só roubam.
Além de a gente
sofrer violência e apagamento, ainda aparecemos distorcidamente. A quem
interessa isso? Aos próprios fazendeiros. Se isso também interessar ou não
interessar a cada um de nós aqui, é bom a gente falar sobre isso e divulgar.
Zé Celso
O Lula[5] nasceu em Caetés, na
região onde começou a história do Brasil Segundo Oswald de Andrade. Os índios
Caetés devoraram o bispo Sardinha que ia para Roma buscar mulheres brancas para
transar com os portugueses porque eles não queriam a mestiçagem. A história do
Brasil começa quando os índios Caetés devoram o bispo Sardinha com toda aquela
roupa... Eu fiz o bispo Sardinha no Sertões. Então você tem que descascar
aquele bispo inteiro para comer, descasca e come. Isso é o Brasil, é a
antropofagia e o Oswald diz que começa aí a história do Brasil e não na
primeira missa. O Lula nasceu ali. Ele é um ser em transformação permanente.
Veio de pau de arara para SP, foi líder sindical, de líder sindical passou a
ser uma das figuras mais importantes no final da ditadura onde os movimentos
sindicais passaram a ter uma relevância política muito grande. Foi candidato
várias vezes a presidência da república, foi fakeado pela Globo no debate com o
Collor. A Rede Globo cortou as falas dele e montou toda uma coisa a favor do Collor.
Ele venceu as eleições em 2002, ano que abriu para uma perspectiva que o Brasil
não tinha. Ou melhor, teve um pouco no Getúlio Vargas e no Jango[6]. O Jango ia fazer uma
coisa maravilhosa, Jango, Brisola, iam fazer reformas de base que ainda hoje
são necessárias. Eram latifundiários mas tinham a compreensão política da
necessidade do Brasil. Não tinha comunismo, nada disso, isso foi uma invenção
para viabilizar o golpe de 64. Eu era do PTB jovem, um partido com relação com
o mundo inteiro, negociava com a URSS, com EUA, Índia, Cuba, África, tinha uma
posição independente no mundo. Não tinha nada a ver com comunismo, era uma
democracia social forte por reformas. Os militares deram um golpe com a
desculpa que era comunista, fizeram a caça aos comunistas. Mas era uma visão
brasileira que a geração do Darcy Ribeiro, Lina Bardi, Celso Furtado, que foi
construída. Tive uma sorte incrível de viver essa experiência, de conhecer os
Institutos de Estudos Brasileiros[7], porque a gente
estudava... O PTB, vocês nem imaginam o que era, muito diferente o partido de
hoje que é um lixo, naquele tempo o PTB era um grande partido.
Mas o Lula é
eleito. Em 2002 começou uma revolução no Brasil. Uma grande transformação no
Brasil. Pela primeira vez chegava alguém preocupado com a distribuição da renda
e com a cultura, uma coisa ligada a outra. Imagina que para ministro da cultura
ele escolhei o Gilberto Gil, um tropicalista, um antropófago. Poque o PT tinha
um programa terrível, Stalinista, careta mesmo. E ele abdicou. Engraçado, numa
conferência de apoio a candidatura do Lula no Pão de Açúcar, eu disse para o
Lula: a coisa mais importante é o ministro da Cultura e não o ministro do
dinheiro, do Banco Central... o ministro que cuida do dinheiro. Não! Importante
é a cultura. Eu não sei se ele me ouviu mas ele escolhei o Gil. Antropófago,
nada a ver com a coisa stalinista do PT. Lula deu um chute naquele programa.
Colocou o Gil e depois o Juca de Oliveira, um ecologista. Eu recebi no
candomblé internacional, eu recebi o título de Exú senhor das artes cênicas,
que é o título que eu mais me orgulho. O Juca recebeu o título de senhor das
florestas, Oxóssi. Foi uma época cultural maravilhosa, corremos o Brasil todo
com os Sertões. Chegamos em Canudos, Quixeramobim, terra do Antônio Conselheiro.
Fomos para o exterior. E fizemos outros circuitos com as dionisíacas, as peças
bacantes. Um momento para o cinema, para o teatro.
Nessa época, o
Lula não tinha um olhar forte para os índios. A própria Dilma foi construir
Belo Monte sob protesto dos índios. Eu me lembro de um comício quando o Lula
era candidato, ali no Rio de Janeiro, e a Sônia Guajajara fez o maior sermão
pro Lula... vocês não fizeram nada por nós! Na tremenda eloquência dela,
maravilhosa. Lula foi concordando, ficou bobo, pediu para ela sentar do lado
dela. Acho que o Lula nesta tragédia de ter sido retirado pelo Moro da eleição,
de ser preso... O moro cometeu um crime, é o maior corrupto porque corrompeu a
democracia... o Lula seria eleito mas a própria prisão, o Lula está lendo muito.
O Lula é um cara em movimento, ele está crescendo cada vez mais e ele, com o
sofrimento que ele teve na prisão, que ele aceitou, ele assumiu a prisão para
defender a própria inocência, e tudo o que ele agora conhece sobre os indígenas
que ele não conhecia, porque ele vem da terra dos índios. Mas atualmente ele
está ligado a todos os movimentos. Porque os movimentos cresceram no Brasil
também: negro, indígena, diversidade sexual, movimento das mulheres... a
maioria da população brasileira. Lula é receptivo, é um democrata, ele sabe
negociar, sabe dirigir um país. Tanto que apesar de ser um governo cujo vice
era ligado ao sistema colonial, ele gostava, ele conseguiu fazer o Brasil se
comunicar com a África... era considerado um crime ele ter levado a Odebrecht
para a África, para Cuba, porque não admitem essa política maravilhosa do Celso
Amorim que hoje está nas mãos de uma besta, nem sei o nome do idiota,
terraplanista, ignorante. Não sabe das coisas, não sabe de nada. Enfim, tem que
sair de cena.
Eu tenho a
impressão que o Lula está pronto para reassumir uma democracia que contemple
tudo isso agora, o movimento indígena, os movimentos todos... agora não é mais
operários, com dia o Marx Selvagem, na luta dos indígenas eu coloco toda a luta
porque os indígenas são negros e indígenas. Os índios não se deixavam
escravizar e isso foi muito bom. Os negros foram trazidos à força, é ainda
pior. os negros são ex escravos, o problema maior para mim é a dívida que não
foi paga pelo trabalho escravo que foi feito, eles construíram todo o Brasil
colonial e nunc a ganharam um tostão. A abolição liberou mas deixou numa
situação muito difícil. A escravidão é uma coisa de colônia...
No movimento
que está acontecendo aqui hoje e no Brasil todo, o maior movimento de massa foi
aquela maré dos estudantes, foi muito forte. É preciso ter confiança, acreditar
nisso e lutar poque, no sentido desta multiplicidade. Ao mesmo tempo que nós
estamos batalhando contra isso, nós estamos aprendendo com os índios, com os
negros, com os travestis, estamos aprendendo com as mulheres. A gente é outro
porque a gente não resiste, a gente reexiste. Para enfrentar um poder forte
você não pode ficar (lamentando): podem me prender, podem me bater... não, você
tem que se inventar de novo, a cada vez e sempre. Nós estamos nos reinventando
aqui e agora, em Paraty e num barco pirata. Aqui é um passo avançado, aberto,
escancarado: barco pirata. Nós estamos de além do bem e do mal.
[1] Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, nasceu em 13 de
março de 1830, na atual cidade de Quixeramobim, no Ceará.
[2] A origem do termo
"favela" encontra-se no episódio histórico conhecido por Guerra de Canudos.
A cidadela de Canudos foi construída junto a alguns morros, entre eles o Morro
da Favela, assim batizado em virtude da planta Cnidoscolus quercifolius
(popularmente chamada de favela) que encobria a região.
[3] https://antropofagias.com.br/2020/05/14/a-crise-da-filosofia-messianica/
[4] Referência à canção de Luiz Melodia, Pérola Negra.
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=8YO4wP0aC6o>
[5]
Referência a Luís Inácio Lula da Silva
[6]
João Goulart.
[7]
Deve estar se referindo aos CEBs – Centro de Estudos Brasileiros
[1] Nota:
encontrei referências a um conhecimento sísmico dos Guarani nesta região.
[2]
Ela está provavelmente se referindo à praia de Itaorna em Angra dos Reis/RJ.
Originalmente uma aldeia onde foi construída a Central Nuclear Almirante Álvaro
Alberto. https://pt.wikipedia.org/wiki/Praia_de_Itaorna
[3] a
grafia está imprecisa.
[4] Talvez essa não seja a grafia correta.
Pandemia de saudade
Seria uma aula?
Quem de nós imaginaria, em dezembro passado, que este 2020 seria assim? Caminhando para o final do ano poderíamos falar um pouco da Política, do ponto final do Padaria no poder executivo local, ou de um país paralelo pilotado pelo patético Presidente, pálido, impopular, e sua prole de zeros em pactos de poder pelo poder. Pretendo, portanto, partilhar um pouco a respeito de palavras que, suponho, sejam mais potentes. 2020 foi pautado pela pandemia que impactou particularmente a vida das escolas em todo o país. Pude, por felicidade, participar, acompanhar, perceber os impactos disso em algumas escolas públicas e particulares. Partimos na ponta da língua do P para pensar a palavra Pensamento em aproximação, pertinho, par e passo com a palavra Aula.
O que seria uma aula? Algumas definições são possíveis. Vamos partir de uma bem bonita: Aula é pôr em movimento a matéria pensamento. Assim, aula e pensamento são dimensões indissociáveis. Pode haver aula sem pensamento assim como pode haver pensamento sem aula. Há quem considere uma boa aula aquela que coloca o pensamento para pensar. Por ser uma matéria, o pensamento tende ao repouso e, em repouso pode permanecer, parado, imóvel, inerte. Para sair desse estado de repouso, para sair da inércia, ele precisa ser violentado. Isso mesmo… Um exemplo pode nos ajudar: o carro parado numa rua plana, sem bateria. Vira a chave e nada. Sem funcionar o motor, o carro permanecerá ali, parado. Então o motorista pede ajuda, algumas pessoas empurram o carro, o motorista dá um tranco e pronto, motor funcionando. Com o pensamento é parecido: um empurrão, um tranco, um solavanco, uma provocação, uma boa pergunta e pronto, o pensamento pode estar se movimentando.
Claro que podemos falar do pensamento como uma atividade orgânica. O coração bate, o pulmão enche e esvazia, o sangue circula e a cabeça pensa. Mas estamos falando de uma definição que afirma o pensamento como uma matéria que entra em movimento num determinado tempo e espaço delimitado que chamamos de aula. Compreendida desta maneira, uma aula acontece quando o pensamento recebe um empurrão e, com isso, entra em movimento. É precisamente aí que começamos a pensar.
Neste período de isolamento social, de escolas fechadas, de professoras/es e alunas/os se virando como podem, acompanhei algumas aulas. Sete horas da manhã, livros abertos sobre a mesa ao lado do computador emprestado e uma pequena aluna do 8º ano ouvindo atentamente à fala empolgada da professora. “Adoro minha professora de História”, disse a aluna. Algumas horas dedicadas à aula de história e muitas conversas aconteceram, boas conversas reveladoras do pensamento-movimento. Fiquei pensando no trabalho da professora para preparar e oferecer uma boa aula mesmo que pela internet, e falar de histórias de modo a dar um tranco e colocar em movimento o pensamento da aluna. O meu também. Nem datas, nem nomes de heróis nacionais, sem apologias e cultos, nem tenentes e capitães mas perguntas, boas perguntas e provocações. Empurrões para o pensamento pensar naquela aula, apenas uma aula.
Ivan Rubens
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro do dia 01/dez/2020
Terra, vida e voto.
Tanto mar
Dia desses, arrumando meus cadernos, textos, organizando o material de estudo na tentativa de organizar as ideias, em meio aos trabalhos de estudantes da geografia encontrei uma anotação minha. Muito interessante re_ver, re_lembrar, re_sentir o estado passado passando para o estado presente, numa espécie de atualização. O bilhete tornando atual um episódio passado.
Já não me lembrava do pequeno relato mas, ao ler o bilhete feito por mim para mim mesmo, tudo voltou imediatamente como se eu estivesse re_vivendo aquele dia. Talvez um geógrafo escreva na medida que se inscreve na paisagem, na medida em que transita na cidade. Tudo nítido em imagens coloridas, em sensações, em descobertas. Tudo isso estava nas poucas palavras daquele bilhete que, inclusive, sussurrou o fundo musical imaginário:
Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim
Aconteceu em Curitiba no ano de 2018. Durante um trabalho de campo fui parar no marco zero da cidade. Na Galeria Júlio Moreira, uma escola de xadrez com muita gente praticando. Conheci a Sala Ivo Moreira (1949-2010), músico do rock e do blues, a Igreja da Ordem datada de 1737. A Casa (historiador) Romário Martins é um Centro de Cultura e Arte onde observei remanescentes da arquitetura colonial luso-brasileira. Numa das placas eu li que Mário Soares, então presidente de Portugal, esteve ali naquela casa exatamente como eu estava naquela tarde. Pensei na revolução dos cravos e a canção do Chico Buarque surgiu em sonoridade imaginária. Tanto imaginária quanto real. Tanto mar diz assim:
Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar / Lá faz primavera, pá / Cá estou doente / Manda urgentemente / Algum cheirinho de alecrim
Saí da casa e continuei errando movido por um desejo incontido de encontrar mais marcas das camadas e camadas de humanidade e de cultura na arquitetura, na urbanidade. Até que me encontro com Paulo Leminski, curitibano, poeta e professor (1944-1989) numa parede. A poesia se chama Amor Bastante:
Quando eu vi você / Tive uma ideia brilhante / Foi como se eu olhasse / De dentro de um diamante / E meu olhar ganhasse / Mil faces num só instante / E você tem amor bastante.
Você que está lendo este texto e conhece a canção Tanto Mar de Chico Buarque talvez esteja percebendo algo diferente na letra. Esta canção teve sua primeira versão censurada pela ditadura militar em 1975. Em 1978 Chico escreveu uma segunda versão que, gravada, tornou-se conhecida do público. Iniciamos este texto falando de atualização e, de alguma maneira, brasileiros e brasileiras atualizaram a ditadura ao eleger o capitão, mero representante mal acabado do autoritarismo, do machismo, do negacionismo fascistóide que emerge das profundezas de nossas catacumbas coloniais.
Dedico a Zuza Homem de Melo, falecido no dia 04/outubro.
Ivan Rubens Dário Jr
A roda está viva
Tem dias e dias. Tem dias que estamos assim e tem dias que estamos assado. Tem dias que sentimos muita coisa interessante e tem dias que sentimos um imenso vazio. Quem nunca sentiu um vazio? Um vazio que parece ocupar tudo, parece te ocupar por inteiro, um vazio que pré_enche. Ficamos cheios de um vazio angustiante. É como uma roda gigante: ora está em cima, ora em baixo.
A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira prá lá
Tem também dias de intensa alegria, dia que o céu parece mais azul, o ar parece mais fresco e uma alegria te toma, uma sensação de que o corpo quer brincar, quer dançar. E você se sente pleno, senhor de si e senhor do tempo, faz planos, projeta no futuro aquilo que deseja realizar. Mas alguma coisa acontece e tudo escapa por entre os dedos.
A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a viola prá lá
Tem dias que nos sentimos loucos, fazemos coisas que estão completamente fora da ordem, fora do normal. De que ordem estamos falando? De que normal? Da norma que se estabelece! Mas quem estabelece as normas? Hum… Talvez a nossa loucura não seja tão louca assim, talvez seja apenas um sinal que estamos enxergando a loucura que tomou conta do mundo. Estamos falando de uma pequena loucura que significa uma compreensão da grande loucura do mundo: essa norma, essa normatização de um modo de vida que destrói, que mata, que despotencializa, que desvitaliza.
O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade prá lá
Apesar das normas, da domesticação, da desvitalização, um corpo dança: mulher negra grá_vita. Dança livre das normas, livre das sanidades, livre das camadas e camadas de moral e de ‘bons costumes’ que desencantaram a vida mundana. Ela dá vida à vida.
Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração...
Tudo seguia normalmente até que chega a pandemia e… até respirar está levando à morte. O Coronavírus revela que tratar a natureza como mercadoria, tratar o meio ambiente como fonte de exploração é matar a vida neste Planeta. O governo do Pandemônio é a expressão deste tempo de morte nas relações econômicas e políticas que transborda para as relações sociais cotidianas. Este tempo de morte vai passar.
Roda-viva é uma canção de Chico Buarque.
Ivan Rubens
Geógrafo
Uma Suzano que se faz em mim
Meu primeiro contato com Suzano em sua materialidade concreta foi no 2º semestre de 1996. Me lembro bem, chegamos pelo Miguel Badra, atravessamos a Cidade Boa Vista. Nada de GPS, celular e aplicativos de navegação. Usávamos uma tecnologia politicamente mais eficiente: perguntar para as pessoas na rua, assim ‘navegamos’ até o Jardim Revista. Na mão, um papel com o endereço anotado e alguns pontos de referência. Chegamos. Era, provavelmente uma sexta feira, talvez um sábado.
Depois de acomodado, saí para observar a paisagem urbana, sentir um pouco a cidade que já me agradava. Estudante de geografia, me esforçava em ler as paisagens urbanas, até que, ao escurecer, uma movimentação chamou minha atenção. Na altura da Padaria Sabor Mineiro havia um ato político-eleitoral, um showmício. Muitos candidatos a vereador sobre um caminhão palco. Em 1997, Estevam Galvão de Oliveira assumiu seu 3º mandato como prefeito de Suzano.
Frequentei Suzano habitualmente desde então, morei em Suzano por 10 anos. Em 2014 retomei minha vida acadêmica analisando a experiência do Orçamento Participativo em Suzano que aconteceu durante a gestão do prefeito Marcelo Candido. Era preciso me afastar para poder observá-la de outros ângulos, analisá-la sob outros aspectos. Desta pesquisa misturada com vida resultou o livro Pedagogias da Cidade - Corpos e Movimento. Corpos e movimento, corpos em movimento, cidade é movimento. Suzano está marcada nas minhas linhas de vida, nas relações afetivas, na minha produção subjetiva, na escultura do meu pensamento… Uma cidade não sai da gente mesmo que a gente saia de uma cidade. Talvez nem exista uma cidade, existam cidades, muitas cidades, multipli_cidades. Acho que apareceu a palavra que me faltava: multiplicidades. A cidade são muitas, diversas, complexas. Gosto de pensar com o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, a cidade como obra aberta. Isso mesmo, como materialidade do trabalho humano, coletivo e ao mesmo tempo singular, ou seja, de todas as pessoas e de cada pessoa que contribuiu com seu suor e sangue para Suzano ser o que é hoje, e será amanhã.
E por falar em amanhã, por pensar e sonhar com vida melhor para todos e todas que brotaram desta terra e ou levantaram deste chão, quero, com esta minha rápida passagem por este sítio, te convidar para construir conosco uma cidade colorida, mais bela, mais justa e democrática como a Suzano vista pelos olhos generosos do saudoso José de Souza Candido que falava desta cidade com brilho nos olhos e seu inconfundível sorriso. A cidade pode ser mais.
Ivan Rubens Dário Jr
Marcas na cidade
Você que conhece um pouco Rio Claro certamente já observou as marcas na paisagem urbana. Normalmente elas chamam nossa atenção quando surgem e, aos poucos, vão ficando opacas, vão perdendo a cor e a gente praticamente não olha mais para elas. Tem umas marcas que parecem que estão ali desde sempre, só que não. Elas não são obras do acaso, não caem do céu como a chuva. Pelo contrário, alguém as fez, alguém pagou a conta.
Tenho certa paixão pelas cidades. Gosto de experimentá-las, gosto de conhecê-las, gosto de caminhar, de andarilhar como dizia o Paulo Freire, andar sem um destino certo, errar pelas cidades, assim me apresento a elas e elas vão se revelando para mim. E olha, já andei por algumas cidades brasileiras. Disse que já andei porque não posso dizer que as conheço. Não, não as conheço mas me lembro bem de várias. As cidades nos marcam...
Por exemplo, em Macapá caminhei sobre a linha do Equador, um pé no hemisfério Norte e o outro pé no Hemisfério Sul. Assim, partido ao meio, andei por horas. Tudo imaginação. Enquanto caminhava, minha cabeça também passeava, entretida, entre textos de Ítalo Calvino e outros autores que chegavam para me fazer companhia. Mas voltemos a Rio Claro.
Gosto de pensar as cidades como obra aberta. Explico: cada cidadão, cada cidadã que derrama seu suor nesta terra, que já derrubou seu suor nesta terra estiveram, estão e estarão construindo esta cidade, esta obra humana, material, concreta. Rio Claro é uma cidade de 193 anos com população estimada em 206.424 habitantes, dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para 2019. Estamos pensando nos corpos que trabalharam para levantar esta cidade, aos poucos, do chão; estamos falando das gotas de suor do trabalho e das gotas de sangue que molharam este chão, estamos falando dos corpos que adubaram esta terra. Estamos falando de muita gente… Estamos falando de muitas marcas, milhares delas, milhões de marcas pequenas, imperceptíveis nas obras, nas casas, nas fachadas, nas ruas, nos espaços privados e também no espaço público, no cotidiano da vida urbana. Lembro das ruas enfeitadas para as festas juninas dos bairros, das ruas decoradas na copa do mundo de 1982, fruto das relações de vizinhança. Lembro disso com alegria, uma alegria que brota na infância da minha educação: eu cresci aqui andando de bicicleta nas ruas, experimentando esta cidade, lendo esta cidade. Fui me fazendo nestas ruas, praças, campinhos de futebol e quadras, nas escolas que frequentei e etc.
Portanto, a cidade não é do prefeito. Rio Claro não é do senhor Jesus apesar do anúncio na entrada da cidade pela avenida 29. Rio Claro não apoia o ex-juiz parcial, Rio Claro não apoia o presidente nem sua anunciada política de morte. Tem gente que apoia e até marca a cidade com outdoor. Infeliz_cidade ser do senhor Jesus e apoiar políticas de morte. Cem mil pessoas mortas por Covid-19, é muita gente.
E tem tudo isso, todas essas contradições, todas essas posições e oposições compõem as cidades. Uma cidade é muitas, é mais, é múltipla, é diversa.
Ivan Rubens