3/4 de aula

Leia o texto 3/4 de aula no link abaixo.

3-4-de-aula





ele está publicado no blog da Escola de Ativismo.












3/4 DE AULA



Por Luciana Ferreira e Ivan Rubens Dário Jr

Se você se animar nesta leitura, faça-a como viajante. Não estamos falando daquele/a viajante que compra um pacote de turismo. Estamos nos referindo a um/a viajante movido/a por uma curiosidade, por um desejo de encontrar pessoas, lugares, culturas, movido/a por um desejo de encontros e, neste movimento, procura, busca, encontra-se mesmo que aos poucos, fragmentos, pedaços, porções. Movido/a, enfim, por este desejo de encontros.

É neste movimento que estamos pensando antes com o corpo que com a cabeça. Por isso, atentos/as ao mundo que nos rodeia, nos convoca o olhar e escutar as pessoas, pois o mundo é povoado de pessoas que não são exatamente assim como você e eu. O mundo é povoado por pessoas outras. Neste movimento de vida que passa por ver, ouvir, encontrar, agir, estudar, sentir e pensar, escrevemos este texto.

Vivemos uma situação de dores, perdas, tantas dificuldades que as palavras faltam, fogem, nos escapam. Este momento é complexo:

1) o pior presidente de todos os tempos governa o Brasil;

2) um vírus letal está no mundo.

Coincidência desastrosa que arrasta brasileiros e brasileiras para a morte. A cada dia os números de infecções e mortes aumenta. Publicamos este texto no final de abril de 2021. Completamos um ano de isolamento e vivemos a chamada segunda onda da pandemia. Estranho… saímos da primeira?

Em condições normais os meses de abril colocam em muitas escolas todo um trabalho de preparação para o feriado de Páscoa. Crianças alvoroçadas com ovos, trabalhos com este tema, a expectativa para mais um feriado e o merecido descanso com o feriado. Mas neste ano foi diferente: o sentido de ressurreição, as cerimônias – missas, cultos, almoço pascal com ares de encontro festivo, a partilha dos ovos, grande parte disso foi substituído pelo isolamento social. “Fique em Casa” deu o tom deste final da quaresma. Toda a lógica da ressurreição, do renascimento, da nova vida possível numa mesma vida foi substituída pelo isolamento social. Cuidar de si e cuidar do outro nunca foi tão necessário para seguirmos (enquanto humanos) no mundo e com o mundo.

Entramos no segundo ano de isolamento, encontros em espaços fechados estão proibidos. Mas aula é encontro!!!

Que tempo é esse?

Como está isso?

Como lidar com essa contradição?

A educação escolar está ameaçada de paralisia?

Como professores, estudantes, famílias estão lidando com esta situação?

Fechadas/os desde o final de fevereiro/2020, encontramos Brasil afora muitas realidades, a pandemia evidencia a cada dia a desigualdade social, econômica. E agora está ainda mais evidente a desigualdade digital. É constitutivo da escola acolher as diferenças mas, sem encontrar as diferenças, sem vê-las, sem senti-las, resta ignorá-las? Estude quem conseguir é a revelação de um lamentável salve-se quem puder. São muitas as revelações. Quem está atento viu (e vê) de um tudo: aulas por canais de televisão; Aulas pela internet via plataformas pagas, não pagas; Aulas por materiais impressos distribuídos a cada estudante; Aulas dadas pelos pais; Aulas dadas pelos irmãos mais velhos; Aulas mediatizadas pelas telas, pelo celular; Falta de Aulas por falta de telas; Abandono de aulas, algo que aumentou muito.

Um estudo publicado em janeiro de 2021 pela Unicef aponta que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020 no Brasil. Outros 4.125.429 afirmaram frequentar a escola sem acessar atividades escolares. Até mesmo famílias que conseguem manter uma rotina de estudos com as crianças e possuem internet em casa estão enfrentando dificuldades em manter esse modelo de estudos onde a interação se dá pelas telas. E como nosso interesse com este texto é pensar a aula, perguntamos:

Isso é aula?

O que é uma aula?

Na tentativa de encontrar uma resposta mesmo que provisória, recorremos a algumas pessoas que, cada um à sua maneira, pensaram a respeito disso e desta maneira nos ajudarão empurrando nosso pensamento a pensar mais. O abecedário do filósofo Gilles Deleuze começa com a palavra AULA. Diz o filósofo:





Para mim uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula cada grupo ou estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos… As pessoas tem que esperar… Obviamente tem alguém meio adormecido, por que ele acorda misteriosamente no momento em que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém, o assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção, é tanto emoção quanto inteligência, sem emoção não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento do centro de interesse que pulam de um lado para o outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura.Gilles Deleuze


A professora Karen Rechia e o professor Jorge Larrosa, ela brasileira e ele catalão, também pensam a respeito de AULA. Retiramos o seguinte fragmento de texto do livro P de Professor:


a aula constitui o aluno em aluno (e idealmente em estudante) e o professor em professor. Por isso seu limite é (a porta) tão importante. É ao entrar na sala de aula que o aluno se converte em aluno e o professor se converte em professor. O fato de que a aula tenha algo de solene (como corresponde ao espaço público) é muito importante para isso. Sinto esta transformação, já que ao entrar na sala de aula ganho certa gravidade, algo que exige de mim atenção, uma maneira de falar com cuidado (…) A sala de aula é também uma cápsula atencional muito interessante distinta de qualquer outra (…) eu acredito que na sala de aula não se pode estar “como em casa” (…) é preciso fazer com que a sala de aula seja sentida como um espaço separado, distinto, com suas próprias normas e rituais, um espaço exigente.Trecho do livro "P de Professor"


Vimos acima dois fragmentos de pensamentos a respeito da aula no campo da filosofia e da educação. Veremos a seguir dois fragmentos de aula nas artes. Encontramos no poema denominado Aprendimentos um fragmento do pensamento do poeta mato-grossense Manoel de Barros. Diz o poeta das coisas simples:



(…) Estudara nos livros demais.

Porém aprendia melhor no ver,

no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar

Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.

Se admirava de como um grilo sozinho, um pequeno

grilo podia desmontar os silêncios de uma noite!

Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles, esse pessoal.

Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova

(…) e que a beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela.

O que mais sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.

Manoel de Barros


Engana-se quem acredita que São Paulo tenha sido algum dia o túmulo do samba. Nada disso. Geraldo Filme é um sambista popular nascido em São João da Boa Vista, interior do estado de São Paulo, fundador da escola de samba paulistana Vai-Vai. Talvez você não o conheça pelo nome mas o conheça assim:

Quem nunca viu o samba amanhecer / Vai no Bixiga pra ver / Vai no Bixiga pra ver (…)

Na canção intitulada Garoto de Pobre, seu Geraldo canta assim:




Garoto de pobre / Só pode estudar / Em escola de samba / Ou ficar pelas ruas / Jogado ao léu / Implorando a bondade dos homens / Aguardando a justiça do céu / Seu lápis é sua baqueta / Que bate o seu tamborim / Ninguém olha este coitado / Senhor qual será o seu fim?

Na escola de samba da vila / é onde ele vai estudar / Ensaia o ano inteiro / Tem provas no carnaval / Ele desce dos morros / Ele vem das vilas / E chega a cidade / Alegra os turistas / Recebe os aplausos da sociedade / Se criar novos passos / Criar nova ginga / Ou compor um samba / Está aprovado, recebe o garoto / O diploma de bamba

Na escola de samba / Aprende a rir, / Aprende a sofrer, / Aprende a chorar / Mas não sabe ler / Doutor qual o seu destino será?Geraldo Filme



Depois de encontrar estes pensamentos acerca de AULA e ESCOLA, depois de ler as linhas acima, vamos tecer juntos essas linhas. Gilles Deleuze apresenta que aula é colocar a matéria pensamento em movimento. Larrosa e Karen colocam a atenção no sentido constitutivo de ser estudante e ser professor. Manoel de Barros mostra uma aula com o mundo, com a natureza, em contato e contágio. Geraldo Filme coloca a questão: quem pode estudar? Para ele, garoto de pobre só pode estudar em escola de samba, criar passos e gingas para enfrentar as injustiças que não foram criadas por ele, por um modo de vida que não garante as mesmas oportunidades para todos e todas. Quando o baque é muito pesado, sobreviver primeiro. Apenas um corpo vivo pode aprender a ler, aprender a escrever e etc, etc, etc.



E mesmo diante da filosofia, da educação, da poesia e do samba, apesar desses encontros todos, do pensamento, esses encontros agora estão nas telas. É bem verdade que estamos nos acostumando cada vez mais com as telas. As relações humanas estão cada vez mais mediadas, midiatizadas por telas. As telas invadiram nossas vidas já há algum tempo. As casas possuem uma dezena de aparelhos que nos fazem atravessar o mundo em um clique. TV’s, computadores, celulares, estão nos cômodos como se fossem pessoas. Não raro, assumem o lugar das pessoas: tocam, falam, fazem barulho, emitem ruídos, se fazem presentes, preenchem os espaços, limpam o chão. Fazem inclusive uma coisa que algumas pessoas não fazem: escutar. Isso mesmo, esses aparelhos nos escutam, registram e dão retorno. Você já reparou nos anúncios e nas propagandas que aparecem nas suas redes sociais ou seu email gratuito?

Mas se antes eles conviviam com a gente, com o isolamento social tais aparelhos ganharam centralidade: são fonte de informação, companhia, entretenimento, espaço de festa, estudo, música, exercícios…. enfim, tudo! (ou quase tudo)

Aqui estamos situados: a presença destes aparelhos nas casas e nas vidas. A presença desses aparelhos colocados como parentes e convivendo intimamente conosco. A privação dos encontros como consequência do isolamento social. Mas os encontros são constitutivos do espaço escolar… Escola é lugar de encontro!!!

Se faz escola estando em casa? Se faz escola quando os encontros estão limitados às telas? Se faz escola pela internet? Que tipo de encontro é esse?

O que é uma aula?

1/4 de aula



Abril de 2020. Duas casas geminadas, uma grande família. Grande, agitada e barulhenta. Muito entra e sai de gente da casa, colegas, parentes… Tudo silenciado pela pandemia. A casa mudou junto com a mudança na vida, nos ritmos, todo um movimento cessou. Mas naquela manhã algo diferente me atravessou.

6h50, passos arrastam um chinelo. Sobe as escadas e entra lentamente no quarto. Abre a porta, embrulhada em uma coberta, touca na cabeça, caneca de café com leite e um pão nas mãos, despeja tudo isso sobre a mesa, livros e um estojo cheio. Como ela conseguiu carregar tudo isso? Diz: “bom dia” e liga um notebook. A abertura da tela fez entrar no quarto meia dúzia de vozes, meninos reclamando e meninas agitando, falas de insatisfação típicas dos 15 anos de idade: é muito cedo e faz muito frio. Entra também uma voz animada, meio gripada, adulta:

– Bom dia! Bom dia! Vâmo acordar, povo! Quem aí está a fim de dar um mergulho na piscina nesta manhã? Hein?! Muito frio? Então já que ninguém vai mergulhar vou fazer a chamada!

Mas que loucura é essa? Deve estar fazendo uns 5 graus nesta manhã e o cara pergunta quem quer mergulhar na piscina???

Chamada? Um computador quer fazer chamada? Como assim? Seria um sonho desses que acontecem na fronteira do sono e da vigília? Seria um pesadelo? Não adiantou mexer o corpo na cama, não adiantou cobrir a cabeça com o travesseiro…

Chamada??? Sim porque aula deve ser aula. Aula com ou sem presença, tem chamada. Descobri isso e comecei a pensar neste espaço-tempo demarcado dentro da aula, da escola, somente agora, essa coisa de ter seu nome dito em público, nome e sobrenome. No livro “Em defesa da Escola – uma questão pública”, Jan Masschelein e Maarten Simons (2013) comentam a chamada revela o sentido de anonimato da Escola. Na chamada você não é filho do fulano de tal, neto do beltrano, mesmo carregando um sobrenome. Na escola você é o João, a Maria, o Roberto e ponto. Quando o professor ou a professora chama seu nome você responde: presente! Piadas, apelidos, gracinhas costumam aparecer também. Será que a menina vai dizer PRESENTE sem estar presente?




Não foi preciso. Ela não disse nada, nem os seus colegas. O professor foi ditando os nomes presentes a partir das “janelas abertas” na tela dele. E quem disse que eles estavam presentes?

Nenhuma resposta do tipo:

– Presunto!

– Faltei!

– Tô aqui!

– Faltei mas tô levantando a mão!

Nada de brincadeira. Nenhuma voz exceto a do professor que ensinava inglês e falava sobre os ‘genitive cases’.





Fiquei ali, na cama de algum modo participando da aula, sim porque para participar era preciso apenas estar ali com o computador aberto. Câmera fechada. Microfone fechado. A adolescente ali sentada parecia um corpo sem nada, dedicado ao tédio da aula mediada pelo computador.

Levantei, dei um beijo nela e perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”

E ela: “Tô achando ótimo! Assim não preciso ver a cara desses moleques!”

Para ela o estudo neste momento fica melhor se separado da convivência. Bom, se Gilles Deleuze estiver correto, esse adormecimento do corpo durante uma aula é parte da aula. Espera-se que o conceito despertador ative o corpo e coloque em movimento a matéria pensamento.

Seria essa uma aula?




2/4 de aula



Da cozinha escutei outras vozes. Pensei: Ah, tem mais alguém fazendo aula. Segui os sons, cheguei ao quarto de outra. Bati na porta, abri devagarinho… achei sinceramente que a encontraria deitada na cama, com computador aberto, meio dormindo, meio acordada, livros jogados, cobertas na cabeça. Para nossa surpresa a mais nova estava sentada à mesa, computador e livros abertos. Olhava firmemente para a tela enquanto encostava a sola do pé direito na nuca. A voz que saia da tela era feminina, escuto a palavra “Revolução”.

Ela desvia o olhar da tela, me olha, e sorri! Solta a perna, estica os braços pedindo um abraço. Vou até ela mais curiosa do que saudosa. Quem estaria ali falando e prendendo a atenção da menina de 12 anos daquela maneira? Uma figura com um gorro verde de tricô, óculos, muito jovem. Livros ao fundo. Falava empolgada sobre a diferença de “Revolta e Revolução”. A pequena diz: “esta é minha professora de História, ela é muito linda né?”

Fiquei ali observando… Não parecia exatamente uma professora. Seria o cenário, cheio de livros, um quadro pintado a spray ao fundo? Seria a desenvoltura dela ao falar para a câmera? A mais nova estava envolvida na aula, dando um jeito de manter o corpo ativo, ela que é puro corpo. Me senti alegre porque se ela estivesse na sala de aula da escola, naquele belo prédio antigo abriga uma escola centenária, lhe seria negado o movimento do corpo, pés nas orelhas, alongamentos necessários para quem pratica ginástica artística. Pode ser até que ela pense mais fortemente se mexendo assim! Pode ser…

Perguntei: “Você tá gostando da aula assim?”

E ela: “Não gosto nem assim, nem do outro jeito, mas aqui do quarto eu posso botar o pé onde eu quiser!”


Suspeitas confirmadas. Jorge Larrosa fala do sentido originário da Escola, seu sentido grego de ‘Scholé’ na perspectiva do ‘tempo livre’. Tempo livre para o estudo, para se afastar do mundo e dedicar-se a compreendê-lo, tempo livre para agir no mundo. Na citação acima, Larrosa e Karen Rechia falam do espaço pedagógico e tempo pedagógico, ambos constituintes da escola e fundamentais para o estudo sobretudo durante a vida escolar. Assim, aula é um espaço tempo onde se estabelecem a figura do professor e a figura do aluno. As carteiras, a sala, a mesa do professor, o quadro, tudo isso é extremamente importante na realização de uma aula, importantes para que a arte de estudar, a arte de observar o mundo e pensa-lo, aconteça.

Então, seria essa uma aula?

Saio do segundo quarto e fecho a porta.


3/4 de aula



Ouço vozes, um bocado de vozes, vozes de criança… Sobressai uma voz mais forte, adulta. Bato e abro a porta devagar. Ela está sentada de costas para a porta, atenta à tela. A tela contém mais de 20 cabecinhas frenéticas. Não acredito no que vejo. Chego mais perto. É isso mesmo: ela está professora. Não são mais as meninas, agora estou observando uma mulher se fazendo professora. Ela olha para todas as carinhas na tela, ela fala com todo mundo ao mesmo tempo, fecha microfones de alguns, abre de outros, explica, chama a atenção para si, sorri, vibra, mostra uma dobradura, diz a página. Cansei só de olhar.

Ela não consegue nem me ver ali ao vivo, no quarto dela. E eu também nem consegui perceber que o companheiro estava ali dormindo na cama ao lado. Pensei: não deve ser uma manhã tranquila para ela.





Se uma me mostra a liberação do tédio e a outra me apresenta a liberação do corpo, se fazendo professora a terceira mostra atenção total aos mais de 20 rostinhos na tela como se apenas com os olhos ela pudesse evitar que caiam, que chorem, como se pudesse garantir que entendam, que aprendam, que acompanhem e etc. Ela reivindica a presença, ela leva muito à sério o que está fazendo. Ela está comprometida com a aula.

Manoel de Barros o poeta das ‘Ignorãças’, das Invenções, nos disse em seus ‘Aprendimentos’ que é preciso pegar, cheirar, sentir, provar… que a beleza está exatamente em não saber para que isso serve.


O esforço dela, e de muitas professoras e professores neste momento, é grande. Mas será que por estas telas existe a experiência que sugere o poeta? As telas fazem a mediação, possibilitam um certo tipo de encontro com hora marcada, assim como na Escola, mas certamente não possibilitam a inteireza dos encontros limitando a experiência humana, limitando a produção dos sentidos, dos atravessamentos, dos afetos, das emoções.

Junho de 2020. As mesmas casas geminadas, a mesma grande família. Tudo igualmente silenciado pela mesma pandemia. A casa já mais adaptada às mudanças na vida impostas pelo isolamento social, adaptada aos novos ritmos, desacelerada. Na tela plana do notebook várias crianças vestidas tipicamente, quartos com bandeirinhas, carinhas pintadas e a professora sorrindo. Uma espécie de diversão se revelava nos gestos, figurinos e cenários. No quarto de aula fundamental II, indiferença. Já no quarto de aula ensino médio, cansaço (cochilou na segunda aula). Mas o surpreendente aconteceu na hora do intervalo. A adolescente voltou para a aula fantasiada e assim passou o dia. Além da festa junina online, queremos mesmo contar o que observamos durante a aula de física.

O jovem professor tocando viola caipira, música bonita, doce. Silêncio da tela plana. O quarto sala de aula foi tomado pelo dedilhado do professor. Depois de tocar e cantar lindamente, falou da canção, da escolha por aquela canção, falou do seu gosto por viola caipira e, sobretudo, falou do caipira. O professor criou uma imagem muito interessante do sujeito caipira em sua simplicidade. Caracterizou, em seu discurso, uma subjetividade caipira na valorização das coisas simples da vida, palavras dele. Falou da vida no campo… A estudante adolescente comentava: “que fofo! adoro essa aula”.

Dilatação dos corpos, propriedade físicas, contração e dilatação… o professor apresentou pinturas do prédio da escola, falou dos pintores e dos artistas, falou das imagens e mostrou detalhes. Piso, paredes, blocos de concreto, separações, espaços vagos a serem preenchidos pelos movimentos dos corpos. Corpos duros como concreto, se movimentam. Talvez seja mais fácil concluir que o ferro e o concreto se movimentam quando o professor movimenta o pensamento dos alunos e das alunas. Seria a cabeça mais dura que o concreto? seria o pensamento mais mole que o cimento?

Como será para elas este ano letivo?

Será que isso é aula?

E quem não tem computador, nem internet, quem não sabe usar essas coisas, tem aula?

E para que aula se ninguém sabe o que será do mundo?

O que será delas?

Neste tempo de tantas incertezas, neste tempo onde as molduras foram rompidas assim como um rio que arrebenta os barrancos onde corre a água, neste tempo de incertezas talvez seja mais interessante nos dedicarmos às perguntas.




Seriam aulas nos 3 quartos? haveria uma aula por inteiro?



Talvez sim, talvez não. Estamos pensando-as como tentativas de aula. Muitos/as alunos e alunas desejam estar com os seus e com as suas nessa maravilhosa viagem movida pela curiosidade, que aponta o olhar, que coloca a atenção nas maravilhas do mundo, que provoca a curiosidade e o desejo de vida e de mundo. Muitos/as crianças e adolescentes que abandonam a escola porque, diante da fome e das necessidades da casa, estudar não lhes era possível. “Garoto de Pobre” só pode estudar em Escola de Samba onde o lápis é a baqueta que bate o tamborim. Onde a criação de novos passos, a criação de novas gingas ou composição de novos samba, aprova e certifica: recebe o diploma de bamba!

Queremos pensar a Escola nesta perspectiva apresentada na sabedoria da cultura popular: escola é buscar um sentido, escola é encontrar um sentido, escola é significar o mundo, modifica-lo. Queremos pensar a Escola como tempo suspenso, quase que afastado de uma certa realidade, para pensar sobre ela. E, assim, com ideias renovadas, agir. Escola é experiência com força de arrasto. Assim, as tentativas de escola estão em muitos lugares, de muitos jeitos, nos esforços seja por chamada com ou sem vídeo, com jogos e músicas e criações para que o encontro (mesmo que à distância) aconteça.

Observar os 3/4 de aula foi estranho. Estranho para quem se produz educador na dureza da vida e, ao mesmo tempo, se faz estudante na pesquisa. Lutamos contra as tentativas golpistas de Educação à Distância como pregam algumas correntes. Mas após um ano trancados em casa, nos perguntamos como estaríamos sem estas tentativas de encontro mesmo que mediados por telas?

Se estamos cercados de genocidas, genocídios, vermes e vírus, que a escola seja um espaço de refúgio, um espaço para pensar, um espaço para resistirmos à negação do pensamento. Falamos de uma escola que se materializa em um espaço (hoje vazio de encontros) e num tempo, um tempo livre para que o pensamento possa se colocar à deriva em horizontes de criação. Talvez encontremos o quarto de aula para somar 4/4: a inteireza de uma aula. Afastados da realidade dura e por vezes insuportável, que este espaço-tempo não se deixe capturar neurótica produtividade excessiva imposta pelo mercado.

Façamos hackeamentos, nos distanciando, mesmo que por algumas míseras horas, para encontrar potência: viver é mais que sobreviver.

Façamos hackeamentos para pairar, para voar, para estar acima, para buscar o alto, para alcançar o céu antes que ele quede.

Luciana Ferreira é pedagoga e educadora popular, doutoranda em Educação pela UNESP-Rio Claro e integra o coletivo da Escola de Ativismo.

Ivan Rubens Dário Jr é geógrafo, educador e amigo da Escola de Ativismo. Autor de Pedagogias da Cidade: corpos e movimento.

Uma Marcha Fúnebre


Quem acompanha esta coluna sabe que costumo escrever com canções. Sempre uma música que esteja tocando (e me tocando) no momento da escrita. Nosso fundo musical desta vez é a Marcha Fúnebre de Chopin.

Guido Palomba, um dos mais respeitados psiquiatras forenses do Brasil, alerta para os riscos de um presidente que não mostra sinais de compaixão pelo povo. Guido é reconhecido pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, pela OAB, Academia de Polícia de SP, pela Polícia Militar e pela Associação Paulista de Medicina. O trabalho de um psiquiatra forense passa inclusive por decifrar os distúrbios de personalidade em tempos tensos. Estamos vivendo um tempo tenso: Pandemia e crise sanitária. Num artigo publicado em 18/março/21 na Folha de SP, o psiquiatra apontou sinais de desvio de personalidade encontrados no comportamento de Jair Bolsonaro.

Ególatras, estão sempre pensando em si mesmos, são indivíduos que não sentem remorso.

Psicopatas (condutopatas) são manipuladores: “são tidos como pessoas toscas, capazes de adotar determinados comportamentos e não percebem aquilo que estão fazendo de errado”. Veja então alguns sinais na conduta do Jair:

Falta compaixão: “Chega de frescura e mimi, vão ficar chorando até quando?”

Sobre frieza: “Não sou coveiro!”

Incorrigíveis e agressivos: “É uma patifaria. Cala a boca, eu não te perguntei nada”.

Vaidade exagerada: “Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus seria, quando muito acometido de uma gripezinha”.

Provocativos e autoritários: “Quem manda sou eu. Eu tenho poder de veto. Não serei um presidente banana.”

Diante dos comportamentos do Jair, o psiquiatra aponta uma hipótese diagnóstica. E vê um grande risco quando um condutopata comanda uma nação: “se acha o grande poderoso e aí que vem a tirania... Essas pessoas nunca deveriam ter poder mas, quando o tem é sempre uma lástima”, afirma Palomba.

Sei que é muito difícil falar disso numa cidade onde o atual presidente e maior responsável pela crise sanitária que estamos vivendo, por omissão seja junto ao ministério da Saúde e sua aposta na imunidade de rebanho, seja no mal exemplo que diariamente oferece ao povo brasileiro, seja pela recomendação de tratamentos ineficientes, seja na desinformação do povo, seja no seu negacionismo nefasto, seja na negação da vacina, (e tem tanto ‘seja’ que até cansei de escrever)…. então, falar disso numa cidade onde 79,05% do eleitorado confiou seu voto a ele é delicado. Então, leia este texto e pense nos argumentos do Guido Palomba com calma. Não se trata de a favor ou contra, não é isso. Não se trata de um FLA x FLU ou um São Paulo x Corinthians. Não se trata de enfiar verdades goela abaixo de ninguém. O que pretendo com este texto é te convidar a pensar.

Marchamos para 400 mil vidas desperdiçadas e famílias a quem foi negado o ritual de despedida fundamental na elaboração do luto. O capitão Bolsonaro comanda esta Marcha Fúnebre!

Ivan Rubens
Geógrafo



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 20 de abril de 2021

Desenredo


leia o texto ouvindo a canção em coro. basta clicar no link abaixo 

Numa partida de futebol em 1976, Dori Caymmi se contundiu. “Cheguei a operar. Fiquei deprimido e senti raiva do mundo”. Seu pai, Dorival Caymmi, disse: “Coloquem o violão perto do Dori que ele logo se acalma”.

A recuperação foi longa. Na cama, Dori dedilhava o violão. Foram chegando as imagens da Zona da Mata mineira e a saudade das Minas Gerais. Lembrou dos amigos do colégio, professoras/es, lembrou da cidade. “Deu aquela nostalgia, os primeiros acordes foram chegando. Eu estava lendo Guimarães Rosa e me lembrei de minha mãe cantando uma canção que me remetia aos hinos de Ouro Preto”. E surgiu o refrão: Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe. Dori se considera ⅓ carioca, ⅓ baiano e ⅓ mineiro: nascido no Rio de Janeiro, filho do soteropolitano Dorival Caymmi, filho de Stella Maris, mineira do interior.

Recuperado, Dori Caymmi mostrou a melodia e o refrão para o amigo e poeta Paulo César Pinheiro que escreveu algumas linhas. “À medida que fui escrevendo, imagens mineiras passavam na minha cabeça. Lugares como Sabará, São João del-Rei. Tudo surgia como imagens: ‘Por toda a terra que passo/ Me espanta tudo o que vejo’...

Por toda terra que passo / Me espanta tudo o que vejo / A morte tece seu fio / De vida feita ao avesso. / O olhar que prende anda solto / O olhar que solta anda preso / Mas quando eu chego / Eu me enredo / Nas tramas do teu desejo.

O mundo todo marcado / A ferro, fogo e desprezo / A vida é o fio do tempo

A morte é o fim do novelo. / O olhar que assusta / Anda morto / O olhar que avisa / Anda aceso. / Mas quando eu chego / Eu me perco / Nas tramas do teu segredo.

Pinheiro aprendeu também a escrever a partir dessas imagens que apareciam na sua cabeça. “Conheci Minas dos livros de Guimarães. Quando me casei com a Clara, desbravamos os interiores de Minas Gerais”. Pinheiro foi casado com a cantora mineira Clara Nunes.

Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe.

Composição: Dori se recompondo de um trauma, re_compondo consigo mesmo, se procurando no território e na própria história, compondo e recompondo no espaço e no tempo, compondo com o violão, com as imagens e as paisagens; Ao mesmo tempo em que Pinheiro está compondo, está tecendo suas próprias linhas. As linhas de vida se encontram, as linhas vão tecendo. Os artistas usam a palavra ENREDO para dizer que a vida é tecer as redes, ou seja, enredar. A imagem que me ocorre é o corpo de uma criança indígena acolhido numa rede, seguro, tranquilo e calmo, repousando e balançando na rede. A canção termina assim:

A cera da vela queimando / O homem fazendo o seu preço / A morte que a vida anda armando / A vida que a morte anda tendo. / O olhar mais fraco anda afoito / O olhar mais forte, indefeso / Mas quando eu chego / Eu me enrosco / Nas cordas do teu cabelo.

Desenredo dá ideia de desembaraço, o desenlace de uma rede. “Inclusive, digo isso como se estivesse desembaraçando o fio do tempo, à medida que ia passando por lugares centenários de MG”, afirma o poeta.

Desenredo é uma canção de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro.


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição impressa de 23 de março de 2021







Mascarada


Aconteceu no Rio de Janeiro. Um sambista muito gente boa brincava o carnaval no “Bloco das Piranhas”. Neste bloco, como era comum na década de 1950, os homens desfilavam vestidos de mulher. Pois bem, o sambista muito gente boa encontrou uma moça no bloco. A moça também encontrou o sambista. Ambos se gostaram, não deu outra: romance! O sambista não foi mais visto naquele carnaval. Dias depois ele revelou a um amigo, também sambista, que a moça não tirou a máscara. Ele, portanto, não conseguiria identificar o rosto daquela mulher.

No ano seguinte a história se repetiu. O sambista gente boa já sabia onde encontrar a Mascarada. E o romance emergiu... mas o mistério se manteve porque ela novamente não tirou a máscara. Apenas no terceiro ano a mulher revelou seu rosto. Apenas no terceiro carnaval ela se permitiu tirar a máscara.

Talvez você não acredite nessa história. Talvez você pense assim: mais uma história de carnaval. Olha, vou te dizer que eu acredito. Verdade ou mentira é um detalhe menor. Não se trata disso. Vamos colocar a questão de um jeito mais bonito: realidade ou invenção? O poeta mato-grossense Manoel de Barros diria memórias inventadas ou 10% é verdade e 90% é invenção! Mas, se considerarmos invenção como criação humana, não dá para dizer que uma história inventada é mentira.

Tem um samba que diz assim: O corpo, a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobre pra’as trevas / O nome a obra imortaliza. Ou seja, a obra imortaliza o artista, a criação torna a vida do criador mais longa do que a sua carne. Aliás, se você olhar direitinho, dentro da palavra ‘carnaval’ tem a palavra ‘carne’.

Então, o sambista gente boa de que falamos é Zé Keti. Um dia, Zé Keti apareceu acompanhado de “uma bonita senhora” e disse: “Elton, essa aqui é a mascarada”. Mais ou menos assim nasceu o samba canção Mascarada, de Elton Medeiros e Zé Keti.

Vejo agora esse seu lindo olhar / Olhar que eu sonhei / E sonhei conquistar / E que um dia afinal conquistei, enfim / Findou-se o carnaval / E só nos carnavais / Encontrava-te sem / Encontrar esse seu lindo olhar, porque / O poeta era eu / Cujas rimas eram compostas / Na esperança de que / Tirasses essa máscara / Que sempre me fez mal / Mal que findou só / Depois do carnaval.

Neste 2021 comemoramos o centenário de Zé Keti. Mais do que nunca e por razões bem particulares, Mascarada faz-se atual. A mulher mascarada que inspirou a canção se mostraria prudente na pandemia. Porque, apesar dos pesares, apesar da pandemia, hoje é terça-feira de carnaval. Apesar de você, Jair, apesar da sua ignorância e truculência, apesar do rio de leite condensado e dos mares de lama onde naufraga seu governo incompetente, apesar da cerveja e do whisky, do bacalhau e da picanha de alta patente, apesar de você amanhã há de ser outro dia. E as ruas estarão cheias de gente colorida, alegre e cheia de vida: Unidos do Fora Bozonaro, nota 1000.

Faça como a Mascarada: use máscara!

Ivan Rubens Dário Jr


publicado no jornal Cidade de Rio Claro em 22 de março de 2021

Mascarada, Zé Keti

Mascarada, com Elton Medeiros


Uma Travessia


Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar / Minha casa não é minha / E nem é meu este lugar / Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar

A pessoa se foi. Teria acabado o amor? Teria nascido um novo amor? um laço está desfazendo... O dia se fez noite, o sol se fez lua, toda cor desbotou, empalideceu.

Um laço vai se transformando rapidamente em um nó. Um aperto no peito, um nó na garganta. É como se o chão fugisse e não sabemos mais onde pisar. É uma espécie de desterritorialização: você se sente perdido, sem chão, sem lugar. É preciso botar para fora esse mal estar em forma de desabafo. É preciso falar, contar, lamentar… para que o nó não se transforme em nódulo.

Solto a voz nas estradas / Já não quero parar / Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar

Ao soltar a voz, parece que o grito preso na garganta vai desatando o nó. Então, falamos sem parar. O chão que era firme para a caminhada da vida, torna-se um sem chão, um chão pedregoso, perigoso, onde cada passo demanda um tempo e cuidado: as pedras estão soltas. É como andar sobre as pedras dispostas no leito do rio. Se o sofrimento se alonga, chega-se a estar cara a cara com a morte. Uma morte simbólica, uma morte como encerramento, como finalidade. Fim de uma história, final de um amor. Não se trata de uma morte física mas de uma morte em vida. Neste sentido existem mortes... e vida segue!

Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver / Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver

O tempo vai passando lentamente porque a memória se mantém viva. Como diz Chico Buarque na linda canção chamada Romance: “com todas as canções, os momentos bons e as horas más que a memória coa”. Imagine que dentro da cabeça existe um pequeno coador de café, daqueles de pano, onde as tristezas vividas, as amarguras, as chateações ficam presas no pano. E apenas passa pelo coador tudo aquilo que houve de bom. Os momentos bons, as alegrias, a felicidade mesmo que breve, que instantes vividos. Esses ficam eternizados na memória. Porque o tempo vai fazendo seu trabalho de deixar o excesso de peso pelo caminho e guardar no corpo apenas aquilo que realmente importa, aquilo que dá leveza, que facilita a caminhada pois a vida segue seu curso. Aquela velha imagem vai se apagando, outros mundos vão surgindo. É a vida renascendo... até que um novo amor acontece. Ou não. Mas isso nem importa tanto assim. O que importa mesmo é avançar no sentido de tomar para si a própria vida.Esta é uma leitura possível, dentre tantas, da canção Travessia (Fernando Brant e Milton Nascimento).


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 25 de janeiro de 2021

Lido por Sofia Mercía no programa América Livre, da rádio progresso em Honduras. 20/set/2023

A descolonização do poder


Autonomia Literária

No desenvolvimento do capitalismo, o Estado ocidental amparou seu poder no monopólio da força e na centralização do poder. Assim como existia apenas um deus, ou um rei, também deveria existir apenas um soberano. Essa visão de Estado fez com que povos fossem dizimados em meio a colonização das Américas. Entretanto, muitos povos lutaram e resistiram. Como é o caso do Brasil, onde indígenas resistem há mais 500 anos processo sanguinário de dominação. Para debater sobre a resistência dos povos indígenas e suas linhas de fuga, convidamos a guerreira indígena Are Rete (Guarani Nhandewa-Paraty) e dramaturgo antropofágico Zé Celso (Teatro Oficina). A mediação de Jean Tible, autor de Marx selvagem.

Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UEBmSTvxdME&t=1975s> Acessado em janeiro de 2021.


Jean Tible

Boa tarde. Vamos começar nossa conversa sobre a descolonização do Poder. A deputada estadual Érica Malunguinho, lá do Aparelha Luzia e deputada estadual pelo PSOL de São Paulo, não pode comparecer. Nós temos a presença da indígena Are Rete (Guarani Nhandewa-Paraty) e dramaturgo antropofágico Zé Celso (Teatro Oficina).

A FLIPEI é o barco pirata. Os piratas têm uma imagem forte, qualquer pessoa que ouvir pirata já aparece todo um imaginário. Mas vários historiadores recuperaram as imagens dos piratas, é interessante porque os piratas eram meio contra poder de um mundo extremamente autoritário. Os piratas eram um dos coletivos mais democráticos do seu tempo, com uma política menos hierárquicas, uma política diferente. Eles eram o oposto do abjeto navio negreiro que foi uma das primeiras prisões modernas e, ao mesmo tempo, uma das primeiras fábricas modernas, e esse vínculo tem tudo a ver até hoje. Eles também eram grupos multirraciais, escravos que haviam escapados, tinham outro contato com as populações ameríndias, outra relação com os povos do continente africano, então aqui chamamos barco pirata. E essa mesa, porque se a gente fala de descolonização do poder talvez seja também almejar e criar o fim do poder. Então nós somos aqui um barco pirata em terra Guarani e, por esse motivo, acho que faz todo o sentido começar com a Sandra Benites Ara Rete.

 

Sandra Ara Reté

Primeiramente quero agradecer ao convite, me sinto honrada em poder falar na beira da praia em Parati. Sou Guarani Nhandewa de origem no Mato Grosso do Sul. Parati é Para Ty (foneticamente é algo parecido com o som de ã mais puxado para o i). Na língua Tupy e na língua Guarani, Para é mar, ty é onde tem muitos mares, ilhas. A língua portuguesa tem muita dificuldade de falar Y que pra gente é água. Em português usa I para Y mas para a gente tem outro significado.

(Zé Celso convida o público presente para falar na língua tupy PARA Tÿ)

Atualmente existem no Brasil 305 etnias que são identificadas como etnias, mas aqueles que são aldeados, que moram nas aldeias, e 274 línguas faladas. Por exemplo Guarani e tantos outros, os Kaingang tem a língua como se fosse um espanhol com alemão. Eu sou Guarani falando com os Kaingang, é totalmente diferente. Por isso que o português vem sendo importante para a gente por conta da comunicação entre nós indígenas. Esses são identificados como indígenas e tem vários outros, por exemplo na cidade do Rio de Janeiro tem muitos indígenas que se chama do contexto urbano, tem indígena que não se reconhecem como indígena, nem como negro, nem como branco. E isso nem se discute porque tem muitos parentes indígenas que perderam o vínculo e perderam suas origens, de onde vieram, a qual etnia pertenciam. Eles ficam nessa angústia também. Isso não tem sido discutido, isso é uma questão. No Brasil, as cidades que invadiu a aldeia. Isso aqui era uma aldeia e hoje é uma cidade. Como Patary tem tantas outras.

Itaorna: ita – pedra mas que não é resistente. (Orna[1] – como se fosse podre. Pedra mole ou pedra podre). Vocês viram que a usina nuclear[2] na época. Na língua existe conhecimento, quero falar um pouco disso.

 

O que é DESCOLONIZAR? Eu não entendo o que é isso na língua portuguesa porque não é a minha língua. Eu tenho que adaptar essa palavra de uma forma que faça sentido para mim. Eu entendo que é... a gente fala oim-iporã[3]: encaixar no lugar. Esse ‘encaixar algo no lugar’ quer dizer ‘guardar no lugar certo’, falar oim-iporã é coisa boa, encaixar a coisa no seu devido lugar, encaixar. É o desafio para todos nós hoje. Por que digo isso? Eu entendo, enquanto guarani, enquanto mulher indígena, eu entendo que nós temos as nossas políticas. Aí já vem outro termo que eu tenho dificuldade de entender na língua portuguesa mas vamos, digamos assim, comparar... quando eu pergunto para os meus parentes, na nossa língua não existe uma palavra para política. Palavras políticas, para os meus parentes independente da etnia, eles dizem que é conversatório.

Io-manguetá: conversar, conversa grande...

Atê guaçú: atê é isso que a gente está aqui, se juntar para a gente falar. Falatório não é negativo, é uma fala de todos. E aí está um desafio nosso porque eu acredito que enquanto acadêmica também, para eu aprender e entender esse outro corpo que eu chamo de corpo território, porque o nosso corpo também é um lugar de sabedoria. O nosso corpo é o lugar da nossa sabedoria porque é o lugar do nosso corpo é a gente... onde tem história, tem espaço, tem o seu lugar. Por isso a educação precisa ser diferenciada para nós indígenas, tem lei que ampara isso, foi muita luta e sangue derramado de lideranças indígenas para conquistar essa educação específica para garantir... inclusive isso está sendo atacado hoje também. Mas isso é importante porque cada lugar tem sua própria história, tem seu próprio corpo. Estou dizendo isso porque eu comecei a percorrer e a compreender um pouco enquanto indígena porque eu vim de lugar diferente, eu tive que não me adaptar mas eu tive que me INCLINAR para conhecer o outro. Quero dizer que conhecer o outro não é tarefa fácil. Isso te causa dor também mas eu tive que me desafiar para poder equilibrar o meu conhecimento. O que é conhecimento? Conhecimento pr’agente é assim... porque se tem uma outra forma de pensar e, a partir disso que a gente tem que começar a dialogar para se entender, ou seja, pr’agente respeitar o limite do outro, quer dizer, o próprio corpo. Por isso que o nosso corpo tem trajetórias, tem experiência, tem sua história. Tem o seu próprio lugar também. Por exemplo, quem nora na cidade vai achar que os indígenas que moram nas casas de estuque é pobrezinho (já ouvi uma criança falar isso)... já ouvi tanta coisa... eu não culpo porque as crianças ainda não compreenderam o que é ser pobre. Um parente dizia: pode ser que a gente é pobre hoje porque empobreceram a gente. Mas ele não está falando de coisas, de objetos, ele está falando de conhecimento, de sabedoria, de bem estar, do bem estar do seu próprio corpo, ele está falando de ter autonomia. Quer dizer, pra você colocar, encaixar aquela peça que, da forma que você pensa, é um enorme desafio porque o outro pensa diferente de você. É por isso que eu acho que, infelizmente, as nossas sabedorias ainda não foram ouvidas.

Eu vim de uma aldeia e eu fui para a cidade, eu tive que me inclinar várias vezes, e isso foi importante apesar da dor que me causou, hoje eu posso dizer o que eu penso. Eu tive que aprender a falar português, tive que dançar de acordo com a música do local. Eu tive que aprender a falar, muitas vezes, palavras que não existam equivalentes na língua Guarani. Por exemplo, na língua guarani não existe palavrão e eu gostei de aprender os palavrões em português. O palavrão que eu gostei de aprender e que acho que faz sentido, é o foda-se (rs e aplausos).

Tem tanta coisa pra falar... vou apenas provocar ou sei lá como chamar isso... eu queria pensar que hoje eu acho que temos que pensar em dois aspectos o que é o Brasil de fato. O primeiro aspecto pr’agente entender, para a gente não ser muito... eu falei que as vezes dá uma tristeza porque o Brasil nos nega enquanto indígenas. Mas quando a gente aparece em alguma mídia ou algum lugar para falar, pra lutar pelos nossos direitos, somos mal vistos: “o indígena não tem nada o que fazer”... A gente recebe isso sempre. O indígena se manifesta, “ele é vagabundo”. “Esses seres humanos ainda existem?” É assim que a gente vive hoje, como refugiados do nosso próprio país. E falando em país, pelo menos eu pergunto para os meus parentes: o que é país? Eles dizem que não existe pais, quem colocou esse nome e essa divisão foram os não indígenas, esses que querem dominar o outro. Para a gente não existe país, existe fronteira para respeitar a diferença do outro e não a terra. Meus parentes dizem isso!

O segundo aspecto é o processo histórico: como foi construído o Brasil? os indígenas massacrados, que foram escravizados. Os Arcos da Lapa que foi construído pela mão escrava indígena, e outras várias coisas que foram acontecendo... toda a violência contra nós indígenas, isso não é contado. Então, apesar de ser muito triste para nós, só nós podemos contar isso. Então, como a gente vai descolonizar as coisas se a gente nega o outro e quer tapar o buraco, quer esconder toda a violência que o outro sofreu. Nós indígenas somos muito hospitaleiros, a gente recebe muito bem, quando a gente recebe o outro é sempre com muito carinho o que não é, muitas vezes, feito com a gente.

Por fim, um último ponto é esse: saber o saber do outro. Cada lugar tem os seus saberes, cada corpo tem os seus saberes. Esse é um grande desafio para nós enquanto seres humanos, enquanto instituições também. É importante se questionar sobre essas diferenças, eu me questiono todo dia sobre como eu vou lidar com essas diferenças do outro... nós indígenas não temos essa dificuldade de saber lidar com o outro, a gente é muito educado para saber receber o outro. Por exemplo: para nós Guaranis, todas as coisas têm o seu espírito. Por exemplo a água, o mar, o rio, a mata, os seres da natureza existem seus espíritos. Por isso que quando a gente vai tirar uma casca, uma árvore para fazer a casa, a gente pede para uydjá[4]. O que é uydjá? São os espíritos daquele que a gente vai tirar porque é pr’agente consumir por necessidade e não para a gente devastar porque isso prejudica o outro. Por exemplo, a pedra tem um uydjá muito bravo. Os nossos antigos dizem que as pedras dos uydjás são resistentes mas quando elas se desencantam, podem se mudar. Mas para que os espíritos das pedras se mudem, eles podem fazer tragédias. Isso é o desencantamento do espírito da pedra.

Ainda sobre essa questão do espírito, para nós não existem saberes genéricos. As mulheres tem os seus saberes a partir do seu próprio corpo. Os homens tem também os saberes a partir do seu próprio corpo. Eu fiz meu mestrado sobre isso para poder tentar explicar o que é o corpo, porque o corpo é importante, porque o espírito é importante. Fui pesquisar... por ser guarani e moradora numa aldeia não significa que eu saiba de tudo, não é isso. Então eu tive que pesquisar com os mais velhos, e eles disseram que as mulheres (meu trabalho foi com mulheres) e eu fui percebendo que as mulheres guaranis mais velhas geralmente, quem ensina os meninos são as mulheres, ou seja, as mulheres ensinam os homens. Isso acontece porque o nosso Nhandecy (a nossa mãe) é da terra. Ela é chão. A nossa mãe é a terra. Elas contavam essa história para os meninos e diziam: tem que saber pisar. Os Guaranis tem dança do guerreiro, mas o pisar da dança do guerreiro não é para ser forte, é para ter corpo leve e pisar leve. Homem de verdade significa pisar leve. Temos aí todas as danças, esse corpo que eles vão ensinar a ter um corpo paciente exatamente depende de vários elementos que tem entorno, por exemplo o rio, mata e tal. Eles vão aprender a retirar, fazer ritual para ir retirar essa árvore, fazer ritual para pescar. Então, se não existe mais terra, não existe mais mata suficiente para eles darem continuidade a essa sua sabedoria enquanto homem, isso está resultando em vários suicídios de meninos indígenas no Mato Grosso do Sul. No meu entendimento (não sou especialista), percebo, me parece que eles não estão encontrando o seu próprio lugar. Lugar de ensinamento, lugar de aprendizado porque isso depende muito de lugar também. O espaço e o movimento e os elementos que dão suporte para esses meninos para eles se identificarem como meninos... estou falando de ser, como devem agir, eles vão construindo durante esse ritual, durante cada etapa da vida deles. Para finalizar, eu pude perceber esses problemas que a gente está enfrentando hoje, e as mães dizem que (eu lembro da minha avó que me dizia...) toda vez que elas ensinam os meninos a terem corpo ativo, um corpo alegre. Homem verdadeiro na língua Guarani significa homem alegre, ativo, homem saudável é isso. Os homens tem que desconstruir aquele mal humor, tem que ter paciência... E tudo isso os meninos vão construindo durante esse processo do ritual. Esses problemas são as tragédias para a gente.

Falando da Nhandecy que é o corpo da mãe terra, o chão que a gente pisa, é o corpo feminino por isso que a gente tem que respeitar... no dia que o corpo feminino não seja respeitado, eles diziam que o mundo pode se revoltar contra a gente mesmo. Não à toa a gente fala do homem, a humanidade, o homem.... essas coisas todas eu venho tentando entender a partir da minha língua, da sabedoria dos meus parentes para poder entender um pouco. Eles falam essas questões... A gente tem essa ideia de que a gente tem que aprender a abraçar o mundo porque o mundo não vai te abraçar. Porque o mundo são vários, ou seja, o mundo somos nós mesmos.

O que mundo nós queremos para nós enquanto humanos? Enquanto mulher, enquanto criança... a gente olha e cumprimenta o outro. O Nhandecyr é o chão, e a figura masculina é o próprio o ar, o vento que a gente respira. Um cumprimenta o outro, em equilíbrio. Não existe na nossa língua uma palavra para igualdade, o que existe é equilíbrio. Obrigada.

José Celso

A tua fala é a fala de uma das melhores filósofas brasileiras atualmente. O pensamento indígena atualmente é o pensamento mais comunicativo que existe. Eu acho que nessa feira talvez a sua fala tenha sido das mais tocantes porque é muito concreto, muito concreta. Minha avó era índia, então eu tenho um verdadeiro culto à cultura indígena. Minha avó era índia tupi lá em São Paulo, casada com um português celta, mas a minha avó me ensinou muita coisa. E minha bisavó que já estava doida, plantando bananeira e rindo, velhinha.

Desde que descobriu um grande autor brasileiro, acho que um dos maiores poetas do mundo que é Oswald de Andrade, ele é muito conhecido no Brasil por ter feito o modernismo mas de repente 1928 e falou: “Eu não sou mais moderno. Agora eu sou o primeiro poeta do mundo pós-moderno fazer uma pós moderno”. Mas pós moderno para ele é um retorno à perspectiva dos índios, ele retorna à antropofagia e ele ensinou demais com a antropofagia. Eu pude ir atrás de saber que eu vejo em você é muito concreto.

A psicanalista Suely Rolnik, é muito parecido com o que você disse. A subjetividade como um corpo, como o lugar que ocupa... Tudo o que você disse é novo e, ao mesmo tempo, tudo o que você disse é o que existe de mais... (não gosto dessa palavra) vanguarda. Esse povo aqui presente, eu acho que esse povo está muito próximo do que você fala. As pessoas que estão te ouvindo, talvez nem elas imaginem o quão próximo elas estão do que você está falando. Por exemplo, pro movimento das mulheres, o que ela falou aqui é uma coisa cósmica, uma coisa maravilhosa, filha da mãe Terra, uma coisa extraordinária.

O Ailton Krenak, fiz uma mesa com ele e ele fez uma pajelança, me pintou todo. Adoro ele. Eu falei: “me vira índio de uma vez”. Na frente de todo mundo ele fez uma pajelança e eu fiquei muito feliz e me sinto cada vez mais índio. A tendência cultural do Brasil neste momento... Este homem aqui: Jean Tible. Parece nome daqueles franceses que escreveram sobre o Brasil no tampo da França Antártida... mas ele é de agora e escreve Marx Selvagem. Ele parte do Oswald de Andrade, esse antropófago, dizia para comer o marxismo, comer. Marxilar... Jean partiu daí e fez um estudo profundo do tempo que o Marx estudava, com o Engels, as sociedades primitivas. O Jean chega aos Yanomamis e a uma equação contemporânea que é... porque a grande contradição hoje do capitalismo especulativo, aquele de renda, o Thomas Piketty diz que viaja até lá em cima e fica para uma pequena minoria, a contradição é o índio, o pensamento do índio, não é mais o operário. Nós temos que aprender com os índios. Eu acredito nisso como eu acredito em mim, eu acredito na vida... Então vamos aplaudir mais o que a Are Reté falou... porque ela está séculos avançadas porque a grande coisa agora é voltar no tempo. É como dia o Oswald: as qualidades bárbaras mas tecnizadas. E o índio sempre foi tecnizado.

Quando nós começamos a trabalhar no teatro oficina com o vídeo, a gente vê os índios entrando nas repartições logo depois da ditadura e cercando as mesas, e todo mundo queria ver o vídeo... nós mostramos que foram os índios que começaram. O Oswald falava que nós temos que conservar as qualidades bárbaras, ou seja, aquelas que não são ocidentais cristãs como a pátria, família e essa merda toda. São as qualidades bárbaras... porque o Bárbaro, o Euclides dizia: Eu quero ser bárbaro, quero ser antigo como os antigos. Porque o chamado bárbaro é aquele que não está nessa sociedade, é o que está fora. E nós somos bárbaros porque nós conservamos as qualidades mais primitivas do ser humano: a grande paixão pela terra, o amor pela terra. O Euclides da Cunha, ele escreveu um livro porque ficou apaixonado pelo lugar, pelo povo do lugar. Ele foi junto com o exército para matar mas, de repente, ele viu a natureza, levou um susto com a natureza... com a seca, com aquelas árvores que estão na seca e quem tem água dentro. E de repente, o povo.

Mas voltando ao Marx Selvagem. Esse livro é muito importante, está na terceira edição (mostra o Marx Selvagem) e é importante. Eu fiz dois prefácios para esse livro porque o Marx Selvagem que interessa. Marxilar, aquilo que se liga a esta cultura da Ara Reté, que ela traz no corpo, de que ela fala e fala bem. Ela fala bem! É demais porque na busca da tradução da língua dela para a nossa língua ela encontra uma coisa maravilhosa e que é rara: a eloquência. Não é a eloquência da universidade, aquela coisa abstrata. Ela fala concretamente mesmo. Eu acredito em cada palavra que ela fala. Eu não sei se vocês sacaram a grande qualidade desta mulher, desta mensageira. Eu saquei, eu fiquei muito impressionado. Transformado, muito.

Amanhã eu quero voltar aqui para ler um texto do Machado de Assis sobre Canudos: Tudo Pirata. Éééé, ele ficou apaixonado com o que aconteceu em Canudos. Disse: Isso é poesia pura. Porque, veja: ele estava naquela vidinha rotineira, Machado de Assis, tudo é marcado, até o túmulo tem uma marca... é um texto extraordinário e que eu felizmente trouxe e tenho que ler aqui. Eu quero sagrar a pirataria através do Machado de Assis, um escritor negro que teve a grandeza de captar a importância do surgimento do povo de Canudos, que era um povo mestiço. Lá tinha negro, lá tinha índio, ex-escravos, tinha branco, enfim tinha de tudo, tudo misturado. Eram as pessoas que foram seguindo ele porque... ele amava uma mulher que dava para muita gente, uma mulher livre de sexo livre. O Antônio Maciel[1], primeiro nome do Antônio Conselheiro, em cada cidade que ele ia a mulher traia ele (eu não gosto dessa palavra porque não se trata de traição. É outra coisa. Como diz o Sócrates: a fidelidade não a uma pessoa mas a fidelidade ao amor, onde quer que ele soa) Então uma mulher livre, vai de cidade em cidade mudando porque no nordeste quando acontecia isso eram MATA, MATA, MATA e tinha que mudar de cidade. Até chegar num lugar que a mulher se apaixona por um sargento e some com ele. O Antonio fica doido e desbunda, saiu andando feito um maluco. Ele não se vingou como fez Euclídes da Cunha... a mulher do Euclides foi viver com o Dilermano, um oficial do exercito que era mais jovem que ele e o Euclídes foi com um revólver para tentar matar Dilermano. Ele não aprendeu nada com o Conselheiro porque este fez diferente... em vez de matar os homens que ficavam com a mulher dele, ele foi se dando e foi se dando ao mundo, começou a andar, comprou uma roupa daquele algodão azul... eu fiz o papel do Antonio Conselheiro e aprendi muito com esse cara. Na USP dizem do messianismo brasileiro e blábláblá... não é nada disso. Ele fez a segunda cidade maior da Bahia com 25 mil habitantes. Se ele estava preocupado com o céu na terra e ele conseguiu uma comunidade de uma organização tremenda, pessoas que se auto-organizavam. Ele não cuidava de nada, ele apenas falava como um pajé. Quem quiser seguir, segue. Quem não quiser seguir, não segue. Tinha os que se ocupavam da guerra, os que ocupavam da igreja, da comida, das roupas, uma organização autogerida. Esse povo foi todo fugido para lá porque, quando veio a república quiseram cobrar impostos numa cidadezinha e o povo... por exemplo, impostos sobre quem tinha carneiro, quem tinha um bode, quem vendia comida no mercado, aí houve uma rebelião popular. Houve uma rebelião violenta e os seguidores do conselheiro fugiram com ele para um lugar onde se escondiam os bandidos, no centro da Bahia, um lugar muito seco, terrível. Pouso Tabú, o lugar onde ninguém ia, um esconderijo. No teatro a gente estuda muito, foram praticamente 10 anos dedicados tanto a construir e mostrar as 5 partes da peça no Brasil, na Alemanha.

Na linguagem da época falavam raça inferior mas não se tratava de racismo. Eu sempre soube que eu sou de uma raça inferior. Adoro ser de uma raça inferior, assim somos chamados. Eu sou descendente de índio, de Celta, imigrante pobre da Itália e da Espanha. Sou um vira lata. Mas todo vira latas tem qualidades que as pessoas que são do sangue puro, do sangue azul nem imaginam. Os que colonizam nem imaginam porque colonizar é chegar no lugar, tomar o poder com armas e evangelizar. Hoje tem a evangelização e tem a tomada de poder.

O Brasil hoje é um grande Canudos. Quando a guerra acabou, os soldados voltaram para o Rio de Janeiro que era a capital e não receberam o soldo por seus trabalhos. Então, foram morar no morro e, a exemplo do que viram em Canudos, denominaram Favela[2]. E hoje, aquela imensa favela e aquele imenso litoral é O Sertões. Está em tudo hoje no Brasil esse povo que agora tomou o poder, um povo ignorante, nem imagina... olha, Are Reté, você precisa dar uma aula para eles. Eles acreditam em mito, são estúpidos. Eu tenho 82 anos e nunca vi tanta ignorância no Poder, nem no período militar. Essa ignorância é prepotente, ela se arma, ela quer colonizar e ela tem uma religião para colonizar. O capitalismo descobriu uma religião aqui que é o neopentecostal que espetaculiza, faz as pessoas quererem enriquecer, uma revolução do dinheiro. Para ficar rico tem que ser pentecostal... só pensa em dinheiro. Só tem $$ na cabeça, não vê as coisas como são.

O Brasil está sendo recolonizado pelas igrejas evangélicas. Eu sei que tem exceção mas a maioria é colonizadora porque mistifica... pra ficar evangélico o cara não precisa fazer nada, ele se torna e começa a pregar besteira para as pessoas. Quer fazer a cabeça para a pessoa ficar rica. A primeira coisa a fazer é ficar rica, é se vestir de escuro. No sertão as pessoas de chinelo, à vontade, e os evangélicos vestidos de preto, de terno e tal. Tem que subir na vida com a bíblia do lado. A bíblia não é nada perto dos Sertões. Os Sertões é um ensinamento muito maior que a bíblia para nós brasileiros. Poque a bíblia depende de você acreditar num messias que vai chegar. Isso não existe. Oswald de Andrade escreveu uma tese filosófica, A crise da Filosofia Messiânica[3], que não passou na USP, a crise da filosofia messiânica: não tem messias, não tem uma coisa que virá do além, não tem um mito (o mito micou, micou). Mas a colonização está se dando sempre através dessa religião messiânica que é a religião do dinheiro mesmo. Isso entra na cabeça da pessoa e ela vira burra mesmo, a pessoa não conhece nada além da bíblia e... então só o messias mesmo para salvar, mais nada. E, pior, o messias é o dinheiro porque é ficar rico. Deus é um cifrão, na cruz está enrolado um cifrão como o símbolo. As pessoas rezam pela cruz do cifrão. É JESU$. Essa é a colonização agora.

A pessoa perde a cabeça, perde a autonomia, perde o corpo, não sabe de si. É como diz o Luiz Melodia: não sabe das coisas.

Tente entender esse seu novo engano[4].

Luiz Melodia foi preciso na filosofia sobre as coisas: é preciso saber das coisas como a Are Reté sabe das coisas, sagra as coisas, inventa em torno das coisas.

 

Fala de Jenifer Nascimento, pela mandata de Érica Malunguinho, deputada estadual por SP, primeira deputada trans do Brasil. 

 

- Microfone aberto, provocações e falas posteriores.

Are Reté: Quando eu falo de nossos saberes, do nosso corpo, usando as tecnologias, é importante nós indígenas se reinventar. Mas reinvenção dá ideia de civilização. Ainda bem que nós não somos civilizados totalmente no Brasil. Estaríamos perdidos. Como se diz em português, estaríamos ainda mais fodidos. E a nossa resistência enquanto quilombo, enquanto indígena, os indígenas aldeados enfrentam a questão do suicídio mais de perto por que? Porque a agressão aos indígenas é de muitas formas... na aldeia está sua sabedoria, sua resistência, nossa forma de estratégias de resistir também está ali, nossa sabedir aiestá ali. Quando se fala ‘emburreceram a gente’, eu entendo: quando você não consegue ouvir o outro, você está sendo colonizador. A escola faz muito isso: você estuda a questão de outo lugar mas nunca... sou professora. A gente não estuda a história local, não estuda a história do estado... A gente quer discutir, quer saber da guerra mundial. A gente está vivendo lá ainda... para cegar a gente. Para a gente não resistir, iludir a gente, nos levar a pensar que ficaremos rios. A nossa sabedoria é super importantes. Para você saber criar outra estratégia. Mas eles estão fazendo com a gente há muitos anos, por exemplo: eu moro na cidade, percebo que matam...

Vou dar o exemplo da Aldeia. Em 2016 foram assassinados 3 adolescentes. Não tem mais mata ao redor da nossa aldeia, o que tem é fazenda com rio, com mata, com gado numa terra enorme. Do nosso lado não tem mais nada. Mas para existir nosso ritual, os meninos começaram a pular a cerca... para chegar no rio tem uma cerca. Onde os meninos vão aprender a nadar, construir um corpo paciente? Mas os fazendeiros mataram e depois alegaram que os meninos invadiram a fazenda para roubar. Mas roubar o que no rio? Mataram os meninos e ninguém foi preso... A coisa vai por aí. Os meninos se sentem inúteis, literalmente, porque não tem mais o que fazer dentro da aldeia. Eles vão se matando. Eu ouvi dizer: Não larga a mão de ninguém... e um desafio. Realmente temos que pegar a mão do outro, mas respeitando a diferença, e isso é um grande desafio para todos nós. Pegar a mão e respeitar o limite do outro. Se o indígena não consegue chegar aqui, alguém tem que falar.

Eu corro para lá e para cá falando sobre as mulheres indígenas. As mulheres indígenas no Brasil não discutiram o que é ser mulher indígena porque ainda estamos discutindo o genocídio, a discriminação que a gente sofre. Por exemplo, quando eu chego arrumadinha, bonitinha como estou agora, entro em qualquer lugar, todo mundo fala comigo em espanhol. Ou sou peruana, ou colombiana, menos brasileira. Isto significa o nosso apagamento, somos desconhecidas, discriminadas e sequer lembradas. Então é uma coisa muito terrível, mas as mulheres tem uma questão, o nosso corpo é o chão, a gente resiste. Lembrei quando o José Celso falou que na nossa língua as mulheres são loucas naturalmente. Nós somos loucas mesmo. A gente arrasa quando quer arrasar! Somos malucas e poderosas. Maluquice também quer dizer o poder.

Para piorar, bem recentemente, 3 parentes indígenas foram presos por policiais ambientais. Eles foram tirar taquara, instrumento típico para as mulheres, mas os homens que buscam na mata. Não tinha no entorno da aldeia, eles pegaram 3 taquaras cada um no total de 9 taquaras. Foram presos e obrigados a pagar 5 mil reais por danos ambientais... como é isso? É muito violento. Como a gente vai reverter essas questões. Estou pedindo pra vocês pensarem conosco como construir um processo de reverter isso.

Os parente presos foram no Paraná. Os meninos que se suicidam são do Mato Grosso do Sul.

 

Zé Celso

É importante que esta fala chegue lá nesses lugares. Porque tem muita gente no Brasil e no mundo procurando soluções para essas questões. Descobre-se maneiras de trabalhar isso. Agora é preciso que isso chegue em muitos lugares. O que é dito aqui devia ser muito divulgado nacional e internacionalmente. Porque é um saber novo e que salva a vida.

 

Are Reté

Os fazendeiros não foram presos. Alegaram que os meninos pularam cerca pra roubar. Por legítima defesa, 3 crianças foram assassinadas. Crianças com vara de anzol e homens com revolver. Se eu não falar, isso não aparece. E quando alguém conta isso diz: são vagabundos, não trabalham, só roubam.

Além de a gente sofrer violência e apagamento, ainda aparecemos distorcidamente. A quem interessa isso? Aos próprios fazendeiros. Se isso também interessar ou não interessar a cada um de nós aqui, é bom a gente falar sobre isso e divulgar.

 

Zé Celso

O Lula[5] nasceu em Caetés, na região onde começou a história do Brasil Segundo Oswald de Andrade. Os índios Caetés devoraram o bispo Sardinha que ia para Roma buscar mulheres brancas para transar com os portugueses porque eles não queriam a mestiçagem. A história do Brasil começa quando os índios Caetés devoram o bispo Sardinha com toda aquela roupa... Eu fiz o bispo Sardinha no Sertões. Então você tem que descascar aquele bispo inteiro para comer, descasca e come. Isso é o Brasil, é a antropofagia e o Oswald diz que começa aí a história do Brasil e não na primeira missa. O Lula nasceu ali. Ele é um ser em transformação permanente. Veio de pau de arara para SP, foi líder sindical, de líder sindical passou a ser uma das figuras mais importantes no final da ditadura onde os movimentos sindicais passaram a ter uma relevância política muito grande. Foi candidato várias vezes a presidência da república, foi fakeado pela Globo no debate com o Collor. A Rede Globo cortou as falas dele e montou toda uma coisa a favor do Collor. Ele venceu as eleições em 2002, ano que abriu para uma perspectiva que o Brasil não tinha. Ou melhor, teve um pouco no Getúlio Vargas e no Jango[6]. O Jango ia fazer uma coisa maravilhosa, Jango, Brisola, iam fazer reformas de base que ainda hoje são necessárias. Eram latifundiários mas tinham a compreensão política da necessidade do Brasil. Não tinha comunismo, nada disso, isso foi uma invenção para viabilizar o golpe de 64. Eu era do PTB jovem, um partido com relação com o mundo inteiro, negociava com a URSS, com EUA, Índia, Cuba, África, tinha uma posição independente no mundo. Não tinha nada a ver com comunismo, era uma democracia social forte por reformas. Os militares deram um golpe com a desculpa que era comunista, fizeram a caça aos comunistas. Mas era uma visão brasileira que a geração do Darcy Ribeiro, Lina Bardi, Celso Furtado, que foi construída. Tive uma sorte incrível de viver essa experiência, de conhecer os Institutos de Estudos Brasileiros[7], porque a gente estudava... O PTB, vocês nem imaginam o que era, muito diferente o partido de hoje que é um lixo, naquele tempo o PTB era um grande partido.

Mas o Lula é eleito. Em 2002 começou uma revolução no Brasil. Uma grande transformação no Brasil. Pela primeira vez chegava alguém preocupado com a distribuição da renda e com a cultura, uma coisa ligada a outra. Imagina que para ministro da cultura ele escolhei o Gilberto Gil, um tropicalista, um antropófago. Poque o PT tinha um programa terrível, Stalinista, careta mesmo. E ele abdicou. Engraçado, numa conferência de apoio a candidatura do Lula no Pão de Açúcar, eu disse para o Lula: a coisa mais importante é o ministro da Cultura e não o ministro do dinheiro, do Banco Central... o ministro que cuida do dinheiro. Não! Importante é a cultura. Eu não sei se ele me ouviu mas ele escolhei o Gil. Antropófago, nada a ver com a coisa stalinista do PT. Lula deu um chute naquele programa. Colocou o Gil e depois o Juca de Oliveira, um ecologista. Eu recebi no candomblé internacional, eu recebi o título de Exú senhor das artes cênicas, que é o título que eu mais me orgulho. O Juca recebeu o título de senhor das florestas, Oxóssi. Foi uma época cultural maravilhosa, corremos o Brasil todo com os Sertões. Chegamos em Canudos, Quixeramobim, terra do Antônio Conselheiro. Fomos para o exterior. E fizemos outros circuitos com as dionisíacas, as peças bacantes. Um momento para o cinema, para o teatro.

Nessa época, o Lula não tinha um olhar forte para os índios. A própria Dilma foi construir Belo Monte sob protesto dos índios. Eu me lembro de um comício quando o Lula era candidato, ali no Rio de Janeiro, e a Sônia Guajajara fez o maior sermão pro Lula... vocês não fizeram nada por nós! Na tremenda eloquência dela, maravilhosa. Lula foi concordando, ficou bobo, pediu para ela sentar do lado dela. Acho que o Lula nesta tragédia de ter sido retirado pelo Moro da eleição, de ser preso... O moro cometeu um crime, é o maior corrupto porque corrompeu a democracia... o Lula seria eleito mas a própria prisão, o Lula está lendo muito. O Lula é um cara em movimento, ele está crescendo cada vez mais e ele, com o sofrimento que ele teve na prisão, que ele aceitou, ele assumiu a prisão para defender a própria inocência, e tudo o que ele agora conhece sobre os indígenas que ele não conhecia, porque ele vem da terra dos índios. Mas atualmente ele está ligado a todos os movimentos. Porque os movimentos cresceram no Brasil também: negro, indígena, diversidade sexual, movimento das mulheres... a maioria da população brasileira. Lula é receptivo, é um democrata, ele sabe negociar, sabe dirigir um país. Tanto que apesar de ser um governo cujo vice era ligado ao sistema colonial, ele gostava, ele conseguiu fazer o Brasil se comunicar com a África... era considerado um crime ele ter levado a Odebrecht para a África, para Cuba, porque não admitem essa política maravilhosa do Celso Amorim que hoje está nas mãos de uma besta, nem sei o nome do idiota, terraplanista, ignorante. Não sabe das coisas, não sabe de nada. Enfim, tem que sair de cena.

Eu tenho a impressão que o Lula está pronto para reassumir uma democracia que contemple tudo isso agora, o movimento indígena, os movimentos todos... agora não é mais operários, com dia o Marx Selvagem, na luta dos indígenas eu coloco toda a luta porque os indígenas são negros e indígenas. Os índios não se deixavam escravizar e isso foi muito bom. Os negros foram trazidos à força, é ainda pior. os negros são ex escravos, o problema maior para mim é a dívida que não foi paga pelo trabalho escravo que foi feito, eles construíram todo o Brasil colonial e nunc a ganharam um tostão. A abolição liberou mas deixou numa situação muito difícil. A escravidão é uma coisa de colônia...

No movimento que está acontecendo aqui hoje e no Brasil todo, o maior movimento de massa foi aquela maré dos estudantes, foi muito forte. É preciso ter confiança, acreditar nisso e lutar poque, no sentido desta multiplicidade. Ao mesmo tempo que nós estamos batalhando contra isso, nós estamos aprendendo com os índios, com os negros, com os travestis, estamos aprendendo com as mulheres. A gente é outro porque a gente não resiste, a gente reexiste. Para enfrentar um poder forte você não pode ficar (lamentando): podem me prender, podem me bater... não, você tem que se inventar de novo, a cada vez e sempre. Nós estamos nos reinventando aqui e agora, em Paraty e num barco pirata. Aqui é um passo avançado, aberto, escancarado: barco pirata. Nós estamos de além do bem e do mal.

 

 



[1] Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, nasceu em 13 de março de 1830, na atual cidade de Quixeramobim, no Ceará.

[2] A origem do termo "favela" encontra-se no episódio histórico conhecido por Guerra de Canudos. A cidadela de Canudos foi construída junto a alguns morros, entre eles o Morro da Favela, assim batizado em virtude da planta Cnidoscolus quercifolius (popularmente chamada de favela) que encobria a região.

[3] https://antropofagias.com.br/2020/05/14/a-crise-da-filosofia-messianica/

[4] Referência à canção de Luiz Melodia, Pérola Negra. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=8YO4wP0aC6o>

[5] Referência a Luís Inácio Lula da Silva

[6] João Goulart.

[7] Deve estar se referindo aos CEBs – Centro de Estudos Brasileiros


[1] Nota: encontrei referências a um conhecimento sísmico dos Guarani nesta região.

[2] Ela está provavelmente se referindo à praia de Itaorna em Angra dos Reis/RJ. Originalmente uma aldeia onde foi construída a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto. https://pt.wikipedia.org/wiki/Praia_de_Itaorna

[3] a grafia está imprecisa.

[4] Talvez essa não seja a grafia correta. 



Pandemia de saudade


Estamos encerrando 2020, um ano marcado por vários episódios. Pelo retorno da miséria ao Brasil, pela dilapidação do Estado brasileiro, pelo entreguismo do patrimônio público, pelo rebaixamento político. Trata-se do segundo ano de um governo desastroso, asqueroso, armamentista e miliciano. Pelas eleições estaduais e municipais que, apesar do avanço da agenda neoliberal, fortaleceram algumas lideranças políticas progressistas na cena nacional. Mas 2020 será lembrado pela Pandemia do Coronavírus. Neste momento em que escrevo, são quase 7,5 milhões de contaminados/as e mais de 191 mil pessoas mortas no Brasil por covid-19. É como se a população de Rio Claro morresse em apenas um ano, vítima da pandemia do vírus, do descaso e da incompetência. 

A necessidade de isolamento social, pintou com cores diferentes as festas de final de ano. Eu acho, e posso estar enganado, que as comemorações foram mais intimistas. Quero dizer que as pessoas se reuniram em grupos menores, as famílias (por assim dizer) estiveram juntas na noite de natal. Claro que estou generalizando para podermos conversar neste artigo. Acho também que este final de ano foi marcado por um sentimento bonito chamado saudade. E por falar em saudade… em 1943, Wilson Batista (1913-1968) e Geraldo Augusto gravaram Diagnóstico: 

Eu fui ao doutor / Me consultar / Ele me levou ao raio X / Boa amiga / Eu não quero lhe desgostar / Mas você tem uma saudade no peito / Só o tempo é que pode lhe curar 

Imagine que a personagem da canção sente uma coisa no peito e procura um médico. Este, por sua vez, pede exames e dá o diagnóstico: é saudade! Sentimos saudade de estar com as pessoas que gostamos, sentimos saudade de encontrar e conhecer gente, sentimos saudade de abraçar e de beijar. Sentimos saudade de comemorar, de comer e de morar, de demorar em conversas agradáveis e sem fim. Sentimos saudade de estar juntos/as, de uma roda de samba, da alegria produzida no encontro de corpos em festa. O médico da canção continua... 

Eu sinto muito / Mas não há remédio / Pra combater esse malvado tédio / O micróbio da saudade é renitente / Custa muito a abandonar / O coração da gente 

Bonita a imagem que Wilson Batista produz: a saudade é como um vírus que se instala em nosso coração. Não um vírus letal mas um vírus vital. A canção termina assim: 

A medicina está muito avançada / Mas no seu caso não adianta nada / É incurável a sua enfermidade / Não há remédio pra curar uma saudade 

A saudade como nostalgia, bem querer e alegria. Mas também podemos pensar em uma saudade ligada mais ao futuro, uma saudade em projeção, uma saudade que lança novas iniciativas, um vírus que nos toma, um vírus que nos alimenta a vontade de fazer alguma coisa: buscar, procurar, escrever, telefonar, encontrar, agradar, atrair. Talvez a saudade seja uma espécie de bicho geográfico, então deixá-la passear pelo corpo, senti-la e esperar.

Diagnóstico está na internet. Eu gosto da gravação da Cristina Buarque no disco Ganha-se Pouco mas é Divertido. 

E por falar em saudade, onde anda você? 

Ivan Rubens Dário Jr 

Seria uma aula?


Quem de nós imaginaria, em dezembro passado, que este 2020 seria assim? Caminhando para o final do ano poderíamos falar um pouco da Política, do ponto final do Padaria no poder executivo local, ou de um país paralelo pilotado pelo patético Presidente, pálido, impopular, e sua prole de zeros em pactos de poder pelo poder. Pretendo, portanto, partilhar um pouco a respeito de palavras que, suponho, sejam mais potentes. 2020 foi pautado pela pandemia que impactou particularmente a vida das escolas em todo o país. Pude, por felicidade, participar, acompanhar, perceber os impactos disso em algumas escolas públicas e particulares. Partimos na ponta da língua do P para pensar a palavra Pensamento em aproximação, pertinho, par e passo com a palavra Aula.

O que seria uma aula? Algumas definições são possíveis. Vamos partir de uma bem bonita: Aula é pôr em movimento a matéria pensamento. Assim, aula e pensamento são dimensões indissociáveis. Pode haver aula sem pensamento assim como pode haver pensamento sem aula. Há quem considere uma boa aula aquela que coloca o pensamento para pensar. Por ser uma matéria, o pensamento tende ao repouso e, em repouso pode permanecer, parado, imóvel, inerte. Para sair desse estado de repouso, para sair da inércia, ele precisa ser violentado. Isso mesmo… Um exemplo pode nos ajudar: o carro parado numa rua plana, sem bateria. Vira a chave e nada. Sem funcionar o motor, o carro permanecerá ali, parado. Então o motorista pede ajuda, algumas pessoas empurram o carro, o motorista dá um tranco e pronto, motor funcionando. Com o pensamento é parecido: um empurrão, um tranco, um solavanco, uma provocação, uma boa pergunta e pronto, o pensamento pode estar se movimentando.

Claro que podemos falar do pensamento como uma atividade orgânica. O coração bate, o pulmão enche e esvazia, o sangue circula e a cabeça pensa. Mas estamos falando de uma definição que afirma o pensamento como uma matéria que entra em movimento num determinado tempo e espaço delimitado que chamamos de aula. Compreendida desta maneira, uma aula acontece quando o pensamento recebe um empurrão e, com isso, entra em movimento. É precisamente aí que começamos a pensar.

Neste período de isolamento social, de escolas fechadas, de professoras/es e alunas/os se virando como podem, acompanhei algumas aulas. Sete horas da manhã, livros abertos sobre a mesa ao lado do computador emprestado e uma pequena aluna do 8º ano ouvindo atentamente à fala empolgada da professora. “Adoro minha professora de História”, disse a aluna. Algumas horas dedicadas à aula de história e muitas conversas aconteceram, boas conversas reveladoras do pensamento-movimento. Fiquei pensando no trabalho da professora para preparar e oferecer uma boa aula mesmo que pela internet, e falar de histórias de modo a dar um tranco e colocar em movimento o pensamento da aluna. O meu também. Nem datas, nem nomes de heróis nacionais, sem apologias e cultos, nem tenentes e capitães mas perguntas, boas perguntas e provocações. Empurrões para o pensamento pensar naquela aula, apenas uma aula.


Ivan Rubens

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro do dia 01/dez/2020

Terra, vida e voto.

Narciso é um personagem da mitologia grega, um símbolo da vaidade muito citado na psicologia, na filosofia, presente na música, nas artes plásticas, na literatura. Narciso em férias: o título do documentário despertou minha curiosidade. O que seria um Narciso em férias? teria o narcisismo viajado? estaria o sujeito em férias do seu narcisismo? de que férias estaria falando? 

Quando eu me encontrava preso / Na cela de uma cadeia / Foi que eu vi pela primeira vez / As tais fotografias / Em que apareces inteira / Porém lá não estavas nua / E sim coberta de nuvens / Terra, Terra / Por mais distante / O errante navegante / Quem jamais te esqueceria? 

Caetano foi levado de sua casa, em São Paulo, para uma prisão no Rio de Janeiro. Foram 54 dias no cárcere sendo os primeiros dias na solitária. Anos depois ele nos conta suas memórias desse período sombrio da história brasileira. O início do documentário responde várias das minhas perguntas, sobretudo as que dizem respeito às férias. Narciso em Férias é um documentário sobre a prisão de Caetano Veloso pela Ditadura Militar em 1968. 

Ninguém supõe a morena / Dentro da estrela azulada / Na vertigem do cinema / Mando um abraço pra ti, pequenina / Como se eu fosse o saudoso poeta / E fosses a Paraíba / Terra, Terra... 

Foi neste período que os americanos chegaram à Lua. Preso numa cela escura, Caetano viu as imagens do planeta Terra tiradas numa outra perspectiva, num outro ponto de vista - imagine uma máquina fotográfica apontando para um ‘objeto’ a ser retratado - lá em cima, do alto, da amplidão do espaço sideral. Enquanto isso, limitado à cela minúscula, confinado, preso, o artista (e logo um artista) se depara com uma imagem, dentre as primeiras imagens que a humanidade produziu do planeta Terra livre, vagando, solta no espaço. Essa imagem ficou na cabeça do compositor. Anos mais tarde, recuperando essa lembrança, Caetano fez a canção Terra. 

Eu estou apaixonado / Por uma menina terra / Signo de elemento terra / Do mar se diz: Terra à vista / Terra para o pé, firmeza / Terra para a mão, carícia / Outros astros lhe são guia / Terra, Terra... 

Ver as imagens de degradação ambiental no Brasil, sobretudo as queimadas no Pantanal e na Amazônia, as violências cometidas sobre populações indígenas, sobre a biodiversidade, traz a pergunta: o que estamos fazendo da vida? porque a vida é a vida, não dá para pensar em hierarquias de vida, por exemplo, uma vida que vale ser preservada e outras não. Convido você para pensar a vida em si, suspendendo (mesmo que temporariamente) a ideia de vida neste/nesta, desta/deste ser. Não a vida que se faz carne mas a vida em sendo vida. 

De onde nem tempo nem espaço / Que a força mande coragem / Pra gente te dar carinho / Durante toda a viagem / Que realizas no nada / Através do qual carregas / O nome da tua carne 

Que as forças de vida nos mandem a coragem suficiente para expandir a vida e, neste mês da consciência negra, lutar por mais vida sobretudo para quem tem a vida sob constante ameaça. No dia 15 vote em candidatos comprometidos com a vida.

Tanto mar


Dia desses, arrumando meus cadernos, textos, organizando o material de estudo na tentativa de organizar as ideias, em meio aos trabalhos de estudantes da geografia encontrei uma anotação minha. Muito interessante re_ver, re_lembrar, re_sentir o estado passado passando para o estado presente, numa espécie de atualização. O bilhete tornando atual um episódio passado.

Já não me lembrava do pequeno relato mas, ao ler o bilhete feito por mim para mim mesmo, tudo voltou imediatamente como se eu estivesse re_vivendo aquele dia. Talvez um geógrafo escreva na medida que se inscreve na paisagem, na medida em que transita na cidade. Tudo nítido em imagens coloridas, em sensações, em descobertas. Tudo isso estava nas poucas palavras daquele bilhete que, inclusive, sussurrou o fundo musical imaginário:

Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim

Aconteceu em Curitiba no ano de 2018. Durante um trabalho de campo fui parar no marco zero da cidade. Na Galeria Júlio Moreira, uma escola de xadrez com muita gente praticando. Conheci a Sala Ivo Moreira (1949-2010), músico do rock e do blues, a Igreja da Ordem datada de 1737. A Casa (historiador) Romário Martins é um Centro de Cultura e Arte onde observei remanescentes da arquitetura colonial luso-brasileira. Numa das placas eu li que Mário Soares, então presidente de Portugal, esteve ali naquela casa exatamente como eu estava naquela tarde. Pensei na revolução dos cravos e a canção do Chico Buarque surgiu em sonoridade imaginária. Tanto imaginária quanto real. Tanto mar diz assim:

Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar / Lá faz primavera, pá / Cá estou doente / Manda urgentemente / Algum cheirinho de alecrim

Saí da casa e continuei errando movido por um desejo incontido de encontrar mais marcas das camadas e camadas de humanidade e de cultura na arquitetura, na urbanidade. Até que me encontro com Paulo Leminski, curitibano, poeta e professor (1944-1989) numa parede. A poesia se chama Amor Bastante:

Quando eu vi você / Tive uma ideia brilhante / Foi como se eu olhasse / De dentro de um diamante / E meu olhar ganhasse / Mil faces num só instante / E você tem amor bastante.

Você que está lendo este texto e conhece a canção Tanto Mar de Chico Buarque talvez esteja percebendo algo diferente na letra. Esta canção teve sua primeira versão censurada pela ditadura militar em 1975. Em 1978 Chico escreveu uma segunda versão que, gravada, tornou-se conhecida do público. Iniciamos este texto falando de atualização e, de alguma maneira, brasileiros e brasileiras atualizaram a ditadura ao eleger o capitão, mero representante mal acabado do autoritarismo, do machismo, do negacionismo fascistóide que emerge das profundezas de nossas catacumbas coloniais.

Dedico a Zuza Homem de Melo, falecido no dia 04/outubro.

Ivan Rubens Dário Jr


A roda está viva

Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino prá lá

Tem dias e dias. Tem dias que estamos assim e tem dias que estamos assado. Tem dias que sentimos muita coisa interessante e tem dias que sentimos um imenso vazio. Quem nunca sentiu um vazio? Um vazio que parece ocupar tudo, parece te ocupar por inteiro, um vazio que pré_enche. Ficamos cheios de um vazio angustiante. É como uma roda gigante: ora está em cima, ora em baixo.

A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira prá lá

Tem também dias de intensa alegria, dia que o céu parece mais azul, o ar parece mais fresco e uma alegria te toma, uma sensação de que o corpo quer brincar, quer dançar. E você se sente pleno, senhor de si e senhor do tempo, faz planos, projeta no futuro aquilo que deseja realizar. Mas alguma coisa acontece e tudo escapa por entre os dedos.

A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a viola prá lá

Tem dias que nos sentimos loucos, fazemos coisas que estão completamente fora da ordem, fora do normal. De que ordem estamos falando? De que normal? Da norma que se estabelece! Mas quem estabelece as normas? Hum… Talvez a nossa loucura não seja tão louca assim, talvez seja apenas um sinal que estamos enxergando a loucura que tomou conta do mundo. Estamos falando de uma pequena loucura que significa uma compreensão da grande loucura do mundo: essa norma, essa normatização de um modo de vida que destrói, que mata, que despotencializa, que desvitaliza.

O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade prá lá

Apesar das normas, da domesticação, da desvitalização, um corpo dança: mulher negra grá_vita. Dança livre das normas, livre das sanidades, livre das camadas e camadas de moral e de ‘bons costumes’ que desencantaram a vida mundana. Ela dá vida à vida.

Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração...

Tudo seguia normalmente até que chega a pandemia e… até respirar está levando à morte. O Coronavírus revela que tratar a natureza como mercadoria, tratar o meio ambiente como fonte de exploração é matar a vida neste Planeta. O governo do Pandemônio é a expressão deste tempo de morte nas relações econômicas e políticas que transborda para as relações sociais cotidianas. Este tempo de morte vai passar.

Roda-viva é uma canção de Chico Buarque.

Ivan Rubens

Geógrafo