Mascarada


Aconteceu no Rio de Janeiro. Um sambista muito gente boa brincava o carnaval no “Bloco das Piranhas”. Neste bloco, como era comum na década de 1950, os homens desfilavam vestidos de mulher. Pois bem, o sambista muito gente boa encontrou uma moça no bloco. A moça também encontrou o sambista. Ambos se gostaram, não deu outra: romance! O sambista não foi mais visto naquele carnaval. Dias depois ele revelou a um amigo, também sambista, que a moça não tirou a máscara. Ele, portanto, não conseguiria identificar o rosto daquela mulher.

No ano seguinte a história se repetiu. O sambista gente boa já sabia onde encontrar a Mascarada. E o romance emergiu... mas o mistério se manteve porque ela novamente não tirou a máscara. Apenas no terceiro ano a mulher revelou seu rosto. Apenas no terceiro carnaval ela se permitiu tirar a máscara.

Talvez você não acredite nessa história. Talvez você pense assim: mais uma história de carnaval. Olha, vou te dizer que eu acredito. Verdade ou mentira é um detalhe menor. Não se trata disso. Vamos colocar a questão de um jeito mais bonito: realidade ou invenção? O poeta mato-grossense Manoel de Barros diria memórias inventadas ou 10% é verdade e 90% é invenção! Mas, se considerarmos invenção como criação humana, não dá para dizer que uma história inventada é mentira.

Tem um samba que diz assim: O corpo, a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobre pra’as trevas / O nome a obra imortaliza. Ou seja, a obra imortaliza o artista, a criação torna a vida do criador mais longa do que a sua carne. Aliás, se você olhar direitinho, dentro da palavra ‘carnaval’ tem a palavra ‘carne’.

Então, o sambista gente boa de que falamos é Zé Keti. Um dia, Zé Keti apareceu acompanhado de “uma bonita senhora” e disse: “Elton, essa aqui é a mascarada”. Mais ou menos assim nasceu o samba canção Mascarada, de Elton Medeiros e Zé Keti.

Vejo agora esse seu lindo olhar / Olhar que eu sonhei / E sonhei conquistar / E que um dia afinal conquistei, enfim / Findou-se o carnaval / E só nos carnavais / Encontrava-te sem / Encontrar esse seu lindo olhar, porque / O poeta era eu / Cujas rimas eram compostas / Na esperança de que / Tirasses essa máscara / Que sempre me fez mal / Mal que findou só / Depois do carnaval.

Neste 2021 comemoramos o centenário de Zé Keti. Mais do que nunca e por razões bem particulares, Mascarada faz-se atual. A mulher mascarada que inspirou a canção se mostraria prudente na pandemia. Porque, apesar dos pesares, apesar da pandemia, hoje é terça-feira de carnaval. Apesar de você, Jair, apesar da sua ignorância e truculência, apesar do rio de leite condensado e dos mares de lama onde naufraga seu governo incompetente, apesar da cerveja e do whisky, do bacalhau e da picanha de alta patente, apesar de você amanhã há de ser outro dia. E as ruas estarão cheias de gente colorida, alegre e cheia de vida: Unidos do Fora Bozonaro, nota 1000.

Faça como a Mascarada: use máscara!

Ivan Rubens Dário Jr


publicado no jornal Cidade de Rio Claro em 22 de março de 2021

Mascarada, Zé Keti

Mascarada, com Elton Medeiros


Uma Travessia


Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar / Minha casa não é minha / E nem é meu este lugar / Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar

A pessoa se foi. Teria acabado o amor? Teria nascido um novo amor? um laço está desfazendo... O dia se fez noite, o sol se fez lua, toda cor desbotou, empalideceu.

Um laço vai se transformando rapidamente em um nó. Um aperto no peito, um nó na garganta. É como se o chão fugisse e não sabemos mais onde pisar. É uma espécie de desterritorialização: você se sente perdido, sem chão, sem lugar. É preciso botar para fora esse mal estar em forma de desabafo. É preciso falar, contar, lamentar… para que o nó não se transforme em nódulo.

Solto a voz nas estradas / Já não quero parar / Meu caminho é de pedra / Como posso sonhar / Sonho feito de brisa / Vento vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar

Ao soltar a voz, parece que o grito preso na garganta vai desatando o nó. Então, falamos sem parar. O chão que era firme para a caminhada da vida, torna-se um sem chão, um chão pedregoso, perigoso, onde cada passo demanda um tempo e cuidado: as pedras estão soltas. É como andar sobre as pedras dispostas no leito do rio. Se o sofrimento se alonga, chega-se a estar cara a cara com a morte. Uma morte simbólica, uma morte como encerramento, como finalidade. Fim de uma história, final de um amor. Não se trata de uma morte física mas de uma morte em vida. Neste sentido existem mortes... e vida segue!

Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você / Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver / Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver

O tempo vai passando lentamente porque a memória se mantém viva. Como diz Chico Buarque na linda canção chamada Romance: “com todas as canções, os momentos bons e as horas más que a memória coa”. Imagine que dentro da cabeça existe um pequeno coador de café, daqueles de pano, onde as tristezas vividas, as amarguras, as chateações ficam presas no pano. E apenas passa pelo coador tudo aquilo que houve de bom. Os momentos bons, as alegrias, a felicidade mesmo que breve, que instantes vividos. Esses ficam eternizados na memória. Porque o tempo vai fazendo seu trabalho de deixar o excesso de peso pelo caminho e guardar no corpo apenas aquilo que realmente importa, aquilo que dá leveza, que facilita a caminhada pois a vida segue seu curso. Aquela velha imagem vai se apagando, outros mundos vão surgindo. É a vida renascendo... até que um novo amor acontece. Ou não. Mas isso nem importa tanto assim. O que importa mesmo é avançar no sentido de tomar para si a própria vida.Esta é uma leitura possível, dentre tantas, da canção Travessia (Fernando Brant e Milton Nascimento).


Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 25 de janeiro de 2021

Lido por Sofia Mercía no programa América Livre, da rádio progresso em Honduras. 20/set/2023

A descolonização do poder


Autonomia Literária

No desenvolvimento do capitalismo, o Estado ocidental amparou seu poder no monopólio da força e na centralização do poder. Assim como existia apenas um deus, ou um rei, também deveria existir apenas um soberano. Essa visão de Estado fez com que povos fossem dizimados em meio a colonização das Américas. Entretanto, muitos povos lutaram e resistiram. Como é o caso do Brasil, onde indígenas resistem há mais 500 anos processo sanguinário de dominação. Para debater sobre a resistência dos povos indígenas e suas linhas de fuga, convidamos a guerreira indígena Are Rete (Guarani Nhandewa-Paraty) e dramaturgo antropofágico Zé Celso (Teatro Oficina). A mediação de Jean Tible, autor de Marx selvagem.

Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UEBmSTvxdME&t=1975s> Acessado em janeiro de 2021.


Jean Tible

Boa tarde. Vamos começar nossa conversa sobre a descolonização do Poder. A deputada estadual Érica Malunguinho, lá do Aparelha Luzia e deputada estadual pelo PSOL de São Paulo, não pode comparecer. Nós temos a presença da indígena Are Rete (Guarani Nhandewa-Paraty) e dramaturgo antropofágico Zé Celso (Teatro Oficina).

A FLIPEI é o barco pirata. Os piratas têm uma imagem forte, qualquer pessoa que ouvir pirata já aparece todo um imaginário. Mas vários historiadores recuperaram as imagens dos piratas, é interessante porque os piratas eram meio contra poder de um mundo extremamente autoritário. Os piratas eram um dos coletivos mais democráticos do seu tempo, com uma política menos hierárquicas, uma política diferente. Eles eram o oposto do abjeto navio negreiro que foi uma das primeiras prisões modernas e, ao mesmo tempo, uma das primeiras fábricas modernas, e esse vínculo tem tudo a ver até hoje. Eles também eram grupos multirraciais, escravos que haviam escapados, tinham outro contato com as populações ameríndias, outra relação com os povos do continente africano, então aqui chamamos barco pirata. E essa mesa, porque se a gente fala de descolonização do poder talvez seja também almejar e criar o fim do poder. Então nós somos aqui um barco pirata em terra Guarani e, por esse motivo, acho que faz todo o sentido começar com a Sandra Benites Ara Rete.

 

Sandra Ara Reté

Primeiramente quero agradecer ao convite, me sinto honrada em poder falar na beira da praia em Parati. Sou Guarani Nhandewa de origem no Mato Grosso do Sul. Parati é Para Ty (foneticamente é algo parecido com o som de ã mais puxado para o i). Na língua Tupy e na língua Guarani, Para é mar, ty é onde tem muitos mares, ilhas. A língua portuguesa tem muita dificuldade de falar Y que pra gente é água. Em português usa I para Y mas para a gente tem outro significado.

(Zé Celso convida o público presente para falar na língua tupy PARA Tÿ)

Atualmente existem no Brasil 305 etnias que são identificadas como etnias, mas aqueles que são aldeados, que moram nas aldeias, e 274 línguas faladas. Por exemplo Guarani e tantos outros, os Kaingang tem a língua como se fosse um espanhol com alemão. Eu sou Guarani falando com os Kaingang, é totalmente diferente. Por isso que o português vem sendo importante para a gente por conta da comunicação entre nós indígenas. Esses são identificados como indígenas e tem vários outros, por exemplo na cidade do Rio de Janeiro tem muitos indígenas que se chama do contexto urbano, tem indígena que não se reconhecem como indígena, nem como negro, nem como branco. E isso nem se discute porque tem muitos parentes indígenas que perderam o vínculo e perderam suas origens, de onde vieram, a qual etnia pertenciam. Eles ficam nessa angústia também. Isso não tem sido discutido, isso é uma questão. No Brasil, as cidades que invadiu a aldeia. Isso aqui era uma aldeia e hoje é uma cidade. Como Patary tem tantas outras.

Itaorna: ita – pedra mas que não é resistente. (Orna[1] – como se fosse podre. Pedra mole ou pedra podre). Vocês viram que a usina nuclear[2] na época. Na língua existe conhecimento, quero falar um pouco disso.

 

O que é DESCOLONIZAR? Eu não entendo o que é isso na língua portuguesa porque não é a minha língua. Eu tenho que adaptar essa palavra de uma forma que faça sentido para mim. Eu entendo que é... a gente fala oim-iporã[3]: encaixar no lugar. Esse ‘encaixar algo no lugar’ quer dizer ‘guardar no lugar certo’, falar oim-iporã é coisa boa, encaixar a coisa no seu devido lugar, encaixar. É o desafio para todos nós hoje. Por que digo isso? Eu entendo, enquanto guarani, enquanto mulher indígena, eu entendo que nós temos as nossas políticas. Aí já vem outro termo que eu tenho dificuldade de entender na língua portuguesa mas vamos, digamos assim, comparar... quando eu pergunto para os meus parentes, na nossa língua não existe uma palavra para política. Palavras políticas, para os meus parentes independente da etnia, eles dizem que é conversatório.

Io-manguetá: conversar, conversa grande...

Atê guaçú: atê é isso que a gente está aqui, se juntar para a gente falar. Falatório não é negativo, é uma fala de todos. E aí está um desafio nosso porque eu acredito que enquanto acadêmica também, para eu aprender e entender esse outro corpo que eu chamo de corpo território, porque o nosso corpo também é um lugar de sabedoria. O nosso corpo é o lugar da nossa sabedoria porque é o lugar do nosso corpo é a gente... onde tem história, tem espaço, tem o seu lugar. Por isso a educação precisa ser diferenciada para nós indígenas, tem lei que ampara isso, foi muita luta e sangue derramado de lideranças indígenas para conquistar essa educação específica para garantir... inclusive isso está sendo atacado hoje também. Mas isso é importante porque cada lugar tem sua própria história, tem seu próprio corpo. Estou dizendo isso porque eu comecei a percorrer e a compreender um pouco enquanto indígena porque eu vim de lugar diferente, eu tive que não me adaptar mas eu tive que me INCLINAR para conhecer o outro. Quero dizer que conhecer o outro não é tarefa fácil. Isso te causa dor também mas eu tive que me desafiar para poder equilibrar o meu conhecimento. O que é conhecimento? Conhecimento pr’agente é assim... porque se tem uma outra forma de pensar e, a partir disso que a gente tem que começar a dialogar para se entender, ou seja, pr’agente respeitar o limite do outro, quer dizer, o próprio corpo. Por isso que o nosso corpo tem trajetórias, tem experiência, tem sua história. Tem o seu próprio lugar também. Por exemplo, quem nora na cidade vai achar que os indígenas que moram nas casas de estuque é pobrezinho (já ouvi uma criança falar isso)... já ouvi tanta coisa... eu não culpo porque as crianças ainda não compreenderam o que é ser pobre. Um parente dizia: pode ser que a gente é pobre hoje porque empobreceram a gente. Mas ele não está falando de coisas, de objetos, ele está falando de conhecimento, de sabedoria, de bem estar, do bem estar do seu próprio corpo, ele está falando de ter autonomia. Quer dizer, pra você colocar, encaixar aquela peça que, da forma que você pensa, é um enorme desafio porque o outro pensa diferente de você. É por isso que eu acho que, infelizmente, as nossas sabedorias ainda não foram ouvidas.

Eu vim de uma aldeia e eu fui para a cidade, eu tive que me inclinar várias vezes, e isso foi importante apesar da dor que me causou, hoje eu posso dizer o que eu penso. Eu tive que aprender a falar português, tive que dançar de acordo com a música do local. Eu tive que aprender a falar, muitas vezes, palavras que não existam equivalentes na língua Guarani. Por exemplo, na língua guarani não existe palavrão e eu gostei de aprender os palavrões em português. O palavrão que eu gostei de aprender e que acho que faz sentido, é o foda-se (rs e aplausos).

Tem tanta coisa pra falar... vou apenas provocar ou sei lá como chamar isso... eu queria pensar que hoje eu acho que temos que pensar em dois aspectos o que é o Brasil de fato. O primeiro aspecto pr’agente entender, para a gente não ser muito... eu falei que as vezes dá uma tristeza porque o Brasil nos nega enquanto indígenas. Mas quando a gente aparece em alguma mídia ou algum lugar para falar, pra lutar pelos nossos direitos, somos mal vistos: “o indígena não tem nada o que fazer”... A gente recebe isso sempre. O indígena se manifesta, “ele é vagabundo”. “Esses seres humanos ainda existem?” É assim que a gente vive hoje, como refugiados do nosso próprio país. E falando em país, pelo menos eu pergunto para os meus parentes: o que é país? Eles dizem que não existe pais, quem colocou esse nome e essa divisão foram os não indígenas, esses que querem dominar o outro. Para a gente não existe país, existe fronteira para respeitar a diferença do outro e não a terra. Meus parentes dizem isso!

O segundo aspecto é o processo histórico: como foi construído o Brasil? os indígenas massacrados, que foram escravizados. Os Arcos da Lapa que foi construído pela mão escrava indígena, e outras várias coisas que foram acontecendo... toda a violência contra nós indígenas, isso não é contado. Então, apesar de ser muito triste para nós, só nós podemos contar isso. Então, como a gente vai descolonizar as coisas se a gente nega o outro e quer tapar o buraco, quer esconder toda a violência que o outro sofreu. Nós indígenas somos muito hospitaleiros, a gente recebe muito bem, quando a gente recebe o outro é sempre com muito carinho o que não é, muitas vezes, feito com a gente.

Por fim, um último ponto é esse: saber o saber do outro. Cada lugar tem os seus saberes, cada corpo tem os seus saberes. Esse é um grande desafio para nós enquanto seres humanos, enquanto instituições também. É importante se questionar sobre essas diferenças, eu me questiono todo dia sobre como eu vou lidar com essas diferenças do outro... nós indígenas não temos essa dificuldade de saber lidar com o outro, a gente é muito educado para saber receber o outro. Por exemplo: para nós Guaranis, todas as coisas têm o seu espírito. Por exemplo a água, o mar, o rio, a mata, os seres da natureza existem seus espíritos. Por isso que quando a gente vai tirar uma casca, uma árvore para fazer a casa, a gente pede para uydjá[4]. O que é uydjá? São os espíritos daquele que a gente vai tirar porque é pr’agente consumir por necessidade e não para a gente devastar porque isso prejudica o outro. Por exemplo, a pedra tem um uydjá muito bravo. Os nossos antigos dizem que as pedras dos uydjás são resistentes mas quando elas se desencantam, podem se mudar. Mas para que os espíritos das pedras se mudem, eles podem fazer tragédias. Isso é o desencantamento do espírito da pedra.

Ainda sobre essa questão do espírito, para nós não existem saberes genéricos. As mulheres tem os seus saberes a partir do seu próprio corpo. Os homens tem também os saberes a partir do seu próprio corpo. Eu fiz meu mestrado sobre isso para poder tentar explicar o que é o corpo, porque o corpo é importante, porque o espírito é importante. Fui pesquisar... por ser guarani e moradora numa aldeia não significa que eu saiba de tudo, não é isso. Então eu tive que pesquisar com os mais velhos, e eles disseram que as mulheres (meu trabalho foi com mulheres) e eu fui percebendo que as mulheres guaranis mais velhas geralmente, quem ensina os meninos são as mulheres, ou seja, as mulheres ensinam os homens. Isso acontece porque o nosso Nhandecy (a nossa mãe) é da terra. Ela é chão. A nossa mãe é a terra. Elas contavam essa história para os meninos e diziam: tem que saber pisar. Os Guaranis tem dança do guerreiro, mas o pisar da dança do guerreiro não é para ser forte, é para ter corpo leve e pisar leve. Homem de verdade significa pisar leve. Temos aí todas as danças, esse corpo que eles vão ensinar a ter um corpo paciente exatamente depende de vários elementos que tem entorno, por exemplo o rio, mata e tal. Eles vão aprender a retirar, fazer ritual para ir retirar essa árvore, fazer ritual para pescar. Então, se não existe mais terra, não existe mais mata suficiente para eles darem continuidade a essa sua sabedoria enquanto homem, isso está resultando em vários suicídios de meninos indígenas no Mato Grosso do Sul. No meu entendimento (não sou especialista), percebo, me parece que eles não estão encontrando o seu próprio lugar. Lugar de ensinamento, lugar de aprendizado porque isso depende muito de lugar também. O espaço e o movimento e os elementos que dão suporte para esses meninos para eles se identificarem como meninos... estou falando de ser, como devem agir, eles vão construindo durante esse ritual, durante cada etapa da vida deles. Para finalizar, eu pude perceber esses problemas que a gente está enfrentando hoje, e as mães dizem que (eu lembro da minha avó que me dizia...) toda vez que elas ensinam os meninos a terem corpo ativo, um corpo alegre. Homem verdadeiro na língua Guarani significa homem alegre, ativo, homem saudável é isso. Os homens tem que desconstruir aquele mal humor, tem que ter paciência... E tudo isso os meninos vão construindo durante esse processo do ritual. Esses problemas são as tragédias para a gente.

Falando da Nhandecy que é o corpo da mãe terra, o chão que a gente pisa, é o corpo feminino por isso que a gente tem que respeitar... no dia que o corpo feminino não seja respeitado, eles diziam que o mundo pode se revoltar contra a gente mesmo. Não à toa a gente fala do homem, a humanidade, o homem.... essas coisas todas eu venho tentando entender a partir da minha língua, da sabedoria dos meus parentes para poder entender um pouco. Eles falam essas questões... A gente tem essa ideia de que a gente tem que aprender a abraçar o mundo porque o mundo não vai te abraçar. Porque o mundo são vários, ou seja, o mundo somos nós mesmos.

O que mundo nós queremos para nós enquanto humanos? Enquanto mulher, enquanto criança... a gente olha e cumprimenta o outro. O Nhandecyr é o chão, e a figura masculina é o próprio o ar, o vento que a gente respira. Um cumprimenta o outro, em equilíbrio. Não existe na nossa língua uma palavra para igualdade, o que existe é equilíbrio. Obrigada.

José Celso

A tua fala é a fala de uma das melhores filósofas brasileiras atualmente. O pensamento indígena atualmente é o pensamento mais comunicativo que existe. Eu acho que nessa feira talvez a sua fala tenha sido das mais tocantes porque é muito concreto, muito concreta. Minha avó era índia, então eu tenho um verdadeiro culto à cultura indígena. Minha avó era índia tupi lá em São Paulo, casada com um português celta, mas a minha avó me ensinou muita coisa. E minha bisavó que já estava doida, plantando bananeira e rindo, velhinha.

Desde que descobriu um grande autor brasileiro, acho que um dos maiores poetas do mundo que é Oswald de Andrade, ele é muito conhecido no Brasil por ter feito o modernismo mas de repente 1928 e falou: “Eu não sou mais moderno. Agora eu sou o primeiro poeta do mundo pós-moderno fazer uma pós moderno”. Mas pós moderno para ele é um retorno à perspectiva dos índios, ele retorna à antropofagia e ele ensinou demais com a antropofagia. Eu pude ir atrás de saber que eu vejo em você é muito concreto.

A psicanalista Suely Rolnik, é muito parecido com o que você disse. A subjetividade como um corpo, como o lugar que ocupa... Tudo o que você disse é novo e, ao mesmo tempo, tudo o que você disse é o que existe de mais... (não gosto dessa palavra) vanguarda. Esse povo aqui presente, eu acho que esse povo está muito próximo do que você fala. As pessoas que estão te ouvindo, talvez nem elas imaginem o quão próximo elas estão do que você está falando. Por exemplo, pro movimento das mulheres, o que ela falou aqui é uma coisa cósmica, uma coisa maravilhosa, filha da mãe Terra, uma coisa extraordinária.

O Ailton Krenak, fiz uma mesa com ele e ele fez uma pajelança, me pintou todo. Adoro ele. Eu falei: “me vira índio de uma vez”. Na frente de todo mundo ele fez uma pajelança e eu fiquei muito feliz e me sinto cada vez mais índio. A tendência cultural do Brasil neste momento... Este homem aqui: Jean Tible. Parece nome daqueles franceses que escreveram sobre o Brasil no tampo da França Antártida... mas ele é de agora e escreve Marx Selvagem. Ele parte do Oswald de Andrade, esse antropófago, dizia para comer o marxismo, comer. Marxilar... Jean partiu daí e fez um estudo profundo do tempo que o Marx estudava, com o Engels, as sociedades primitivas. O Jean chega aos Yanomamis e a uma equação contemporânea que é... porque a grande contradição hoje do capitalismo especulativo, aquele de renda, o Thomas Piketty diz que viaja até lá em cima e fica para uma pequena minoria, a contradição é o índio, o pensamento do índio, não é mais o operário. Nós temos que aprender com os índios. Eu acredito nisso como eu acredito em mim, eu acredito na vida... Então vamos aplaudir mais o que a Are Reté falou... porque ela está séculos avançadas porque a grande coisa agora é voltar no tempo. É como dia o Oswald: as qualidades bárbaras mas tecnizadas. E o índio sempre foi tecnizado.

Quando nós começamos a trabalhar no teatro oficina com o vídeo, a gente vê os índios entrando nas repartições logo depois da ditadura e cercando as mesas, e todo mundo queria ver o vídeo... nós mostramos que foram os índios que começaram. O Oswald falava que nós temos que conservar as qualidades bárbaras, ou seja, aquelas que não são ocidentais cristãs como a pátria, família e essa merda toda. São as qualidades bárbaras... porque o Bárbaro, o Euclides dizia: Eu quero ser bárbaro, quero ser antigo como os antigos. Porque o chamado bárbaro é aquele que não está nessa sociedade, é o que está fora. E nós somos bárbaros porque nós conservamos as qualidades mais primitivas do ser humano: a grande paixão pela terra, o amor pela terra. O Euclides da Cunha, ele escreveu um livro porque ficou apaixonado pelo lugar, pelo povo do lugar. Ele foi junto com o exército para matar mas, de repente, ele viu a natureza, levou um susto com a natureza... com a seca, com aquelas árvores que estão na seca e quem tem água dentro. E de repente, o povo.

Mas voltando ao Marx Selvagem. Esse livro é muito importante, está na terceira edição (mostra o Marx Selvagem) e é importante. Eu fiz dois prefácios para esse livro porque o Marx Selvagem que interessa. Marxilar, aquilo que se liga a esta cultura da Ara Reté, que ela traz no corpo, de que ela fala e fala bem. Ela fala bem! É demais porque na busca da tradução da língua dela para a nossa língua ela encontra uma coisa maravilhosa e que é rara: a eloquência. Não é a eloquência da universidade, aquela coisa abstrata. Ela fala concretamente mesmo. Eu acredito em cada palavra que ela fala. Eu não sei se vocês sacaram a grande qualidade desta mulher, desta mensageira. Eu saquei, eu fiquei muito impressionado. Transformado, muito.

Amanhã eu quero voltar aqui para ler um texto do Machado de Assis sobre Canudos: Tudo Pirata. Éééé, ele ficou apaixonado com o que aconteceu em Canudos. Disse: Isso é poesia pura. Porque, veja: ele estava naquela vidinha rotineira, Machado de Assis, tudo é marcado, até o túmulo tem uma marca... é um texto extraordinário e que eu felizmente trouxe e tenho que ler aqui. Eu quero sagrar a pirataria através do Machado de Assis, um escritor negro que teve a grandeza de captar a importância do surgimento do povo de Canudos, que era um povo mestiço. Lá tinha negro, lá tinha índio, ex-escravos, tinha branco, enfim tinha de tudo, tudo misturado. Eram as pessoas que foram seguindo ele porque... ele amava uma mulher que dava para muita gente, uma mulher livre de sexo livre. O Antônio Maciel[1], primeiro nome do Antônio Conselheiro, em cada cidade que ele ia a mulher traia ele (eu não gosto dessa palavra porque não se trata de traição. É outra coisa. Como diz o Sócrates: a fidelidade não a uma pessoa mas a fidelidade ao amor, onde quer que ele soa) Então uma mulher livre, vai de cidade em cidade mudando porque no nordeste quando acontecia isso eram MATA, MATA, MATA e tinha que mudar de cidade. Até chegar num lugar que a mulher se apaixona por um sargento e some com ele. O Antonio fica doido e desbunda, saiu andando feito um maluco. Ele não se vingou como fez Euclídes da Cunha... a mulher do Euclides foi viver com o Dilermano, um oficial do exercito que era mais jovem que ele e o Euclídes foi com um revólver para tentar matar Dilermano. Ele não aprendeu nada com o Conselheiro porque este fez diferente... em vez de matar os homens que ficavam com a mulher dele, ele foi se dando e foi se dando ao mundo, começou a andar, comprou uma roupa daquele algodão azul... eu fiz o papel do Antonio Conselheiro e aprendi muito com esse cara. Na USP dizem do messianismo brasileiro e blábláblá... não é nada disso. Ele fez a segunda cidade maior da Bahia com 25 mil habitantes. Se ele estava preocupado com o céu na terra e ele conseguiu uma comunidade de uma organização tremenda, pessoas que se auto-organizavam. Ele não cuidava de nada, ele apenas falava como um pajé. Quem quiser seguir, segue. Quem não quiser seguir, não segue. Tinha os que se ocupavam da guerra, os que ocupavam da igreja, da comida, das roupas, uma organização autogerida. Esse povo foi todo fugido para lá porque, quando veio a república quiseram cobrar impostos numa cidadezinha e o povo... por exemplo, impostos sobre quem tinha carneiro, quem tinha um bode, quem vendia comida no mercado, aí houve uma rebelião popular. Houve uma rebelião violenta e os seguidores do conselheiro fugiram com ele para um lugar onde se escondiam os bandidos, no centro da Bahia, um lugar muito seco, terrível. Pouso Tabú, o lugar onde ninguém ia, um esconderijo. No teatro a gente estuda muito, foram praticamente 10 anos dedicados tanto a construir e mostrar as 5 partes da peça no Brasil, na Alemanha.

Na linguagem da época falavam raça inferior mas não se tratava de racismo. Eu sempre soube que eu sou de uma raça inferior. Adoro ser de uma raça inferior, assim somos chamados. Eu sou descendente de índio, de Celta, imigrante pobre da Itália e da Espanha. Sou um vira lata. Mas todo vira latas tem qualidades que as pessoas que são do sangue puro, do sangue azul nem imaginam. Os que colonizam nem imaginam porque colonizar é chegar no lugar, tomar o poder com armas e evangelizar. Hoje tem a evangelização e tem a tomada de poder.

O Brasil hoje é um grande Canudos. Quando a guerra acabou, os soldados voltaram para o Rio de Janeiro que era a capital e não receberam o soldo por seus trabalhos. Então, foram morar no morro e, a exemplo do que viram em Canudos, denominaram Favela[2]. E hoje, aquela imensa favela e aquele imenso litoral é O Sertões. Está em tudo hoje no Brasil esse povo que agora tomou o poder, um povo ignorante, nem imagina... olha, Are Reté, você precisa dar uma aula para eles. Eles acreditam em mito, são estúpidos. Eu tenho 82 anos e nunca vi tanta ignorância no Poder, nem no período militar. Essa ignorância é prepotente, ela se arma, ela quer colonizar e ela tem uma religião para colonizar. O capitalismo descobriu uma religião aqui que é o neopentecostal que espetaculiza, faz as pessoas quererem enriquecer, uma revolução do dinheiro. Para ficar rico tem que ser pentecostal... só pensa em dinheiro. Só tem $$ na cabeça, não vê as coisas como são.

O Brasil está sendo recolonizado pelas igrejas evangélicas. Eu sei que tem exceção mas a maioria é colonizadora porque mistifica... pra ficar evangélico o cara não precisa fazer nada, ele se torna e começa a pregar besteira para as pessoas. Quer fazer a cabeça para a pessoa ficar rica. A primeira coisa a fazer é ficar rica, é se vestir de escuro. No sertão as pessoas de chinelo, à vontade, e os evangélicos vestidos de preto, de terno e tal. Tem que subir na vida com a bíblia do lado. A bíblia não é nada perto dos Sertões. Os Sertões é um ensinamento muito maior que a bíblia para nós brasileiros. Poque a bíblia depende de você acreditar num messias que vai chegar. Isso não existe. Oswald de Andrade escreveu uma tese filosófica, A crise da Filosofia Messiânica[3], que não passou na USP, a crise da filosofia messiânica: não tem messias, não tem uma coisa que virá do além, não tem um mito (o mito micou, micou). Mas a colonização está se dando sempre através dessa religião messiânica que é a religião do dinheiro mesmo. Isso entra na cabeça da pessoa e ela vira burra mesmo, a pessoa não conhece nada além da bíblia e... então só o messias mesmo para salvar, mais nada. E, pior, o messias é o dinheiro porque é ficar rico. Deus é um cifrão, na cruz está enrolado um cifrão como o símbolo. As pessoas rezam pela cruz do cifrão. É JESU$. Essa é a colonização agora.

A pessoa perde a cabeça, perde a autonomia, perde o corpo, não sabe de si. É como diz o Luiz Melodia: não sabe das coisas.

Tente entender esse seu novo engano[4].

Luiz Melodia foi preciso na filosofia sobre as coisas: é preciso saber das coisas como a Are Reté sabe das coisas, sagra as coisas, inventa em torno das coisas.

 

Fala de Jenifer Nascimento, pela mandata de Érica Malunguinho, deputada estadual por SP, primeira deputada trans do Brasil. 

 

- Microfone aberto, provocações e falas posteriores.

Are Reté: Quando eu falo de nossos saberes, do nosso corpo, usando as tecnologias, é importante nós indígenas se reinventar. Mas reinvenção dá ideia de civilização. Ainda bem que nós não somos civilizados totalmente no Brasil. Estaríamos perdidos. Como se diz em português, estaríamos ainda mais fodidos. E a nossa resistência enquanto quilombo, enquanto indígena, os indígenas aldeados enfrentam a questão do suicídio mais de perto por que? Porque a agressão aos indígenas é de muitas formas... na aldeia está sua sabedoria, sua resistência, nossa forma de estratégias de resistir também está ali, nossa sabedir aiestá ali. Quando se fala ‘emburreceram a gente’, eu entendo: quando você não consegue ouvir o outro, você está sendo colonizador. A escola faz muito isso: você estuda a questão de outo lugar mas nunca... sou professora. A gente não estuda a história local, não estuda a história do estado... A gente quer discutir, quer saber da guerra mundial. A gente está vivendo lá ainda... para cegar a gente. Para a gente não resistir, iludir a gente, nos levar a pensar que ficaremos rios. A nossa sabedoria é super importantes. Para você saber criar outra estratégia. Mas eles estão fazendo com a gente há muitos anos, por exemplo: eu moro na cidade, percebo que matam...

Vou dar o exemplo da Aldeia. Em 2016 foram assassinados 3 adolescentes. Não tem mais mata ao redor da nossa aldeia, o que tem é fazenda com rio, com mata, com gado numa terra enorme. Do nosso lado não tem mais nada. Mas para existir nosso ritual, os meninos começaram a pular a cerca... para chegar no rio tem uma cerca. Onde os meninos vão aprender a nadar, construir um corpo paciente? Mas os fazendeiros mataram e depois alegaram que os meninos invadiram a fazenda para roubar. Mas roubar o que no rio? Mataram os meninos e ninguém foi preso... A coisa vai por aí. Os meninos se sentem inúteis, literalmente, porque não tem mais o que fazer dentro da aldeia. Eles vão se matando. Eu ouvi dizer: Não larga a mão de ninguém... e um desafio. Realmente temos que pegar a mão do outro, mas respeitando a diferença, e isso é um grande desafio para todos nós. Pegar a mão e respeitar o limite do outro. Se o indígena não consegue chegar aqui, alguém tem que falar.

Eu corro para lá e para cá falando sobre as mulheres indígenas. As mulheres indígenas no Brasil não discutiram o que é ser mulher indígena porque ainda estamos discutindo o genocídio, a discriminação que a gente sofre. Por exemplo, quando eu chego arrumadinha, bonitinha como estou agora, entro em qualquer lugar, todo mundo fala comigo em espanhol. Ou sou peruana, ou colombiana, menos brasileira. Isto significa o nosso apagamento, somos desconhecidas, discriminadas e sequer lembradas. Então é uma coisa muito terrível, mas as mulheres tem uma questão, o nosso corpo é o chão, a gente resiste. Lembrei quando o José Celso falou que na nossa língua as mulheres são loucas naturalmente. Nós somos loucas mesmo. A gente arrasa quando quer arrasar! Somos malucas e poderosas. Maluquice também quer dizer o poder.

Para piorar, bem recentemente, 3 parentes indígenas foram presos por policiais ambientais. Eles foram tirar taquara, instrumento típico para as mulheres, mas os homens que buscam na mata. Não tinha no entorno da aldeia, eles pegaram 3 taquaras cada um no total de 9 taquaras. Foram presos e obrigados a pagar 5 mil reais por danos ambientais... como é isso? É muito violento. Como a gente vai reverter essas questões. Estou pedindo pra vocês pensarem conosco como construir um processo de reverter isso.

Os parente presos foram no Paraná. Os meninos que se suicidam são do Mato Grosso do Sul.

 

Zé Celso

É importante que esta fala chegue lá nesses lugares. Porque tem muita gente no Brasil e no mundo procurando soluções para essas questões. Descobre-se maneiras de trabalhar isso. Agora é preciso que isso chegue em muitos lugares. O que é dito aqui devia ser muito divulgado nacional e internacionalmente. Porque é um saber novo e que salva a vida.

 

Are Reté

Os fazendeiros não foram presos. Alegaram que os meninos pularam cerca pra roubar. Por legítima defesa, 3 crianças foram assassinadas. Crianças com vara de anzol e homens com revolver. Se eu não falar, isso não aparece. E quando alguém conta isso diz: são vagabundos, não trabalham, só roubam.

Além de a gente sofrer violência e apagamento, ainda aparecemos distorcidamente. A quem interessa isso? Aos próprios fazendeiros. Se isso também interessar ou não interessar a cada um de nós aqui, é bom a gente falar sobre isso e divulgar.

 

Zé Celso

O Lula[5] nasceu em Caetés, na região onde começou a história do Brasil Segundo Oswald de Andrade. Os índios Caetés devoraram o bispo Sardinha que ia para Roma buscar mulheres brancas para transar com os portugueses porque eles não queriam a mestiçagem. A história do Brasil começa quando os índios Caetés devoram o bispo Sardinha com toda aquela roupa... Eu fiz o bispo Sardinha no Sertões. Então você tem que descascar aquele bispo inteiro para comer, descasca e come. Isso é o Brasil, é a antropofagia e o Oswald diz que começa aí a história do Brasil e não na primeira missa. O Lula nasceu ali. Ele é um ser em transformação permanente. Veio de pau de arara para SP, foi líder sindical, de líder sindical passou a ser uma das figuras mais importantes no final da ditadura onde os movimentos sindicais passaram a ter uma relevância política muito grande. Foi candidato várias vezes a presidência da república, foi fakeado pela Globo no debate com o Collor. A Rede Globo cortou as falas dele e montou toda uma coisa a favor do Collor. Ele venceu as eleições em 2002, ano que abriu para uma perspectiva que o Brasil não tinha. Ou melhor, teve um pouco no Getúlio Vargas e no Jango[6]. O Jango ia fazer uma coisa maravilhosa, Jango, Brisola, iam fazer reformas de base que ainda hoje são necessárias. Eram latifundiários mas tinham a compreensão política da necessidade do Brasil. Não tinha comunismo, nada disso, isso foi uma invenção para viabilizar o golpe de 64. Eu era do PTB jovem, um partido com relação com o mundo inteiro, negociava com a URSS, com EUA, Índia, Cuba, África, tinha uma posição independente no mundo. Não tinha nada a ver com comunismo, era uma democracia social forte por reformas. Os militares deram um golpe com a desculpa que era comunista, fizeram a caça aos comunistas. Mas era uma visão brasileira que a geração do Darcy Ribeiro, Lina Bardi, Celso Furtado, que foi construída. Tive uma sorte incrível de viver essa experiência, de conhecer os Institutos de Estudos Brasileiros[7], porque a gente estudava... O PTB, vocês nem imaginam o que era, muito diferente o partido de hoje que é um lixo, naquele tempo o PTB era um grande partido.

Mas o Lula é eleito. Em 2002 começou uma revolução no Brasil. Uma grande transformação no Brasil. Pela primeira vez chegava alguém preocupado com a distribuição da renda e com a cultura, uma coisa ligada a outra. Imagina que para ministro da cultura ele escolhei o Gilberto Gil, um tropicalista, um antropófago. Poque o PT tinha um programa terrível, Stalinista, careta mesmo. E ele abdicou. Engraçado, numa conferência de apoio a candidatura do Lula no Pão de Açúcar, eu disse para o Lula: a coisa mais importante é o ministro da Cultura e não o ministro do dinheiro, do Banco Central... o ministro que cuida do dinheiro. Não! Importante é a cultura. Eu não sei se ele me ouviu mas ele escolhei o Gil. Antropófago, nada a ver com a coisa stalinista do PT. Lula deu um chute naquele programa. Colocou o Gil e depois o Juca de Oliveira, um ecologista. Eu recebi no candomblé internacional, eu recebi o título de Exú senhor das artes cênicas, que é o título que eu mais me orgulho. O Juca recebeu o título de senhor das florestas, Oxóssi. Foi uma época cultural maravilhosa, corremos o Brasil todo com os Sertões. Chegamos em Canudos, Quixeramobim, terra do Antônio Conselheiro. Fomos para o exterior. E fizemos outros circuitos com as dionisíacas, as peças bacantes. Um momento para o cinema, para o teatro.

Nessa época, o Lula não tinha um olhar forte para os índios. A própria Dilma foi construir Belo Monte sob protesto dos índios. Eu me lembro de um comício quando o Lula era candidato, ali no Rio de Janeiro, e a Sônia Guajajara fez o maior sermão pro Lula... vocês não fizeram nada por nós! Na tremenda eloquência dela, maravilhosa. Lula foi concordando, ficou bobo, pediu para ela sentar do lado dela. Acho que o Lula nesta tragédia de ter sido retirado pelo Moro da eleição, de ser preso... O moro cometeu um crime, é o maior corrupto porque corrompeu a democracia... o Lula seria eleito mas a própria prisão, o Lula está lendo muito. O Lula é um cara em movimento, ele está crescendo cada vez mais e ele, com o sofrimento que ele teve na prisão, que ele aceitou, ele assumiu a prisão para defender a própria inocência, e tudo o que ele agora conhece sobre os indígenas que ele não conhecia, porque ele vem da terra dos índios. Mas atualmente ele está ligado a todos os movimentos. Porque os movimentos cresceram no Brasil também: negro, indígena, diversidade sexual, movimento das mulheres... a maioria da população brasileira. Lula é receptivo, é um democrata, ele sabe negociar, sabe dirigir um país. Tanto que apesar de ser um governo cujo vice era ligado ao sistema colonial, ele gostava, ele conseguiu fazer o Brasil se comunicar com a África... era considerado um crime ele ter levado a Odebrecht para a África, para Cuba, porque não admitem essa política maravilhosa do Celso Amorim que hoje está nas mãos de uma besta, nem sei o nome do idiota, terraplanista, ignorante. Não sabe das coisas, não sabe de nada. Enfim, tem que sair de cena.

Eu tenho a impressão que o Lula está pronto para reassumir uma democracia que contemple tudo isso agora, o movimento indígena, os movimentos todos... agora não é mais operários, com dia o Marx Selvagem, na luta dos indígenas eu coloco toda a luta porque os indígenas são negros e indígenas. Os índios não se deixavam escravizar e isso foi muito bom. Os negros foram trazidos à força, é ainda pior. os negros são ex escravos, o problema maior para mim é a dívida que não foi paga pelo trabalho escravo que foi feito, eles construíram todo o Brasil colonial e nunc a ganharam um tostão. A abolição liberou mas deixou numa situação muito difícil. A escravidão é uma coisa de colônia...

No movimento que está acontecendo aqui hoje e no Brasil todo, o maior movimento de massa foi aquela maré dos estudantes, foi muito forte. É preciso ter confiança, acreditar nisso e lutar poque, no sentido desta multiplicidade. Ao mesmo tempo que nós estamos batalhando contra isso, nós estamos aprendendo com os índios, com os negros, com os travestis, estamos aprendendo com as mulheres. A gente é outro porque a gente não resiste, a gente reexiste. Para enfrentar um poder forte você não pode ficar (lamentando): podem me prender, podem me bater... não, você tem que se inventar de novo, a cada vez e sempre. Nós estamos nos reinventando aqui e agora, em Paraty e num barco pirata. Aqui é um passo avançado, aberto, escancarado: barco pirata. Nós estamos de além do bem e do mal.

 

 



[1] Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, nasceu em 13 de março de 1830, na atual cidade de Quixeramobim, no Ceará.

[2] A origem do termo "favela" encontra-se no episódio histórico conhecido por Guerra de Canudos. A cidadela de Canudos foi construída junto a alguns morros, entre eles o Morro da Favela, assim batizado em virtude da planta Cnidoscolus quercifolius (popularmente chamada de favela) que encobria a região.

[3] https://antropofagias.com.br/2020/05/14/a-crise-da-filosofia-messianica/

[4] Referência à canção de Luiz Melodia, Pérola Negra. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=8YO4wP0aC6o>

[5] Referência a Luís Inácio Lula da Silva

[6] João Goulart.

[7] Deve estar se referindo aos CEBs – Centro de Estudos Brasileiros


[1] Nota: encontrei referências a um conhecimento sísmico dos Guarani nesta região.

[2] Ela está provavelmente se referindo à praia de Itaorna em Angra dos Reis/RJ. Originalmente uma aldeia onde foi construída a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto. https://pt.wikipedia.org/wiki/Praia_de_Itaorna

[3] a grafia está imprecisa.

[4] Talvez essa não seja a grafia correta. 



Pandemia de saudade


Estamos encerrando 2020, um ano marcado por vários episódios. Pelo retorno da miséria ao Brasil, pela dilapidação do Estado brasileiro, pelo entreguismo do patrimônio público, pelo rebaixamento político. Trata-se do segundo ano de um governo desastroso, asqueroso, armamentista e miliciano. Pelas eleições estaduais e municipais que, apesar do avanço da agenda neoliberal, fortaleceram algumas lideranças políticas progressistas na cena nacional. Mas 2020 será lembrado pela Pandemia do Coronavírus. Neste momento em que escrevo, são quase 7,5 milhões de contaminados/as e mais de 191 mil pessoas mortas no Brasil por covid-19. É como se a população de Rio Claro morresse em apenas um ano, vítima da pandemia do vírus, do descaso e da incompetência. 

A necessidade de isolamento social, pintou com cores diferentes as festas de final de ano. Eu acho, e posso estar enganado, que as comemorações foram mais intimistas. Quero dizer que as pessoas se reuniram em grupos menores, as famílias (por assim dizer) estiveram juntas na noite de natal. Claro que estou generalizando para podermos conversar neste artigo. Acho também que este final de ano foi marcado por um sentimento bonito chamado saudade. E por falar em saudade… em 1943, Wilson Batista (1913-1968) e Geraldo Augusto gravaram Diagnóstico: 

Eu fui ao doutor / Me consultar / Ele me levou ao raio X / Boa amiga / Eu não quero lhe desgostar / Mas você tem uma saudade no peito / Só o tempo é que pode lhe curar 

Imagine que a personagem da canção sente uma coisa no peito e procura um médico. Este, por sua vez, pede exames e dá o diagnóstico: é saudade! Sentimos saudade de estar com as pessoas que gostamos, sentimos saudade de encontrar e conhecer gente, sentimos saudade de abraçar e de beijar. Sentimos saudade de comemorar, de comer e de morar, de demorar em conversas agradáveis e sem fim. Sentimos saudade de estar juntos/as, de uma roda de samba, da alegria produzida no encontro de corpos em festa. O médico da canção continua... 

Eu sinto muito / Mas não há remédio / Pra combater esse malvado tédio / O micróbio da saudade é renitente / Custa muito a abandonar / O coração da gente 

Bonita a imagem que Wilson Batista produz: a saudade é como um vírus que se instala em nosso coração. Não um vírus letal mas um vírus vital. A canção termina assim: 

A medicina está muito avançada / Mas no seu caso não adianta nada / É incurável a sua enfermidade / Não há remédio pra curar uma saudade 

A saudade como nostalgia, bem querer e alegria. Mas também podemos pensar em uma saudade ligada mais ao futuro, uma saudade em projeção, uma saudade que lança novas iniciativas, um vírus que nos toma, um vírus que nos alimenta a vontade de fazer alguma coisa: buscar, procurar, escrever, telefonar, encontrar, agradar, atrair. Talvez a saudade seja uma espécie de bicho geográfico, então deixá-la passear pelo corpo, senti-la e esperar.

Diagnóstico está na internet. Eu gosto da gravação da Cristina Buarque no disco Ganha-se Pouco mas é Divertido. 

E por falar em saudade, onde anda você? 

Ivan Rubens Dário Jr 

Seria uma aula?


Quem de nós imaginaria, em dezembro passado, que este 2020 seria assim? Caminhando para o final do ano poderíamos falar um pouco da Política, do ponto final do Padaria no poder executivo local, ou de um país paralelo pilotado pelo patético Presidente, pálido, impopular, e sua prole de zeros em pactos de poder pelo poder. Pretendo, portanto, partilhar um pouco a respeito de palavras que, suponho, sejam mais potentes. 2020 foi pautado pela pandemia que impactou particularmente a vida das escolas em todo o país. Pude, por felicidade, participar, acompanhar, perceber os impactos disso em algumas escolas públicas e particulares. Partimos na ponta da língua do P para pensar a palavra Pensamento em aproximação, pertinho, par e passo com a palavra Aula.

O que seria uma aula? Algumas definições são possíveis. Vamos partir de uma bem bonita: Aula é pôr em movimento a matéria pensamento. Assim, aula e pensamento são dimensões indissociáveis. Pode haver aula sem pensamento assim como pode haver pensamento sem aula. Há quem considere uma boa aula aquela que coloca o pensamento para pensar. Por ser uma matéria, o pensamento tende ao repouso e, em repouso pode permanecer, parado, imóvel, inerte. Para sair desse estado de repouso, para sair da inércia, ele precisa ser violentado. Isso mesmo… Um exemplo pode nos ajudar: o carro parado numa rua plana, sem bateria. Vira a chave e nada. Sem funcionar o motor, o carro permanecerá ali, parado. Então o motorista pede ajuda, algumas pessoas empurram o carro, o motorista dá um tranco e pronto, motor funcionando. Com o pensamento é parecido: um empurrão, um tranco, um solavanco, uma provocação, uma boa pergunta e pronto, o pensamento pode estar se movimentando.

Claro que podemos falar do pensamento como uma atividade orgânica. O coração bate, o pulmão enche e esvazia, o sangue circula e a cabeça pensa. Mas estamos falando de uma definição que afirma o pensamento como uma matéria que entra em movimento num determinado tempo e espaço delimitado que chamamos de aula. Compreendida desta maneira, uma aula acontece quando o pensamento recebe um empurrão e, com isso, entra em movimento. É precisamente aí que começamos a pensar.

Neste período de isolamento social, de escolas fechadas, de professoras/es e alunas/os se virando como podem, acompanhei algumas aulas. Sete horas da manhã, livros abertos sobre a mesa ao lado do computador emprestado e uma pequena aluna do 8º ano ouvindo atentamente à fala empolgada da professora. “Adoro minha professora de História”, disse a aluna. Algumas horas dedicadas à aula de história e muitas conversas aconteceram, boas conversas reveladoras do pensamento-movimento. Fiquei pensando no trabalho da professora para preparar e oferecer uma boa aula mesmo que pela internet, e falar de histórias de modo a dar um tranco e colocar em movimento o pensamento da aluna. O meu também. Nem datas, nem nomes de heróis nacionais, sem apologias e cultos, nem tenentes e capitães mas perguntas, boas perguntas e provocações. Empurrões para o pensamento pensar naquela aula, apenas uma aula.


Ivan Rubens

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro do dia 01/dez/2020

Terra, vida e voto.

Narciso é um personagem da mitologia grega, um símbolo da vaidade muito citado na psicologia, na filosofia, presente na música, nas artes plásticas, na literatura. Narciso em férias: o título do documentário despertou minha curiosidade. O que seria um Narciso em férias? teria o narcisismo viajado? estaria o sujeito em férias do seu narcisismo? de que férias estaria falando? 

Quando eu me encontrava preso / Na cela de uma cadeia / Foi que eu vi pela primeira vez / As tais fotografias / Em que apareces inteira / Porém lá não estavas nua / E sim coberta de nuvens / Terra, Terra / Por mais distante / O errante navegante / Quem jamais te esqueceria? 

Caetano foi levado de sua casa, em São Paulo, para uma prisão no Rio de Janeiro. Foram 54 dias no cárcere sendo os primeiros dias na solitária. Anos depois ele nos conta suas memórias desse período sombrio da história brasileira. O início do documentário responde várias das minhas perguntas, sobretudo as que dizem respeito às férias. Narciso em Férias é um documentário sobre a prisão de Caetano Veloso pela Ditadura Militar em 1968. 

Ninguém supõe a morena / Dentro da estrela azulada / Na vertigem do cinema / Mando um abraço pra ti, pequenina / Como se eu fosse o saudoso poeta / E fosses a Paraíba / Terra, Terra... 

Foi neste período que os americanos chegaram à Lua. Preso numa cela escura, Caetano viu as imagens do planeta Terra tiradas numa outra perspectiva, num outro ponto de vista - imagine uma máquina fotográfica apontando para um ‘objeto’ a ser retratado - lá em cima, do alto, da amplidão do espaço sideral. Enquanto isso, limitado à cela minúscula, confinado, preso, o artista (e logo um artista) se depara com uma imagem, dentre as primeiras imagens que a humanidade produziu do planeta Terra livre, vagando, solta no espaço. Essa imagem ficou na cabeça do compositor. Anos mais tarde, recuperando essa lembrança, Caetano fez a canção Terra. 

Eu estou apaixonado / Por uma menina terra / Signo de elemento terra / Do mar se diz: Terra à vista / Terra para o pé, firmeza / Terra para a mão, carícia / Outros astros lhe são guia / Terra, Terra... 

Ver as imagens de degradação ambiental no Brasil, sobretudo as queimadas no Pantanal e na Amazônia, as violências cometidas sobre populações indígenas, sobre a biodiversidade, traz a pergunta: o que estamos fazendo da vida? porque a vida é a vida, não dá para pensar em hierarquias de vida, por exemplo, uma vida que vale ser preservada e outras não. Convido você para pensar a vida em si, suspendendo (mesmo que temporariamente) a ideia de vida neste/nesta, desta/deste ser. Não a vida que se faz carne mas a vida em sendo vida. 

De onde nem tempo nem espaço / Que a força mande coragem / Pra gente te dar carinho / Durante toda a viagem / Que realizas no nada / Através do qual carregas / O nome da tua carne 

Que as forças de vida nos mandem a coragem suficiente para expandir a vida e, neste mês da consciência negra, lutar por mais vida sobretudo para quem tem a vida sob constante ameaça. No dia 15 vote em candidatos comprometidos com a vida.

Tanto mar


Dia desses, arrumando meus cadernos, textos, organizando o material de estudo na tentativa de organizar as ideias, em meio aos trabalhos de estudantes da geografia encontrei uma anotação minha. Muito interessante re_ver, re_lembrar, re_sentir o estado passado passando para o estado presente, numa espécie de atualização. O bilhete tornando atual um episódio passado.

Já não me lembrava do pequeno relato mas, ao ler o bilhete feito por mim para mim mesmo, tudo voltou imediatamente como se eu estivesse re_vivendo aquele dia. Talvez um geógrafo escreva na medida que se inscreve na paisagem, na medida em que transita na cidade. Tudo nítido em imagens coloridas, em sensações, em descobertas. Tudo isso estava nas poucas palavras daquele bilhete que, inclusive, sussurrou o fundo musical imaginário:

Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim

Aconteceu em Curitiba no ano de 2018. Durante um trabalho de campo fui parar no marco zero da cidade. Na Galeria Júlio Moreira, uma escola de xadrez com muita gente praticando. Conheci a Sala Ivo Moreira (1949-2010), músico do rock e do blues, a Igreja da Ordem datada de 1737. A Casa (historiador) Romário Martins é um Centro de Cultura e Arte onde observei remanescentes da arquitetura colonial luso-brasileira. Numa das placas eu li que Mário Soares, então presidente de Portugal, esteve ali naquela casa exatamente como eu estava naquela tarde. Pensei na revolução dos cravos e a canção do Chico Buarque surgiu em sonoridade imaginária. Tanto imaginária quanto real. Tanto mar diz assim:

Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar / Lá faz primavera, pá / Cá estou doente / Manda urgentemente / Algum cheirinho de alecrim

Saí da casa e continuei errando movido por um desejo incontido de encontrar mais marcas das camadas e camadas de humanidade e de cultura na arquitetura, na urbanidade. Até que me encontro com Paulo Leminski, curitibano, poeta e professor (1944-1989) numa parede. A poesia se chama Amor Bastante:

Quando eu vi você / Tive uma ideia brilhante / Foi como se eu olhasse / De dentro de um diamante / E meu olhar ganhasse / Mil faces num só instante / E você tem amor bastante.

Você que está lendo este texto e conhece a canção Tanto Mar de Chico Buarque talvez esteja percebendo algo diferente na letra. Esta canção teve sua primeira versão censurada pela ditadura militar em 1975. Em 1978 Chico escreveu uma segunda versão que, gravada, tornou-se conhecida do público. Iniciamos este texto falando de atualização e, de alguma maneira, brasileiros e brasileiras atualizaram a ditadura ao eleger o capitão, mero representante mal acabado do autoritarismo, do machismo, do negacionismo fascistóide que emerge das profundezas de nossas catacumbas coloniais.

Dedico a Zuza Homem de Melo, falecido no dia 04/outubro.

Ivan Rubens Dário Jr


A roda está viva

Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino prá lá

Tem dias e dias. Tem dias que estamos assim e tem dias que estamos assado. Tem dias que sentimos muita coisa interessante e tem dias que sentimos um imenso vazio. Quem nunca sentiu um vazio? Um vazio que parece ocupar tudo, parece te ocupar por inteiro, um vazio que pré_enche. Ficamos cheios de um vazio angustiante. É como uma roda gigante: ora está em cima, ora em baixo.

A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira prá lá

Tem também dias de intensa alegria, dia que o céu parece mais azul, o ar parece mais fresco e uma alegria te toma, uma sensação de que o corpo quer brincar, quer dançar. E você se sente pleno, senhor de si e senhor do tempo, faz planos, projeta no futuro aquilo que deseja realizar. Mas alguma coisa acontece e tudo escapa por entre os dedos.

A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a viola prá lá

Tem dias que nos sentimos loucos, fazemos coisas que estão completamente fora da ordem, fora do normal. De que ordem estamos falando? De que normal? Da norma que se estabelece! Mas quem estabelece as normas? Hum… Talvez a nossa loucura não seja tão louca assim, talvez seja apenas um sinal que estamos enxergando a loucura que tomou conta do mundo. Estamos falando de uma pequena loucura que significa uma compreensão da grande loucura do mundo: essa norma, essa normatização de um modo de vida que destrói, que mata, que despotencializa, que desvitaliza.

O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade prá lá

Apesar das normas, da domesticação, da desvitalização, um corpo dança: mulher negra grá_vita. Dança livre das normas, livre das sanidades, livre das camadas e camadas de moral e de ‘bons costumes’ que desencantaram a vida mundana. Ela dá vida à vida.

Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração...

Tudo seguia normalmente até que chega a pandemia e… até respirar está levando à morte. O Coronavírus revela que tratar a natureza como mercadoria, tratar o meio ambiente como fonte de exploração é matar a vida neste Planeta. O governo do Pandemônio é a expressão deste tempo de morte nas relações econômicas e políticas que transborda para as relações sociais cotidianas. Este tempo de morte vai passar.

Roda-viva é uma canção de Chico Buarque.

Ivan Rubens

Geógrafo

Uma Suzano que se faz em mim

Meu primeiro contato com Suzano em sua materialidade concreta foi no 2º semestre de 1996. Me lembro bem, chegamos pelo Miguel Badra, atravessamos a Cidade Boa Vista. Nada de GPS, celular e aplicativos de navegação. Usávamos uma tecnologia politicamente mais eficiente: perguntar para as pessoas na rua, assim ‘navegamos’ até o Jardim Revista. Na mão, um papel com o endereço anotado e alguns pontos de referência. Chegamos. Era, provavelmente uma sexta feira, talvez um sábado.

Depois de acomodado, saí para observar a paisagem urbana, sentir um pouco a cidade que já me agradava. Estudante de geografia, me esforçava em ler as paisagens urbanas, até que, ao escurecer, uma movimentação chamou minha atenção. Na altura da Padaria Sabor Mineiro havia um ato político-eleitoral, um showmício. Muitos candidatos a vereador sobre um caminhão palco. Em 1997, Estevam Galvão de Oliveira assumiu seu 3º mandato como prefeito de Suzano.

Frequentei Suzano habitualmente desde então, morei em Suzano por 10 anos. Em 2014 retomei minha vida acadêmica analisando a experiência do Orçamento Participativo em Suzano que aconteceu durante a gestão do prefeito Marcelo Candido. Era preciso me afastar para poder observá-la de outros ângulos, analisá-la sob outros aspectos. Desta pesquisa misturada com vida resultou o livro Pedagogias da Cidade - Corpos e Movimento. Corpos e movimento, corpos em movimento, cidade é movimento. Suzano está marcada nas minhas linhas de vida, nas relações afetivas, na minha produção subjetiva, na escultura do meu pensamento… Uma cidade não sai da gente mesmo que a gente saia de uma cidade. Talvez nem exista uma cidade, existam cidades, muitas cidades, multipli_cidades. Acho que apareceu a palavra que me faltava: multiplicidades. A cidade são muitas, diversas, complexas. Gosto de pensar com o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, a cidade como obra aberta. Isso mesmo, como materialidade do trabalho humano, coletivo e ao mesmo tempo singular, ou seja, de todas as pessoas e de cada pessoa que contribuiu com seu suor e sangue para Suzano ser o que é hoje, e será amanhã.

E por falar em amanhã, por pensar e sonhar com vida melhor para todos e todas que brotaram desta terra e ou levantaram deste chão, quero, com esta minha rápida passagem por este sítio, te convidar para construir conosco uma cidade colorida, mais bela, mais justa e democrática como a Suzano vista pelos olhos generosos do saudoso José de Souza Candido que falava desta cidade com brilho nos olhos e seu inconfundível sorriso. A cidade pode ser mais.

Ivan Rubens Dário Jr

Marcas na cidade

Você que conhece um pouco Rio Claro certamente já observou as marcas na paisagem urbana. Normalmente elas chamam nossa atenção quando surgem e, aos poucos, vão ficando opacas, vão perdendo a cor e a gente praticamente não olha mais para elas. Tem umas marcas que parecem que estão ali desde sempre, só que não. Elas não são obras do acaso, não caem do céu como a chuva. Pelo contrário, alguém as fez, alguém pagou a conta.

Tenho certa paixão pelas cidades. Gosto de experimentá-las, gosto de conhecê-las, gosto de caminhar, de andarilhar como dizia o Paulo Freire, andar sem um destino certo, errar pelas cidades, assim me apresento a elas e elas vão se revelando para mim. E olha, já andei por algumas cidades brasileiras. Disse que já andei porque não posso dizer que as conheço. Não, não as conheço mas me lembro bem de várias. As cidades nos marcam...

Por exemplo, em Macapá caminhei sobre a linha do Equador, um pé no hemisfério Norte e o outro pé no Hemisfério Sul. Assim, partido ao meio, andei por horas. Tudo imaginação. Enquanto caminhava, minha cabeça também passeava, entretida, entre textos de Ítalo Calvino e outros autores que chegavam para me fazer companhia. Mas voltemos a Rio Claro.

Gosto de pensar as cidades como obra aberta. Explico: cada cidadão, cada cidadã que derrama seu suor nesta terra, que já derrubou seu suor nesta terra estiveram, estão e estarão construindo esta cidade, esta obra humana, material, concreta. Rio Claro é uma cidade de 193 anos com população estimada em 206.424 habitantes, dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para 2019. Estamos pensando nos corpos que trabalharam para levantar esta cidade, aos poucos, do chão; estamos falando das gotas de suor do trabalho e das gotas de sangue que molharam este chão, estamos falando dos corpos que adubaram esta terra. Estamos falando de muita gente… Estamos falando de muitas marcas, milhares delas, milhões de marcas pequenas, imperceptíveis nas obras, nas casas, nas fachadas, nas ruas, nos espaços privados e também no espaço público, no cotidiano da vida urbana. Lembro das ruas enfeitadas para as festas juninas dos bairros, das ruas decoradas na copa do mundo de 1982, fruto das relações de vizinhança. Lembro disso com alegria, uma alegria que brota na infância da minha educação: eu cresci aqui andando de bicicleta nas ruas, experimentando esta cidade, lendo esta cidade. Fui me fazendo nestas ruas, praças, campinhos de futebol e quadras, nas escolas que frequentei e etc.

Portanto, a cidade não é do prefeito. Rio Claro não é do senhor Jesus apesar do anúncio na entrada da cidade pela avenida 29. Rio Claro não apoia o ex-juiz parcial, Rio Claro não apoia o presidente nem sua anunciada política de morte. Tem gente que apoia e até marca a cidade com outdoor. Infeliz_cidade ser do senhor Jesus e apoiar políticas de morte. Cem mil pessoas mortas por Covid-19, é muita gente.

E tem tudo isso, todas essas contradições, todas essas posições e oposições compõem as cidades. Uma cidade é muitas, é mais, é múltipla, é diversa.

Ivan Rubens

Apl_Aldir - Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado

(artigo publicado na revista Mnemosine, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ISSN: 1809-8894. v. 16, n. 1 (2020): Edição Especial: Dossiê Formação inventiva de professores: ensaios microfísicos, pesquisa-intervenção e estudos foucaultianos.) 
disponível em: 



Apl_Aldir - Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado

 

A propósito da confirmação da morte de Aldir Blanc naquele dia 4 de maio de 2020, uma declaração de João Bosco nas redes sociais convoca a mim um rigor estético. No turno daquela taciturna segunda feira o texto em sua força crepuscular, reproduzido integralmente a seguir, dissipou minha neblina.

Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio. João Bosco

 

Autor de versos memoráveis da música brasileira, cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu aos 73 anos com infecção generalizada em decorrência do covid-19. O compositor deu entrada na coordenação de emergência regional do Leblon no dia 10 de abril com infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado numa sala da unidade de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20 foi transferido para um leito de terapia intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel.

Assim como João Bosco[1], muita gente tornou público seu sentimento naquele dia do pandêmico 2020. Foram muitas manifestações de carinho e de pesar. Ivan Cosenza de Souza informou seu pai, Henrique de Souza Filho[2] (o Henfil) por meio de uma carta pública, reproduzida a seguir:

 

Rio de Janeiro, 5 de maio de 2020.

Pai, você tinha hemofilia, e por causa da hemofilia acabou recebendo sangue contaminado e contraiu HIV. Foi se tratar de um problema e saiu com outro,  numa época que a doença era implacável, e você se foi muito rápido. Se foi, mas deixou escancarado o descaso do governo com o controle de sangue no país. Ninguém testava o sangue. Ele era comercializado, como uma mercadoria qualquer. Deixavam o dinheiro ficar na frente da vida das pessoas. Nós não deixamos barato e denunciamos! Você mesmo começou a denunciar, antes da doença se agravar. Hoje, por sua causa e por causa de nossa luta, quando se trata de sangue, a vida vem em primeiro lugar! Acabamos com o comércio de sangue no Brasil. É proibido por lei!

No dia 4 de janeiro de 1988, uma segunda feira, eu me despedia de você.
Seu amigo Aldir Blanc, pegou uma pneumonia, e precisou se tratar. Por causa da pneumonia, acabou contaminado com COVID-19. Foi se tratar de um problema e saiu com outro, numa época que a doença ainda é implacável, e se foi, muito rápido.
No dia 4 de Maio de 2020, também numa segunda feira, a gente se despedia dele.
Exatamente 32 anos e 4 meses depois, a história se repetiu. Mais uma vez temos que denunciar, e mostrar o descaso do governo com a vida da gente! Temos que mostrar mais uma vez que a vida tem que vir sempre na frente do dinheiro. Vencemos uma vez e vamos vencer de novo!

Pelo Flávio Migliaccio, que não aguentou a história se repetindo!

Pelo Aldir!

Por você, pai!

Um beijo do seu filho,

Ivan.

 

Breve percurso

5 de dezembro de 2019, homenagem aos 50 anos de estrada de Aldir Blanc no Beco do Rato (Lapa, Rio de Janeiro). No dia anterior, pelo telefone, Moacyr Luz[3] e Aldir falaram da homenagem e outros assuntos com o carinho de longa amizade. Uma conversa que durou cerca de 1/2 hora e a confirmação da ausência do homenageado: Aldir não estará! Pensei: ainda não será desta vez. Eu estava no Rio de Janeiro para me encontrar com a cidade que tanto me encanta, tentando me encontrar na cidade que canta... Admito: carregava uma esperança de ver pessoalmente aquela figura quase mítica.

Aldir aparece na minha vida pela voz da Elis Regina. Sobretudo na voz do João Bosco, depois com Moacyr Luz. Em Prá que Pedir Perdão? no disco Mandingueiro de Moacyr Luz (1988), a voz do próprio Aldir então aos 52 anos de idade me chegou. Recentemente mergulhei no disco Vida Noturna (2005), gravado em três dias com Aldir interpretando suas canções e recebendo parceiros. Foi, contudo, no cinema meu primeiro contato...

Engenho de Dentro.

O filme Nise – O coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner, me aproximou do pensamento e do trabalho da médica psiquiatra Nise da Silveira (1905 – 1999). Ao deixar a prisão, Nise retoma seu trabalho no hospital psiquiátrico Pedro II no subúrbio do Rio de Janeiro, e recusa o emprego de eletrochoque e lobotomia no tratamento dos esquizofrênicos. Ela não sabia bem o que fazer, mas sabia exatamente o que não fazer. Então inventou. E o filme mostra um pouco da dureza do tratamento a essas pessoas naquela época e a beleza do ateliê de pintura e artes plásticas no setor de Terapia Ocupacional. Diretamente com Nise estava a enfermeira Ivone Lara (1922 – 2018), Almir Marvignier (1925 – 2018) e muitos artistas plásticos produzindo a si mesmos na medida mesma das obras que compõem o acervo do Museu do Inconsciente. No hospital do Engenho de Dentro estava o médico psiquiatra residente Aldir Blanc.

Voltemos à Lapa, precisamente ao Beco do Rato e à Homenagem... no mês pandêmico de abril recebi as primeiras notícias da pneumonia e da internação de Aldir, drama que se estendeu até 4 de maio do ano pandêmico de 2020 com a confirmação do seu falecimento. Em meio ao isolamento social, me coloco no movimento de aproximação com sua obra, seu pensamento, a história dessa figura singular da música brasileira. Ao que recebo um convite formal para esta revista e o engenho aqui dentro vai se ativando.

 

Introdução

Aldir Blanc é um compositor brasileiro. Ele é também outros. E poderia vir a ser ainda outros.

Pensei em falar de um Aldir psiquiatra, cronista, escritor, leitor inveterado, boêmio, pai, avô etc... Passando inevitavelmente por essas facetas todas tentarei, neste texto, conversar sobretudo com o compositor e o parceiro.

Aqui, então, tentarei desenvolver linhas de envolvimento. Envolvimento na perspectiva de ‘compor com’. Envolvimento na perspectiva de quem ‘caminha ao lado de’.

O compositor e o parceiro. Me parece que composição e parceria estão quase que, por assim dizer, na mesma sintonia.

Sim_tonia, sim: tonias.

Tons, tonalidades.

Sonoridades e colorações. E tudo o que me atravessa pela força da arte materializada na obra. Quero, então, fazer uma composição e uma parceria. Compor com Aldir e escrever com Aldir. Com aquele Aldir que é em mim, que se faz em nós. Pois, como cantava João Nogueira com as palavras de Paulo César Pinheiro[4] no samba Súplica:

O corpo a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobe pra'as trevas / O nome a obra imortaliza (...)

Por corpo, por copo, por com. Com por.

Pé com pé, passo com passo, compasso. Parça, parceiro.

Penso que compor significa sempre estar com alguém, significa por algo perto, uma espécie de entrelaçamento. São linhas que se cruzam, se tocam, se emaranham, se entrelaçam. Formam nós, novelos, novelas. E um fio mostra sua extremidade, você puxa, aperta em nós, desfaz um nó e, devagar, o fio vem se fazendo só. Não mais o mesmo de antes. Parece confuso e pode até ser confuso mesmo.

Confusão. Com fusão. A temperatura que aquece até o ponto de fusão. Tudo isso para chegar a um ponto muito simples: nada é novo. Talvez seja novo para quem escreve. Mas, se considerarmos que o que escrevo aqui está marcado por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras, marcado pela letra do Aldir na voz do João, pela palavra do Aldir na voz da Elis, pelo pensamento do Aldir na música do Moacyr Luz... letra, palavra e pensamento do Aldir estão marcados por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras de bosque, Boscos e Bastos[5], de luas e Luzes, tapumes e Tapajós[6], pingas e Guingas[7], e comigo. Pode parecer pretencioso de minha parte. Como assim? Parceria com Aldir Blanc? Pois é.

Na parte final da canção Caça à Raposa, Bosco e Blanc dizem assim:

 

Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo

***

 

Primeiro texto

Iniciei o mergulho na obra de Aldir. Os livros escritos por ele, livros a respeito dele, vídeos, entrevistas, laives e, sobretudo, suas canções, suas parcerias, suas composições. Mas o eixo pulsante é, pela primeira vez em mim, o Aldir. Como já disse, suas canções chegavam até mim noutras vozes, tocavam em mim na respiração melodiosa de seus parceiros, interpretações espalhadas em um sem número de discos e obras, gravações daqui e dacolá. Então me empenhei em ouvir o pensamento musical do Aldir independente da parceria. Cidades maravilhosas outras foram se revelando em mim. Revelando mesmo como no antigo processo de transformação da imagem latente registrada num filme fotográfico em imagem visível por meio de uma química líquida. E uma primeira tentativa de escrita se esboça. Sim, porque a escrita deste texto (assim como as composições) são por si. Uma espécie de vida própria, de força criativa que move a caneta sobre o papel na metodologia de trabalho do Aldir, ou com o toque dos meus dedos sobre o teclado na metodologia utilizada neste texto. ‘Aldir Blanc, epidemia e pandemia’ vem dos atravessamentos da canção O Bêbado e a Equilibrista.

Aldir Blanc, epidemia e pandemia

Caía / a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto...

Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu (Ceceu), homem de poucas palavras, neto do afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel, bairro de origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu olhar aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem carioca. Na Tijuca conheceu a vida noturna, a boemia, futebol, blocos de carnaval, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...

Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil / pra noite do Brasil.

Em 1969 esteve com Ivan Lins, Luiz Gonzaga Junior (o Gonzaguinha) e Paulo Emílio da Costa Leite (grande ídolo de Aldir por sua capacidade de escrita e por sua postura ética) no Movimento Artístico Universitário. Graduado em medicina, fez residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do samba) em luta contra o uso do eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no ‘manicômio’ (para usar as palavras da época). As práticas de vida cantam, as lógicas de morte calam.

Não raro era visto conversando nas ruas, nos bares do centro do Rio de Janeiro com seus pacientes. As práticas de vida expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… Em 1973, canções em parcerias com João Bosco encantavam o Brasil na voz de Elis Regina. No ano seguinte Aldir perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do casamento com a professora Ana Lúcia. “Aí, é o seguinte: se eu não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso o que eu quero fazer." Decide abandonar a Medicina e a Psiquiatria para se dedicar exclusivamente à sua arte. Na medicina se luta contra a morte; na arte a vida se faz mais viva, mais e mais viva. O médico dá lugar ao artista.

Na rua Garibaldi, Tijuca, viveu no mesmo prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras em papéis, a parceria pariu muitas canções. Nos anos 1980 foi se afastando dos hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista, Aldir se dedicava a longas ligações telefônicas com amigos, à música e literatura.

Moacyr Luz conta uma história interessante. Saíram numa 5a feira para o final de semana num sítio. Aldir levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise, romances policiais, do jazz.

E nuvens, / lá no mata-borrão do céu / chupavam manchas torturadas / Que sufoco / Louco / Um bêbado com chapéu torto

Este trecho da canção “O Bêbado e a Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:

Chora / a nossa Pátria mãe gentil / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil

Maria, viúva do metalúrgico Manoel Fiel Filho[8], Clarisse, viúva de Vladimir Herzog[9], e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.

 

***

Nesta aproximação inicial com sua vida e obra, encontrei Suely Costa[10] se referindo, mais ou menos assim, a Aldir Blanc. Ocorreu durante um Festival da canção quando Aldir perguntou por que ela havia gostado de uma determinada canção. “Mas o por que? do Aldir vai lá dentro da gente”. E esta frase ficou vibrando como a corda de um violão... “É como se uma pergunta simples e direta atingisse diretamente o fundo da alma”. Nestes casos não basta uma resposta qualquer. Ele está investigando o mais profundo, ele procura a sua verdade como faz o maestro Daniel Daréus[11], em A Vida no Paraíso[12], à procura do tom mais profundo de cada coralista. O regente vai tecendo as vozes, o compositor vai tecendo as palavras exatas para cada intérprete. Como se colocasse na boca da cantora a palavra precisa, “uma espécie de psicografia musical”, finaliza Suely.

Depois desse primeiro texto mais sintético, publicado num Jornal da minha Cidade natal, recuperei o fôlego, enchi meus pulmões e mergulhei um pouco mais fundo entre livros, vídeos, entrevistas, crônicas e muitas, mas muitas canções. Foram dias ouvindo Aldir, buscando Aldir, encontrando Aldir, virando Aldir.

Aldir carrega nas suas canções as marcas de sua infância. Em algum momento deste mergulho me peguei pensando numa espécie de Manoel de Barros urbano. Uma infância aqui compreendida para além de uma fase da vida, mas uma infância compreendida como experiência, compondo com o professor Walter Omar Kohan. No caso de Aldir, um longo período de experimentação da alegria e da liberdade seguido pela sucursal do inferno, um período violento, uma espécie de relação de repressão da força vital... que poderia ser assim significada pelo poeta: a vida entre polifonia e paráfrase.

 

Da alegria e da liberdade à sucursal do inferno

Com 3 anos e meio Aldir chega a Vila Isabel, numa casa imensa, quintal enorme e muitas árvores, mangueiras, laranjeiras, bananeira e outras. Tinha uma goiabeira branca que se curvava até o chão onde Aldir subia para brincar, para buscar sossego, para observar ao redor e por sobre, para brincar de atiradeira. Fala disso se colocando na perspectiva da criança, usa escala da criança para dimensionar a casa e o quintal e apresenta sua relação com a vida, suspeito que influenciada em grande parte pelo avô: “não atirava pedras em passarinhos, não tinha coragem, mas tentava derrubar as mangas maduras dos galhos. Também sonhava lá de cima e lia Monteiro Lobato”.

Pouco antes de completar 11 anos de idade tem início a sucursal do inferno, nas palavras de Aldir. Nada de bullying, Aldir nos conta um pouco da realidade dura de um menino vítima de pequenas violências por parte dos adultos na cidade do Rio. “Sou surpreendido com o retorno para a rua Maia de Lacerda no bairro do Estácio (...) Você saía de casa, com 12, 13 anos, apanhava, seus trabalhos eram jogados na água, suas cartolinas com trabalhos da escola eram rasgados, o conteúdo das pastas eram jogados na água que corria no meio fio, levava uns tapas se estivesse com sorte. Quem fazia isso? Mecânicos, Policiais Militares, motoristas de caminhão, todos com mais de 20 anos.” Ao ouvir Aldir Blanc falar de sua história, desta fase mais inicial por assim dizer, é possível ler em sua fisionomia as marcas de alegria e opressão, um certo sorriso monalítico tatuando a vida em Vila Isabel e as cicatrizes produzidas no bairro do Estácio. Assim, afirma Aldir aos 70 anos de idade, quem ‘létra’ as canções desde sempre “sem a menor dúvida, é o garoto do curtíssimo período que passou em Vila Isabel entre os 3 anos e meio aos quase 11 anos de idade. Quando esse garoto morrer, o letrista, o articulista, seja lá o que for, morre junto”.

Com 6 ou 7 anos Aldir acompanhava a avó aos centros espíritas. Diz da avó uma ‘carioca típica’: “extremamente católica, espírita, rosa cruz, se chegasse uma ceita na vizinhança ela entrava imediatamente... intensamente macumbeira assim de punhal com cinza pra curar gripe, uma confusão. Ela me levava aos centros espíritas. E eu ficava fascinado com os atabaques. Na época eu tinha em casa tamboretes de peteca que eram grandes, de madeira e de couro ao contrário dos de hoje. Então eu esquentava aquilo numa fogueirinha e botava aquilo escorado de tal forma de lado a lado e batia neles, e cantava não os pontos que ouvia lá mas os meus próprios pontos. Quero dizer, eu compunha com essa idade o que é uma coisa patética. Era uma misturada de exú com nhambú, com tudo que rimasse com urubu e também tinha, por causa de uma música da época, era um tal de ema gemendo em todo lugar... e tudo isso ali, aquele saco de graça ali, até que sai alguém e diz: esse garoto está possuído... (rs). O primeiro canto, o canto essencial vem da forma com que a voz é solta dentro do terreiro de macumba.” Interessante pensar neste ponto da voz solta, a voz como a expressão da palavra; e solta como oposição a presa, como liberta portanto. Pensar com Aldir nos parece uma espécie de ‘asas à imaginação’, ou dito de outra maneira, um pensamento livre. Ouvir as palavras de Aldir presas nas letras das canções, presas mas livres, abrindo caminhos, conduzindo seu leitor às ruas e cenas da paisagem carioca, conduzindo seu ouvinte a patamares outros da existência. Ler, ouvir Aldir é como se um deslocamento profundo, uma fenda, uma cunha se apresentasse às nossas mãos e, com essa ferramenta, pequenas brechas, picadas, trilhas e caminhos se abrissem pela força de suas palavras soltas produzindo, em nós, perspectivas outras. Talvez Aldir se apresente para mim como Paulo Freire se apresentou, como uma espécie de convocatória, uma espécie de exigência ética a pensar no jogo das forças que aprisionam e libertam, forças de opressão e forças de libertação, forças de conservação e forças de transformação. Ouvi recentemente de uma amiga uma frase que me empurra a pensar com mais cuidado a força na obra do Aldir Blanc, em suas composições. Ela foi ao Rio de Janeiro pela primeira vez com muito medo, fruto da construção cotidiana por meio de imagens, matérias, notícias da violência na cidade via, no caso dela, pela televisão. Seu contato com a cidade foi traumático. O medo foi reforçado por uma correria em Copacabana. E a imagem de uma cidade extremamente violenta praticamente se consolidou. Mas essa cidade desconhecida materialmente e imaginada equivocadamente foi, devagar se diluindo. Nas palavras dela: “O Rio de Janeiro que conheço na música do Aldir Blanc me convida a conhecer essa cidade”. Emblemática e lapidar. E me dei conta da força da obra do Aldir, um carioca mesmo.

 

“Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do Ourives do Palavreado (grifo do autor). Estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Dorival Caymmi[13]em 30 de agosto de 1996.

 

***

A humanidade do compositor

Em 2009, assim se define Aldir:

“Hoje sou um cronista de 60 anos com vários livros publicados. Trabalhei em quase todos os jornais do Rio e São Paulo, mas tem uma coisa que me orgulha muito. É que apesar de toda atividade artística, uma febre de um neto me faz esquecer tudo. Eu sou um vô louco: uma das brincadeiras favoritas aqui junto com outras maluquices, porque eu sou desse avô que deixa jogar bola nos troféus de música popular e montar em cima de mim como se eu fosse cavalo e o cachorro ainda disputa uma corrida junto com outro neto montado em cima. Então é uma bagunça desgraçada. Mas assim como os cientistas querem a teoria de tudo, a brincadeira preferida aqui é a brincadeira de tudo. Vale tudo (...) Essa parte humana que a gente não abandona é que eu acho que influi no compositor e vice versa.”

 

As Drogas

Segue o artista: “Eu nunca usei droga. Por ter vindo da psiquiatria eu vi tanta coisa triste envolvendo droga, tanta gente pirando até mesmo com a pretensamente salutar maconha que eu nunca fui chegado. Sempre tive um problema de sangramento nasal desde a adolescência, então para mim é intolerável a ideia de cheirar qualquer coisa. Devo ser um dos raríssimos sujeitos da minha geração que nunca cheirou pó, nunca e em nenhum momento, por horror da possibilidade de uma coisa dentro da minha narina. E fiz uma vez uma experiência com maconha que me deu uma sede e uma taquicardia desgraçada. Devo ter tomado umas 10 cervejas para o coração serenar e para a língua voltar a funcionar colada no céu da boca. Então por que eu quero essa merda na minha vida? Eu quero é beber, porra!!!”

 

Também sou doutor

Ainda ele:

“(...) ando em casa com a roupa rasgada, às vezes esqueço de tomar banho, fico até 3 dias em casa vendo futebol e torcer até quando joga Ituano e Pé de Pedra... isso é uma característica minha que veio do meu pai, um cara que dizia ‘eu também sou doutor. Quando eu chego no botequim com um jornal para fazer minha fezinha, o cara me pergunta: vai ser cerveja ou limão da casa hoje, doutor?’ Esse diploma é o que me interessa”

“(...) Se criou muito esse lance que a psiquiatria teria me ensinado determinados truques e isso influenciou a carreira do letrista. É claro que é impossível você passar 5 anos da sua vida numa enfermaria no Engenho de Dentro, com só 40 leitos e oitenta e tantos pacientes seminus, e isso não influenciar você é impossível”. O pai, Ceceu, preferia que Aldir fosse médico mesmo reconhecendo os méritos e as conquistas do filho como compositor. Aldir segue: “não foi a psiquiatria que abriu a cabeça do letrista. Eu talvez tenha feito uma boa psiquiatria na época porque eu era antes um músico, percussionista e letrista”.

Escuta, escuta, até que pega o lápis e o papel.

“A letra do bolero ‘Dois pra lá, dois pra cá’ foi a mais difícil que eu fiz. Eu recebi a música, fiquei fascinado, e não conseguia escrever. E um dia, voltando de uma esbórnia num táxi, bem caído, bem escornado, a letra começou a vir na minha cabeça. Fiquei apavorado porque não tinha caneta, não tinha papel, não tinha lápis não tinha nada. E quando eu cheguei em casa peguei o gravador, liguei e ela começou a vir, saiu inteirinha. E esse é um dos milagres da parceria Bosco e Blanc.”

 

Seja na sua produção literária, seja na musical, Aldir escrevia com as próprias mãos. O que não significa que ele não fazia uso das tecnologias. Muito pelo contrário. Aldir aproveita as tecnologias para facilitar sua vida. Lápis ou caneta esboçavam as primeiras versões sobre folhas brancas. Máquina de escrever para as versões finais. Gravador e fita K7 foram tecnologias muito utilizadas também. Disco de vinil e CD. Segundo ele, o computador da casa não se dava bem com ele. Ambos não combinavam: “o computador é macho e eu sou do Estácio”, razão pela qual Mari ou alguma filha se encarregavam de digitar para ele. Duas tecnologias radicalmente revolucionárias ocuparam praticamente todos os 73 anos de Aldir: músicas e livros. 

 

O maior samba

“Uma das figuras mais extraordinárias da música popular que nós conhecemos, por sorte nossa foi nosso parceiro, Paulo Emílio[14]. Nós fizemos diversas músicas juntos, mas eu quero destacar Nação, que na mesma letra homenageia Silas de Oliveira[15], Dorival Caymmi[16], que foi título de um disco da Clara Nunes[17]. E que é uma música que eu posso afirmar, sem nenhum medo de parecer pretencioso, que é um dos grandes sambas do século XX.

Dorival Caymmi falou pra Oxum

Com Silas tô em boa companhia (bis)

O céu abraça a terra, deságua o rio na Bahia

Jeje minha sede é dos rios
A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta
Planta flor irmã da bandeira
A minha sina é verde-amarela feito a bananeira
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda manjedoura d'alma
Labarágua, Sete Queda em chama
Cobra de ferro, Oxum-maré, homem e mulher na cama

Jeje tuas asas de pomba
Presas nas costas com mel e dendê aguentam por um fio

Sofrem o bafio da fera
O bombardeio de Caramuru, a sanha de Anhanguera
Jeje tua boca do lixo, escarra o sangue
De outra hemoptise no canal do mangue
O Uirapuru das cinzas chama
Rebenta a louça Oxum-maré
Dança em teu mar de lama.

 

Ponte Nova

Em visita a Ponte Nova no interior de Minas Gerais, Aldir conheceu Daniel, pai do João. “Nasceu daí uma amizade que não teve nada a ver com a parceria com o João, foi uma coisa espontânea, natural e da maior riqueza. No tempo que a gente bebia muito e ainda conseguia acordar cedo, eu ia pro quintal da casa de Ponte Nova, ele estava me esperando. E num caixote tinha laranja. E desde manhã cedo a gente fazia uma coisa que eu duvido que vocês tenham feito que é tomar Brahma extra chupando laranja. Em homenagem a ele, com música do João (Bosco), do João Donato e letra minha, nós fizemos ‘Nossas Últimas Viagens’. Que foi brilhantemente gravado no songbook do João pelo Dominguinhos.”

Eu passei por Ponte Nova
Procurando Daniel
Disse um cascudo nas águas:
"Teu amigo foi pro céu
Foi botá Deus no seguro
No baú das buginganga
Levou faca afiadinha
Pra mió cortar laranja...

Levou a roupa de goleiro
Os baralho e as fritura
Na matula com cerveja
Pra comer sem dentadura"
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar para trás

Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar pra trás
Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais

 

E Aldir tem razão. A propósito desta afirmação transcrita acima, fui ao songbook do João Bosco para conferir o registro. Além de encontrar uma obra de arte, uma linda e emocionada interpretação, ouvi mais ou menos o seguinte: “Pois é meu irmão João Bosco, aqui você juntamente com o Aldir Blanc e o João Donato disseram tudo, tudo tudo o que eu queria ter falado para o meu pai”, diz Dominguinhos[18].

Interessante perceber a expressão de Aldir durante a interpretação de Bosco nesta canção em homenagem ao Daniel. Amigo e, sobretudo, pai. E a elaboração do luto com a arte. A elaboração da perda, a falta que vai sendo preenchida por uma presença. Podemos falar então de uma saudade avessa ao ressentimento, uma saudade que não é perda mas que atualiza a melhor faceta, as melhores lembranças, que significa a vida presente. Podemos, portanto, pensar que a canção, a criação do filho e do amigo, fazem Daniel presente, vivo. A obra imortaliza.

Eu conheci Daniel pelas palavras melodiosas dessa oração, no melhor sentido da palavra. A expressão de Aldir durante a execução da canção por João no vídeo O Canto de Aldir Blanc, dirigido por Fernanda Figueira, mostra sua fisionomia contemplativa. Ele escuta a canção, na voz e violão de João Bosco, olhos fechados e um pequeno sorriso no rosto. Me parece que Aldir volta ao quintal de Ponte Nova, descasca laranjas com Daniel. Escuta mais uma vez as histórias das defesas impossíveis do goleiro e imagina cada cena com ainda mais cores e poesia. As peripécias do vendedor de seguro. As laranjas, a técnica para tirar a casca amarela sem ferir a fruta, a precisão do instrumento cortante, ferramenta do artífice de frutas e histórias. Mas também se lembra as palavras do cascudo, então eu imagino: um rio onde Daniel e Aldir pescaram, as águas barrentas, peixe pulando, poucas palavras murmuradas para não atrapalhar a pescaria. Pescaria de palavras, poucas, precisas. Palavras que, abertas, revelavam mundos. Palavras, poesias em forma de uma conversa quase muda. Mas desta vez o cascudo, dentro das águas, toma para si a palavra:

Teu amigo foi pro céu / Foi botá Deus no seguro / No baú das buginganga / Levou faca afilhadinha / Pra mió cortar laranja... / Levou a roupa de goleiro / Os baralho e as fritura / Na matula com cerveja / Pra comer sem dentadura

 

A expressão no rosto do filho, João Bosco, durante a execução da canção, violão nos braços, não demonstra tristeza apesar da canção melodiosa e do seu significado. Pelo contrário, tem uma face serena, doce. A arte tem dessas coisas: Daniel está ali entre João e Aldir. Estávamos em 4 pessoas.

 

***

Sobre o nascimento das canções

1)                 ‘O bêbado e a equilibrista’ nasce como um samba em homenagem ao Carlitos, personagem do Charles Chaplin então recém falecido. Acontece que Henfil repetidas vezes falava do irmão, Betinho de Souza, que Aldir sabia da existência, mas ignorava o nome, “o meu irmão que está exilado isso, o meu irmão aquilo...” Na hora de escrever, aparece “que sonha com a volta do irmão do Henfil”. A canção parece captar, mesmo que não tenha sido essa a intenção de seus criadores, uma força, uma onda e o hino da anistia. O artista tem uma sensibilidade capaz de perceber, de antecipar, de traduzir uma onda que ainda não quebrou na areia da praia. Um belo dia, uma figura desconhecida bate nas costas do Aldir dizendo: “Eu sou o irmão do Henfil. Sou o Betinho. Eu voltei por causa daquela música, seu filho da puta!” Ambos se abraçaram selando uma amizade duradoura.

 

1,5) Rápido parêntese: desde sempre me atrai histórias deste tipo. Como nascem as canções? Agora é Moacyr Luz quem dá algumas pistas em uma das laives feitas em homenagem ao Aldir logo após seu falecimento. Abrindo um parêntese para contar uma curiosidade deste encontro: em 1984 Moacyr cantava e tocava no bar Erva Doce e, para sua surpresa Aldir Blanc estava numa das primeiras mesas. O cantor arriscou duas canções de Aldir que estavam no seu repertório para aquele restaurante. Aldir elogiou seu estilo ao violão. O comentário abre um diálogo absolutamente imprevisível. Ao amanhecer, Moacyr oferece uma carona.

- Para onde vai?

- Para a Tijuca, depois da rua Uruguai.

Ocorre que, segundo Luz, assim se referem normalmente à grande Tijuca. Este, recém chegado a Tijuca, gosta da coincidência e afirma:

- É meu caminho, vamos lá!

E seguiram... Moacyr olhava para Aldir no seu carro, até ouvia suas palavras mas já não registrava nada. “Estava diante de uma figura especial, mítica.”

- Na rua Garibaldi.

- Vixi, eu também... como é o prédio, que número?

E entraram no estacionamento do mesmo prédio. Moacyr morava no primeiro andar e Aldir no quarto andar. A conversa se estendeu até o meio dia e a primeira canção nasceu daí. Fecho o parêntese.

Voltando às histórias reveladas por Luz. Vou reproduzir aqui três, sem o Brilho de quem as tem encarnadas apesar do visível abatimento do protagonista neste vídeo, todas da passagem de 1989 para 1990.

2)                 Saudade da Guanabara.

Moacyr entregou uma canção dele para Beth Carvalho que pediu alterações na letra. Consta que a canção trazia algumas afirmações que a cantora não se sentia à vontade em dizê-las. Um belo dia, ele telefona do primeiro para o quarto:

- Aldir, o Paulinho Pinheiro está aqui em casa, desce aqui para tomar uma cerveja.

 Aldir desceu. Quando estavam apenas os três e o ambiente mais tranquilo, Luz abriu o jogo a respeito do samba convidando os dois letristas para uma composição, ou “para fazer alguma coisa juntos”. Cantou o samba, beberam... Aldir se retirou para buscar mais cerveja no quarto andar. Demorou uns vinte minutos. “Pronto, deu o tempo dele, não vai voltar”, pensou Luz.

- Pode mudar essa cortina aí. Abra essa janela para sentir a brisa do sucesso.

De volta ao apartamento do primeiro andar, Aldir se referia à nova canção cuja letra estava numa folha de papel.

Moacyr pega o violão e começa a cantar a primeira parte que diz assim:

Eu sei que o meu peito é uma lona armada,

nostalgia não paga entrada,

circo vive é de ilusão

Chorei, ai, eu chorei!

com saudades da Guanabara,

refulgindo de estrelas claras,

longe desta devastação, e então

 

Segundo Paulo Cesar Pinheiro no livro Histórias das minhas canções, os versos acima foram completados ainda por Aldir com:

Armei pic-nic na Mesa do Imperador

e na Vista Chinesa solucei de dor

pelos crimes que rolam contra liberdade...

Reguei o Salgueiro pra Muda pegar outro alento

e plantei novos brotos no Engenho de Dentro

pra alma não se atrofiar

Brasil, Brasil,

tua cara ainda é o Rio de Janeiro

três por quatro na foto e o teu corpo inteiro

precisa se regenerar.

 

Nas suas Histórias, PC Pinheiro conta uma versão um pouco diferente de Moa. O que importa aqui é a segunda parte, versos de Pinheiro:

Eu sei que a cidade hoje está mudada,

Santa Cruz, Zona Sul, Baixada,

vala negra no coração...

Chorei, ai, eu chorei!

com saudade da Guanabara,

na Lagoa de águas claras

fui tomado de compaixão, e então

passei pelas praias da Ilha do Governador

e subi São Conrado até o Redentor,

lá no morro Encantado eu pedi Piedade.

Plantei Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento,

No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro

pois é pra gente respirar.

Brasil, Brasil,

tira as flechas do peito do meu padroeiro

que São Sebastião do Rio de Janeiro

ainda pode se salvar.

 

Saudade da Guanabara (Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro) é uma espécie de hino do Rio de Janeiro. Segundo Moacyr, esta canção mostrou para ele um Rio de Janeiro a ser cantado, uma canção que muda sua carreira por colocá-lo mais no samba, por perceber a cidade do Rio de Janeiro como cenário da inspiração criativa. E isso veio numa conversa com o Aldir.

 

3)      Aquário

Ambos sentados no sofá da sala do 4º andar no apartamento do Aldir, tomando cerveja e olhando para o aquário. [Neste depoimento tem um comentário engraçado do Moacyr: “sei lá porque o Aldir cismou de ter um aquário... dá uma trabalheira danada”.] A cena de pequenos peixes ‘se beijando’, limpando as paredes do aquário como um cascudinho beijando o vidro. E Moacyr chama a atenção:

- Aldir, olha lá os peixinhos se beijando.

E Aldir:

- Eu sou de peixes, ela de aquário.

Moacyr pega o violão e ambos fazem Aquário, a única canção da dupla simultaneamente música e letra.

Ele me obedece / Ah, se ele soubesse / O mal que ele me faz / Quando ele me ataca / Eu que era gata / Não aguento mais...

 

4)      Coração do Agreste

Tomando muita cerveja na garrafa caçulinha e correndo atrás de música para fazer novela, agosto de 1989. Chico Ribeiro pede uma canção para a novela Tieta do Agreste[19], Moacyr Luz apresenta na editora uma parceria com Aldir Blanc. A resposta da editora desafia o músico: apenas a letra era boa. Naquele tempo não havia celular, e-mail, nada disso. Moacyr pede mais 24 horas de prazo, segue com o carro para casa e vira a noite criando outra música. Na manhã seguinte, com a aprovação do letrista, Moacyr volta para a zona Sul e encontra o diretor musical da novela na areia da praia. A canção foi tema da personagem principal da novela, Tieta, vivida por Beth Faria.

 

Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã  

 

A primeira frase parece esconder, mas, na verdade, revela. A mim, remete ao tempo. Aliás, o poeta Aldir Blanc tem esse poder... de nos fazer viajar. Viajar pelos bairros e ruas do Rio de Janeiro, viajar em seus tipos, personagens, cariocas e carioquices, alguns folclóricos outros inexplicáveis. Afinal, como disse Dorival Caymmi, “todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Pensando com Caymmi, há um pouco de carioca em todo brasileiro assim como, e logicamente, há um tanto de brasileiro em todo carioca. Estamos exagerando é claro, mas não se assuste. Pense comigo numa certa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como a cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. E uma beleza singular, uma alegria que se revela num sem número de blocos de carnaval, na praia, na Bossa, na Lapa, nos morros, nos terreiros e nas quadras das escolas, no samba. 

Coração do Agreste, de Aldir Blanc e Moacyr Luz, conhecida na voz de Fafá de Belém não fala exatamente disso. Mas fala. E fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de tempo estendido passado-presente-futuro. Mas também de sentimentos provocados num tempo, adormecidos e que retornam, emergem num piscar de olhos. Para falar com Suely Rolnik, de marcas que vibram. Podemos, então, pensar que Aldir fala de um tempo aión, um tempo experiência. Um tempo livre do relógio, alforria de Chronos. 

Eu voltei para juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador

 

Até onde percebi no estudo da vida e obra do letrista, o que vitaliza o letrista e o cronista, a força original da sua escrita está na infância em Vila Isabel. Uma infância compreendida para além do tempo cronológico, uma infância compreendida como experiência. As passagens que Aldir fala do avô, da avó, de um tempo que não volta mais mas, e sobretudo, uma infância que é permanentemente nele. O vô Bidu (como se apresenta no livro Cantigas do vô Bidu) parece revelar um pouco disso. Mas eu percebi essa característica nos seus textos e principalmente nas entrevistas. Muitas entrevistas estão disponíveis na internet e nelas pude perceber seu humor cortante. Mas ainda não consegui, apesar do esforço dessas linhas, pensar com mais profundidade os efeitos dessa canção em mim. Persigo Coração do Agreste há anos, me procuro nesta canção, me encontro numa ou outra passagem e me perco de mim nas outras. Essa deriva disparadora de sentidos outros, novos e repetidos, me traz de volta para ela. E seguimos compondo.

 

Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir

 

Rio aqui pode estar compreendido como a Cidade do Rio de Janeiro, cara a Aldir e Moacyr. Mas pode também se referir a um rio, um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma subjetividade em fluxo, uma deriva, errância que renasce, brota, desabrocha. Nas palavras de Hannah Arendt, um nascimento, um vir ao mundo. Nas palavras de Gert Biesta, tornar-se presença, a emergência de uma obra inédita. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam neste mundo como Arendt, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. Imortais.

 

Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui

 

***

 

Ourives do Palavreado

No dia 12 de maio de 2020, a Girândola Produções publicou o vídeo promocional de um documentário por vir, chamado Ourives do Palavreado. Imagens do escritório do Aldir com um violão sentado em sua poltrona de leitura rodeada por livros, muitos livros, livros folheados, lidos e marcados, CDs e K7s, quadros, ilustrações, imagens, charges, fotografias, álbuns, memórias. Não é um cenário. Ou é. Cenário de uma biblioteca em chamas cujas labaredas incendiaram a música popular brasileira por décadas. Palavras do Aldir:

“O sagrado é uma forma como você se comporta. Eu sou uma pessoa profundamente sacra em relação ao momento em que eu boto uma fita (...) pra fazer letra. Naquela hora, ninguém pode mais do que eu. Por incrível que pareça, humildemente, fraco, doente, ferrado, meio bêbado assim como era antigamente, ninguém pode mais do que eu naquele momento. Eu acho que o ato de criar deixa você muito perto de uma certa transcendência, de uma espécie de experiência pessoal em que você também é o outro, profundamente, em que você sabe que outras pessoas vão compartilhar com você daquela experiência (...) ‘E o tempo se rói com inveja de mim’ (trecho da canção Resposta ao Tempo, Cristovão Bastos e Aldir Blanc), isso é coisa de letrista (risos)... é mentira: o tempo come vivo, de um dia para o outro. Não deixem para amanhã, de forma alguma, o famoso projeto pra daqui a não sei a quantos anos porque daqui a não sei quantos anos não existe, fudeu. Corram atrás da vida.”

Guardei essa canção para finalizar este texto neste exercício de compor com Aldir, me enredar com ele mas não será desta vez. Interessante pensar que algumas canções ainda me são impossíveis. Quem sabe um dia... neste caso não me resta escolha a não ser contrariar meu parceiro. Psicanalista, ele me escutaria. Artista, ele me aceitaria. Carioca, ele me convidaria (claro que eu iria) para uma cerveja no Momo, na Muda ou no bar da Maria.

 

Última estrofe

Grande conversador, o cronista coloca seus personagens, todos reais, na roda das conversações. Memórias inventadas, diria Manoel de Barros. Mistura de realidade e fantasia, ou realidade e realidade melhorada na lapidação textual da escrita. Lindauro e sua paixão por futebol, Valdir Iapeteque e seu fabuloso repertório de piadas, Esmeraldo e suas conquistas amorosas na Penha, Ambrósio Gogó de Ouro, Benedito Lacerda e Penteado, o gozador que quebra a gabiroba, Ceceu Rico e as histórias das noites do Estácio. Para o jornalista Luiz Fernando Vianna, a relação entre o pequeno Aldir e seu pai não foi muito próxima. Ceceu gostava muito de sinuca, frequentava o jóquei clube, torcia para o Vasco da Gama e frequentava o estádio. Era aquele tipo de sujeito que sai do estádio e, mesmo com a vitória do cruz-maltino, reclama que um determinado jogador deveria ter passado a bola. Um reclamão que, nas crônicas aparece como “Ceceu Rico, aquele que não gosta de festa.” Mas com o tempo essa relação foi mudando. Adultos, se tornaram grandes amigos. Para a escritora Heloisa Seixas, Aldir é um cronista em tempo integral. Uma espécie de cronista da vida. Observador da alma das ruas suburbanas cariocas, olha para o mundo para extrair dele suas crônicas ou, melhor dizendo, para procurar no mundo, no cotidiano, nos personagens da vida real o enredo que transformará em música, em crônica, em poesia. Talvez não seja possível desenlaçar as linhas de vida das linhas de arte. Aldir fez da sua vida, sua arte. Aldir fez da sua arte, vida. Aldir viveu e entregou parte dela para nós como obra de arte. Um artista digno de muitos aplausos.

Fim. Desce o pano.

Hora de apl_ALDIR Blanc.

 

 

Bibliografia consultada:

ARENDT, Hannah. A crise na Educação. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

BLANC, Aldir. Cantigas do vô Bidu. São Paulo: Lazuli Editora, 2010.

BLANC, Aldir. Direto do balcão. Rio de Janeiro: MV Serviços e Editora, 2017.

DIAS, Rosimeri. Deslocamentos na formação de professores. Aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2011.

KOHAN, Walter Omar. A infância da Educação: o conceito devir-criança. Disponível em <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html> Acesso em 22/maio/2020.

PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade, v.1, nr.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/SP. São Paulo, set/fev, 1993.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2013.

VIANNA, Luiz Fernando. Aldir Blanc: Resposta ao Tempo -Vida e letras. Rio de Janeiro: Casa das Palavras, 2013.

 

Sítios consultados

Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em <http://dicionariompb.com.br/aldir-blanc> Acesso em 15/maio/2020

Museu do Inconsciente. Disponível em <http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/#historico> Acesso em 20/maio/2020.

Souza, Ivan Cosenza de. Cartas ao Pai: a Esperança Equilibrista. In: Revista Fórum, 6/maio/2020. Disponível em <https://revistaforum.com.br/colunistas/ivancosenzadesouza/cartas-do-pai-a-esperanca-equilibrista/> Acesso em 15/maio/2020.

Cronistas do Rio. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=oYeZCdnzIb8&t=835s> Acessado em 27/maio/2020

 

Vídeos Consultados

 

ALDIR BLANC - Ourives do Palavreado – promo-documentário. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WsJOPgppUTU Acesso em 24 de maio de 2020.

Dois para lá, dois pra cá. Direção: Alexandre R. de Carvalho, André Sampaio e José Roberto de Morais, de 2004. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mrxcXXR5ISs&t=6s> Acesso em 06 de maio de 2020.

'Cerveja ou limão da casa?' Aldir Blanc reflete sobre a vida em entrevista de 2016 para O Globo. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VkpDxaXk21s> Acesso em 21 de maio de 2020

Homenagem a Aldir Blanc | Cantos Gerais - O Canto de Aldir Blanc. Direção de Fernanda Figueiredo, 2009. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=uZ1lDbYRQFE&t=4s> Acesso em 24 de maio de 2020.

Moacyr Luz canta Aldir Blanc @ instagram. Live. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=f55LSVutTbw: Acesso em 20/maio/2020

 

Ivan Rubens Dário Jr.

Geógrafo sambista. Estudante, inventor de textos.

Doutorando no Programa de Pós Graduação em Educação. Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus Rio Claro.

Rua 12-B, 533. Vila Indaiá, Rio Claro/SP. 13506-746

blogdoivanrubens.blogspot.com

ivanrubens@hotmail.com.br

 

 



[1] João Bosco de Freitas Mucci, conhecido como João Bosco (Ponte Nova/MG – 13 de julho de 1946) é cantor, violonista e compositor.

[2] Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil (Ribeirão das Neves, 5 de fevereiro de 1944 – Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1988), foi cartunista, quadrinista, jornalista e escritor.

[3] Moacyr Luz (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1958) é músico, violonista e compositor.

[4] Paulo César Francisco Pinheiro (Rio de Janeiro, 28 de abril de 1949) é compositor, letrista e poeta.

[5] Cristovão da Silva Bastos Filho (Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1946) é compositor, pianista e arranjador.

[6] Maurício Tapajós Gomes (Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1943 – RJ, 21 de abril de 1995) foi compositor, instrumentista, cantor e produtor musical.

[7] Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar (Rio de Janeiro, 10 de junho de 1950) conhecido como Guinga, é violonista e compositor, também é dentista.

[8] Manoel Fiel Filho (Quebrangulo/AL, 7 de janeiro de 1927 – São Paulo, 17 de janeiro de 1976) foi um operário metalúrgico.

[9] Vladimir Herzog, nascido Vlado (Osijek/Reino da Ioguslávia, 27 de junho de 1937 – São Paulo, 25 de outubro de 1975) foi jornalista, professor e dramaturgo.

[10] Sueli Correa Costa (Rio de Janeiro, 25 de julho de 1943) é cantora e compositora.

[11] Personagem vivido pelo ator Michael Nyqvist no filme A Vida no Paraíso.

[12] A Vida no Paraíso (título original: Så som i himmelen), filme sueco dirigido por Kay Pollak em 2004. Indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

[13] Dorival Caymmi (Salvador, 30 de abril de 1914 – Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2008), cantor, compositor, violonista e pintor.

[14] Paulo Emilio da Costa Leite (São Paulo, 26 de janeiro de 1941 – Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1990) foi poeta e compositor.

[15] Silas de Oliveira (Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1916 – 20 de maio de 1972), compositor e sambista.

[16] Idem ao 13i.

[17] Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, Clara Nunes (Paraopeba, 12 de agosto de 1942 – RJ, 2 de abril de 1983) cantora, compositora, pesquisadora da música brasileira.

[18] José Domingos de Moraes, conhecido como Dominguinhos (Garanhuns, 12 de fevereiro de 1942 – SP, 23 de julho de 2013), sanfoneiro, cantor e compositor.

[19] Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo de televisão, transmitida entre agosto de 1989 e março de 1990 em 196 capítulos. Inspirada no romance de Jorge Amado, Tieta do Agreste.