sobre a experiência do Orçamento Participativo em Suzano/SP
no período de 2005-2008
disponível também no spotify: podiquesti Andarilhagens
Amazonas é o maior estado brasileiro em extensão territorial. Sua capital é Manaus. Parintins é a segunda cidade mais populosa do estado. É mundialmente conhecida pelo Festival de Parintins.
Bate forte o tambor / Que eu quero é tic tic tic tic tac / É nesta dança que
meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar / É nesta dança que meu
boi balança / E o povão de fora vem para brincar...
Toada de Boi é tradição que traz muita gente para a festa de Parintins. Não foi
o caso de Paulo. Paulo é professor, mas um professor andarilho. Ele não foi ao
Amazonas para a festa de Parintins. Ele carregava a festa dentro de si. Por
muito tempo guardou no peito um desejo muito grande, uma curiosidade imensa de
conhecer a região Norte do Brasil. Esse desejo foi, durante os anos de espera,
se materializando em leituras, estudos, conversas com toda a gente que
trouxesse elementos, histórias, experiências amazônicas. Tinha especial
interesse pela floresta e seus mistérios, pelos rios em sua imensidão de água,
pela gente da floresta e pelos povos indígenas. Pela geografia enfim. Sim,
Paulo é geógrafo que desconfiava do suposto des-envolvimento do Brasil,
marcadamente econômico e supostamente social, talvez um equívoco em certo
aspecto. Porque a exploração desenfreada e gananciosa dos recursos naturais
produzem um modo de viver “sem vida”, desvitalizam, agridem a Mãe Terra, esse
frágil planeta azul. Geram destruição: poluem as águas e o ar, envenenam o
solo. Ele queria mesmo é comer peixe de rio, fresco, que nada rio abaixo
procurando comida e rio acima procurando águas camas para desovar na piracema.
Ele queria comer açaí do pé, tomar suco da fruta. Estava cansado da gastronomia
dos congelados, da proteína criada em confinamento e à base de ração de soja,
dos sucos de caixinha.
As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar / As barrancas
de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar
De Manaus partiu para o interior. Pegou a primeira
“estrada”, no caso o Rio Negro já no contato com o Solimões. Primeira grande
descoberta: a diferença gritante de coloração. Não se conteve, mergulhou.
Precisava sentir com o corpo inteiro aquilo que conhecia pelos livros. Percebeu
a diferença de temperatura, de densidade e se certificou que ambos não se misturam.
As águas do Negro e do Solimões fluem lado a lado por quilômetros. Na “esquina”
do Rio Amazonas com o Madeira, virou à direita e durante horas olhou, do barco,
as barrancas de terra caída, a floresta, as casas em palafitas e canoas
atracadas, gente roçando mandioca.
Amazonas rio da minha vida / Imagem tão linda / Que meu Deus criou / Fez o
céu a mata e a terra / Uniu os caboclos / Construiu o amor
É como se devorasse tudo com a boca, os olhos, os sentidos,
o corpo enfim. Sentia a exuberância de vida que pulsava nas águas e na
floresta. Sobretudo a gente do interior do estado. Gente simples, gente
humilde, gente boa. Que sabe esperar, sabe receber. E que ensina o professor
que o ENVOLVIMENTO é o caminho para que a vida seja mais viva. Porque, no limite,
o que temos de verdade é uns/umas aos outrs.
E o professor andarilha se perguntando: de que
des_envolvimento fala o cara pálida? Os povos ribeirinhos do Brasil das Águas
mostram para o professor andarilho que envolver é bom, envolver é 10: dez_Envolvimentos!!!
Tic tic tac é uma toada de boi composta pelo pescador Braulino Lima.
Ivan Rubens
Educador popular
publicado no jornal Cidade de Rio Claro em 30 de novembro de 2021
Foi uma espécie de agonia. Agonia é uma palavra polissêmica. Agonia pode ser compreendida como aflição, sofrimento intenso, forte, profundo. Agonia pode ser compreendida como o instante da vida que precede imediatamente o momento da morte. Na medicina, agonia pode ser respiração cheia de ruídos feita por quem está prestes a morrer. Na música, melodia do sino que anuncia a morte de alguém. Agonia ainda pode ser compreendida como uma dificuldade para decidir, como dúvida. Mas quero trazer para esse breve texto os significados de encerramento, de conclusão, término. Final de um ciclo, fechamento, partida. Maria Witzel Jordão partiu na manhã de 12 de setembro de 2021. Ela partiu numa chalana florida antecipando a primavera.
Lá vai uma chalana,
bem longe se vai / Navegando no remanso do Rio Paraguai / Ah, Chalana sem
querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor
Mariquinha cantava para nós. Ela nos apresentou seu repertório de Vicente Celestino, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Orlando Silva e outros. Dentre as canções mais recentes, a trilha sonora da novela Pantanal na antiga TV Manchete que nos encantava com belíssimas paisagens. Mariquinha nunca esteve no Pantanal, não colocou os pés no rio Paraguai e seus afluentes exceto nas viagens fabuladas a partir das imagens e a poética da trama.
Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor
Naquela manhã de domingo a respiração estava ofegante, acelerada. Mariquinha já se despedia desde os últimos dias. Foi quando a neta mais velha segurou na mão dela e foi, devagar e delicadamente, falando algumas palavras que acalmaram o coração cansado. A respiração foi diminuindo, mais e mais, enfraqueceu, o coração entrou num ritmo mais lento, o semblante foi aliviando. A neta cantou para embalar a partida, vibrando nela uma melodia que, aos poucos, transformou a voz afinada e carinhosa da neta num coro de anjos e santos que a receberam no céu. Fim da agonia: a_Deus.
E assim ela se foi, nem de mim se despediu / A Chalana vai sumir na curva lá do rio...
Ah, Chalana sem querer
tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas
Atenta à beleza do colorido na paisagem da cidade, Mariquinha nos ensinou um olhar contemplativo especialmente aos ‘ipês’. Imagino o caminho percorrido por ela nesta manhã de setembro: numa chalana navegando águas calmas de um rio estreito cujas margens emolduradas por imensos ipês que soltaram suas flores amarelas, brancas, roxas e rosas numa espécie de tapete florido, flores coloridas sobre as águas para passagem de nossa mãe Maria em sua viagem derradeira.
Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando meu amor
Mariquinha está no céu. Foi recebida por São João Batista e talvez esteja visitando parentes, as amigas do Círculo Bíblico e as baronesas, amigas da Escola Barão de Piracicaba. Feliz por reencontrar o Juca Jordão, seu Anastácio e a mãe Maria.
Chalana é uma canção de Mário Zan e Arlindo Pinto.
Ivan Rubens
Neto encantado.
para saber das origens da Chalana de Mario Zan, veja a reportagem.
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 5 de outubro 2021
Das missões às caravanas
Mobilização pela Educação - das missões às Caravanas
clique no link acima e veja a conversa no blog da Escola de Ativismo
disponivel em áudio na bela narração de Greice Moraes
Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:
Essa frase parece esconder mas, na verdade, revela. As canções escritas por Aldir Blanc nos levam aos bairros e ruas do Rio de Janeiro, seus personagens em suas carioquices. Estou te convidando a pensar numa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem da paisagem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. Tem uma beleza singular, uma alegria que se revela num cem número de blocos de carnaval, na praia, na Lapa, na favela, no Aterro, na Bossa, no Samba, no Choro, no Rap, no Charme, no Funk...
Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã
Coração do Agreste, canção de Moacyr Luz e Aldir Blanc, conhecida na voz de Fafá de Belém para protagonista da novela Tieta do Agreste (1989-1990), não fala exatamente disso. Mas fala. Fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de ligação (a)temporal. Fala de sentimentos adormecidos e que retornam, que emergem inesperadamente. A psicanalista Suely Rolnik diria das marcas subjetivas que vibram. Aldir talvez esteja falando de um tempo aión, compreendido como experiência, um tempo fora do tempo, alforriado da tirania de Chronos.
Eu voltei pra juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador
Sinto que a força da escrita de Aldir Blanc vem da sua infância em Vila Isabel. Uma infância não como a parte inicial da sua vida mas compreendida como experiência. Uma infância viva nele independentemente da idade.
Uma canção que se escuta muitas vezes produz efeitos no ouvinte. Ouvir Coração do Agreste é procurar por si mesmo, se encontrar num trecho e se perder noutro. Essa deriva dispara sentidos, sentidos outros, novos ou repetidos, retornando à canção vez por outra. E seguir compondo.
Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir
Rio pode ser a cidade do Rio de Janeiro, terra de Blanc e de Luz. Mas pode também ser um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma vida em fluxo, uma deriva, movimento de germinar, brotar, desabrochar. Uma espécie de nascimento, um certo vir ao mundo como disse a filósofa Hannah Arendt. Tornar-se presença na emergência de uma obra. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. A obra imortaliza seu criador.
Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui
Ivan Rubens Dário Jr
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 9 de agosto de 2021
EUGMAN, que prefiro chamar de EU MANGUE, é um estudo sobre o Mangue em Trancoso.
Depois de várias idas ao mangue em Trancoso/BA, vários estudos, músicas e conversas... experimentamos o mangue como gente, como peixes e como caranguejos. Preocupados com a tensão turismo x preservação, estudantes decidiram dizer alguma coisa para a cidade. E disseram... veja que belezura. Veja também o manifesto Caranguejos com cérebro, do movimento Mangue Beat.
Leia a seguir o manifesto "Caranguejos com cérebro", escrito em julho de 1992 pelo jornalista e músico pernambucano Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S/A.
Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.
Movimento Breve (voz e violão Nuno Moraes)
ouça o texto na voz de Nuno Moraes
Dois amigos trocando ideias: “estou aqui com uma melodia na cabeça mas não tem palavra”, e envia um arquivo de áudio com solfejo e um cuidadoso dedilhado. São breves movimentos da mão direita acariciando cordas, e um bailado suave da mão esquerda no braço do violão. “O que você está pensando?”, pergunta o ouvinte, dedicado ouvinte. A resposta é direta: “se deixe levar pela música”.
O aprendiz de letrista passa a ouvir atentamente a melodia. Ela é delicada, doce e singela. Coloca a atenção no solfejo do amigo, esse sim, artista das melodias, dos graves e agudos, da arte de criar, dar ao mundo algo novo, de fazer cantar uma alegria imensa cujas raízes estão fincadas na terra da beleza. Não de qualquer beleza mas da estética das ruas, da estética mesma da vida comum. Essa beleza da casa, do dia a dia, da criança esperada, das relações comezinhas, da mesa de bar, das esquinas e encruzilhadas. E o aprendiz, aceitando o movimento breve da melodia, continua ouvindo. Ele sabe que não sabe fazer então, só há uma saída: inventar. Sim, inventar um jeito, nem melhor e nem pior, mas um jeito possível. Então, surgiram os primeiros versos:
QUANDO FOR PARTIR / LEVE NO OLHAR / LIVROS / DISCOS / UM QUADRO PRA LEMBRAR / DE ONDE VOCÊ VEM / FLOR ALFAZEMA. / PRA VOCÊ SORRIR / AO TE VER CHEGAR / FAÇO / CAFÉ. / VOU TE PERFUMAR / VASO DE ALECRIM / VIM PRO TEU POMAR.
Diante das sutilezas da melodia, o já feito precisa ser esquecido abrindo espaço para uma nova tentativa. Pode parecer estranho e é: esquecer o já feito para dar espaço ao ser feito. E tudo começa novamente: escuta, escuta, escuta...
A temperatura começa a subir, a tensão aumenta e a dúvida aparece. Seria capaz de fazer? Olha para a palavra ‘composição’ e pensa: tem ‘posição’, tem ‘si’ e tem ‘com’. Tem ‘posição’ ‘com’. A palavra composição sugere uma espécie de posição que se assume não por um mero desejo individual mas que se assume na tensão do encontro com a diferença. Composição deriva do verbo compor. Escrever é verbo, escrever é uma ação. É o ato de pôr palavra com palavra, palavras na melodia. A deriva meio tresloucada reforça a presença de uma pessoa que sempre esteve ali na imaginação, uma pessoa querida que aparece em cenários. São paisagens que aparecem e desaparecem. São paisagens que aparecem apenas para quem está criando e, escrevendo, elas podem ser reais também na imaginação que for tocada pela canção.
NO TEU MOVIMENTO BREVE / SOPRA UM VENTO / LEVE NAS PEGADAS / QUE A ONDA APAGA / CRIANÇA NA AREIA / VIRANDO SEREIA / VIDA NA BEIRA DO MAR
Neste caso, é escrever aquilo que não se sabe. É uma espécie de vida que, rompendo a casca do ovo, nasce e vai para o mundo.
QUANDO ENTARDECER / HORA DE VOLTAR / O HOMEM QUE TE AMA / ESTARÁ / ESPERANDO POR VOCÊ LÁ / SORRINDO POR TE VER / NO AVARANDAR. / CHORO DE CRIANÇA / UM RAIO DE IANSÃ / LIVROS NA CADEIRA / CHUVA NA ROSEIRA / FRESTA DA JANELA / LUNA CASA DELA / VIDA QUER ME NAMORAR.
Movimento breve é uma canção de Nuno Moraes e Ivan Rubens.
A gente ouve muita coisa... O tempo todo tem sons, tem palavras, barulhos e até melodias atingindo nossos ouvidos. Tem também ruído: uma televisão ligada, um rádio, um fone de ouvido em volume altíssimo ou mesmo um celular barulhento e sem o fone de ouvido. Então você está distraído e é atingido pelo ruído de um áudio no zap que agride seus ouvidos e você nem imagina de onde vem. Quero aqui marcar uma distinção didática: estou chamando de ruído uma certa poluição sonora, um determinado som que nos atinge mas não significa nada; vou chamar de música aquele som que interessa, que pede nossa atenção, que mexe, aquele som que convida, convoca uma escuta atenta.
No dicionário etimológico, música vem do grego mousikḗ, associado a moûsa, em referência às personagens femininas da mitologia grega. As musas eram habilidosas em criar belos sons. Para os gregos a música era uma téchne, uma técnica não focada na razão ou logos, mas sim numa manifestação de entendimento. Esta atividade artística era entendida como uma mousiké téchne, que posteriormente ficou conhecida como "ars musica" na civilização romana.
Pesquisas arqueológicas encontraram flautas e outros instrumentos fabricados de osso ou madeira que se remetem há 40.000 anos. Apesar disso, a música como manifestação cultural teve início na Grécia Antiga mais ou menos como a conhecemos hoje. Assim, quando as palavras não podem transmitir todas as ideias, a expressão musical procura comunicar aquilo que não cabe dentro da palavra. Bonito, não?
Aqui no nosso texto, em oposição à música está o ruído. Um exemplo de ruído que atinge nossos ouvidos está dentro da palavra negacionismo. Mas o que significa negacionismo? No Aurélio, dicionário da língua portuguesa, negação significa ato de negar, falta de vocação, falta de aptidão, ausência. Significa também rejeição, recusa. Para a filósofa brasileira Marilena Chauí, significa ‘mentira!’. Explico: imagine que você vai comer aquela bolacha recheada mas não sabe qual é o recheio que ela tem. Então você abre a bolacha para ver o recheio que está dentro. Olha, cheira e conclui que o recheio é morango. A exemplo da bolacha, dentro da palavra também tem uma espécie de recheio. O ‘recheio’ da palavra é o sentido que ela carrega. Mas o sentido das palavras varia de acordo com o pensamento de quem fala ou escreve.
Quando a professora Marilena Chauí abre a bolacha (ops), abre a palavra ‘negacionismo’ ela encontra um recheio ruim que ela dá o nome de ‘mentira’, ou seja, a capacidade de mudar os fatos. Ela também encontra ‘cinismo’. Cinismo é a recusa da distinção entre a verdade e a mentira. Para o filósofo Adorno, ‘cinismo’ é tornar irrelevante a distinção entre verdade e mentira. Dizer que os indígenas são os responsáveis pelo desmatamento da amazônica é de um cinismo brutal. Isso é mentira!
Já as palavras Yanomami, para dizer um povo indígena, tocam nossos ouvidos como a música mais bela.
Ivan Rubens
professor
publicado no Jornal Cidade em 18 de maio de 2021
Leia o texto 3/4 de aula no link abaixo.
ele está publicado no blog da Escola de Ativismo.