Entre lutas e loucuras

Sinto que estou no vórtice do furacão
Sou tragada pela fúria incandescente do dragão
Esta cidade que me oferece tudo, exige contrapartida:
tira minha energia
A luta fere
Cobra um preço fatal
Mesmo assim luto pelos que sofrem
Sem perceber o sofrimento penetrando
Lenta e cotidianamente
E meu tempo, nesta cidade com pressa, é sofrimento
Para viver
não tenho tempo
Para andar
não tenho tempo
Para alegria
não tenho tempo
Para música, 
quase não tenho tempo

Mas tenho amigas. 
Conto com elas p extravasar
No bar
Para falar de tudo: da luta, do trabalho, do sofrimento
Sofrimento dos outros, é claro
E das frustrações travestidas de que?
De luta
Filha da luta
Filhas de luta
Filha ...


Não aguento mais,  rapaz
Recorro
Até lembrar que a luta exige: eu te odeio,
rapaz
Você me oprime 
Me faz sofrer
Machista
Opressor
Séculos de patriarcado estão em você
Vamos matá-lo para acabar com tudo isso
E escrever uma outra história
Quem sabe um patriarcado de outra cor
De outro gênero
Preciso do patriarcado para sobreviver
Preciso da luta para sobreviver
Porque talvez ainda não possa viver


Pra que tanto céu?
Pra que tanto mar?


Sinto que a loucura está entrando em mim
Ela está me ocupando
Descobriu as fissuras do meu corpo
Respiro a loucura
Vejo a loucura
Como a loucura
Ouço sua voz me chamado…
Ela já abriu seu caminho
Fez picada na minha mata virgem
A máquina de produzir doenças me quer matéria prima
Anima?
Desanima

36 anos de idade


Tinha eu 14 anos de idade / Quando meu pai me chamou / Perguntou-me se eu queria / Estudar Filosofia / Medicina ou Engenharia / Tinha eu que ser doutor

Ela nasceu numa família simples do interior. O pai foi um operário brilhante, desses que produz suas próprias ferramentas. Um criador de problemas de toda ordem. Digo problema no sentido forte da palavra. Quando ele se via diante de um problema, procurava superá-lo criando uma situação nova. Veja que não falei em solução do problema. Explico: para ele um problema não demandava uma solução. A solução diminui a criação de novidades. Era um homem de possibilidades, criava possibilidades, expandia a vida e ampliava o mundo. Agora encontrei as palavras precisas: ele era um criador de mundos. Uma fotografia nos dá a imagem simbólica do que estou tentando dizer com palavras: uma criança tentando equilibrar na bicicleta, alegria e medo estampados no rosto negro, um lindo sorriso infantil e a ousadia de quem vai aos poucos se soltando das mãos do pai. Era um grande homem. Um homem que é mais de mil. Mil gestos, poucas palavras. Há de mil sons.

Da mãe herdou a convicção, firmeza e ternura. Com a mãe aprendeu muita coisa, da alquimia gastronômica às bruxarias na cozinha, do encanto com a transformação dos alimentos e sabores aos cuidados com o corpo. Aprendeu a cuidar. Isso mesmo, cuidado é algo que se aprende. Aprendeu a cuidar da terra, cuidar das pessoas, cuidar das coisas, cuidar da casa. Casa e corpo aqui são quase sinônimos. Com o tempo foi aprendendo também a cuidar das coisas do mundo.

Mas a minha aspiração / Era ter um violão / Para me tornar sambista / Ele então me aconselhou / Sambista não tem valor / Nesta terra de doutor / E seu doutor / O meu pai tinha razão

Ela poderia ser o que quisesse. Engenheira? advogada? médica? Todas as profissões que, acredita-se garantir ascensão social e financeira estariam ao alcance das suas mãos. Determinada como a mãe, inventiva como o pai, ela trabalha muito. Reconhece o prestígio e o dinheiro, mas não para nisso. Não se contenta com as superfícies. Ela mergulha fundo, procura tesouros escondidos no fundo do mar.

Vejo um samba ser vendido / E o sambista esquecido / E seu verdadeiro autor / Eu estou necessitado / Mas meu samba encabulado / Eu não vendo não senhor

Para ela, viver é leveza e alegria. Valoriza sobretudo as artes. No cinema ela cria personagens, nas canções ela pensa, na poesia ela dança. Com essa ginga de passista desenvolveu uma habilidade incrível de lidar com as pessoas. Na vida aprendeu que o mundo é povoado de gente diferente dela. Aprendeu que a morte é inexorável e a diferença é condição. Assim ela se produz humana com indígenas, nos quilombos, com os sem teto e sem terra, com pescadores e ribeirinhos. Deseja os ambientes equilibrados e alimentação saudável. Luta no campo e na cidade, afirma a condição feminina e a libertação dos homens da opressão do machismo. Enfrenta a desigualdade social e econômica. Vive entre os esfarrapados do mundo e com eles luta. Poetisa de povo, mestra em gente, doutora em vida melhor para todos e todas. Ela é professora porque acredita que o mundo pode ser melhor, sempre. 14 anos é uma canção do Paulinho da Viola.

BACURAU


Motores roncam. Duas motos levantam poeira na estrada de terra. Dois motoqueiros aceleram até chegar num vilarejo que ainda estava no mapa. Ambos despertam curiosidade e medo nos moradores. Os motoqueiros vestem calça, blusão, botas e luvas. Na porta do único bar do vilarejo, desligam os motores. O ruído cessa. Ao retirar os capacetes, da poltrona percebo: um homem e uma mulher. Dentro do bar, a atendente se mostra ansiosa. Sentada no chão, uma criança criançando. O motoqueiro pede água enquanto a motoqueira, discretamente, deixa um aparelho bloqueador de sinal de telefonia móvel: o vilarejo torna-se incomunicável. Como num filme de ficção científica, será ‘retirado’ do mapa das plataformas digitais nos minutos seguintes. Então chega a cena primorosa, aquela que, se o filme terminasse naquele exato momento, já valeria ter ido ao cinema. A motoqueira pergunta: quem nasce em Bacurau é o que? e a criança responde: GENTE!

São muitas horas da noite / São horas do bacurau / Jaguar avança dançando / Dançam caipora e babau / Festa do medo e do espanto / De assombrações num sarau (da canção Bicho da Noite, Sérgio Ricardo e Joaquim Cardoso, 1967).

No escuro da sala do cinema, risos da platéia. São os primeiros afetos produzidos por esta obra de arte chamada Bacurau. Penso que uma obra de arte se materializa na sua capacidade de produzir afetos e mobilizar emoções. Tanto mais potente quanto mais nos atravessa. Bacurau mobilizou e mobiliza... A crítica foi intensa, muita gente pensando e escrevendo, a favor e contra, recomendando o filme ou não, qualificando-o ou desqualificando-o. O filme mexe !!!

...Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico / Um anticomputador sentimental / Eu vou fazer uma canção de amor / Para gravar um disco voador (...) / Para lançar no espaço sideral / Minha paixão há de brilhar na noite / No céu de uma cidade do interior / Como um objeto não identificado (Objeto não identificado, Caetano Veloso. Gravado por Gal Costa em 1969)

A sinopse do filme diz o seguinte: a partir do velório de dona Carmelita (94 anos), a gente de Bacurau vai percebendo algo estranho na região. Drones no céu e estrangeiros circulando na região. Quando carros são baleados e cadáveres começam a aparecer, os habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.

Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja para melhorar / Tanta vida pra viver / Tanta vida se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar (da canção Réquiem para Matraga, Geraldo Vandré. Do filme ‘A hora e a vez de Augusto Matraga’, 1965)

Chico Sciense disse que “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. Para os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, Bacurau é o homem coletivo lutando no sertão nordestino. Mas poderia ser no Brasil dos morros, das favelas, e outros interiores.

Bacurau é uma ave de plumagem macia, voo silencioso e hábitos noturnos. Bacurau é, sobretudo, uma obra de arte, um filme que vale a pena ser visto e revisto. Está em cartaz nos cinemas do Brasil e do exterior.

Ver ocaso

Ver o nada
Perfeitamente
Porque perfeita, mente
A mentira perfeita
Tipo crime que não se desvenda
Olhares fechados a olhos abertos
Apagamentos
Ocaso

E a vida o que é, meu irmão?


Eu fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita…

Uma colega mostrou citação no material didático: “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Ela estava preparando uma formação para professores e pensava no dualismo ensino - aprendizagem. Pensei na densa obra de Luiz Gonzaga Jr e na sua capacidade de ultrapassar as obviedades. E convidei minha amiga para ouvir a canção.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

A letra remete à ideia de aprendizagem. A aprendizagem nos leva a pensar no ensino. Ensino e aprendizagem são palavras (e conceitos) que andam de mãos dadas. Na minha modesta opinião, Gonzaguinha está falando de outra coisa, de algo maior, algo que vai além… e diz isso com otimismo porque, cantando, a vida é mais viva. Assim, o artista lança perguntas:

E a vida? / E a vida o que é, diga lá, meu irmão? / Ela é a batida de um coração? / Ela é uma doce ilusão? / Mas e a vida? / Ela é maravilha ou é sofrimento? / Ela é alegria ou lamento? / O que é, o que é, meu irmão?

São muitas possibilidades de resposta, da biologia às religiões. Prefiro cultivar a pergunta, mantê-la viva no sentido da busca por respostas, mesmo que provisórias, para acalentar um corpo curioso. Gonzaguinha nos lança numa busca filosófica com os pés fincados no chão.

Há quem fale que a vida da gente / É um nada no mundo / É uma gota, é um tempo / Que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor / Você diz que é luta e prazer / Ela diz que a vida é viver / Ela diz que melhor é morrer / Pois amada não é e o verbo é sofrer / Eu só sei que confio na moça / E na moça eu boto a força da fé

Há quem diga isso e aquilo da vida: você diz, ela diz… Gonzaguinha confia na jovem mulher e, com ela, afirma: “somos nós que fazemos a vida”, cada ser é autor da sua própria canção. E o desejo empurra a vida para a frente.

Somos nós que fazemos a vida / Como der ou puder ou quiser / Sempre desejada, por mais que esteja errada / Ninguém quer a morte, só saúde e sorte / E a pergunta roda e a cabeça agita / Fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita

O tempo passa, a morte é certa. Entre o passado (que não volta mais, exceto nas lembranças) e o futuro (incerto), temos o presente. O que temos feito da vida neste tempo presente? Como criança entende de presente, Gonzaguinha conclui com elas: A vida é bonita ao quadrado.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

Criança canta, criança brinca. Criança se permite viver as belezas e as sutilezas do aqui e do agora. Criança se faz presença. Uma criança não passa despercebida. Quem nunca viu uma criança concentrada numa brincadeira, como se o mundo estivesse completamente parado? Podemos pensar na infância para além do tempo cronológico, não apenas como uma etapa da vida mas como uma experiência de relação com o tempo, com o mundo e com a própria vida. Talvez isso esteja entre ensino e aprendizagem.

Ivan Rubens
estudante de educação





Se eu quiser falar com Deus


Disponível no spotify, podiquesti Andarilhagens.



“O Roberto Carlos me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso... E se eu quiser falar de falar com Deus? Com esses pensamentos, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes”. Assim começou, segundo Gilberto Gil, sua criação.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz / Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós / Dos sapatos, da gravata / Dos desejos, dos receios / Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta / Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus

O compositor sugere que para falar com Deus não precisa muita coisa. Basta estar sozinho, na penumbra, em silêncio, em paz. É bom desatar os nós que nos apertam como os do sapato e da gravata. Mas também é bom folgar as grades que aprisionam nossos desejos e receios. É bom dar-se tempo, libertar-se um pouco das cronologias e ordens. Não carregar nada, não levar nada, ter as mãos vazias. E se expor assim como se é, assim como viemos ao mundo: nus.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor / Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou / Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão / Dos palácios, dos castelos / Suntuosos do meu sonho / Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho / E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração

O ser humano é, de um modo geral, enganador. Ele busca permanentemente o prazer, a alegria, a felicidade. Ele evita a dor, ele engana_a_dor. Contudo, a vida é muito complexa. A linha sugerida por Gil é aceitar a dureza da vida, aceitar também a tristeza e o medo. Mas não qualquer medo. É preciso aceitar um medo específico: o medo que dá-se a si mesmo. É preciso estar atento às palavras que usamos e aos pensamentos que tais palavras significam; atento aos gestos e às atitudes, e agir com prudência até perceber a beleza e a potência que habita os detalhes, as sutilezas, a simplicidade da vida.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar / Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar / Decidido, pela estrada / Que ao findar vai dar em nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar

Desprender-se um pouco dos planos e projetos para libertar-se ao acaso. Permitir-se. Como diz outra canção: ‘para se perder tem que se achar’. Primeiro perder-se para, depois, se encontrar. Encontrar-se consigo mesmo, estar diante de si, perceber-se, sentir-se. ‘Conhece-te a ti mesmo’. Aventurar-se ao encontro de si mas também ao encontro do outro. Porque o mundo é povoado de seres diferentes. Então, nesse movimento encontros e des_encontros podemos nos diferenciar de nós mesmos? podemos diferir? Talvez sim, porque ao se aventurar, corre-se um risco muito bom: encontrar no outro um fragmento, um pedaço daquilo que dificilmente encontra-se em si mesmo. É mais ou menos como um caminhar sem destino, decidido, pela estrada que ao final vai dar em nada do que eu pensava encontrar. Porque criar expectativas, esperar resultados, fecha a possibilidades de outros acontecimentos.

Roberto Carlos não gravou esta canção. Talvez por crer num Deus mais pleno. O Deus de Gil nesta canção é um tanto vago, ou a ser preenchido. Elis Regina gravou.

Ivan Rubens






Maranhões

Trançar suas tranças 
com a linha do equador 
Deitar com você 
Sob o sol, amador 
Há Mar_anhão 

Você coberta 
Lençóis maranhenses 
Pescar 
Você sereia 
Queimar os pés na areia 
No chão da cidade alheia 
Alhures, descansar nos tambores, crioula 

Te amar 
Antes, durante, depois 
Amar 
Te amar 
No mar 
Rolar na areia, arranhões 
Maranhões

Moska e Cristo



O que Jesus Cristo diria hoje?

Foi essa a pergunta que se fez o compositor Paulinho Moska ao se deparar consigo mesmo. Sua imagem refletida no espelho, magro, barbudo e cabeludo, o conduziu a uma reflexão: o que Jesus diria para leitores e leitoras da bíblia nos dias de hoje? Moska é filho de família católica e, ao tornar-se “ateu-ativo” (palavras dele) ampliou seu interesse pela literatura religiosa. Afirma ler compulsivamente livros que constroem, destroem, reconstroem, re-destroem as várias religiões. Afirma também perceber nas religiões um intenso e profundo processo, algo que lhe fascina: uma espécie de obra de arte. Fala da bíblia como um livro belíssimo, uma literatura fantástica. Vê Cristo como o maior poeta do amor. E critica a maneira como as instituições religiosas transformaram a palavra, a partir da bíblia, em dispositivos de controle dos corpos. Daí vem a inspiração para as primeiras frases da canção A Seta e o Alvo: Eu falo de amor à vida, você de medo da morte / Eu falo da força do acaso e você, de azar ou sorte / Eu ando num labirinto e você, numa estrada em linha reta / Te chamo pra festa mas você só quer atingir sua meta / Sua meta é a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera Paulinho Moska é um multiartista. Passeia por muitas linguagens: a música, a composição, letras e melodias. O violão. Mas o teatro está na origem. E essa experiência de viver personagens o ajuda a criar canções. Imagine a situação descrita acima: “é como se” Paulinho e Jesus Cristo estivessem frente a frente, conversando, trocando ideia. É um jeito de empurrar o pensamento, de colocá-lo em movimento. É como se o artista colocasse o pensamento para cumprir seu papel: pensar! e a imaginação se lembra que possui asas, e começa a voar. Então nasce uma obra de arte, neste caso uma canção. Eu olho pro infinito e você, de óculos escuros / Eu digo: "Te amo" e você só acredita quando eu juro / Eu lanço minha alma no espaço, você pisa os pés na terra. / Eu experimento o futuro e você só lamenta não ser o que era. / E o que era? Era a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera A bíblia foi escrita no seu tempo. Há que considerar seu contexto. Há que perceber o contexto atual para leitura e interpretação das palavras presentes no livro visto que, lembra o compositor, “nada é eterno”. Nem a palavra pode ser eterna: a palavra é frágil, a palavra não explica quase nada. A palavra é pouca para o nosso pensamento, a palavra é curta para nossa potência. A palavra é uma diversão barata. Porque nada, nem mesmo as palavras, nem mesmo nossa capacidade de dizer, nem mesmo a linguagem toda dá conta da própria vida. A vida é mais, a vida é maior do que nossa capacidade de dizer da vida. Eu grito por liberdade, você deixa a porta se fechar / Eu quero saber a verdade, e você se preocupa em não se machucar / Eu corro todos os riscos, você diz que não tem mais vontade / Eu me ofereço inteiro, e você se satisfaz com metade / É a meta de uma seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera Uma canção na sua dimensão obra de arte se faz por si. A criação de Moska começou assim nas primeiras frases, e vai ganhando vida própria. Segue um curso singular até nascer. Ela é em si, ela é arte é criação. Neste sentido, humanos assumem uma dimensão divina: criadores e criaturas. Criar é um ato divino. Então me diz qual é a graça / De já saber o fim da estrada / Quando se parte rumo ao nada... Ivan Rubens Dário Jr Geógrafo, doutorando em Educação

Alguém me avisou



Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há / Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há

Às vezes o convite chega todo bonito, embrulhado em palavras organizadas e precisas, embrulhado num envelope de papel ou aquele envelope iconográfico do email. Ou num chat, numa rede social, num desses aplicativos causadores de ansiedade e conversas instantâneas. Convites também nos chegam escondidos, camuflados em frases enigmáticas, distorcidos no sentido de uma ou outra palavra. Bem, nos importa aqui o convite.

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho / Mas eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho

Tenho recebido convites para visitar Escolas, conversar com professoras e alunxs. Ao aceitá-los sinto um primeiro incômodo: o que vai acontecer? o que vou fazer lá? como serei recebido? Um bom incômodo é aquele que te tira do lugar, que te lança para frente, que te empurra, te coloca em movimento e você caminha, busca, procura um novo lugar. Um bom incômodo é aquele de te empurra pra pensar. Movimenta o corpo-pensamento. Dona Ivone Lara nos dá a dica: “pisar nesse chão devagarinho”. Isso mesmo. Porque é preciso saber que se chega, é prudente saber que se chega e saber(-)se chegar. Porque há um chão com características peculiares. Todo chão é singular.

Pensemos num rio. Entra-se pela primeira vez num rio. O ineditismo é seu, não do rio. O rio está ali em seu fluxo há tempos, séculos, milênios… O rio tem seu fluxo; entra-se no fluxo do rio. Ou seja, antes de você chegar, muita coisa já aconteceu. Muitas histórias, muitos acontecimentos, tudo o que constitui uma realidade singular. Pisar nesse chão devagarinho requer cuidado. A leveza do passo, o toque dos pés no chão, sentindo os pés e o chão, um calçado adequado, pantufas de lã, ou mesmo descalço para sentir melhor.

Sempre fui obediente / Mas não pude resistir / Foi numa roda de samba / Que juntei-me aos bambas / Pra me distrair

Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora do Rancho Flor do Abacate e o pai foi mecânico de bicicletas, violonista e componente do Bloco dos Africanos. Aos seis anos de idade, ficou órfã de pai e mãe. Estudou no internato onde permaneceu até os 16 anos. Foi assistente social e enfermeira especialista em terapia ocupacional. Com a médica psiquiatra Nise da Silveira, introduziram a arte no tratamento de pacientes esquizofrênicos. Com música e principalmente com pintura, essa experiência revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Participava da escola de samba Prazer da Serrinha e, com a fundação do Império Serrano em 1947, passou a desfilar na ala das baianas. Compunha sambas mas não podia apresentá-los por ser mulher.

Quando eu voltar na Bahia / Terei muito que contar / Ó padrinho não se zangue / Que eu nasci no samba / E não posso parar

Ivone tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala dos compositores de escola de samba. Aposentada da enfermagem em 1977 passou a dedicar sua vida a música.

Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há

Alguém me avisou é um samba de Ivone Lara. A rainha do samba nos deixou em abril de 2018.



Ivan Rubens Dário Jr
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 21/05/2019

Amores e Espumas ao vento



Quem nunca brincou de bola de sabão? ou na infância dos corpos crescidos, duas mãos ensaboadas estendidas, um sopro forte de lábios: espumas ao vento… O pernambucano Accioly Neto nascido em 1950 e falecido em 2000, escreveu um forró que diz assim:


Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim / Um grande amor não se acaba assim / Feito espumas ao vento


Leve, a espuma voa para longe até se desfazer. Parece que é assim também com um amor: leve feito espuma, se desfaz com o vento, desmancha no ar. Apesar do desfazimento, do desmanchamento, parece que não se apaga. E não se apaga porque deixa marcas, profundas marcas.


Não é coisa de momento / Raiva passageira / Mania que dá e passa feito brincadeira / O amor deixa marcas que não dá pra apagar


Terminar um grande amor é uma espécie de luto. Sim, porque o luto se situa na dinâmica entre dois pólos da existência humana: a vida e a morte. Como a perda é real, sente-se uma tristeza profunda mas que é, contudo, superada com o passar do tempo. A exemplo do luto, associemos a perda de um grande amor a uma espécie de morte: algo morreu aqui dentro de quem ama.


Sei que errei e estou aqui pra te pedir perdão / Cabeça doida, coração na mão / Desejo pegando fogo


Podemos também associar um grande amor a uma espécie de vida. Uma vida maior, mais colorida, mais cheia de sentido, mais intensa. “Quando a gente ama é o clarão do luar”, diz um samba. Ou, “o amor é fogo que arde sem se ver” disse o português Luiz de Camões em Os Lusíadas.... o amor é fogo, o amor arde, o amor é chama, o amor é quente… e quando ele chega ao fim, bate aquela tristeza, aquela vontade danada de não deixá-lo ir, uma vontade de poder ressuscitá-lo como fez o super-homem ao voar contra o movimento de rotação para, fazendo a Terra girar para trás, fazendo o relógio rodar para trás, salvar da morte, com seus super poderes, a mulher amada. Esta cena emblemática do filme Superman foi representada por Gilberto Gil em ‘Super Homem - a canção’.


Sem saber direito aonde ir e o que fazer / Eu não encontro uma palavra só pra te dizer / Mas se eu fosse você, amor, eu voltava pra mim de novo


As marcas deixadas por um grande amor não são necessariamente marcas de dor. Cicatriz é uma marca na superfície do corpo. Cicatrizes lembram machucados, ferimentos. Cicatrizes são marcas de dor. Tatuagens também são marcas na superfície do corpo. Tatuagens costumam representar bons afetos, bons momentos, gente querida. Entretanto, lá no fundo, aqui dentro do corpo, o amor deixa marcas que não se pode apagar. Depois de um grande amor não somos mais a mesma pessoa. Superado o luto, percebemos que fica dentro da gente um pouco da pessoa amada. Estamos diferentes, somos mais, estamos melhorados com (ouso dizer) a melhor parte da pessoa amada que ficou aqui dentro, numa espécie de corpo emocional ou, como dizem, dentro do coração. O compositor recomenda não fechar a porta. Porque uma fresta é suficiente quando um amor pede passagem. E quando se sente o corpo vibrando por dentro, aquele amor continua pulsando, a chama não se apagou, o chão de amor permanece fértil para germinar a semente e brotar mais uma vida nova. É festa !!!


E de uma coisa fique certa, amor / A porta vai estar sempre aberta, amor / O meu olhar vai dar uma festa, amor / Na hora que você voltar


com Mariana Aydar

com Fagner

com Elza Soares

para o filme Lisbela e o prisioneiro


Suzano: luto na cidade das flores


Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade. / Muitos temores nascem do cansaço e da solidão / E o descompasso e o desperdício herdeiros são / A glória da virtude que perdemos. / Há tempos tive um sonho, não me lembro / não me lembro…


2/abril/1999 - Dois estudantes mataram 12 alunos e um professor da Columbine High School/EUA. 21 pessoas feridas. Os dois estudantes se mataram. Oscar de melhor documentário para Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore. Suzano completava 50 anos.


Tua tristeza é tão exata / E hoje o dia é tão bonito / Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso. Os sonhos vêm e os sonhos vão / O resto é imperfeito.


2003 a 2012 - Durante 8 anos morei na rua da Escola Estadual Raul Brasil em Suzano/SP. Parte dessa história está no livro “Pedagogias da Cidade: corpos e movimento” lançado em 2018 pela Appris editora. Em Suzano conheci muita gente bonita, colorida, mistura de raças e etnias, gente trabalhadora e dedicada. Suzano é conhecida como a Cidade das Flores.


13/março/2019
9 horas. Um jovem de 17 anos e um rapaz de 25, atiram em um comerciante de carros em Suzano, tio de um dos rapazes.
9h30. Os dois jovens entram na escola Raul Brasil, ambos ex-alunos, e matam a tiros 2 funcionárias e 5 estudantes do ensino médio. Tristeza exata e precisa: eles usaram um revólver com numeração raspada e armas  brancas: uma machadinha e uma besta. Onze pessoas ficaram feridas. Na versão oficial, a dupla se matou no momento da chegada da polícia. Dez pessoas foram mortas. Jovens estudantes pularam os muros da escola às fugindo do massacre e buscando refúgio nas casas da vizinhança.


Disseste que se tua voz tivesse força igual / À imensa dor que sentes / Teu grito acordaria / Não só a tua casa / Mas a vizinhança inteira.


14/março/2019 - A polícia civil informou que os jovens planejaram o crime há tempos. Conseguiram apoio de pessoas que, na internet, discutem e incitam crimes de ódio e intolerância protegidas por ferramentas de anonimato. Ainda segundo a polícia, os jovens tentavam superar o massacre de Columbine. Num lado da cidade, um velório coletivo com parte das vítimas: milhares de vozes, gritos de dor ecoando pelo mundo. Noutro lado, uma desértica cerimônia de enterro dos réus: policiais, jornalistas e o grito surdo de uma mãe.


E há tempos nem os santos têm ao certo / A medida da maldade / Há tempos são os jovens que adoecem / Há tempos o encanto está ausente / E há ferrugem nos sorrisos / E só o acaso estende os braços / A quem procura abrigo e proteção.


17/março/2019 - Voltei a Suzano. Andei pela bairro e pela rua Otávio Miguel da Silva num reencontro com meu passado. Vi gente consternada. Sobre a tinta branca das paredes da escola, pedidos de paz em desenhos, sinais, palavras e frases. Marcas de mãos espalmadas. E muitas flores. A cidade das flores homenageando os filhos que partiram. A rua, o bairro e até mesmo a cidade já não são as mesmas. Talvez a cidade das flores seja conhecida, a partir de agora, como a cidade das mortes na escola.


Qual seria a medida da maldade? quantas vítimas somos? qual a nossa responsabilidade na produção de uma sociedade, uma juventude, que sente imensa dor? por que tanto cansaço e solidão? Estamos chocados, inconformados porque aconteceu desta vez dentro de uma escola pública. Parece que já não mais nos afetamos com chacinas nas periferias e favelas. Mas tanto um quanto o outro são, de alguma maneira, a materialização do gesto de campanha do atual presidente do Brasil. Dois jovens o levaram a sério.


disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem / Lá em casa tem um poço / mas a água é muito limpa.


Há tempos é uma canção da banda Legião Urbana. A canção começa falando de uma tristeza que entorpece. O clipe da canção sugere que o caminho de saída está nos livros, nas artes e na cultura. O buraco do poço é fundo e escuro, mas a água é limpa.


Ivan Rubens Dário Jr

geógrafo, doutorando em Educação.




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 26 de março de 2019

Anunciação, brumas, Brumadinho

Na bruma leve das paixões que vem de dentro / Tu vens chegando prá brincar no meu quintal / No teu cavalo peito nu cabelo ao vento / E o sol quarando nossas roupas no varal

Anunciação é uma canção de Alceu Valença, gravada pela primeira vez no álbum Anjo Avesso de 1983. Pernambucano de São Bento do Una, Alceu é atento ao sentido das palavras. Vejamos o título desta canção em uma palavra: ‘Anunciação’ pode ser compreendida como ação ou efeito de anunciar. Na teologia, é a notícia, levada pelo anjo Gabriel à virgem Maria, de que ela seria a mãe do filho de Deus.

Tu vens tu vens / Eu já escuto os teus sinais

Esta canção me fazia pensar na deliciosa sensação que precede o encontro com alguém, uma pessoa muito querida que está por vir. Pensar também na sensação da espera pelo beijo, quando o coração acelera, a mão transpira. E vai por aí...

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido / E eu não duvido já escuto os teus sinais / Que tu virias numa manhã de domingo / Eu te anuncio nos sinos das catedrais
Dizem que a canção nasceu quando o compositor esperava a chegada do filho: Alceu ouvia os gritos da mãe durante o trabalho de parto quando, à espera do primeiro choro que anuncia a chegada do bebê, ouve sinos de uma igreja das redondezas. Essa mistura de sons foi compondo as melodias da canção na cabeça do artista. São, então, duas novidades: uma vida nova vem ao mundo, uma bela criação vem ao mundo.

Tu vens tu vens / Eu já escuto os teus sinais

Abordei o sentido que esta canção produz em mim. Contudo, um episódio recente iniciou uma nova significação: ‘bruma’ pode ser compreendida como neblina, nevoeiro, algum embaçamento que, ao dificultar a visão, exige do observador muita atenção. Brumadinho é diminutivo de bruma. Brumadinho é, também, um município no estado de Minas Gerais cujo nome vem exatamente das brumas comuns naquela região de montanhas. Em 2019 o município ficou conhecido pelo acidente ambiental devido ao rompimento de uma barragem da empresa Vale S.A. Não foi a primeira vez. Vale lembrar Mariana/MG: em 2015 ocorreu o maior acidente ambiental da mineração brasileira com o rompimento da barragem do Fundão pela Samarco, empresa controlada pela Vale. Ao tratar como um acidente, parece que não há uma empresa privada explorando o minério e administrando todo seu processo produtivo. Mas isso vale para quem? para a multiplicidade de espécies animais e vegetais devastadas pela lama? para a multiplicidade de culturas devastadas? muita vida não pulsa mais. Vale a morte?

Podemos tratar o caso Mariana como crime ambiental. No caso de Brumadinho, 157 pessoas mortas e 182 pessoas desaparecidas (dados de 8/fev). Talvez estejamos diante de um crime contra a humanidade.

Ao tratar como acidente estamos preservando a empresa, estamos higienizando a marca Vale. Segundo o site da empresa, “a Vale é uma mineradora global que transforma recursos naturais em prosperidade”. Prosperidade inclui seus crimes? inclui toda a vida sentenciada de morte?

Mariana anunciou. Brumadinho anuncia. Triste Anunciação.

Ivan Rubens Dário Jr
geógrafo, doutorando em Educação.

Máscara Negra

Tanto riso, oh quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão / Arlequim está chorando pelo amor da Colombina / No meio da multidão (...)


Calor naquele samba dominical em Rio Claro quando recebi o convite para esta coluna. Falávamos da vida cotidiana quando uma questão nos ocorreu: será que existe uma canção a respeito deste (ou daquele) tema? para tudo já existe uma canção? Então, pensei: se procurar bem, garimpar, vasculhar o cancioneiro popular, encontraremos sinais, pensamentos, ideias e reflexões, encontraremos os sentimentos e elaborações, os acontecimentos cotidianos mais elementares da existência humana. Nesse fluxo, me lembrei de um silencioso José.


Canções populares como ‘Máscara Negra’, ‘A voz do morro’, ‘Diz que fui por aí’, ‘Opinião’, imortalizadas na voz de grandes intérpretes da música brasileira, são composições de José Flores de Jesus, o Zé Keti.


Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro / Sou eu quem levo a alegria / Para milhões de corações brasileiros (...)


Nascido no subúrbio Rio de Janeiro em 1921, Zé Keti cantou o samba, as favelas, a malandragem, seus amores. Seu avô, flautista e pianista, costumava promover reuniões musicais em sua casa, frequentada por bambas como Pixinguinha por exemplo. Mais tarde mudou-se para Bento Ribeiro onde passou a frequentar a quadra da Portela. Um menino quieto, um José, um Zé quieto como era chamado na infância. Quieto virou kéti, daí seu nome artístico. Zé Keti foi peixeiro. Em 1960 abriu uma barraca de peixes na Praça Quinze no RJ.


Podem me prender / Podem me bater / Podem, até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui do morro / Eu não saio, não


Além de suas canções, um episódio marcou a história da MPB: o Teatro Opinião. No contexto do golpe de militar de 1964, a canção ‘Opinião’ foi traduzida para o teatro e dirigida por Augusto Boal. Zé Keti interpretava um favelado, João do Vale fazia um nordestino das caatingas do Maranhão e Nara Leão, uma garota da alta sociedade carioca, estudante da PUC. Com alguns problemas de saúde, Nara foi substituída pela baiana Maria das Graças, ainda com 17 anos de idade. Para chegar ao Rio de Janeiro a convite de Boal, a menina contou com a ajuda do irmão Caetano Veloso. Assim, entra na cena cultural brasileira a artista Maria Bethânia. Mas essa história fica para outro dia....


No início dos anos 1970, Zé Keti foi para São Paulo onde trabalhou na reforma de prédios, trabalhou como funcionário público e representante de laboratório farmacêutico. Passou os últimos anos de sua vida na casa dos filhos entre SP e RJ. Nunca deixou de compor. Em 1999 recebeu uma homenagem pelos 60 anos de carreira. Em agosto do mesmo ano, com a morte de sua ex-mulher, entrou em profunda depressão. Morreu em 1999 aos 78 anos de idade.


Se alguém perguntar por mim / diz que fui por aí…


José Flores de Jesus é Zé Keti. Um negro suburbano carioca. Um artista brasileiro.


Ivan Rubens, estudante.

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 29/01/2019

Eleições 2018: alguns dados...


Vivemos tempos de eleições. Em outubro, diante da urna eletrônica, o povo brasileiro escolherá Presidente da República, Governador/a nos 27 estados da federação, Senadores/as, Deputados/as Federais e Deputados/as Estaduais. Por meio do voto vamos definir dois poderes em dois níveis, a saber: o poder Legislativo e o poder executivo, tanto no nível federal quanto no nível dos Estados Federados. Ou seja, escolheremos quem nos representará em Brasília e em São Paulo. Deputados e deputadas Federais, Senadoras e Senadores, deputados e deputadas estaduais; e para o poder executivo escolheremos quem, em nosso nome, governará o Estado de São Paulo, portanto o governador ou governadora, e o Brasil ou a União, portanto Presidente ou Presidenta. Bem, para colaborar com os/as (e)leitores/as, vamos colocar o processo de votação na ordem correta:

1. Primeiro voto é para deputado/a federal. Votaremos para escolher nosso representante para a Câmara Federal. Serão 4 dígitos na urna eletrônica mais a tecla confirma. Nesse caso, cada eleitor/a escolherá um/a representante, mas a Câmara Federal é composta por 513 deputados que representam os interesses do povo do seu estado. Então, o eleitorado paulista será representado por 70 deputados, o limite máximo segundo a legislação, compondo a maior bancada. O limite mínimo são 8 deputados representando a população dos estados de menor eleitorado como o Acre por exemplo.

2. Segundo voto é para Deputado/a Estadual. Votaremos para escolher nosso/a representante para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Serão 5 dígitos na urna eletrônica mais a tecla confirma. Neste caso, cada eleitor/a escolherá um/a representante, mas no total serão eleitos 94 deputados à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

3 e 4. Terceiro voto é para Senador/a. Votaremos para escolher nosso/a representante para o Senado. Serão 3 dígitos na urna eletrônica mais a tecla confirma. No Senado Federal, diferente da Câmara dos Deputados, a representação é federativa, ou seja, cada Senadora ou Senador representa seu estado. Por isso, são três representantes para cada um dos vinte e seis Estados e do Distrito Federal totalizando 81 senadoras/es. Apenas no Senado o mandato é de oito anos, mas a renovação é de quatro em quatro anos alternadamente. Ou seja, em 2018 elegeremos dois senadores. O terceiro e o quarto voto serão para Senadora e Senador.

5. O quinto voto será para Governador do estado de SP. 

6. E o sexto voto será para escolher a Presidente da República.

Seis votos no total. Se considerarmos a quantidade de dígitos por votação mais os ‘confirma’, serão vinte e cinco toques na urna eletrônica, número que pode aumentar em caso de correção ou diminuir se a opção for votar na legenda, por exemplo. Mas isso será no dia 7 de outubro. Até lá, é importante pesquisar bem para decidir em quem confiar o voto. Veja os materiais de campanha, veja o programa eleitoral, pesquise a biografia dos candidatos, quais compromissos políticos assume, que grupos de interesse representa. As informações estão aí. Seja crítico, questione, tire suas dúvidas. Exija compromissos públicos. Converse sobre isso, reflita. Esse é o jeito de exigir mais qualidade dos/as candidatos/as. Afinal, os resultados disso serão sentidos por todos nós durante os 4 (ou 8) anos do mandato.

Ivan Rubens – educador.
24/set/2018

a boa política de segurança pública

Durante o debate entre os candidatos a governador do estado de São Paulo em 16/agosto/2018, Marcelo Candido falou das possibilidades de reduzir a violência com políticas sociais. Aqui um bom exemplo:

Ser neta de Maria W. Jordão. por Ivanessa Jordão Dário Chill

Dos meus quase 40 anos vividos, vivi também outros 50 anos da vó Quinha. Pensando que ela tinha tanta lembrança anterior a mim, tive o privilégio de ouvir muuuiiiitttooossss causos, presenciei muitos aconselhamentos, e também certas aflições da vida….

Algumas lembranças da infância dela e do que vivemos me vieram à memória enquanto lia um texto que meu amado irmão escreveu para este dia primeiro de julho de 2018 quando comemoramos aniversário de 90 anos. Vou falar de alguns episódios, incluindo alguns “grandes delitos” que ela cometeu:
para poder ler romance escondido de sua mãe, a bisa Maria, que a proibia desse tipo de leitura, ela usava suas artimanhas de garota: subia nos galhos mais altos das árvores do quintal. E, mais perto das nuvens no céu, voava nas asas da literatura brasileira;
- A ânsia de esperar seu pai chegar do trabalho para mimá-la e embebedar-se de sua mansidão;
- O prazer de ornamentar, com as flores de papel que fazia, o fio do lustre da casa;
- Subir o mais alto nas árvores;
- Do mais, ter podido ser apenas uma criança que foi muito desejada e amada….

Eu penso que a palavra que resume a minha vó é “cuidado”. Ela é, desde sempre, muito atenta tanto aos detalhes quanto aos grandes atos. Detalhes que poderiam nos parecer menores mas que, com o tempo, percebemos a grandeza dos detalhes. Os detalhes, os pequenos gestos, porque é na simplicidade que estão as grandes revelações. Assim ela sempre nos revelou os valores que nos transmitia: cuidado com a casa, com os amigos (que cultivou muitos), com os problemas e defeitos de todos nós. Ela nos ensinou que não se é humano. Porque ser humano não é algo dado, fixo, pronto e acabado. Não !!! Ser humano é sempre um vir a ser humano. É um esforço paciente, cotidiano, cuidadoso de tornar-se humano. E para tornar-se humano, mais humano, o desafio permanente é o de cuidar de si, estar atento a si e ao próximo, é cuidar dos encontros que acontecem e nos acontecem ao longo da vida. É cuidar da casa. E são tantas casas: o corpo é a casa do espírito, a igreja é a casa, a cabeça é a casa do pensamento e da imaginação, a cidade é casa de uma sociedade inteira, o Brasil é casa, o mundo é casa. O livro é casa, a poesia é casa, a música é casa. E que todas essas casas são habitações de Deus.
É tentar ser melhor a cada dia. Ela sempre teve um olhar muito humano com todos à sua volta e com os que estavam longe (mas aquecidos por seus sentimentos de amor e carinho).

Impossível não lembrar:
- daquele pão quentinho cedo?
- da campainha que tocava na casa da vizinha para avisar e ser um socorro? isso mesmo: havia um interruptor que dona Auzira acionava da casa ao lado em caso de emergência.
- do lanche para levar na escola esperando no portão antes das 7h da manhã? (isso é de uma delicadeza e de um carinho indescritível)
- Impossível não lembrar:
- das revoadas de pássaros, no início e no final de cada dia, sem dizer: os pássaros da vó !
- do carinho com que recebia, e recebe até hoje, as amigas para o círculo bíblico;
- As jogatinas intermináveis de buraco?…. Sábado era sagrado!
- a ritualística dos nossos dias de aniversário;
- As trocas das toalhinhas da casa a cada ocasião especial......
Impossível não lembrar das noites de cantoria! são tantas as canções antigas que fazem parte de nosso repertório musical que aprendemos na sua voz afinada e doce;

A brincadeira de observar as placas dos carros na estrada durante nossas viagens; qual é a música? e….. olhar pela janela do carro e observar a mesma árvore, o ipê amarelo, aquela baixada, o rio, a ponte…. assim aprendemos a perceber as estações do ano, a seca, a temporada de chuva… com essa prática ela, sem anunciar, nos mostrava que o mundo é encantador. Ela despertava em nós uma curiosidade com o planeta e nos ensinava, sem grandes alardes, a urgência de cuidar da Terra, mesmo que aqui numa pequena parte de sua imensidão.

Ela nos ensinava a perceber a vida pulsante da natureza e em nossa dimensão humana: Veja a vida! Não deixe ela apenas passar….

Dentre tantos ensinamentos, aprendi crochê, tricô, costura, produzir coisas com as próprias mãos para embelezar ou presentear. Quem não passava o ano todo escolhendo o cardápio do almoço do próprio aniversário? E ela se dedicava em fazê-lo, preparava a comida com um carinho especial.

Por não estar na idade adequada, fiz o antigo pré primário duas vezes. ´meio que típico dos irmãos não perderem uma oportunidade de ‘zoar’. Os meus irmãos diziam que eu havia repetido o pré. Penso hoje em dia que vivi um ano particularmente especial…. tive uma oportunidade muito especial, única eu diria: a presença diária da minha avó Mariquinha. Fiquei em sua companhia um ano inteiro. Uma espécie de preparação intensiva para o início da minha vida (por assim dizer) formal. Foi um ano maravilhoso. Assim como é simplesmente maravilhoso ser neta da Mariquinha, conviver com ela, amá-la e receber seu amor.

Ivanessa Jordão Dário Chill

A infância do amor: os 90 anos de Maria Witzel Jordão

Dia desses uma vibração no meu celular causou uma certa vibração em mim. Isso mesmo: a chegada de uma mensagem me causou terremotos. Uma infância se fez em mim. Passei a brincar com o tempo como aquela criança que, brincando, parece habitar um mundo à parte, um mundo sem o tempo marcado pelo relógio, um mundo fantástico de fabulações e fantasias. Como se o relógio parasse e existisse no mundo apenas a criança, seus brinquedos e sua imaginação. Como disse o filósofo pré-socrático Heráclito de Eféso (535 – 475 dC), uma criança criançando.

No meu celular chegou uma imagem que não era uma fotografia qualquer: Maria Witzel Jordão e Aurora de Carvalho Bartiromo frente a frente. Olhares se atravessando e entre elas 90 anos. Presentes  tataravó e a recém nascida. Algumas perguntas me ocorreram na mesma velocidade em que meus olhos curiosos percorriam a imagem: o que minha avó estaria pensando? Mais do que isso, o que diria Mariquinha para a recém nascida Aurora? Me ocupei um pouco desta questão quando outra pergunta me ocorreu: o que dizer para uma mulher às vésperas de completar 90 anos de idade? Poderia encher de vãs palavras muitas páginas... mas, voltemos à fotografia.

Estava ali registrado: duas vidas, 90 anos e muitas vidas. Nos braços de Mariquinha estava Aurora, sua segunda tataraneta. Mariquinha lançava para Aurora um olhar enigmático, alegre e carinhoso. Um olhar emoldurado por um sorriso monalítico, um quase ri comunicativo. Como se dizendo alguma coisa com seu olhar penetrante e doce, forte e meigo. Basta pensar um pouco para surgir uma lista extensa de temas, de assuntos, de conselhos, de recomendações que os olhos da tataravó poderiam sugerir para a tataraneta. Palavras, frases, afirmações que, certamente, tornariam a caminhada da pequena mais leve, mais suave, mais tranquila. Mas quais seriam exatamente as palavras cuidadosamente escolhidas para compor esta frase? Fiquei pensando se uma única palavra resumiria esse diálogo silencioso, mudo de palavras e inesgotável em conteúdo, em sabedoria de vida.

Tentei saber da Mariquinha o que ela diria para Aurora. Ela me disse que seu neto Francisco, agora avô pela primeira vez, conversa com a pequenina. Que ela ouviu o infante marujo dizendo: você é linda, você é muito querida aqui, você é muito amada, e coisas desse tipo. Num primeiro momento pensei que ela esquivara da minha pergunta mas, logo percebi a grandeza de sua resposta. Francisco experimenta uma infância em ser avô e constitui uma linguagem entre ele e Aurora; eu experimento uma infância ao olhar aquela linda fotografia e tentar uma linguagem para a festa que se produz em mim; Aurora tem diante de si um mundo imenso de afecções que, neste momento é experimentado à flor da pele em frios, calores, umidades... já podem estar chegando os primeiros cheiros, as cores, os sons como aquele percebido na voz doce do avô. Daqui algum tempo chegarão as palavras, as frases, e com a linguagem também chegarão os primeiros entendimentos. Porque entender vem depois de sentir.

Aurora, sua segunda tataraneta, aquela que é como o nascer do sol, instaura em nossas vidas uma nova vida. E nós, descendentes da Mariquinha e seu amor por Juca Jordão que vive em nossos corações, 2 filhas, 3 netas e 2 netos, 4 bisnetas e 3 bisnetos, 2 tataranetas, que desde os primeiros raios de sol de nossas vidas recebemos todo amor da Mariquinha queremos, neste dia que remontam 90 anos, dizer de todo nosso sentimento por ela em apenas uma única palavra: AMOR!

publicado no jornal Diário de Rio Claro em 01 de julo de 2018