Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há / Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há
Às vezes o convite chega todo bonito, embrulhado em palavras organizadas e precisas, embrulhado num envelope de papel ou aquele envelope iconográfico do email. Ou num chat, numa rede social, num desses aplicativos causadores de ansiedade e conversas instantâneas. Convites também nos chegam escondidos, camuflados em frases enigmáticas, distorcidos no sentido de uma ou outra palavra. Bem, nos importa aqui o convite.
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho / Mas eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Tenho recebido convites para visitar Escolas, conversar com professoras e alunxs. Ao aceitá-los sinto um primeiro incômodo: o que vai acontecer? o que vou fazer lá? como serei recebido? Um bom incômodo é aquele que te tira do lugar, que te lança para frente, que te empurra, te coloca em movimento e você caminha, busca, procura um novo lugar. Um bom incômodo é aquele de te empurra pra pensar. Movimenta o corpo-pensamento. Dona Ivone Lara nos dá a dica: “pisar nesse chão devagarinho”. Isso mesmo. Porque é preciso saber que se chega, é prudente saber que se chega e saber(-)se chegar. Porque há um chão com características peculiares. Todo chão é singular.
Pensemos num rio. Entra-se pela primeira vez num rio. O ineditismo é seu, não do rio. O rio está ali em seu fluxo há tempos, séculos, milênios… O rio tem seu fluxo; entra-se no fluxo do rio. Ou seja, antes de você chegar, muita coisa já aconteceu. Muitas histórias, muitos acontecimentos, tudo o que constitui uma realidade singular. Pisar nesse chão devagarinho requer cuidado. A leveza do passo, o toque dos pés no chão, sentindo os pés e o chão, um calçado adequado, pantufas de lã, ou mesmo descalço para sentir melhor.
Sempre fui obediente / Mas não pude resistir / Foi numa roda de samba / Que juntei-me aos bambas / Pra me distrair
Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora do Rancho Flor do Abacate e o pai foi mecânico de bicicletas, violonista e componente do Bloco dos Africanos. Aos seis anos de idade, ficou órfã de pai e mãe. Estudou no internato onde permaneceu até os 16 anos. Foi assistente social e enfermeira especialista em terapia ocupacional. Com a médica psiquiatra Nise da Silveira, introduziram a arte no tratamento de pacientes esquizofrênicos. Com música e principalmente com pintura, essa experiência revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Participava da escola de samba Prazer da Serrinha e, com a fundação do Império Serrano em 1947, passou a desfilar na ala das baianas. Compunha sambas mas não podia apresentá-los por ser mulher.
Quando eu voltar na Bahia / Terei muito que contar / Ó padrinho não se zangue / Que eu nasci no samba / E não posso parar
Ivone tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala dos compositores de escola de samba. Aposentada da enfermagem em 1977 passou a dedicar sua vida a música.
Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há
Alguém me avisou é um samba de Ivone Lara. A rainha do samba nos deixou em abril de 2018.
Ivan Rubens Dário Jr
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 21/05/2019
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