Marchando em Carnaval


A Páscoa é, para cristãos, o dia em que se comemora a ressurreição do Cristo. O ovo da Páscoa é o símbolo da vida que inicia, uma espécie de novo tempo. Quaresma é o período de 40 dias que antecede o domingo de Páscoa. É um tempo dedicado à penitência, ao sacrifício como preparação para a Páscoa. Mas o que interessa nesta 3a feira é o carnaval.


Uma das origens da palavra carnaval vem do latim “carnem levare”, que significa “afastar-se da carne”. Então, pense comigo: vamos nos afastar de nossa carne, vamos libertar o corpo da realidade para brincar o carnaval. Vamos profanar no sentido de um tempo para, suspendendo a dureza do dia a dia, brincar. Então, carnaval é uma festa profana. No carnaval, a realidade está suspensa. É uma espécie de autorização para viver outras dimensões da existência. No carnaval as pessoas vestem suas fantasias, vivem suas fantasias. No carnaval as pessoas são pirata, bailarina, Pierrô, Colombina...


Renato Terra é um artista brasileiro. Ele assina o roteiro e a direção do documentário “Uma noite em 67”, registro do 3º Festival de Música Brasileira ocorrido em 1967. Entre os concorrentes estão Chico Buarque e MPB4, Caetano Veloso e Beat Boys, Gilberto Gil e Mutantes, Edu Lobo, e outros. Canções como Roda Viva, Alegria Alegria, Domingo no Parque, Ponteio e Sérgio Ricardo quebrando seu violão sob vaias do público presente. Mas voltemos ao carnaval.


Marchinha de carnaval é um gênero musical muito utilizado para ironizar a vida cotidiana, marcante sobretudo no século XX. Falo do humor sadio, aquele humor que torna a vida mais leve, em oposição a ironia de bolso, que rebaixa e desqualifica as pessoas, uma ironia de péssimo gosto que enverniza o racismo, o sexismo e a xenofobia. Encontrei num texto de Renato Terra e circulando na internet, marchinhas atualizadas para 2020. Veja:


Mamãe eu quero / mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. / Dá a chupeta / dá a chupeta, dá a chupeta pro bebê não chorar. Em 2020: Papai eu quero / papai eu quero, papai eu quero mamar. / Dá embaixada / dá embaixada, dá embaixada pro PT não voltar.


Yes, nós temos banana / Banana pra dar e vender... Em 2020: Yes, nós temos laranja / Laranja pra dar e vender / Laranja milícia / Emprega a família / Laranja é vitamina Q.


Sa-sa-saricando! Em 2020: Ra-ra-rachadinha / Todo mundo leva a vida na boquinha / Ra-ra-rachadinha / A viúva e o brotinho do Adriano / Flagraram no caixa eletrônico / Foi um assombro / Passaram pano. 


Lata d’água, assim: Lata d’água na cabeça / Lá vai Maria, não vai pra Disney / Sobe o dólar você dança / Acabou essa festança / Não vai pra Disney


Jardineira: Ô paneleiro por que está tão triste? / mas o que foi que te aconteceu / trocou o Temer pelo Bolsonaro / pagou de otário e se arrependeu.

E Cabeleira do Zezé, assim: Qual o paradeiro do Queiroz? / Onde é que ele tá? / Onde que ele tá? / Será que ele foi motorista? / Será que ele foi assessor? / Parece que anda sumido / Ninguém sabe onde ele foi / Corta o sigilo dele! / Corta o sigilo dele!

Um índio e um idiota


Na canção ‘Um Índio’, o baiano Caetano Veloso fala de dois mundos: o mundo dos indígenas e o mundo dos não indígenas, dos kubéns como diz o Cacique Raoní.


Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante / De uma estrela que virá numa velocidade estonteante / E pousará no coração do hemisfério sul / Na América, num claro instante / Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida / Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias / Virá...


Tendo os kubéns dominando a Natureza com avançadas tecnologias e completado seu projeto ‘civilizatório’, colonial e escravagista, comprometendo a biodiversidade, poluindo as águas, devastando a natureza e exterminando povos originários, chega um índio.


Impávido que nem Muhammad Ali / Virá que eu vi / Apaixonadamente como Peri / Virá que eu vi / Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee / Virá que eu vi / O axé do afoxé Filhos de Gandhi / Virá...


Um índio singular: impávido e apaixonado, tranquilo e infalível, pacífico e dançarino. Ele é uma mistura de interessantes seres humanos como Muhammad Ali, Gandhi e Peri (personagem de José de Alencar em O Guarani).


Um índio preservado em pleno corpo físico / Em todo sólido, todo gás e todo líquido / Em átomos, palavras, alma, cor / Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico / Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico / Do objeto-sim resplandecente descerá o índio / E as coisas que eu sei que ele dirá, fará / Não sei dizer assim de um modo explícito / Virá...


Raoní Metuktire é um índio, liderança da etnia Mebengokrê (Kayapó). Cacique Geral, tem levado a causa indígena para o mundo. Frequenta a ONU e o Vaticano, foi indicado para o nobel da paz 2019. Raoní reuniu recentemente o povo Mebengokrê e diversas lideranças indígenas visando a uma aliança de povos em defesa de suas terras, da floresta e da vida, contra a ganância dos kubéns. Durante muitos séculos a floresta foi habitada por milhões de indígenas até a chegada dos kubéns que colonizaram e exploram a América. Atualmente habitam apenas cerca de 13% do território brasileiro. E os setores da mineração e do agronegócio, em aliança com o Governo, avançam sobre as terras indígenas. Para os kubéns, 87% das terras nacionais não são suficientes, eles querem mais.


E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio


“Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”. De que humano estais falando, cara pálida? talvez algum torturador que a excelência cultua? porque cultuar a morte e a dor, agir com desrespeito e intolerância, estimular o ódio é desumanizar. Sim porque tira da vida o brilho, o gosto e a alegria. O messiânico capetão seria, então, um animal? Pensando bem, os animais não merecem nenhuma aproximação com este ser abominável. No dicionário etimológico, o indivíduo destituído de qualquer distinção, ignorante e de pouca inteligência é um idiota. Adequado.


Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 27 de janeiro de 2020
27 de janeiro de 2020

Assim o samba vem


Vivemos um tempo de festa: natal e passagem de ano. Natal, natalício, natalidade. Como se uma vida nova estivesse por acontecer, uma espécie de parimento. Sim, parir uma vida nova. E o ano novo ascende este tipo de pensamento. É como se um ciclo se fechasse e um novo ciclo se abrisse. Conheço uma pessoa que faz listas de desejos, de afazeres, de ambições etc. Todo final de ano visita sua lista para checar seu ano em realizações e inaugura uma nova lista para o ano vindouro. Para ela isso afirma possibilidades: coisas acontecem… e isso movimenta sentimentos, carrega emoções.

Vem quando bate uma saudade / Triste, carregado de emoção / Ou aflito quando um beijo já não arde / No reverso inevitável da paixão / Quase sempre um coração amargurado / Pelo desprezo de alguém / É tocado pelas cordas de uma viola / É assim que um samba vem

No início de 2019 recebi o convite para esta coluna no Jornal Cidade. O ambiente era musical, estávamos numa roda de samba. Conversamos rapidamente a respeito do tema geral da coluna: o cotidiano, a política. Optamos pela potência política da arte. Já nos primeiros textos fui me dando conta que escrever com música, falar com música produz uma escrita interessante. Isso: falar com música.

Quando um poeta se encontra / Sozinho num canto qualquer do seu mundo / Vibram acordes, surgem imagens / Soam palavras, formam-se frases

Escrever é um exercício que exige tempo, atenção, presença, pensamento. É uma espécie de tempo fora do tempo e lugar fora do lugar. Suspensão! É como se o escritor estivesse no mundo, presente no mundo, vivendo as coisas próprias do mundo mas sublimando-o. É, por exemplo, estar aberto às canções que nos tocam. Sim porque as canções estão por aí, tocando e nos tocando o tempo todo. O escritor aguça sua atenção, abre seus canais perceptivos até que uma canção, um refrão, um trecho toca o corpo. Isso: uma canção que toca também toca o escritor numa espécie de atravessamento. Vibra e faz vibrar um pensamento novo, uma ideia.

Mágoas, tudo passa com o tempo / Lágrimas são as pedras preciosas da ilusão / Quando, surge a luz da criação no pensamento / Ele trata com ternura o sofrimento / E afasta a solidão

‘A luz da criação no pensamento’ pode ser entendida aqui como colocar ideias lado a lado. Por ideia com ideia, por pensamento com pensamento. Por com, com por. Compor seria criar? em parte sim, em parte não. Porque num mundo tão antigo quanto este nosso mundo, talvez nada seja novo. Mas para nossa breve existência, uma canção inédita é criação, novidade. Compositor é quem faz composição. Junta pedaços, mistura elementos, ideias, pensamentos. As palavras estão prontas para ser misturadas, juntadas, postas parte a parte, postas com outras palavras. Mas a criação é isso: algo que vem de dentro e ganha as luzes deste velho mundo tomado como novidade. Parimento.

Quando bate uma saudade é um samba de Paulinho da Viola (RJ, 1942). Filho do músico Cesar Faria, cresceu num ambiente musical. Conheceu Jacob do Bandolim e Pixinguinha, entre outros músicos que se reuniam para fazer choro, cantar valsas e samba.

Ivan Rubens




Expresso Saudade


Rio Claro tem sua história marcada pela ferrovia. Quem não ouviu histórias desse tempo? Tais marcas estão na cidade: a estação ferroviária situada exatamente na rua 1 com avenida 1. As oficinas da antiga companhia paulista. O horto Florestal Edmundo Navarro de Andrade, o museu do eucalipto e vai por aí.

Começou a circular o Expresso 2222 / Que parte direto de Bonsucesso pra depois / Começou a circular o Expresso 2222 / Da Central do Brasil / Que parte direto de Bonsucesso / Pra depois do ano 2000

A ferrovia entrou em declínio e, desde então, é como se uma nuvem de nostalgia cobrisse a cidade. Percebo nos mais velhos uma certa saudade...

Dizem que tem muita gente de agora / Se adiantando, partindo pra lá / Pra 2001 e 2 e tempo afora / Até onde essa estrada do tempo vai dar / Do tempo vai dar, menina, do tempo vai

Saudade é uma palavra interessante. É um sentimento geográfico, uma espécie de território. Explico: a saudade de uma pessoa que está longe. É histórico também. Saudade descreve a mistura dos sentimentos de perda, falta, distância e amor. A palavra vem do latim ‘solitatem’ (solidão), passando pelo galego-português ‘soidade’, que deu origem às formas arcaicas ‘soidade’ e ‘soudade’, que sob influência de "saúde" e "saudar" originaram sua forma atual: ‘saudade’.

Segundo quem já andou no Expresso / Lá pelo ano 2000 fica a tal / Estação final do percurso-vida / Na terra-mãe concebida / De vento, de fogo, de água e sal (...) / Ô, menina, de água e sal

O carnaval também é uma espécie de território. Uma espécie de infância. São 4 dias de folia onde a suposta ‘ordem’ está suspensa para fruição da alegria e da festa. Fruição do corpo onde nos permitimos ser outro/a, ser reis, homens-mulheres, piratas, Napoleão, Guevara, anjo-diabo.

Dizem que parece o bonde do morro / Do Corcovado daqui / Só que não se pega e entra e senta e anda / O trilho é feito um brilho que não tem fim / (...) Ô, menina, que não tem fim / Nunca se chega no Cristo concreto / De matéria ou qualquer coisa real / Depois de 2001 e 2 e tempo afora / O Cristo é como quem foi visto subindo ao céu / Subindo ao céu / Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu

Também podemos pensar a ferrovia como uma linha de vida, e o trem como a cápsula que nos carrega em viagens no tempo e no espaço. Mas falo de uma saudade concreta: no dia 21/jan/2016 nasceu, em Rio Claro, o BLOCO da SAUDADE. Aos pés do cristo no início da avenida da Saudade que finda no cemitério. Numa quinta de carnaval que finda na 4a feira de cinzas. Finda na geometria da cidade, finda na frieza do calendário gregoriano. Permanece viva no desejo que empurra a alegria para frente. Permanece viva no desejo de festa, no imponderável dos encontros. Na magia do ser-outro/a, da fantasia, do permitir-se. Quando a alegria rompe os limites do corpo e explode na rua. Um, por assim dizer, Expresso dionisíaco que passa lentamente convidando a todos e todas, dançando nas ruas, um mar de corpos em esbarramento. Segundo quem já andou no Expresso, o Bloco da 
Saudade vem 2222 em 2020.

Expresso 2222 é uma canção de Gilberto Gil.

(publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 03/12/2019)

Entre lutas e loucuras

Sinto que estou no vórtice do furacão
Sou tragada pela fúria incandescente do dragão
Esta cidade que me oferece tudo, exige contrapartida:
tira minha energia
A luta fere
Cobra um preço fatal
Mesmo assim luto pelos que sofrem
Sem perceber o sofrimento penetrando
Lenta e cotidianamente
E meu tempo, nesta cidade com pressa, é sofrimento
Para viver
não tenho tempo
Para andar
não tenho tempo
Para alegria
não tenho tempo
Para música, 
quase não tenho tempo

Mas tenho amigas. 
Conto com elas p extravasar
No bar
Para falar de tudo: da luta, do trabalho, do sofrimento
Sofrimento dos outros, é claro
E das frustrações travestidas de que?
De luta
Filha da luta
Filhas de luta
Filha ...


Não aguento mais,  rapaz
Recorro
Até lembrar que a luta exige: eu te odeio,
rapaz
Você me oprime 
Me faz sofrer
Machista
Opressor
Séculos de patriarcado estão em você
Vamos matá-lo para acabar com tudo isso
E escrever uma outra história
Quem sabe um patriarcado de outra cor
De outro gênero
Preciso do patriarcado para sobreviver
Preciso da luta para sobreviver
Porque talvez ainda não possa viver


Pra que tanto céu?
Pra que tanto mar?


Sinto que a loucura está entrando em mim
Ela está me ocupando
Descobriu as fissuras do meu corpo
Respiro a loucura
Vejo a loucura
Como a loucura
Ouço sua voz me chamado…
Ela já abriu seu caminho
Fez picada na minha mata virgem
A máquina de produzir doenças me quer matéria prima
Anima?
Desanima

36 anos de idade


Tinha eu 14 anos de idade / Quando meu pai me chamou / Perguntou-me se eu queria / Estudar Filosofia / Medicina ou Engenharia / Tinha eu que ser doutor

Ela nasceu numa família simples do interior. O pai foi um operário brilhante, desses que produz suas próprias ferramentas. Um criador de problemas de toda ordem. Digo problema no sentido forte da palavra. Quando ele se via diante de um problema, procurava superá-lo criando uma situação nova. Veja que não falei em solução do problema. Explico: para ele um problema não demandava uma solução. A solução diminui a criação de novidades. Era um homem de possibilidades, criava possibilidades, expandia a vida e ampliava o mundo. Agora encontrei as palavras precisas: ele era um criador de mundos. Uma fotografia nos dá a imagem simbólica do que estou tentando dizer com palavras: uma criança tentando equilibrar na bicicleta, alegria e medo estampados no rosto negro, um lindo sorriso infantil e a ousadia de quem vai aos poucos se soltando das mãos do pai. Era um grande homem. Um homem que é mais de mil. Mil gestos, poucas palavras. Há de mil sons.

Da mãe herdou a convicção, firmeza e ternura. Com a mãe aprendeu muita coisa, da alquimia gastronômica às bruxarias na cozinha, do encanto com a transformação dos alimentos e sabores aos cuidados com o corpo. Aprendeu a cuidar. Isso mesmo, cuidado é algo que se aprende. Aprendeu a cuidar da terra, cuidar das pessoas, cuidar das coisas, cuidar da casa. Casa e corpo aqui são quase sinônimos. Com o tempo foi aprendendo também a cuidar das coisas do mundo.

Mas a minha aspiração / Era ter um violão / Para me tornar sambista / Ele então me aconselhou / Sambista não tem valor / Nesta terra de doutor / E seu doutor / O meu pai tinha razão

Ela poderia ser o que quisesse. Engenheira? advogada? médica? Todas as profissões que, acredita-se garantir ascensão social e financeira estariam ao alcance das suas mãos. Determinada como a mãe, inventiva como o pai, ela trabalha muito. Reconhece o prestígio e o dinheiro, mas não para nisso. Não se contenta com as superfícies. Ela mergulha fundo, procura tesouros escondidos no fundo do mar.

Vejo um samba ser vendido / E o sambista esquecido / E seu verdadeiro autor / Eu estou necessitado / Mas meu samba encabulado / Eu não vendo não senhor

Para ela, viver é leveza e alegria. Valoriza sobretudo as artes. No cinema ela cria personagens, nas canções ela pensa, na poesia ela dança. Com essa ginga de passista desenvolveu uma habilidade incrível de lidar com as pessoas. Na vida aprendeu que o mundo é povoado de gente diferente dela. Aprendeu que a morte é inexorável e a diferença é condição. Assim ela se produz humana com indígenas, nos quilombos, com os sem teto e sem terra, com pescadores e ribeirinhos. Deseja os ambientes equilibrados e alimentação saudável. Luta no campo e na cidade, afirma a condição feminina e a libertação dos homens da opressão do machismo. Enfrenta a desigualdade social e econômica. Vive entre os esfarrapados do mundo e com eles luta. Poetisa de povo, mestra em gente, doutora em vida melhor para todos e todas. Ela é professora porque acredita que o mundo pode ser melhor, sempre. 14 anos é uma canção do Paulinho da Viola.

BACURAU


Motores roncam. Duas motos levantam poeira na estrada de terra. Dois motoqueiros aceleram até chegar num vilarejo que ainda estava no mapa. Ambos despertam curiosidade e medo nos moradores. Os motoqueiros vestem calça, blusão, botas e luvas. Na porta do único bar do vilarejo, desligam os motores. O ruído cessa. Ao retirar os capacetes, da poltrona percebo: um homem e uma mulher. Dentro do bar, a atendente se mostra ansiosa. Sentada no chão, uma criança criançando. O motoqueiro pede água enquanto a motoqueira, discretamente, deixa um aparelho bloqueador de sinal de telefonia móvel: o vilarejo torna-se incomunicável. Como num filme de ficção científica, será ‘retirado’ do mapa das plataformas digitais nos minutos seguintes. Então chega a cena primorosa, aquela que, se o filme terminasse naquele exato momento, já valeria ter ido ao cinema. A motoqueira pergunta: quem nasce em Bacurau é o que? e a criança responde: GENTE!

São muitas horas da noite / São horas do bacurau / Jaguar avança dançando / Dançam caipora e babau / Festa do medo e do espanto / De assombrações num sarau (da canção Bicho da Noite, Sérgio Ricardo e Joaquim Cardoso, 1967).

No escuro da sala do cinema, risos da platéia. São os primeiros afetos produzidos por esta obra de arte chamada Bacurau. Penso que uma obra de arte se materializa na sua capacidade de produzir afetos e mobilizar emoções. Tanto mais potente quanto mais nos atravessa. Bacurau mobilizou e mobiliza... A crítica foi intensa, muita gente pensando e escrevendo, a favor e contra, recomendando o filme ou não, qualificando-o ou desqualificando-o. O filme mexe !!!

...Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico / Um anticomputador sentimental / Eu vou fazer uma canção de amor / Para gravar um disco voador (...) / Para lançar no espaço sideral / Minha paixão há de brilhar na noite / No céu de uma cidade do interior / Como um objeto não identificado (Objeto não identificado, Caetano Veloso. Gravado por Gal Costa em 1969)

A sinopse do filme diz o seguinte: a partir do velório de dona Carmelita (94 anos), a gente de Bacurau vai percebendo algo estranho na região. Drones no céu e estrangeiros circulando na região. Quando carros são baleados e cadáveres começam a aparecer, os habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.

Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja para melhorar / Tanta vida pra viver / Tanta vida se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar (da canção Réquiem para Matraga, Geraldo Vandré. Do filme ‘A hora e a vez de Augusto Matraga’, 1965)

Chico Sciense disse que “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. Para os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, Bacurau é o homem coletivo lutando no sertão nordestino. Mas poderia ser no Brasil dos morros, das favelas, e outros interiores.

Bacurau é uma ave de plumagem macia, voo silencioso e hábitos noturnos. Bacurau é, sobretudo, uma obra de arte, um filme que vale a pena ser visto e revisto. Está em cartaz nos cinemas do Brasil e do exterior.

Ver ocaso

Ver o nada
Perfeitamente
Porque perfeita, mente
A mentira perfeita
Tipo crime que não se desvenda
Olhares fechados a olhos abertos
Apagamentos
Ocaso

E a vida o que é, meu irmão?


Eu fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita…

Uma colega mostrou citação no material didático: “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Ela estava preparando uma formação para professores e pensava no dualismo ensino - aprendizagem. Pensei na densa obra de Luiz Gonzaga Jr e na sua capacidade de ultrapassar as obviedades. E convidei minha amiga para ouvir a canção.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

A letra remete à ideia de aprendizagem. A aprendizagem nos leva a pensar no ensino. Ensino e aprendizagem são palavras (e conceitos) que andam de mãos dadas. Na minha modesta opinião, Gonzaguinha está falando de outra coisa, de algo maior, algo que vai além… e diz isso com otimismo porque, cantando, a vida é mais viva. Assim, o artista lança perguntas:

E a vida? / E a vida o que é, diga lá, meu irmão? / Ela é a batida de um coração? / Ela é uma doce ilusão? / Mas e a vida? / Ela é maravilha ou é sofrimento? / Ela é alegria ou lamento? / O que é, o que é, meu irmão?

São muitas possibilidades de resposta, da biologia às religiões. Prefiro cultivar a pergunta, mantê-la viva no sentido da busca por respostas, mesmo que provisórias, para acalentar um corpo curioso. Gonzaguinha nos lança numa busca filosófica com os pés fincados no chão.

Há quem fale que a vida da gente / É um nada no mundo / É uma gota, é um tempo / Que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor / Você diz que é luta e prazer / Ela diz que a vida é viver / Ela diz que melhor é morrer / Pois amada não é e o verbo é sofrer / Eu só sei que confio na moça / E na moça eu boto a força da fé

Há quem diga isso e aquilo da vida: você diz, ela diz… Gonzaguinha confia na jovem mulher e, com ela, afirma: “somos nós que fazemos a vida”, cada ser é autor da sua própria canção. E o desejo empurra a vida para a frente.

Somos nós que fazemos a vida / Como der ou puder ou quiser / Sempre desejada, por mais que esteja errada / Ninguém quer a morte, só saúde e sorte / E a pergunta roda e a cabeça agita / Fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita

O tempo passa, a morte é certa. Entre o passado (que não volta mais, exceto nas lembranças) e o futuro (incerto), temos o presente. O que temos feito da vida neste tempo presente? Como criança entende de presente, Gonzaguinha conclui com elas: A vida é bonita ao quadrado.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

Criança canta, criança brinca. Criança se permite viver as belezas e as sutilezas do aqui e do agora. Criança se faz presença. Uma criança não passa despercebida. Quem nunca viu uma criança concentrada numa brincadeira, como se o mundo estivesse completamente parado? Podemos pensar na infância para além do tempo cronológico, não apenas como uma etapa da vida mas como uma experiência de relação com o tempo, com o mundo e com a própria vida. Talvez isso esteja entre ensino e aprendizagem.

Ivan Rubens
estudante de educação





Se eu quiser falar com Deus


Disponível no spotify, podiquesti Andarilhagens.



“O Roberto Carlos me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso... E se eu quiser falar de falar com Deus? Com esses pensamentos, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes”. Assim começou, segundo Gilberto Gil, sua criação.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz / Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós / Dos sapatos, da gravata / Dos desejos, dos receios / Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta / Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus

O compositor sugere que para falar com Deus não precisa muita coisa. Basta estar sozinho, na penumbra, em silêncio, em paz. É bom desatar os nós que nos apertam como os do sapato e da gravata. Mas também é bom folgar as grades que aprisionam nossos desejos e receios. É bom dar-se tempo, libertar-se um pouco das cronologias e ordens. Não carregar nada, não levar nada, ter as mãos vazias. E se expor assim como se é, assim como viemos ao mundo: nus.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor / Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou / Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão / Dos palácios, dos castelos / Suntuosos do meu sonho / Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho / E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração

O ser humano é, de um modo geral, enganador. Ele busca permanentemente o prazer, a alegria, a felicidade. Ele evita a dor, ele engana_a_dor. Contudo, a vida é muito complexa. A linha sugerida por Gil é aceitar a dureza da vida, aceitar também a tristeza e o medo. Mas não qualquer medo. É preciso aceitar um medo específico: o medo que dá-se a si mesmo. É preciso estar atento às palavras que usamos e aos pensamentos que tais palavras significam; atento aos gestos e às atitudes, e agir com prudência até perceber a beleza e a potência que habita os detalhes, as sutilezas, a simplicidade da vida.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar / Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar / Decidido, pela estrada / Que ao findar vai dar em nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar

Desprender-se um pouco dos planos e projetos para libertar-se ao acaso. Permitir-se. Como diz outra canção: ‘para se perder tem que se achar’. Primeiro perder-se para, depois, se encontrar. Encontrar-se consigo mesmo, estar diante de si, perceber-se, sentir-se. ‘Conhece-te a ti mesmo’. Aventurar-se ao encontro de si mas também ao encontro do outro. Porque o mundo é povoado de seres diferentes. Então, nesse movimento encontros e des_encontros podemos nos diferenciar de nós mesmos? podemos diferir? Talvez sim, porque ao se aventurar, corre-se um risco muito bom: encontrar no outro um fragmento, um pedaço daquilo que dificilmente encontra-se em si mesmo. É mais ou menos como um caminhar sem destino, decidido, pela estrada que ao final vai dar em nada do que eu pensava encontrar. Porque criar expectativas, esperar resultados, fecha a possibilidades de outros acontecimentos.

Roberto Carlos não gravou esta canção. Talvez por crer num Deus mais pleno. O Deus de Gil nesta canção é um tanto vago, ou a ser preenchido. Elis Regina gravou.

Ivan Rubens






Maranhões

Trançar suas tranças 
com a linha do equador 
Deitar com você 
Sob o sol, amador 
Há Mar_anhão 

Você coberta 
Lençóis maranhenses 
Pescar 
Você sereia 
Queimar os pés na areia 
No chão da cidade alheia 
Alhures, descansar nos tambores, crioula 

Te amar 
Antes, durante, depois 
Amar 
Te amar 
No mar 
Rolar na areia, arranhões 
Maranhões

Moska e Cristo



O que Jesus Cristo diria hoje?

Foi essa a pergunta que se fez o compositor Paulinho Moska ao se deparar consigo mesmo. Sua imagem refletida no espelho, magro, barbudo e cabeludo, o conduziu a uma reflexão: o que Jesus diria para leitores e leitoras da bíblia nos dias de hoje? Moska é filho de família católica e, ao tornar-se “ateu-ativo” (palavras dele) ampliou seu interesse pela literatura religiosa. Afirma ler compulsivamente livros que constroem, destroem, reconstroem, re-destroem as várias religiões. Afirma também perceber nas religiões um intenso e profundo processo, algo que lhe fascina: uma espécie de obra de arte. Fala da bíblia como um livro belíssimo, uma literatura fantástica. Vê Cristo como o maior poeta do amor. E critica a maneira como as instituições religiosas transformaram a palavra, a partir da bíblia, em dispositivos de controle dos corpos. Daí vem a inspiração para as primeiras frases da canção A Seta e o Alvo: Eu falo de amor à vida, você de medo da morte / Eu falo da força do acaso e você, de azar ou sorte / Eu ando num labirinto e você, numa estrada em linha reta / Te chamo pra festa mas você só quer atingir sua meta / Sua meta é a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera Paulinho Moska é um multiartista. Passeia por muitas linguagens: a música, a composição, letras e melodias. O violão. Mas o teatro está na origem. E essa experiência de viver personagens o ajuda a criar canções. Imagine a situação descrita acima: “é como se” Paulinho e Jesus Cristo estivessem frente a frente, conversando, trocando ideia. É um jeito de empurrar o pensamento, de colocá-lo em movimento. É como se o artista colocasse o pensamento para cumprir seu papel: pensar! e a imaginação se lembra que possui asas, e começa a voar. Então nasce uma obra de arte, neste caso uma canção. Eu olho pro infinito e você, de óculos escuros / Eu digo: "Te amo" e você só acredita quando eu juro / Eu lanço minha alma no espaço, você pisa os pés na terra. / Eu experimento o futuro e você só lamenta não ser o que era. / E o que era? Era a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera A bíblia foi escrita no seu tempo. Há que considerar seu contexto. Há que perceber o contexto atual para leitura e interpretação das palavras presentes no livro visto que, lembra o compositor, “nada é eterno”. Nem a palavra pode ser eterna: a palavra é frágil, a palavra não explica quase nada. A palavra é pouca para o nosso pensamento, a palavra é curta para nossa potência. A palavra é uma diversão barata. Porque nada, nem mesmo as palavras, nem mesmo nossa capacidade de dizer, nem mesmo a linguagem toda dá conta da própria vida. A vida é mais, a vida é maior do que nossa capacidade de dizer da vida. Eu grito por liberdade, você deixa a porta se fechar / Eu quero saber a verdade, e você se preocupa em não se machucar / Eu corro todos os riscos, você diz que não tem mais vontade / Eu me ofereço inteiro, e você se satisfaz com metade / É a meta de uma seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera Uma canção na sua dimensão obra de arte se faz por si. A criação de Moska começou assim nas primeiras frases, e vai ganhando vida própria. Segue um curso singular até nascer. Ela é em si, ela é arte é criação. Neste sentido, humanos assumem uma dimensão divina: criadores e criaturas. Criar é um ato divino. Então me diz qual é a graça / De já saber o fim da estrada / Quando se parte rumo ao nada... Ivan Rubens Dário Jr Geógrafo, doutorando em Educação

Alguém me avisou



Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há / Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há

Às vezes o convite chega todo bonito, embrulhado em palavras organizadas e precisas, embrulhado num envelope de papel ou aquele envelope iconográfico do email. Ou num chat, numa rede social, num desses aplicativos causadores de ansiedade e conversas instantâneas. Convites também nos chegam escondidos, camuflados em frases enigmáticas, distorcidos no sentido de uma ou outra palavra. Bem, nos importa aqui o convite.

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho / Mas eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho

Tenho recebido convites para visitar Escolas, conversar com professoras e alunxs. Ao aceitá-los sinto um primeiro incômodo: o que vai acontecer? o que vou fazer lá? como serei recebido? Um bom incômodo é aquele que te tira do lugar, que te lança para frente, que te empurra, te coloca em movimento e você caminha, busca, procura um novo lugar. Um bom incômodo é aquele de te empurra pra pensar. Movimenta o corpo-pensamento. Dona Ivone Lara nos dá a dica: “pisar nesse chão devagarinho”. Isso mesmo. Porque é preciso saber que se chega, é prudente saber que se chega e saber(-)se chegar. Porque há um chão com características peculiares. Todo chão é singular.

Pensemos num rio. Entra-se pela primeira vez num rio. O ineditismo é seu, não do rio. O rio está ali em seu fluxo há tempos, séculos, milênios… O rio tem seu fluxo; entra-se no fluxo do rio. Ou seja, antes de você chegar, muita coisa já aconteceu. Muitas histórias, muitos acontecimentos, tudo o que constitui uma realidade singular. Pisar nesse chão devagarinho requer cuidado. A leveza do passo, o toque dos pés no chão, sentindo os pés e o chão, um calçado adequado, pantufas de lã, ou mesmo descalço para sentir melhor.

Sempre fui obediente / Mas não pude resistir / Foi numa roda de samba / Que juntei-me aos bambas / Pra me distrair

Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora do Rancho Flor do Abacate e o pai foi mecânico de bicicletas, violonista e componente do Bloco dos Africanos. Aos seis anos de idade, ficou órfã de pai e mãe. Estudou no internato onde permaneceu até os 16 anos. Foi assistente social e enfermeira especialista em terapia ocupacional. Com a médica psiquiatra Nise da Silveira, introduziram a arte no tratamento de pacientes esquizofrênicos. Com música e principalmente com pintura, essa experiência revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Participava da escola de samba Prazer da Serrinha e, com a fundação do Império Serrano em 1947, passou a desfilar na ala das baianas. Compunha sambas mas não podia apresentá-los por ser mulher.

Quando eu voltar na Bahia / Terei muito que contar / Ó padrinho não se zangue / Que eu nasci no samba / E não posso parar

Ivone tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala dos compositores de escola de samba. Aposentada da enfermagem em 1977 passou a dedicar sua vida a música.

Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há

Alguém me avisou é um samba de Ivone Lara. A rainha do samba nos deixou em abril de 2018.



Ivan Rubens Dário Jr
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 21/05/2019

Amores e Espumas ao vento



Quem nunca brincou de bola de sabão? ou na infância dos corpos crescidos, duas mãos ensaboadas estendidas, um sopro forte de lábios: espumas ao vento… O pernambucano Accioly Neto nascido em 1950 e falecido em 2000, escreveu um forró que diz assim:


Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim / Um grande amor não se acaba assim / Feito espumas ao vento


Leve, a espuma voa para longe até se desfazer. Parece que é assim também com um amor: leve feito espuma, se desfaz com o vento, desmancha no ar. Apesar do desfazimento, do desmanchamento, parece que não se apaga. E não se apaga porque deixa marcas, profundas marcas.


Não é coisa de momento / Raiva passageira / Mania que dá e passa feito brincadeira / O amor deixa marcas que não dá pra apagar


Terminar um grande amor é uma espécie de luto. Sim, porque o luto se situa na dinâmica entre dois pólos da existência humana: a vida e a morte. Como a perda é real, sente-se uma tristeza profunda mas que é, contudo, superada com o passar do tempo. A exemplo do luto, associemos a perda de um grande amor a uma espécie de morte: algo morreu aqui dentro de quem ama.


Sei que errei e estou aqui pra te pedir perdão / Cabeça doida, coração na mão / Desejo pegando fogo


Podemos também associar um grande amor a uma espécie de vida. Uma vida maior, mais colorida, mais cheia de sentido, mais intensa. “Quando a gente ama é o clarão do luar”, diz um samba. Ou, “o amor é fogo que arde sem se ver” disse o português Luiz de Camões em Os Lusíadas.... o amor é fogo, o amor arde, o amor é chama, o amor é quente… e quando ele chega ao fim, bate aquela tristeza, aquela vontade danada de não deixá-lo ir, uma vontade de poder ressuscitá-lo como fez o super-homem ao voar contra o movimento de rotação para, fazendo a Terra girar para trás, fazendo o relógio rodar para trás, salvar da morte, com seus super poderes, a mulher amada. Esta cena emblemática do filme Superman foi representada por Gilberto Gil em ‘Super Homem - a canção’.


Sem saber direito aonde ir e o que fazer / Eu não encontro uma palavra só pra te dizer / Mas se eu fosse você, amor, eu voltava pra mim de novo


As marcas deixadas por um grande amor não são necessariamente marcas de dor. Cicatriz é uma marca na superfície do corpo. Cicatrizes lembram machucados, ferimentos. Cicatrizes são marcas de dor. Tatuagens também são marcas na superfície do corpo. Tatuagens costumam representar bons afetos, bons momentos, gente querida. Entretanto, lá no fundo, aqui dentro do corpo, o amor deixa marcas que não se pode apagar. Depois de um grande amor não somos mais a mesma pessoa. Superado o luto, percebemos que fica dentro da gente um pouco da pessoa amada. Estamos diferentes, somos mais, estamos melhorados com (ouso dizer) a melhor parte da pessoa amada que ficou aqui dentro, numa espécie de corpo emocional ou, como dizem, dentro do coração. O compositor recomenda não fechar a porta. Porque uma fresta é suficiente quando um amor pede passagem. E quando se sente o corpo vibrando por dentro, aquele amor continua pulsando, a chama não se apagou, o chão de amor permanece fértil para germinar a semente e brotar mais uma vida nova. É festa !!!


E de uma coisa fique certa, amor / A porta vai estar sempre aberta, amor / O meu olhar vai dar uma festa, amor / Na hora que você voltar


com Mariana Aydar

com Fagner

com Elza Soares

para o filme Lisbela e o prisioneiro


Suzano: luto na cidade das flores


Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade. / Muitos temores nascem do cansaço e da solidão / E o descompasso e o desperdício herdeiros são / A glória da virtude que perdemos. / Há tempos tive um sonho, não me lembro / não me lembro…


2/abril/1999 - Dois estudantes mataram 12 alunos e um professor da Columbine High School/EUA. 21 pessoas feridas. Os dois estudantes se mataram. Oscar de melhor documentário para Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore. Suzano completava 50 anos.


Tua tristeza é tão exata / E hoje o dia é tão bonito / Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso. Os sonhos vêm e os sonhos vão / O resto é imperfeito.


2003 a 2012 - Durante 8 anos morei na rua da Escola Estadual Raul Brasil em Suzano/SP. Parte dessa história está no livro “Pedagogias da Cidade: corpos e movimento” lançado em 2018 pela Appris editora. Em Suzano conheci muita gente bonita, colorida, mistura de raças e etnias, gente trabalhadora e dedicada. Suzano é conhecida como a Cidade das Flores.


13/março/2019
9 horas. Um jovem de 17 anos e um rapaz de 25, atiram em um comerciante de carros em Suzano, tio de um dos rapazes.
9h30. Os dois jovens entram na escola Raul Brasil, ambos ex-alunos, e matam a tiros 2 funcionárias e 5 estudantes do ensino médio. Tristeza exata e precisa: eles usaram um revólver com numeração raspada e armas  brancas: uma machadinha e uma besta. Onze pessoas ficaram feridas. Na versão oficial, a dupla se matou no momento da chegada da polícia. Dez pessoas foram mortas. Jovens estudantes pularam os muros da escola às fugindo do massacre e buscando refúgio nas casas da vizinhança.


Disseste que se tua voz tivesse força igual / À imensa dor que sentes / Teu grito acordaria / Não só a tua casa / Mas a vizinhança inteira.


14/março/2019 - A polícia civil informou que os jovens planejaram o crime há tempos. Conseguiram apoio de pessoas que, na internet, discutem e incitam crimes de ódio e intolerância protegidas por ferramentas de anonimato. Ainda segundo a polícia, os jovens tentavam superar o massacre de Columbine. Num lado da cidade, um velório coletivo com parte das vítimas: milhares de vozes, gritos de dor ecoando pelo mundo. Noutro lado, uma desértica cerimônia de enterro dos réus: policiais, jornalistas e o grito surdo de uma mãe.


E há tempos nem os santos têm ao certo / A medida da maldade / Há tempos são os jovens que adoecem / Há tempos o encanto está ausente / E há ferrugem nos sorrisos / E só o acaso estende os braços / A quem procura abrigo e proteção.


17/março/2019 - Voltei a Suzano. Andei pela bairro e pela rua Otávio Miguel da Silva num reencontro com meu passado. Vi gente consternada. Sobre a tinta branca das paredes da escola, pedidos de paz em desenhos, sinais, palavras e frases. Marcas de mãos espalmadas. E muitas flores. A cidade das flores homenageando os filhos que partiram. A rua, o bairro e até mesmo a cidade já não são as mesmas. Talvez a cidade das flores seja conhecida, a partir de agora, como a cidade das mortes na escola.


Qual seria a medida da maldade? quantas vítimas somos? qual a nossa responsabilidade na produção de uma sociedade, uma juventude, que sente imensa dor? por que tanto cansaço e solidão? Estamos chocados, inconformados porque aconteceu desta vez dentro de uma escola pública. Parece que já não mais nos afetamos com chacinas nas periferias e favelas. Mas tanto um quanto o outro são, de alguma maneira, a materialização do gesto de campanha do atual presidente do Brasil. Dois jovens o levaram a sério.


disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem / Lá em casa tem um poço / mas a água é muito limpa.


Há tempos é uma canção da banda Legião Urbana. A canção começa falando de uma tristeza que entorpece. O clipe da canção sugere que o caminho de saída está nos livros, nas artes e na cultura. O buraco do poço é fundo e escuro, mas a água é limpa.


Ivan Rubens Dário Jr

geógrafo, doutorando em Educação.




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 26 de março de 2019