AQUARIUS - o filme


AQUARIUS – Leitura comentada do filme

Nossa relação com a cidade do Recife começa, de forma embrionária, muito antes do lançamento do longa metragem Aquarius. O filme mobilizou emoções e afetos que aguçaram nossa curiosidade com a capital pernambucana. Para lá nos dirigimos várias vezes em situações onde o trabalho formal e o campo de pesquisa se misturaram. Investigações nos colocavam em movimentos tantos na cidade. Iremos, a partir de agora, nos debruçar um pouco sobre o Filme como o disparador dos pensamentos.

Aquarius é um drama escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho. A produção é assinada por Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd e Michel Merkt, co-produção de Walter Salles. Interessante perceber que as filmagens aconteceram no intervalo de sete semanas entre agosto e setembro de 2015, em vários bairros do Recife, na Praia dos Carneiros (80 quilômetros da capital pernambucana). Como numa rápida apresentação, podemos antecipar que o filme vai apresentando algumas linhas de vida a partir da personagem principal, Clara que, aos 65 anos de idade resiste à especulação imobiliária no edifício Aquarius, com dois pavimentos acima do piso térreo, na avenida Boa Vista, bairro de Pina no Recife. No enredamento, apresentaremos temas como a já citada especulação imobiliária, a temporalidade e as memórias produzidas nos personagens, a vida e as questões típicas de uma mulher, seus dramas à medida de sua própria escultura subjetiva. O filme marca o retorno de Sônia Braga às telas numa produção brasileira. Em entrevistas na época do lançamento, disse a atriz que, ao receber o roteiro do filme com o convite para participar do elenco, aceitou quase que imediatamente. Por se encantar com a personagem Clara, pela particularidade de uma protagonista que aparece em quase todas as cenas e pela curiosidade com os conflitos urbanos na cidade do Recife provocada pela leitura do documento, muito provavelmente o roteiro, que ela recebera.

Aquarius foi filmado em agosto e setembro de 2015 na capital pernambucana. Foram 12 semanas de produção e 8 semanas de filmagem totalizando cerca de 850 horas de trabalho. A equipe chegou a 94 pessoas envolvendo técnicos e atores. São 42 personagens que, apresentados no filme, vão nos revelando facetas da cidade do Recife.

O Filme começa com a voz de Taiguara. Interessante a escolha da trilha sonora. As canções igualmente chamam nossa atenção durante a exibição do Filme. O cinema tem essa marca: composição de obras de arte. As canções serão trabalhadas neste texto enquanto acontecimentos que orientam a atenção do espectador numa espécie de suporte ao movimento de afecções que a obra produz. Fotografias em preto e branco vão, ao som de Taiguara, apresentando a região urbanizada da praia de Boa Viagem por volta da década 1970. O roteiro foi inspirado no Edifício Caiçara, erguido nos anos 1930 e parcialmente demolido em 2013. Cabe dizer que a protagonista Clara (personagem vivida por Sônia Braga em quase a totalidade do filme) foi, durante a década de 1970, crítica musical. O filme tem uma trilha sonora cuidadosamente escolhida, referências em áudio e vídeo permeiam o filme todo.

Como estávamos dizendo, a voz inconfundível de Taiguara entra logo depois dos caracteres anunciarem os dados gerais do filme ao som do mar, certamente das ondas quebrando na praia de Boa Viagem como se anunciando para o espectador que antes, desde antes, desde sempre (pensando na temporalidade humana) ele está ali repetindo e repetindo o mesmo movimento. Uma espécie de recado, de informação: esta história que iremos contar, remonta muito tempo. Até que as primeiras fotografias apresentam cenas da vida cotidiana costeira. No geral são imagens de uma urbanização da cidade com muitos edifícios de gabarito baixo e alguns edifícios mais elevados, uma modesta avenida à beira mar e alguma urbanização de passeio na orla. Muita gente banhando no mar e ao sol, brinquedos infantis, crianças. Gente enfim. Ao que Taiguara diz

Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo.
Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos
Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você.

O silêncio de Taiguara é ocupado novamente pela canção do mar no rebentar das ondas, sua imagem, seu movimento. Em seguida o anúncio da primeira parte do filme, que é organizado em três partes.


Parte 1: o cabelo de Clara
A marcação temporal nos coloca no ano 1980. Um chevrolet opala novo, idêntico ao do meu avô, está na areia da praia. A faixa de areia na paisagem litorânea de Boa Viagem, o estirâncio, é relativamente grande, relativamente maior do que pude observar durante esta pesquisa nas vezes que estive em Boa Viagem. O filme segue....

Festa no apartamento.

Duas características nos chamam a atenção. Primeiro a temporalidade de Clara que, ainda muito jovem nesta primeira parte do filme, mostra-se atenta. Sabe ouvir, dedica tempo para a escuta e, pausadamente, devolve em palavras na construção cuidadosa de cada diálogo. A segunda característica é o que chamaremos aqui de cuidado. Clara cuida dos e das à sua volta. Uma espécie de relação de vizinhança vai se construindo ao redor da personagem. O marcador desta segunda característica é, em nossa opinião, a priorização de alguns rostos na cena. Num apartamento de classe média alta, numa área (por assim dizer em termos do preço de mercado da terra urbana) cara da cidade, Clara atrasa os momentos de formalidade do aniversário para levar um “pratinho para o seu Zé”, como ela diz. Trata-se do porteiro do prédio. E neste trajeto a câmera fixa nos rostos de gente simples, de pele preta, de cabelo preto. E as homenagens à aniversariante, Tia Lúcia, que completa 70 anos de idade.

Enquanto as crianças, filhos de Clara, leem os textos contando um pouco da história de vida da tia Lúcia que remontam à década de 1930, uma narrativa outra vai se materializando em imagens e conduzem os espectadores às cenas que estão na memória da homenageada: ao observar a mobília da sala de estar, ela se lembra do seu grande amor e outras festas que ali mesmo aconteceram. São cenas de amor. E ao agradecer as homenagens, tia Lúcia aponta uma falta: “vocês mencionaram uma série de coisas que fizeram parte da minha vida. Mas vocês esqueceram de falar de Augusto, o amor da minha vida… Meu companheiro por mais de 30 anos. A gente nunca se casou, alguns de vocês sabem, porque ele era casado. Ninguém é perfeito. Um brinde a Augusto”. Neste momento, fisionomias de aprovação com pequenos sorrisos e fisionomias de desaprovação também. Como se julgamentos morais estivessem também tecendo os primeiros fios de uma narrativa paralela no filme. Falaremos mais disso...

Adalberto toma para si a palavra causando certo impacto. Anuncia um agradecimento. Diz que 1979 foi o ano da doença de Clara, “esta mulher que eu amo tanto”. Silêncio. Ele segue narrando a dureza daquele ano que exigia dele cuidado consigo mesmo, cuidado com a casa, cuidado com os filhos, cuidado com Clara que estava com câncer. “Clara está bem e a gente continua seguindo a nossa vida”. Diz que entende a ausência de alguns, afinal “a vida não vem com um manual pra gente lidar com essas situações”. O cabelo curto estilo Elis Regina que denuncia, de alguma maneira, a recuperação de uma doença que acometeu Clara. Daí o título da primeira parte de Aquarius. A personagem passou pela experiência de quase morte ainda muito jovem. Adalberto finaliza brindando: viva Clara! Viva tia Lúcia! E a festa segue com canções da época. Toda menina baiana de Gilberto Gil, corpos que dançam, corpos que se abraçam, laços, entrelaçamentos. A música permanece no fundo apesar dos movimentos na tela. O mesmo apartamento e um salto no tempo apresentado por outra arrumação do cenário, outra decoração da mesma casa, e surge uma Clara outra, agora contemporânea. O filme faz um salto temporal e, a partir deste momento, a atriz Sônia Braga vive a personagem Clara; a praia de Boa Viagem - Pina se mostra outra, Gilberto Gil é outro apesar da gravação mostrar a mesma voz de quarenta anos atrás. O apartamento é outro. Certo que está reformado, está organizado para o dia a dia e não para uma festa de 70 anos. Mas algumas mobílias marcam um passado que se materializa nos afetos que produz: o mesmo piano, o mesmo armário de sala que sustentou a festa dos corpos no tempo de tia Lúcia. O diretor antecipa sinais de que os objetos são mais do que simples objetos frios e, a depender dos personagens, serão mais ou menos valorizados em sua materialidade e na sua força subjetivadora.

Neste primeiro trecho do filme destacamos também uma ideia, por assim dizer, de intensidade. Como se duas personagens, Tia Lúcia e Clara, trazendo essa mensagem subliminar: duas vidas vividas intensamente. Outras personagens figuram como o oposto disso, na nossa modesta opinião. Dizemos isso como que antecipando um pouco do que virá: uma espécie de luta hercúlea de intensidades e paralisias. Dito de outra maneira, forças de vida e forças de morte, movimento e interdição, forças de transformação e forças de conservação.

Pois o filme faz um salto no tempo. As primeiras cenas na cidade contemporânea apresentam-na barulhenta. Carros, motores, roncos, buzinas. E o esforço de Clara dentro do apartamento buscando algum encontro consigo mesma, com uma vida simples, sem grandes agitações, uma vida tranquila naquele aqui e agora. Os problemas cotidianos parecem simples: o vento que insiste em desfolhar revistas fazendo bater a porta da cozinha, o desejo de comer verdura no almoço. Um passeio na praia. E o mesmo armário da sala como a ligação com o passado, com a história, com o que compõe aquele lugar e também Clara em sua singularidade.

O mar vazio e placas informando em caixa alta: DANGER. RISK OF SHAKE ATTACK. O diálogo entre os homens do corpo de bombeiros que trabalham como guarda vidas na praia denuncia uma prática habitual de Clara, agora arriscada e perigosa: tomar banho de mar. O movimento da câmera agora mais largos. Há cenários da cidade, há imagens da Boa Viagem - Pina de hoje: prédios enormes em seus condomínios fechados, muros enormes, arranha-céus como que impedindo o céu aos olhos do espectador. Barreiras que contrastam duas paisagens: a imensidão do mar e de céu quando a câmera dá as costas para a cidade e, na posição inversa, paredes de concreto e vidro que impedem olhares e ventos, verticalizam a cidade, verticalizam as relações na pólis e inibem horizontalizações. Aqui mais uma marcação do filme: horizontes nas paisagens naturais, ver_tigens verticais das paisagens construídas. Horizontes nas paisagens psicossociais a partir de Clara, verticalização nas paisagens psicossociais, sobretudo nas paisagens político-econômicas, na cidade do Recife. E as cenas da fachada do edifício Aquarius como uma brecha que permite ao olhar, na tela, ver imagens do céu.

A partir deste momento, aproximadamente o minuto 23, as cenas dos espaços comuns do edifício começam a apresentar um estado de abandono, de um imóvel quase totalmente desocupado. Exceto pela presença de Clara. E a exibição explícita de uma marca de dor: a cicatriz denunciando a ausência da mama direita de Clara. Esta cena contrasta com a cena seguinte onde são apresentados discos de vinil e fitas K7 quando Clara, agora numa entrevista para jovens jornalistas, uma repórter e uma fotógrafa, conhecem, talvez pela primeira vez, um disco de vinil que toca perfeito aos 40 anos de idade. Esta passagem merece um pouco da nossa atenção também. Vamos lá…

A pergunta da repórter sugere sua preocupação com o choque das temporalidades. Se dirigindo a Clara como escritora de um livro novo, apresenta certa surpresa em ver mídias físicas na paisagem da casa justamente num tempo onde as mídias digitais armazenam as informações:

- Você está escrevendo um livro novo. E eu percebi que na sua casa tem muita mídia física. Vinil, disco, fita. Numa época em que a mídia digital toma conta de tudo, você só escuta música no estilo antigo?


À pergunta da jovem repórter, uma resposta com algumas palavras e uma atitude da entrevistada:

- Vamos encurtar um pouco essa história para não gastar o tempo meu, o teu, o teu (dirigindo-se à fotógrafa). Eu gosto de tudo. Tendo música para mim está bom…

Clara conta a história de um disco comprado num sebo de Porto Alegre. E dentro tinha uma matéria de jornal Los Angeles Times que dizia dos planos de John Lennon semanas antes de ser assassinado. Neste momento ela mostra que os objetos têm significado, que carregam histórias, que são singulares na medida que singularizam, que contam uma história, que materializam acontecimentos. E a cena termina com um comentário da repórter:

- então mídia digital tudo bem?

Parece que Clara procura as rupturas no pensamento quase cartesiano das jovens jornalistas. Ela também é jornalista formada numa outra época. Neste ponto pensamos muito no jornalismo nessa tensão com o entretenimento, com as abordagens mais superficiais em forma de apresentação plana, ou seja, sem profundidade, sem investigação, sem pensamento. Pelo contrário, como se o jornalismo estivesse mais para a produção de imagens que servem às colunas sociais e à publicidade na perspectiva da propaganda. Como se o suporte (que tipo de mídia) da informação fosse mais importante que a informação, como se a mídia digital ou analógica fosse tão importante quanto seu conteúdo, neste caso como se o vinil, o k7 ou qualquer tipo de mídia digital fosse mais importante que a obra, que a canção que ela carrega a ponto de aparecer na pergunta da repórter a uma escritora.

Entra em cena outro personagem paradigmático: Bonfim Engenharia. Aqui chamada de construtora, que no filme materializa a Empresa. Vamos retratar a Empresa com letra maiúscula quando nos referirmos particularmente à Bonfim Engenharia, Empresa privada de seu Geraldo e neto Diego, uma Empresa específica. E empresa com letra minúscula a esse ente, qualquer empresa, os interesses privados que disputam no livre mercado e jogam um verdadeiro vale tudo para multiplicar seus ganhos e capitais. O personagem Diego, interpretado por Humberto Martins, traz no rosto a face jovem e limpa que mascara toda voracidade do mercado no contemporâneo.

A rotina tranquila de Clara é interrompida pela campainha. Representantes da construtora, seu Geraldo e seu neto Diego, este orgulhoso do seu primeiro ‘projeto’ na Empresa do avô. Enquanto Clara pretende comprar o apartamento do andar acima, os representantes da construtora fazem uma proposta muito generosa pelo apartamento habitado por Clara e sua história. A Bonfim Engenharia possui todos os apartamentos do prédio. A intenção da Empresa é colocar no chão o pequeno e modesto edifício Aquarius para construir o Atlantic Plaza Residence, ou o Novo Aquarius. Um rápido parêntese: ouvimos do diretor em várias entrevistas, esse jogo que se faz com os nomes dos empreendimentos imobiliários. Como se uma cidade que vai se produzindo também no imaginário de seus habitantes numa espécie de glamourização, numa espécie de apologia a um outro idioma ou, nas palavras do personagem Geraldo, um nome “que soa bem”. Ou seja, que apresenta bem, de convence, que vende bem. Pensamos na coerência entre as duas cenas em sequência: a entrevista em sua superficialidade e a denominação dos projetos imobiliários na produção de uma cidade. Cabe trazer uma coincidência que reforça este aspecto do filme em nós: no percurso deste estudo, este pesquisador veio a prestar serviço a um instituto sediado bem ali, em Pina, no JCPM Trade Center que aparece no filme inclusive.





Foto XX. vista de Brasília Teimosa. No primeiro plano e à esquerda, o JCPM Trade Center[1] marcando o contraste da paisagem.



Diego fala do prédio atual usando verbos no passado. A Empresa se comporta como empresa. A Empresa é empresa: empreende. Sua fúria empreendedora torna cegos seus representantes. Eles não enxergam e, portanto, não conseguem compreender nada que não seja seu empreendimento. Neste sentido, empreender cega o compreender. Nega a compreensão de tudo o que não for o empreendimento da Empresa. Os empreendedores não conseguem compreender a dimensão da vida que se materializa nos objetos, que significa, que produz sentidos e subjetividades. Não compreendem outras dimensões que não as do negócio, da compra e da venda, dos investimentos. Do dinheiro enfim. Esta cena que vai do minuto 27 ao minuto 33, finaliza a primeira parte do Filme ao mesmo tempo em que antecipa o que virá na parte seguinte. Ocorre que seu Geraldo trata dos interesses da empresa com Clara no plano dos negócios. Já o neto, jovem e ambicioso, lança para Clara olhares sedutores sugerindo que o mundo dos negócios não tem limites para fazer valer seus interesses. Como se, para a empresa, as fronteiras entre vida pública e vida privada fossem porosas. Nada contra, absolutamente. Mas o que nos provoca certa ojeriza neste comportamento do personagem Diego como falando pela Bonfim Engenharia aqui representando o mundo dos negócios, os interesses do mercado, do capital, do investidor, ignorando as vidas, atropelasse tudo e todos que obstaculizarem seus interesses de reprodução. Noutro momento do filme, Diego fala exatamente isso para Clara.





Parte 2: O amor de Clara[IRDJ1]



Devagar Clara vai percebendo o aspecto de abandono do prédio. Se todos os apartamentos são da Empresa e estão vazios, o prédio já está praticamente vazio. Apenas Clara ocupa o último apartamento. Preferimos dizer, apenas Clara habita um apartamento no edifício Aquarius. Todos os outros apartamentos estão desabitados.



Uma rápida passagem do filme traz o tema da intensidade. Clara está no carro com o jovem sobrinho. Falam de canções, das formas de armazenagem em pen drive, no dispositivo celular e tal. A canção de fundo é escolha de Clara, e a voz penetrante de Maria Bethânia[2] ocupa todo o espaço da sala de cinema, preenchendo todo o entre tela e plateia.



Eu sei que eu tenho um jeito

Meio estúpido de ser

E de dizer coisas que podem magoar e te ofender

Mas cada um tem o seu jeito

Todo próprio de amar e de se defender

Você me acusa e só me preocupa

Agrava mais e mais a minha culpa

Eu faço, e desfaço, contrafeito

O meu defeito é te amar demais





Logo nas primeiras frases da canção, o rapaz diz de sua alegria com a chegada de uma garota carioca ao Recife. Se conheceram pelo facebook, conversaram durante um tempo, se curtiram. Júlia, lindo nome diz Clara. E aconselha:

- Mostra Maria Bethânia para ela. Mostra que tu é intenso!



Ao que a voz da Bethânia rasga a cena:



Palavras são palavras

E a gente nem percebe o que disse sem querer

E o que deixou pra depois

Mais o importante é perceber

Que a nossa vida em comum

Depende só e unicamente de nós dois

Eu tento achar um jeito de explicar

Você bem que podia me aceitar



Queremos aqui fazer mais um parêntese para falar do que está junto desta canção mas não foi apresentado no filme. No disco, na gravação original tem uma passagem que pode nos dizer muita coisa a ser trabalhada nesta pesquisa. Trata-se de um texto de Fauzi Arap[3] lido por Bethânia cuja transcrição está a seguir:



Eu vou te contar que você não me conhece, e eu tenho que gritar isso porque você está surdo e não me ouve. A sedução me escraviza a você. Ao fim de tudo você permanece comigo mas preso ao que eu criei, e não a mim.

E quanto mais falo sobre a verdade inteira, um abismo maior nos separa.

Você não tem um nome, eu tenho. Você é um rosto na multidão e eu sou o centro das atenções.

Mas a mentira da aparência do que eu sou e a mentira da aparência do que você é, porque eu, eu não sou o meu nome e você não é ninguém.

O jogo perigoso que eu pratico aqui, ele busca chegar ao limite possível de aproximação através da aceitação da distância e do reconhecimento dela.

Entre eu e você existe a notícia que nos separa. Eu quero que você me veja a mim. Eu me dispo da notícia, e a minha nudez parada te denuncia e te espelha.

Eu me delato. Tu me relatas.

Eu nos acuso e confesso por nós.

E assim me livro das palavras com as quais você me veste.



E entra na cação:

Eu sei que eu tenho um jeito

Meio estúpido de ser

E de dizer coisas que podem magoar e te ofender

Mas cada um tem o seu jeito

Todo próprio de amar e de se defender (...)



Fechando o parêntese da intensidade com Maria Bethânia que nos levou a Fauzi Arap, voltamos ao eixo narrativo principal. Lembrando que Clara havia feito uma proposta pela compra do apartamento acima do seu, Geraldo respondeu com uma contraproposta para a compra do apartamento de Clara. Generosa proposta e muito acima dos padrões de mercado. Ao rasgar a proposta sem ler, o espectador compreende claramente os interesses de Clara. Ela é clara. Ela é Clara. Mas isso vai, devagar, no conjunto de cenas seguintes tornando sua vida cada vez mais difícil. Não há ilegalidade no assédio da Empresa sobre Clara. O jogo imobiliário vai se apresentando, a disputa beligerante pela terra nesta porção muito valorizada de uma importante capital brasileira está apresentada. O filme segue agora para, coerente com o título da segunda parte, a vida amorosa da protagonista.



No Clube das Pás[4], durante a dança, Clara conhece um capixaba, viúvo assim como ela. Ambos dançam, conversam e os corpos se compõem, na dança e no carro, até que as marcas da ausência da cirurgia de mama interrompem os últimos passos da dança dos corpos.



E indícios da busca por sexo profissional, ao que Clara recusa o número de telefone do garoto de programa oferecido por uma amiga.



Nas cenas do baile, algumas marcações do movimento de Clara. A cena do banheiro feminino com corpos e rostos que apresentam um pouco dos contrastes. As cenas e imagens do salão de dança que realçam tais contrastes. São corpos diferentes e em movimento, são rostos dos mais diferentes tipos, cabelos, sotaques. E movimento expresso na dança dos corpos. Cabe salientar que a festa foi um convite de Clara. Por iniciativa dela as amigas se reuniram para festejar. Pela segunda vez no filme, um close fechando nos pés das amigas debaixo da mesa e, apenas os pés de Clara estão em movimento. Ainda no baile, uma canção parece juntar todos os participantes: Recife minha cidade, uma espécie de hino da cidade que coloca todas as vozes em coro.

A noite acaba com Clara dançando sozinha na sala de sua casa ao som de Roberto Carlos, a canção O quintal do vizinho. Trechos marcantes da canção dizem, pela boca da protagonista do filme:

Sonhei que entrei no quintal do vizinho

e plantei uma flor

no dia seguinte ele estava sorrindo

dizendo que a primavera chegou.

E quando eu abri a janela….



E uma cena quase imperceptível apresenta uma virada no percurso do filme. Uma manta, dessas de proteção de grandes obras verticais, cai do arranha céu em fase final de construção ao lado do Aquarius (hoje, edifício Château Mouton). CORTA - Corte na cena. Na manhã seguinte a manta está sobre os carros parados na calçada. E o filme ganha uma espécie de nova cobertura: fica mais tenso. Clara é alertada pelo bombeiro guarda-vidas, seu amigo, dos perigos que agora se apresentam no bairro. O exemplo dessa mudança nos hábitos e costumes é trazido no filme por meio de um vendedor de drogas ilícitas: um rapaz branco, bem vestido, de classe média que, com presença regular no calçadão com sua bicicleta cara, distribui a droga aos consumidores residentes naquela região. O consumo de maconha em cigarros é comum no filme desde o início. Não há indícios de consumo ou tráfico de outras drogas exceto na presença do vendedor que, sugere a cena, vende drogas mais pesadas. A tensão vai ganhando um tom de ameaça com a chegada de um ex-vizinho de apartamento. Daniel, filho de Jorge mostra uma interpretação diferente das atitudes de Clara. Ele se sente prejudicado pelo ‘egoísmo’ de Clara ao se negar sair do apartamento. Seu pai negociou o apartamento há tempos mas o negócio não se confirmou até aquele momento. O pai já morreu.



Uma canção não está na lista das canções do filme. Ao aparecer pela segunda vez, agora no momento em que Clara abraça Leidijane pelo seu aniversário, fomos à sua procura. Trata-se de uma das Canções de Cordialidade[5]. Em nossa breve investigação, a oportunidade da letra nos anima a reproduzi-la aqui. Música de Heitor Villa Lobos e Letra de Manuel Bandeira:



Saudamos o grande dia

Em que hoje comemoras

Seja a casa onde moras

A morada da alegria.

O refúgio da ventura

Feliz aniversário



No abraço pelo aniversário de Leidijane, Clara afirma: “você sabe que pode contar comigo para tudo, não sabe?”. Clara parece afirmar, em vários momentos, sua opção preferencial, seu respeito, ao se dirigir constantemente a todos as pessoas que entram na cena. Parece se interessar muito pelos mais simples: sempre pergunta o nome aos funcionários e trabalhadores que se relacionam com ela. Na tentativa de sair com seu carro do estacionamento do edifício, Diego e dois funcionários estão por ali. O carro de Diego obstrui a passagem de Clara. Ela, por sua vez, primeiro se dirige aos funcionários perguntando o nome. E pede que Diego retire seu carro do caminho. Pura provocação. Num breve diálogo entre ambos, Diego afirma: “os apartamentos estão vazios mas são de propriedade da Construtora. A gente pode trazer o que for necessário para o trabalho”. Os objetos em questão são colchões. E a pergunta que tem ocupado Clara, afinal, para que colchões em apartamentos vazios?

Na cena seguinte, mais uma afirmação do diretor. Clara está no cemitério para colocar flores do túmulo de Adalberto Henrique (1945-1997). Aqui parece iniciar um deslocamento para a vida familiar de Clara. Até então apareceram rapidamente no filme um sobrinho e o irmão de Clara. A partir de agora, com a visita ao ex-marido, aparecem nas cenas seguintes o universo familiar: filhos e filhas, genros e noras, netos e netas, numa reunião familiar. Duas observações ainda na cena do cemitério: 1) um close na lápide onde Clara deposita flores vermelhas e retira galhos secos. 2) Clara caminha como se pensando, como se elaborando suas emoções, como se conversando consigo mesma tendo a lembrança de Adalberto numa forte presença ali. A câmera se movimenta na mesma medida do movimento de Clara até que seu olhar é capturado pelo trabalho de dois homens num jazigo. Neste momento, a câmera assume o lugar de Clara quando os leitores do filme são colocados no lugar dela. A construção de uma sepultura obstaculiza o olhar. Para que o diretor interrompe desta maneira? para que uma mensagem subliminar fique: ‘in loving memory[2] ”. Esta frase fica na tela por cerca de 2 segundos e parece dar a pista da caminhada e da passagem de Clara pelo cemitério, logo um cemitério onde ficam os mortos, fazendo uma ligação importante entre os dramas particulares da mulher Clara e da mãe, da avó Clara. Voltaremos a este ponto mais tarde.

Voltando aos trabalhadores no jazigo, ambos retiram ossadas humanas em seu trabalho de manutenção rotineiro. O que o diretor deseja destacar nesta passagem? quais afetos ele deseja mobilizar nos espectadores? de nossa parte, destacamos aqui uma preparação para ingressar, no sentido de dar mais um passo na direção dos amores de Clara. Do mundo que o cinema constrói, este mundo que aqui se apresenta em movimento, em mutação, em deslocamento. E nos parece que aqui um deslocamento é marcado, afinal o drama da casa tem implicações diretas na vida, nas relações familiares e amorosas. Uma memória amorosa se nos mobiliza...





Foto XX. Clara observando os trabalhadores em manutenção num túmulo.





Foto XX. No movimento da câmera, o olhar passa rapidamente pelas palavras no mármore.



Foto XX. A imagem da morte que irá contrastar com a cena seguinte, imagem da vida.



A dureza da passagem pelo cemitério é quebrada com uma canção infantil. De Vinícus de Moraes[6], o poema musicado O vento. Na tela, um vinil azul reproduzindo a voz do poetinha:



Esse é para Maria João e Bruninha:

Não tenho cor,

não tenho forma

peso nenhum

Quando sou forte me chamo veeento

quando sou cheiro me chamo pum.



O vinil azul dá lugar para uma porta branca entreaberta. O movimento da câmera simulando o olhar de Clara novamente se aproxima e abre a porta. Dentro do quarto de Clara, a cama de casal arrumada com travesseiros e almofadas protegendo um bebê que mexe lindamente braços e pernas. Um bebê sendo bebê. Uma vida que começa. Como tantas que, neste apartamento do edifício Aquarius, desde a tia Lúcia, se tornaram matéria. A memória amorosa está impregnando a paisagem, as portas e janelas, as paredes e os tijolos. Isto também se mostra na fotografia: ao lado da cama, livros e fotografias, ou seja, ideias, pensamentos e rostos. Gente por dentro e por fora. Clara pega o bebê no colo e segue com ele para a sala, onde encontra as filhas e os filhos. A câmera passa pelo armário de madeira, o mesmo que já deu suporte para o amor de tia Lúcia e Augusto, agora apoiando objetos coloridos que remetem a brinquedos infantis. São tantos amores neste apartamento. No chão da sala, duas crianças criançando entre brinquedos e panos coloridos, formas, cabanas e um polvo com tentáculos coloridos que pula pelas mãozinhas em movimento. Close no sorriso largo no rosto de Clara que lança uma afirmação contundente aos adultos na sala:

- Tão bom ter vocês aqui !

Entramos no mundo familiar. Um passo importante para o que virá agora. Vamos perceber que as relações externas, o assim chamado mercado produz as relações afetivas. Como se as linhas tecidas na vida pública em sua esfera mercantil, em sua força subjetivadora, interferindo no tecido familiar. Um dia de festa será colonizado por uma tensão que está se processando em outra esfera. O drama do apartamento, a pressão da imobiliária e a negação de Clara, seu desinteresse causa desconforto entre os presentes. Incompreensão dos valores de Clara. E nos perguntamos: como os valores são produzidos? para alguns, valores estão materializados na proposta financeira acima do praticado mercado conforme as palavras do Geraldo, patriarca da Bonfim Engenharia. Poucos parecem compreender que os valores de Clara são de outra ordem. Clara não leu a proposta, rasgou o envelope com tudo dentro num gesto de recusa em silêncio.



Este trecho que inicia com o Vento de Vinícius, a família reunida do apartamento do Aquarius, finaliza com a despedida no estacionamento, somam 16 minutos de intensidade estética e dramática. Clara é uma velhinha e menina, como explicita a filha Ana Paula. Ela parece a mais insensível dos três:

Vamos entrar um pouco em cada um deles. Nossa lente para leitura é a sensibilidade apresentada nos personagens. São 5 personagens adultos que se revezam nas cenas do almoço.



- Ana Paula é a única filha. Recém separada, ainda enfrenta dificuldades na organização da vida com um filho pequeno. Sugere estar em dificuldades de várias ordens, inclusive dificuldades financeira. É ela que traz para o almoço em família na casa de Clara, o tema da venda do apartamento. Se coloca com a filha preocupada com o bem estar da mãe, fala em nome dos irmãos sem pedir autorização para eles que se mostram contrariados na cena. Em momento nenhum ela está com seu filho; pelo contrário, ele aparece no colo da babá. Uma cena mostra, inclusive, o menino deixando os brinquedos e brincadeiras e se dirigindo à babá e não à mãe. Clara conhece os detalhes da proposta que a Construtora fez pelo apartamento: R$ 2 milhões, e apresenta detalhes da oferta, parece falar pela Construtora. Ela procurou pela empresa para “saber o que está acontecendo”. Mais para frente, na terceira parte do filme, Ana Paula mostra sua afinidade com Diego, um rapaz simpático e atencioso, ela diz.



- Martinho parece o filho mais velho. Casado e pai do bebê que Clara traz de sua cama para a sala. A companheira de Martinho também aparece na cena quase sempre com o bebê no colo, algumas vezes, amamentando. O pai contracena com o bebê também. Este casal parece polarizar antíteses com Ana Paula: eles com o bebê, ela sempre afastada do seu filho que não é mais um bebê mas ainda é bem pequeno. Martinho parece funcionar como um pêndulo entre os argumentos da irmã e a sensibilidade da mãe;



- Murilo, aparentemente o mais novo, está num relacionamento com Márcio. Martinho é quem fala de Márcio. Ana Paula já viu uma foto. Clara, nem foto. Parece o mais quieto, introspectivo e que não partilha muito sua vida. Não entra nos assuntos do apartamento mas, quando o assunto está colocado por Ana Paula na direção clara do interesse de vender o apartamento mas anunciado como ‘preocupação com a mãe’, se posiciona em apoio a mãe. Nossa sensação é de maior afinidade entre Clara e Murilo.



Clara se diz puta com a situação. Estressados estão os filhos. Ela parece afirmar que fica muito incomodada com o movimento disparado pela Construtora que lhe tira o sossego. Clara está tentando manter sua vida no seu ritmo próprio mas forças externas atrapalham. E esta tensão está aumentando. Para Ana Paula o apartamento é um problema, para Clara, não. E os diálogos nesta sequência são muito interessantes. E o são porque colocam interesses comerciais, negócios num momento que se pretendia inicialmente de puro ócio. É o negócio negando literalmente o ócio. É possível perceber os papéis típicos do mundo familiar e doméstico. No longa metragem tais personalidades nos movimentam. Tentaremos aqui dialogar com eles no plano da sensibilidade.



Ana Paula traz para o encontro a questão da disputa pelo imóvel. Ela explicita suas preferências e, no jogo das cenas, a intenção do diretor parece exagerar, parece elevar a enésima potência a falta de sensibilidade dela, a incapacidade de escuta, as falas que querem se impor ignorando absolutamente a existência do outro em sua singularidade, a outridade, a alteridade. Ana Paula olha para a mãe mas não a enxerga. Ela consegue ver apenas na fisionomia de descontentamento de Clara um adversário acusando cada golpe de suas palavras. E se arma para receber uma resposta que, sabe ela, não irá agradar. Porque apenas a concordância, a aceitação a agradaria. Apenas. É um diálogo que não existe. Não há conversa visto que as possibilidades não existem. Ana Paula está fechada ao encontro. Então pensamos que o mercado, ou melhor, este tipo de mercado agressivo, não abre possibilidades; pelo contrário, fecha, impede. Ele busca a afirmação de seus interesses que são, em última instância, a reprodução do capital e tudo o que ele carrega consigo em termos de produção de mundos, de produção de um sujeito chamado consumidor. Não há espaço para produção de sentidos outros.



No momento do diálogo entre mãe e filhos, Clara traz o tema da loucura de um jeito interessante:

- você vai falando com essa gente (o pessoal da construtora), me coloca como uma louca. É que vocês não sabem o que é se sentir louco sem ser louco, parece que você vai endoidando, você sabe o que é isso meu filho”.

E se dirigindo a Murilo, continua:

- “saber que não está endoidando e que a loucura está lá fora (...) Outra coisa que é muito louca aqui é a gente estar falando de dinheiro (...)”

Clara não precisa de dinheiro. Estão num momento de convívio familiar mas a Empresa interfere. Ana Paula trouxe a empresa para a cozinha, depois para a sala. Ana Paula insiste. Ela quer falar deste assunto. Se diz preocupada com a mãe. Será? com a mãe?



Se referindo a Paulinho da Viola, Clara interrompe cantarolando, numa prática que muito nos agrada:

há pessoas com nervos de aço

sem sangue nas veias e sem coração

mas às vezes passando o que eu passo…

E conclui colocando as coisas no lugar: “Lupicínio”.



É como se colocando as palavras na boca de outras pessoas ou, colocando as palavras de outras pessoas na nossa boca em determinados momentos. É como se produzindo um outro território para a constituição de um diálogo menos tenso, um território mais comum tendo a arte como uma espécie de sublimação. É dizer sem ser explícito, sem afirmar, sem impor mas, pelo contrário por em suspensão até que algumas brechas se abram dando passagem para outros fluxos de composição dos sentidos.



O diálogo segue tenso. Ana Paula passa do limite, os irmãos reclamam. E Martinho interrompe a irmã lembrando-a da dedicatória do livro escrito pela mãe, conforme os frames abaixo:





Frame XX. Capa do livro assinado por Clara Amorim de Melo





Frame XX. Título do livro escrito por Clara





Frame XX. Dedicatória aos filhos.





Queremos aqui fazer pequenas considerações acerca das imagens acima. Primeiro para o título do livro: TODAS AS MÚSICAS QUE NÃO CONSEGUIMOS VER. Uma obra sobre Heitor Villa-Lobos. Uma leitura atual de sua contribuição para educação musical no Brasil. O que pretende o diretor do filme com essa provocação? música é uma linguagem que mobiliza o sentido da audição, então o que a visão tem com isso? voltaremos a esse ponto no momento oportuno[3] . Uma segunda consideração se refere ao texto da dedicatória: Pelas horas de lazer que lhes foram roubadas. O que significa para uma mulher apaixonada pela música se lançar numa busca, numa pesquisa, num trabalho cujo produto está ali materializado num livro? qual o nível de implicação deste corpo mutilado que se lança neste movimento de vida empurrado pela força do desejo? Ana Paula agridfala em termos de trabalho colocando em dúvida a capacidade da profissional Clara em erguer o patrimônio da família colocando no falecido pai a dedicação e a conquista. Pode estar certa, mas isso não importa. E a sutileza, o gesto delicado de Clara ao, reconhecendo a ausência num determinado período da vida dos filhos, dedicar a eles o livro, a obra mais importante e valiosa na vida dela de então. Aqui está marcada a diferença, a polarização, o contraste dos personagens que nos referimos acima.

Este trecho destacado do filme termina com o pedido de desculpa de Ana Paula, e Clara oferecendo colo para a filha.

- É que às vezes a senhora parece uma mistura de velhinha com criança.

- Eu sou uma velhinha com criança, tudo junto.



CORTA!!!



Mais uma vez o sossego de Clara é quebrado. Uma festa acontece no apartamento de cima. Mais um avanço da Construtora na direção dos seus interesses. Parte do prédio está locado para uma produtora de filmes eróticos. Clara tenta manter-se em casa colocando suas canções para competir com o ruído sexual que vem de cima. Tenta o vinho também. Mas é impossível. Tal constatação é possível tanto para Clara quanto para o espectador ao, movida pela curiosidade, Clara olhar pela fresta da porta entre aberta e ver a orgia sexual. Isso ativa em Clara sentimentos adormecidos ou reprimidos. Neste momento ela decide se aventurar com Paulo, um profissional do sexo. Ela se ativa eroticamente e se lança na experiência.

Mais uma vez a personagem parece tatear o rapaz e se decepciona. Ela parece ficar entre a tentativa de um romance, um pedido que ele vá embora numa espécie de decepção e, por fim, uma decisão:

- eu quero que você me coma !



A cirurgia na mama ainda mostra suas marcas em Clara. Aqui ele se apresenta como mulher.



Um pequeno salto… A relação com Thomaz, o sobrinho.

Interessante pensar a cena na praia de Boa Viagem na caminhada sentido Pina - Brasília Teimosa. Caminham Clara, Thomas e Julia, a carioca que está no Recife para encontrá-lo. E as manifestações de carinho entre tia e sobrinho. Como se o filho que ela não teve, quase que nas palavras de Clara. E mais uma demonstração de um amor por afinidade, uma espécie de suavidade que se produz na relação entre duas pessoas que, aparentemente, partilham uma sensibilidade especial apesar de Thomaz ainda não ter apresentado Maria Bethânia para Julia.

Neste diálogo, mais um destaque que nos obriga um rápido retorno. Ocorre que a festa, orgia, gravação de um filme pronográfico ocorrido na noite anterior no edifício Aquarius que, além de incomodar, lançou Clara em outras viagens, acabou em sujeira. Clara percebe cocô nas escadas. E, na praia, mostra para Julia que a divisa entre Pina e Brasília Teimosa é, precisamente um emissário de esgoto. Interessante pensar a cidade nesta perspectiva: uma cidade como Recife, numa região extremamente ‘valorizada’. O filme retrata uma disputa pela terra urbana, por imóveis à beira mar. Para o mercado aqui representado pela Construtora e seus empresários, sem esquecer do jogo que envolve o interesse das pessoas ao redor de Clara e dos apartamentos, porque não um arranha céu para muita gente? nas palavras de Caetano Veloso se referindo a São Paulo: “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Porque a situação apresentada no filme é Recife, mas poderia ser, como afirma o próprio diretor, muitas cidades Brasileiras. Cabe lembrar que o roteiro nasce motivado basicamente por algumas situações. Clara foi inspirada na força da mãe do diretor. A história, por sua vez, vem das insistentes ligações que Kléber recebia de empresas oferecendo produtos os mais variados, inclusive e principalmente apartamentos em áreas nobres da cidade. Em suas andanças pelo Brasil, vai se dando conta que o mercado imobiliário tem tornado as cidades cada vez mais insensíveis. Aliás, nas nossas idas recentes a Recife, é impressionante a vista da janela do avião no momento da aproximação para o pouso: um verdadeiro paliteiro de prédios. São extensas áreas de uma cidade verticalizada.



Enquanto escrevo, vibra meu celular. Ocorre que estamos em período de isolamento social devido ao Coronavirus. Neste período de, por assim dizer, uma temporalidade suspensa, não tranquila mas suspensa, temos acompanhado as maneiras que artistas têm encontrado para divulgar sua arte, para encontrar em entre si e com seu público. Tenho acompanhado especialmente as aulas em vídeo de Adriana Calcanhoto, Mônica Salmaso entre outros. Além de nosso mergulho recente em Zélia Duncan e tal. E o telefone nos trouxe um encontro novo, via internet, de Salmaso e Duncan. A canção não está na trilha de Aquarius mas poderia. Estamos recriando, ‘recreando’, uma brincadeira na caminhada-flanagem agora imaginária pelo Recife com FELIZ CAMINHAR, de Paulinho Moska[7] e Zélia Duncan[8]:



Boto[9] sua cabeça no meu colo

Te imploro pra respirar macio

Pra lembrar que quando a vida esmurra a porta

A gente solta o trinco e Ihe oferece um chá

Pede calma e bota a alma pra pensar

Guardo sua mão dentro das minhas

Pra dentro dos meus olhos, seu olhar

Te mostro o filme que fiz outro dia

Num enredo suave e a vida a nos enveredar

Pede calma e bota a alma pra pensar

Final feliz já nem importa

Mas um feliz caminhar

Que pede calma e bota a alma pra pensar...



Interessante perceber as linhas de vida e seus entrelaçamentos. Estamos aqui mergulhados no Aquarius, nas tramas do enredo, e pinta um nó. Nem raiva nem tristeza, antídoto da cantora e compositora para enfrentar “essa aspereza que a gente vem vivendo” são: suavidade e delicadeza.[10]





Bem, estávamos na caminhada de Clara, Thomas e Júlia de Pina a Brasília Teimosa. O esgoto separa, divide, limita a “parte rica da parte pobre”. Caminham com destino à casa de Leidijane carregando a indignação com a história da morte prematura e recente do filho por um motorista bêbado que não foi condenado pelo crime que cometeu. Este clima de indignação toma a cena. A câmera se afasta mostrando o contraste entre Brasília Teimosa e Pina, paisagens vão se compondo e se decompondo. E a música que sustenta emocionalmente a cena é Sufoco, na voz forte de Alcione:



Não sei se vou aturar

Esses seus abusos

Não sei se vou suportar

Os seus absurdos



Este percurso da câmera e dos personagens marca também, e sobretudo, um deslocamento. Até aqui o filme projeta a Recife a partir de Pina. Neste trecho há uma inversão: a cidade está projetada a partir de Brasília Teimosa, da festa na laje. Mais um rápido parêntese neste ponto do texto para caracterizar um pouco os lugares no sentido de dar um pouco mais de materialidade para o leitor, para a leitora. Vamos lá…



***






Brasília Teimosa

(alguns dados retirados do sítio da prefeitura do Recife[11])



Está 2,33 km do Marco Zero de Recife;

Área Territorial: 61 hectares;

População Residente: 18.334 habitantes;

Predominantemente brancos e pardos;

Crescimento Anual da População (2000/2010): - 0,44% (diminui)

Densidade Demográfica: 302,81 habitantes por hectare

5.464 domicílios

R$ 1.220,81 Rendimento Nominal Médio Mensal dos Domicílios





Imagem XX. Destacado em vermelho, Brasília Teimosa



Brasília Teimosa recebe esse nome porque “a ocupação aconteceu no mesmo período em que o ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek trabalhava na projeção da cidade de Brasília. A teimosia faz alusão à resistência dos moradores, pescadores, comerciantes e donas de casa, que ocuparam essas terras e viveram em condições insalubres, resistindo dia após dia em conflito com poder público que queria desmobilizar e desocupar a região”, segundo Marcos Barbosa[12].





Imagem XX. Localização do Edifício Oceania, locação do edifício Aquarius.





Imagem XX. Destacado em vermelho, Boa Viagem.


Pina

(alguns dados retirados do sítio da prefeitura do Recife[13])



Está 4,57 km do Marco Zero de Recife

Área Territorial: 629 hectares

População Residente: 29.176 habitantes

Predominantemente brancos e pardos;

Taxa de Crescimento Anual da População (2000/2010): 0,62%

Densidade Demográfica: 46,38 habitante por hectare;

9.457 domicílios

3,1 habitantes por domicílio;

Rendimento Médio Mensal dos Domicílios: R$ 2.446,83





Imagem XX. Destacado em vermelho o bairro Pina.





Em Brasília Teimosa são 18.334 habitantes em 61 hectares, ou 302,81 hab/hectare. Em 5.464 domicílios. Renda mensal de R$ 1.220,81.

Em Pina são 29.176 habitantes em 629 hectares, ou 46,38 hab/hectare. Em 9.457 domicílios. Renda mensal de R$ 2.446,83.



***



Voltemos ao filme...



A cena segue com a sessão de fotografias no apartamento de Clara. Ocorre que um sobrinho, certamente o irmão de Thomas, está preparando a cerimônia de casamento e precisa de fotografias antigas. Toda a cena é interessante. Mistura elementos de realidade e memória, de presente e passado seja nas imagens reveladas no papel fotográfico, seja nos percursos em Clara, seus movimentos afetivos. Lembranças e sonhos vão se embaralhando e as cenas vão conduzindo e espectador a experimentar com ela esse passeio. Outro detalhe que merece destaque é o movimento de Julia. Ela e Thomas estão se amando, ouvindo os discos de Clara que Thomas chama de ‘futura herança’, e Julia cumprimentando Leidijane ao acordar. São duas linhas se cruzando: uma linha é o diálogo que se trava na sala, branco e classe média, acerca de um casamento branco e classe média. E na ante sala, Thomas e Julia estão olhando os discos. Leidijane entra na cena, serve de vinho os presentes e, em seguida, mostra a todos a foto de seu falecido filho por atropelamento, motorista bêbado, provavelmente branco de classe média que não foi condenado. Silêncio sepulcral e ela volta para a cozinha. Então vem o momento mais bonito e delicado que finaliza essa passagem: Julia escolhe uma canção, coloca o vinil na vitrola e se dirige a Clara:



Pai e mãe

Gilberto Gil



Eu passei muito tempo

Aprendendo a beijar

Outros homens

Como beijo o meu pai

Eu passei muito tempo

Pra saber que a mulher

Que eu amei

Que amo

Que amarei

Será sempre a mulher

Como é minha mãe



Como é, minha mãe?

Como vão seus temores?

Meu pai, como vai?

Diga a ele que não

Se aborreça comigo

Quando me vir beijar

Outro homem qualquer

Diga a ele que eu

Quando beijo um amigo

Estou certo de ser

Alguém como ele é

Alguém com sua força

Pra me proteger

Alguém com seu carinho

Pra me confortar

Alguém com olhos

E coração bem abertos

Pra me compreender



O casal nubente demonstra um certo descontentamento. Os presentes parecem desconhecer a canção de Gil. Julia e Clara a conhecem bem. O diálogo se trava entre olhares numa comunicação bonita, profunda e delicada. Clara tenta segurar a expressão de alegria e lança um sorriso monalítico para Julia. Esta, por sua vez, na sua inocência, ou melhor, na sua pureza juvenil, apresenta um sorriso largo ao sentir a comunicação por meio das palavras de Gil.

Cabe aqui um pontuar um depoimento do compositor baiano: “Pai e mãe é uma canção composta no dia em que eu completei 33 anos, 26 de junho de 1975. Uma música de confissão de afeto profundo pelos pais, colocando todos os homens queridos como sendo um prolongamento do pai e todas as mulheres amadas como um prolongamento da mãe. Meus pais moravam em Vitória da Conquista na época e festejaram muito a canção", disse o próprio Gil[14].



Corta !

Novo Take: Leidijane de costas, na cozinha preparando o almoço.

Corta !

A canção continua na tela preta.





Parte 3. O câncer de Clara.



A abertura da terceira e última parte do filme trazem duas passagens importantes. A primeira reforça a absoluta falta de sensibilidade da filha Ana Paula. Ela demitiu a babá. Ao redor dessa informação importante está uma construção simbólica em cenas que contrastam a aceleração de Ana Paula com a dedicação de Clara ao neto e às pessoas como a babá (que já apareceu no filme durante o almoço em família) bem como Leidijane. A segunda cena é o diálogo duro, uma discussão quente entre Clara e Diego, com a presença de Leidijane.



Caminhando para o final, a Construtora usa dos recursos mais agudos para interferir na decisão de Clara. Muito suspensa é empreendido na cena em que Clara descobre os andares superiores do Aquarius com cupim de demolição colocados ali pela Construtora para comprometer estruturalmente o prédio. Como se iniciada a demolição com um apartamento habitado. Não há limites para para a empresa.

A firmeza e convicção de Clara, apoiada pela amiga e advogada, pelo irmão e o sobrinho Thomáz, conclui o filme numa trama que parece materializar artisticamente uma característica brasileira: as relações de compadrio. Um amigo jornalista dá uma pista para Clara: informações e documentos que, se tornados público, podem causar muito constrangimento para a Construtora. Não fica claro do que se trata. Mas a fisionomia de raiva do seu Geraldo, as ameaças de Diego para Clara trazendo os aspectos jurídicos para a mesa de reunião que acontece no alto do arranha céu sede da Construtora denunciam a gravidade dos documentos. O filme termina sugerindo que a Empresa recuou. Mas isso pouco importa. Importa a narrativa, os deslocamentos, o movimento que tentamos trazer para esta pesquisa.



E o filme termina como começa. Com Taiguara e o som musical e ritmado das ondas quebrando na praia. Certamente em Recife,























SOBRE A TRILHA SONORA DO FILME

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Como já dissemos, Clara foi crítica musical e a trilha sonora funciona como uma espécie de paisagem sonora mostrando o entrelaçamento temporal intencionado pelo diretor.



As canções selecionadas para Aquarius tem um papel de ligação com o universo musical de Clara, especialmente na década de 1970, período em que a personagem trabalhou como crítica musical. Um fato curioso: a distribuidora Vitrine Filmes produziu cerca de 100 fitas K7 com as canções do longa-metragem e as enviou para um público selecionado. As fitas vieram acompanhadas de uma carta redigida em máquina de escrever e assinada pela personagem Clara. As canções foram disponibilizadas no serviço Spotify, assim:





N.º

Título

Intérprete(s)


1.

Another One Bites The Dust - Remastered 2011

Queen


2.

Hoje

Taiguara


3.

O Quintal do Vizinho

Roberto Carlos


4.

Sentimental Demais

Altemar Dutra


5.

Recife Minha Cidade

Reginaldo Rossi


6.

Dois Navegantes

Ave Sangria


7.

Toda Menina Baiana

Gilberto Gil


8.

Pai e Mãe

Gilberto Gil


9.

Canções de Cordialidade III - Feliz Natal

Heitor Villa-Lobos, Sonia Rubinsky


10.

Fat Bottomed Girls - Remastered 2011

Queen


11.

Sufoco

Alcione


12.

Nervos de Aço - Remaster 2012

Paulinho da Viola




O Diretor fala da trilha sonora do filme, de cada canção como um personagem que entra na cena. Tem um gesto interessante que valoriza a música na composição do ambiente, de cada ambiente, quando os personagens colocam a música para tocar.



Coincide com esta pesquisa uma coluna no mensal no Jornal Cidade de Rio Claro. A coluna nasceu como um desafio a partir da seguinte questão: para todos os sentimentos e dramas humanos existe uma canção que fale do assunto. Um pouco isso: algum compositor ou compositora fez uma canção falando do assunto. Ou ainda, os dramas humanos são elaborados, contador, retratados de forma artística. Óbvio. Então vamos dialogar nossos texto mensal com a linguagem textual musicada.







Roteiro e direção



Kleber Mendonça Filho



● Função: Diretor, Fotógrafo Still, Montador, Roteirista.

● Mini-currículo: Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, tem um trabalho abrangente como crítico e responsável pelo setor de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Escreveu para o Jornal do Commercio, no Recife, seu site CinemaScópio, Revistas Continente, Cinética e o jornal Folha de S. Paulo. É também diretor artístico do Janela Internacional de Cinema do Recife, que terá sua 5a. edição em 2012. Como realizador, migrou do vídeo nos anos 90, quando experimentou com ficção, documentário e videoclipes para o digital e o 35mm na década de 2000, realizando A Menina do Algodão (co-dirigido por Daniel Bandeira, 2003), Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005), Noite de Sexta Manhã de Sábado (2006), Crítico (2008) e Recife Frio (2009). Seus filmes receberam mais de 120 prêmios no Brasil e no exterior, com seleções em festivais como Brasília, Tiradentes, Festival do Rio, Gramado, Karlovy-Vary, Clermont-Ferrand, Hamburgo, BAFICI, Indie Lisboa e Cannes (Quinzena dos Realizadores). Os festivais de Santa Maria da Feira, Toulouse e Roterdã já apresentaram retrospectivas dos seus filmes. Sua primeira experiência no longa metragem é o documentário Crítico, realizado ao longo de oito anos. O Som ao Redor é o seu primeiro longa-metragem de ficção.





Filmografia encontrada:

● Bacurau (2019). Codirigido e coescrito com Juliano Dornelles. Ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019.

● Aquarius (2016). Indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2016.

● O som ao redor (2012). Prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci) no Festival de Roterdã de 2012. Prêmio de melhor filme pelo júri popular e Júri da Crítica, melhor diretor e melhor desenho de som no Festival de Gramado. Prêmios de melhor filme e melhor roteiro na Première Brasil do Festival do Rio 2012, entre outros.

● Recife frio (2009). Curta-metragem. Prêmio de melhor curta no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Prêmio de melhor filme pelo público e crítica, melhor diretor e roteiro no Festival de Brasília.

● Crítico (2008)

● Noite de sexta, manhã de sábado (2006). Curta-metragem. Prêmio de melhor direção no Cine PE. Prêmio de melhor atriz e prêmio da crítica no Festival de Brasília.

● Eletrodoméstica (2005). Curta-metragem. Prêmio de melhor filme pelo público e crítica e melhor atriz no Cine PE.

● Vinil verde (2004). Curta-metragem. Prêmio de melhor filme pela crítica, melhor direção e montagem no Festival de Brasília.

● A menina do algodão (2003). Curta-metragem codirigido com Daniel Bandeira.

Kléber apresenta uma visão muito particular do Recife. Um filme em particular nos chamou a atenção. Um curta metragem chamado A copa do mundo no Recife[15], de 2014.



Outras obras como O som ao redor e Eletrodoméstica, lançados em 2012 e 2005 respectivamente, apresentam similaridades diversas.



Um pouco sobre outras obras de Kleber.

SOM AO REDOR

RECIFE FRIO: o questão dos apartamentos na beira mar. o quarto de empregada.

Eletrodoméstica: pensei: numa cidade extremamente verticalizada, o olhar para a cidade não é o mesmo. há um certo perspectivismo. as relações são verticais. as pessoas aprendem a olhar de cima para baixo para ver a rua.

olhar a rua, o movimento pode ser interrompido por outro prédio. ouvir mais do que ver. e sentir o que? calor?

o ruído intermitente. até faltar energia quando deu para ouvir um piano tocando.

o isolamento, o convívio, o coronavirus.

a quantidade de portas, portões e grades. muros altos e espetos sobre os muros






pequeno glossário de termos específicos



Frame/ Fotograma

A menor unidade de um filme é o frame/fotograma. É basicamente uma fotografia da cena. Vários frames num curto tempo dá sensação de movimento. O olho humano capta algo em torno de 30 frames por segundo.



Take/Tomada

O take é basicamente do momento de play na câmera até a pausa ou stop na gravação.



Plano

A câmera dá um close no ator, depois dá um close no outro ator. Eles estão se encarando, a câmera vai pro discurso de um e depois vai pro discurso do outro. Cada destaque é um plano. Se tiver uma parte em que a câmera retrata os dois, um olhando pro outro de longe, é um outro plano. O uso de troca de planos, sempre em algum diálogo com close que é pra poder mostrar a emoção dos atores.



Cena

A cena nada mais é do que um conjunto de planos. Usando o mesmo exemplo que usamos no parágrafo acima. Um personagem faz um discurso é um plano; o outro personagem da cena faz seu discurso, é outro plano; a câmera mostrando os dois se encarando de longe, é mais um plano; o enfrentamento de ambos, é outro plano; até que um deles sai da cena, outro plano... O conjunto de planos é a cena.










Elementos para pensar um pouco mais:

- Tudo começa com Taiguara, o artista mais censurado do Brasil. (tem um vídeo com o Cristian Duncker falando disso).

- advogar a cultura da desistência, do fracasso.

- a pós-utopia. encerrar os sonhos da redemocratização sem decretar o ressentimento.

- Clara está comprometida com um futuro que não aconteceu. E está comprometida com um passado de histórias não contadas. a relação de clara com o imóvel, um conflito meramente burguês? a era de aquarius? a resistência ao neoliberalismo financeiro. Em algumas entrevistas a propósito do lançamento do Filme, Sônia Braga se mostra indignada com a pobreza em suas várias dimensões, com os valores rebaixados da vida. Clara parece demonstrar uma certa pobreza em seus filhos, sobressaltada nos diálogos e na relação com a única filha mulher.

- pensar em ume espécie de vida plástica, uma vida plastificada como um rosto ‘deformado’ pelas cirurgias.

- Diego, um jovem de cara ótima (como a própria Clara comenta) empreendedor sem limites e sem escrúpulos. Ele acredita neste mundo, nesta vida, ele se mostra obcecado na ideia de sucesso.

- a pobreza do presente.

- Clara como personagem simbólico de um outro modelo de resistência: corajoso, sintético, cirúrgico, uma transgressão.

- o filme antagoniza personagens de classe social, raça, muito parecidos.

- A recusa com um ato político. O não de clara para os interesses da construtora, para os interesses dos demais proprietários de apartamento no edifício Aquarius que aceitaram o modelo de desenvolvimento imobiliário.

- A casa como uma espécie de extensão do corpo de clara. Aqui me ocorreu pensar no tema do Ambienta, na questão ambiental, na produção de um ambiente onde o corpo se alarga, se amplia. As cenas de Clara na rede, as portas abertas entre os cômodos...

- Pensar o câncer como uma espécie de sabotagem. Uma sabotagem psíquica quando ela se limita na cena da transa e, ao mesmo tempo, uma espécie de sabotagem do parceiro, uma espécie de susto com repulsa que pode ser outra coisa, pode ser confundida com zelo ou qualquer outra coisa. Uma espécie de castração em ato, no encontro dos corpos.

- Clara não é enferma da nostalgia. Ela respeita o passado, tem ligações fortes com seu passado. Clara vive o presente, sua vida passado e presente. A atriz Sonia Braga consegue colocar na personagem uma presença intensa em cada cena. CLARA ESTÁ PRESENTE. Interessante pensar isso sobretudo em se tratando de uma interpretação, Sônia representa Clara e, ao mesmo tempo, torna Clara de fato presente em cada cena.

- Pensar a desigualdade no Brasil (este estudo acontece num período de transição, de um período onde as desigualdades diminuíam para um período onde, claramente, as desigualdades se aprofundam);

- a relação de Clara com as pessoas. Leidijane, por exemplo, trabalha na casa de Clara mas não fica nisso, a relação é muito maior que a relação de trabalho, uma participa da vida da outra. Forças de agregação, conciliação e reconciliação.



Sônia Braga afirma, em várias entrevistas (outros atores e atrizes também falam isso) que Kléber compõe com a equipe, abre o roteiro, abre possibilidades durante os ensaios e mesmo durante as filmagens para que o personagem seja criado e recriado no encontro. Compreendemos encontro aqui entre pessoas, personagens, roteiros, direção, equipe de preparação de elenco e etc. Encontro e fluxo, encontro em fluxo de afetos.

- Clara



Kohan, Walter Omar. A infância da educação: o conceito de devir-criança. Disponível em: < http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html> Acesso em 10 de abril de 2020.

Para pensar:

Entre Clara e Baterbly (de Herman Melville, O escrivão): a esquiva, a negação. Uma espécie de dança, uma certa ginga. Pelo direito da recusa, de esquivar-se, de preferir outra(s) coisa(s), de valorizar (no sentido de dar valor) a um modo de vida que não o orientado pelo desenvolvimentismo, o capital, o lucro e etc. Um “preferiria não”.








[1] “O JCPM Trade Center é o único empresarial à beira-mar do Recife, proporcionando uma visão única do litoral. Ele está localizado próximo a hotéis, restaurantes, shoppings e bancos, além de ser de fácil acesso através das principais vias da cidade. Tudo isso para oferecer mais comodidade, conveniência e economia de tempo para todos (...) O JCPM Trade Center apresenta diferenciais que ajudarão a otimizar a sua rotina e de seus clientes com todas as facilidades: segurança 24h, amplo estacionamento, heliponto, recepção, elevador e docas exclusivos para serviços”. disponível em <https://www.jcpmtradecenter.com.br/> Acesso em 13 de abril de 2020.


[2] Maria Bethânia Viana Teles Veloso (Santo Amaro, 18 de junho de 1946) é uma cantora e compositora brasileira. Maria Bethânia é irmã do também cantor e compositor Caetano Veloso. Em 1965, mudou-se para o Rio de Janeiro onde começou sua carreira musical substituindo a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião, ao lado de Zé Ketti e João do Valle entre outros. Considerada uma das grandes vozes da música brasileira em todos os tempos.


[3] Fauzi Arap (São Paulo, 1938 - 2013) foi diretor, autor e ator de teatro. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fauzi_Arap> Acesso em 08/abril/2020.


[4] o mais antigo do país - remonta à sua fundação no dia 19 de março de 1888, dois meses antes da Abolição da Escravatura no Brasil. dados disponíveis em <https://clubedaspas1888.com.br/biografia> Acesso em abril de 2020.


[5] Na década de 1940, dentro do espírito nacionalista vigente no país, Villa-Lobos e Manuel Bandeira compuseram uma série de canções para datas festivas como Natal e aniversário, na tentativa de substituir as versões importadas. O conjunto, batizado de “Canções de cordialidade”, era ensinado nas escolas e incluía títulos como “Feliz Natal”, “Feliz aniversário” e “Boas festas”. A ideia é que elas fossem adotadas no lugar de canções populares como “Parabéns para você”, tradução da americana “Happy birthday to you”, ou “Noite feliz”, versão da canção austríaca “Stille Nacht”. Os versos de Manuel Bandeira para a canção de aniversário diziam: Saudamos o grande dia/Em que hoje comemoras/Seja a casa onde mora/A morada da alegria. Nenhuma delas prosperou.

https://culturaalternativa.com.br/manuel-bandeira-um-dos-poetas-mais-cantados-de-sua-geracao-porem-pouco-ouvido/

Interessante perceber esta opção do diretor. Em sua obra não percebemos outra forma de celebrar o aniversário dos personagens senão com Villa-Lobos e Manuel Bandeira.




[6] Carioca, (19/outubro/1913 - 9/julho/1980), dramaturgo, jornalista, cantor e compositor, boêmio. Poeta e diplomata. O branco mais preto do Brasil.


[7] Carioca, nascido em 27 de Agosto de 1967. Pluri-artista, cantor e compositor, foi aluno de Cláudio Ulpiano. Disponível em <http://paulinhomoska.com.br/site/> Acesso em março de 2020.


[8] Zélia Cristina Duncan Gonçalves Moreira, nascida em Niterói/RJ em 28 de outubro de 1964. É cantora e compositora. Disponível em <http://www.zeliaduncan.com.br/> Acesso em março de 2020.


[9] Ela canta: Deito sua cabeça no meu colo.


[10] Junho de 2019, em entrevista para a Folha de São Paulo. Disponível em <https://f5.folha.uol.com.br/musica/2019/06/zelia-duncan-revisita-o-som-do-inicio-da-carreira-em-seu-novo-disco-autoral-pop.shtml>. Acesso em 11 de abril de 2020.


[11] disponível em <http://www2.recife.pe.gov.br/servico/brasilia-teimosa?op=NTI4Mg⇒ Acesso em março de 2020.


[12] Em reportagem para o Brasil de Fato publicada em 23 de agosto de 2018. Disponível em <https://www.brasildefatope.com.br/2018/08/23/historia-de-resistencia-da-brasilia-teimosa-e-contada-em-livro-por-moradora-do-bairro> Acesso em abril de 2020.


[13] Disponível em <http://www2.recife.pe.gov.br/servico/pina> Acesso em abril de 2020.


[14] Disponível em https://gilbertogil.com.br/conteudo/musicas/?letra=P. Acesso em 11 de abril de 2020.


[15] https://vimeo.com/groups/01shortfilm/videos/403365142.




[IRDJ1]Continuar a revisão daqui



na memória amorosa



voltar a este ponto

Doce de lua


Lua 

Lua nos olhos dela, 

bela lua no céu

Olhar: lua de mel !


Lua reflete no mar

reflete no rio, ilumina a noite.

É lua na terra, lua no chão

Silenciosa, lua na mata.


Linda, lua que anda

Vinda de Luanda.

Vida de Lua que dança no céu:

na dança, lua desabrocha

em doce de lua, doçura

Lua na rocha.



Uma Revolução Rosa


Zélia Duncan canta Conversa de Botequim
música de Noel Rosa
Leia o texto ouvindo a canção. clique aqui:  


Noel Rosa, o sambista de Vila Isabel, nasceu em 1910 e morreu em 1937 aos 26 anos de idade. Ele deixou uma obra musical densa e suas canções são regravadas até hoje.  


A cantora e compositora Zélia Duncan entende o caráter revolucionário de Noel Rosa como modernidade. Jovem, Noel Rosa falava dos lugares na cidade do Rio de Janeiro. Rosa revolucionou o jeito de falar das coisas do Brasil dos anos 1930; Rosa revolucionou o jeito de ser jovem; Rosa revolucionou o jeito de olhar a cidade e falar dela, da boemia, da vida. Ele andava com Aracy de Almeida pelas ruas da cidade, entrando em botequins e boates, cantando, vivendo a vida em seu fluxo intensivo e, naturalmente, recolhendo os elementos para sua criação. Uma criação realista com efeito de encruzilhada: abre caminhos!

Zélia fia as suas linhas criativas com Noel: “música moderna é aquela que dura, que permanece moderna até hoje visto que revoluciona”. A artista retorna à década de 1930 e encontra canções que revolucionam, que transformam, que modificam a sua produção musical. Para Zélia, “Noel é moderno para sempre. Acho que o Noel é procurado até hoje para revolucionar”.


Interessante pensar com a Zélia Duncan: encontrar um revolucionário para provocar revoluções em si mesmo. Imagino a compositora criando uma canção e, nesse seu movimento de busca, de criação, encontra em Rosa aspectos que rompem com o já estabelecido, aspectos de solavanco, empurrões que tiram do lugar conhecido e lançam no espaço, que levam a ação criativa por caminhos inimagináveis. É como abrir as portas de uma casa pouco conhecida. Sabemos que dentro de uma casa há cômodos, portas, corredores, talvez escadas, janelas que dão para fora da casa. Contudo, por mais que saibamos os elementos que constituem uma casa, toda casa desconhecida é uma casa a conhecer. Para conhecê-la é preciso entrar nela, andar, se surpreender, percorrê-la... se assustar, sentir medo no porão, sentir arrepios aos ouvir seus barulhos, imaginar os perigos... e ao mesmo tempo surpreender-se com as paredes, as cores, o sol iluminando os cômodos, os objetos deixados no caminho, caídos ou colocados cuidadosamente por serem úteis ou por serem belos. O que importa mesmo é a experiência e os encontros nesta busca de si em uma vida se fazendo obra.


Noel é de uma malandragem que se faz no fluxo da vida, dos encontros, da errância que fortalece o movimento e a produção de sentidos. Particularmente de sensações que atravessam o corpo nas composições afetivas que fiamos com o mundo povoado de seres criando e re_criando mundos. Essa malandragem considerada como um corpo_que_dança, um corpo_que_ginga, essa ginga na dança da vida, esse movimento de busca permanente que podemos chamar de andarilhagem. Andarilhagem compreendida aqui como experiência, uma certa andança com cadência, uma certa ginga com uma boa malandragem. Andança e malandragem: uma certa revolução provocada pelo revolucionário Noel Rosa.

Uma revolução Rosa.


Ivan Rubens

Educador



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 22/02/2022 (olha isso)

A vida o que é, meu irmão?


Componha sua paisagem sonora, leia o texto ouvindo a canção.
 Clique aqui: 


Eu fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita…

Uma colega de trabalho viu a seguinte citação num material didático: “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Ela estava preparando uma formação para professoras/es e pensava no dualismo ensino_aprendizagem, pensava no 'sujeito aprendiz de uma vida inteira', vai por aí. Acontece que Gonzaguinha vai além das obviedades, então convidei: “Vamos olhar a canção?”

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

Claro que a letra remete à ideia de aprendizagem. E 
aprendizagem anda de mãos dadas com ensino. Apesar disso, Gonzaguinha pode estar falando de outra coisa, de algo maior, algo que vai além… e diz isso com otimismo porque, cantando, a vida fica muito mais alegre, mais leve, fica melhor. O artista lança perguntas:

E a vida? / E a vida o que é, diga lá, meu irmão? / Ela é a batida de um coração? / Ela é uma doce ilusão? / Mas e a vida? / Ela é maravilha ou é sofrimento? / Ela é alegria ou lamento? / O que é, o que é, meu irmão?

São muitas possibilidades de resposta, da biologia às religiões. Na canção, Gonzaguinha parece preferir as perguntas. Cultivar uma pergunta, mantê-la viva, significa disparar um movimento de busca por respostas. Talvez o movimento de busca seja mais interessante do que a resposta em si, seja ela qual for. O compositor nos lança numa busca para além da física: sem a arte, a vida perde um tanto do seu brilho.

Há quem fale que a vida da gente / É uma nada no mundo / É uma gota, é um tempo / Que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor / Você diz que é luta e prazer / Ela diz que a vida é viver / Ela diz que melhor é morrer / Pois amada não é e o verbo é sofrer / Eu só sei que confio na moça / E na moça eu boto a força da fé

Há quem diga isso e aquilo da vida. Com a moça, Gonzaguinha afirma: a vida é da nossa responsabilidade. O desejo é motor da vida!

Somos nós que fazemos a vida / Como der ou puder ou quiser / Sempre desejada, por mais que esteja errada / Ninguém quer a morte, só saúde e sorte / E a pergunta roda e a cabeça agita / Fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita

O tempo passa e a morte é certa. Entre o passado que não volta mais, e o futuro (incerto), temos o presente. O que fazemos com ele? o que temos feito da vida neste tempo presente? Mas Gonzaguinha conclui com as crianças: A vida é bonita, é bonita e é bonita. Crianças entendem de presente.

O carioca Luiz Gonzaga do Nascimento Jr, nasceu em 1945. Economista, teve 54 canções censuradas de 72 apresentadas. Autor de Começaria tudo outra vez, Explode coração, Grito de alerta entre outras. Morreu aos 45 anos num acidente de carro em 1991.

Ivan Rubens Dário Jr
Educador

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 25 de janeiro de 2022

O SOM AO REDOR


[O trailer Está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rj0eeHW7lXU&t=60s ]





O som ao redor é primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho, escrito por ele entre 2007 e 2010, filmado em julho e agosto de 2010. Grande parte do filme se passa no bairro de Setúbal, cidade de Recife/PE. A sinopse apresenta o filme:

A presença de uma milícia em uma rua de classe média na zona sul do Recife muda a vida dos moradores do local. Ao mesmo tempo em que alguns comemoram a tranquilidade trazida pela segurança privada, outros passam por momentos de extrema tensão. Ao mesmo tempo, casada e mãe de duas crianças, Bia (Maeve Jinkings) tenta encontrar um modo de lidar com o barulhento cachorro de seu vizinho.


AÇÃO !!!

A makita[1] corta o ferro da grade na janela!

Enquanto Kléber rodava O Som ao Redor, o Brasil vivia um período de crescimento econômico do governo Lula, com os ruídos da construção civil ocupando o cotidiano das grandes cidades. O que os sons da cidade contam da vida na cidade? O filme mostra que os espigões, que o paliteiro de prédios que provocam andarilhos_voadores, os grandes edifícios super atuais, chiques e caros, as Empresas que fazem da cidade palco da especulação imobiliária levantam torres sobre uma sociedade desigual e violenta que não olha para suas próprias feridas do seu passado colonial. O filme é uma espécie de crônica, a observação da sociedade brasileira a partir da janela num bairro da zona sul da Recife contemporânea mas, na visão do diretor e roteirista, uma adaptação dos engenhos de cana ainda marcantes no cotidiano da sociedade pernambucana. Os elementos da cidade moderna como carros, prédios, o mobiliário urbano disfarçando as relações coloniais. Para Kléber, os papéis sociais e a disposição topográfica naquela rua apresentam os mesmos papéis sociais do engenho.

O cachorro late.

O entregador de água potável e maconha. Os trabalhadores que vendem a segurança na rua para o ‘coronel’ que, proprietário da maioria dos imóveis no bairro, é quem administra a paz de uns e a violência de outros. A vida das trabalhadoras domésticas, dos vendedores, dos vigias, dos entregadores, a rotina dos patrões deixarem as casas durante os finais de semana. O filme apresenta as rotinas dos donos dos imóveis e dos trabalhadores e trabalhadoras no cotidiano urbano. Trata-se de uma base muito realista, muito perto do funcionamento real da sociedade. O cachorro late.

Kleber viveu muitos anos na rua do filme e, de tanto observar o cotidiano, escreveu o roteiro ali mesmo. Cada vírgula um latido: o cachorro participou do filme, mesmo das filmagens... A casa de Bia (vivida pela atriz Maeve Jinkings) e sua família no filme é exatamente a casa onde Kléber morava. Trata-se de uma crônica realista que coloca a cidade como principal protagonista[RD1] . A cidade apresentada como a rua onde morava o roteirista e diretor.

O título do filme aponta, desde o início, uma dimensão importante e que diz muito sobre a cidade. Enquanto as imagens apresentam a temática do filme, o áudio funciona como uma linguagem da cidade, deste fragmento da cidade. A vida da classe média se mostra marcada pelo tédio e pela nostalgia, os comportamentos e conflitos estão sobre as bases estruturais do Brasil, a rua como um engenho de cana de açúcar. O filme começa com fotos de trabalhadores nas lavouras, casarões ao som de um ritmo tribal contrastando com imagens coloridas e atuais de crianças brincando no estacionamento e na quadra de um condomínio enquanto são observados por babás e empregadas domésticas, as tradições escravocratas e aristocráticas expostas durante o filme. Da grade que separa o condomínio das ruas e, supostamente, da violência urbana, as crianças observam um homem lixando a janela com uma makita em ruído estridente.

Um som externo compõe com as cenas… o som é um personagem[RD2] .

O Som ao Redor está organizado em 3 partes que apresentam uma certa ascensão social dos Guardas e, ao mesmo tempo, o som da cidade como protagonista.

1a parte

2a parte

3a parte

Cães de Guarda

Guardas noturnos

Guarda costas

som como incômodo

som como proibição 

o silêncio


1a parte: cães de guarda

O drama de Bia, uma moradora mãe de dois pré-adolescentes que não consegue dormir com os latidos do cachorro na casa ao lado. Todas cenas com Bia são atravessadas pelo som desagradável do cachorro. Motores, latidos, ruídos, vendedor de cds, palmas, portas, bolas, riscos na lataria do carro, marteladas e outros sons típicos do aquecimento da economia especificamente na área da construção civil, são sons que apresentam um incômodo para a vida dos moradores e moradoras na cidade. Isso coincide com a chegada de alguns homens oferecendo serviço de proteção aos moradores. As casas e os carros são verdadeiras prisões, as pessoas estão trancadas o tempo todo, a rua é calma, o filme parece apresentar a construção de uma certa neurose em torno da segurança em um bairro calmo e pessoas de classe média neuróticas na defesa de suas propriedades. O filme passa uma sensação de posse e, ao mesmo tempo, segregação sócio espacial. Nessas condições, um serviço de segurança privada é muito bem recebido. O cachorro late.


2a parte: Guardas noturnos

Esta parte está mais focada no trabalho e na ética da equipe de segurança privada nas ruas do bairro. Aqui o som é vítima de censura. Agora já aceitos e instalados nas ruas do bairro, a equipe de segurança é liderada por Clodoaldo (vivido pelo ator Irandhir Santos). Eles servem aos moradores. Seu Francisco se apresenta como proprietário de mais da metade dos imóveis do bairro. Clodoaldo é a voz dos da rua, Francisco é o representante dos de cima. Ele mora na cobertura de uma torre imensa. Clodoaldo reúne as condições para dialogar com Francisco, funciona como uma espécie de representante de classe, um quase branco.

Dinho é um dos netos de seu Francisco que rouba toca cds dos carros na rua. Um interessante contraste vai se revelando nesta parte: o bairro é tranquilo exceto pelos pequenos furtos de Dinho vistos como desgosto ao pai, jovens bêbados e vomitando ou fazendo manobras com seus carros. Um menino negro silencioso, descalço e sem camisa é espancado porque estava trepado numa árvore. Este personagem sem fala representa Saci, uma lenda urbana do Recife. O alarme do carro dispara!


3a parte - Guarda costas

Aqui o som aparece como desejo de silêncio. A última parte do filme começa no casarão antigo de uma fazenda onde descansam seu Francisco, o neto João (que trabalha como corretor dos imóveis do avô) e sua namorada Sofia. O ambiente é tranquilo e rodeado pelo som de pássaros, vento e árvores. Nem os cães da fazenda fazem barulho. Um passeio pelo casarão e pela fazenda em fortes imagens. Os ruídos na fazenda são expressão da história, são os gritos de dor que a casa grande não escuta: os passos dos barões de engenho soando como terror na senzala, crianças numa escola pública, os gritos de dor e desespero na cena das ruínas de um cinema antigo e abandonado. A posição de privilégio da classe média do filme mostra a busca do controle do som ao redor e, quando algum som vaza, desagrada essa classe média raivosa, medrosa e culpada. E a cena chocante do banho de cachoeira quando a água gelada aparece como o sangue derramado pelas gerações de escravos e vítimas da opressão e dos crimes que a família de João cometeu naquelas terras de engenho para que ele pudesse estar na posição de privilégio urbano que ocupa hoje.

Os guardas constituem uma classe intermediária que tem o papel simbólico de manter os de baixo em silêncio pois seu ruído pode incomodar os de cima. O apartamento do Francisco aparece sempre em muito silêncio, os ruídos da cidade e do passado não chegam até o alto de sua cobertura. Essa gente que aparece nos andares superiores escuta apenas os seus próprios ruídos, está fechada para o mundo ao redor. Bia compra bombas de São João para calar o cachorro que late. Um segurança dá um soco na boca do menino negro, o Saci que estava na árvore, num gesto cruel de silenciamento, cala sua boca de quem não tem voz e com violência.

O filme termina com a revelação de uma trama subliminar: Clodoaldo deseja vingar a morte do pai e do tio. Ambos foram assassinados pelo capataz de Francisco em razão de conflitos fundiários.

Para Kléber, o filme começa com uma história real apresentada nas fotos da nossa história. Isso impacta os espectadores, são fotos lindas e fortes em retratar uma determinada situação histórica que faz parte da vida no Brasil. Entre tantas leituras possíveis deste filme, uma particularmente nos interessa: João um abolicionista; Bia a escrava alforriada; Francisco o senhor de engenho; Clodoaldo o jagunço, o senhor do mato. E a ideia do filme é transpor um engenho para uma rua moderna da zona sul do Recife. O filme não diz isso diretamente mas apresenta gente de todo tipo, gente do Brasil de hoje. Sofia que é uma brasileira afilada, o cara que cuida do carro que é índio e branco. Francisco, um branco com barba e cabelos brancos. O menino da árvore que é um Saci Pererê. É muito parecido com o que se vê nas ruas das grandes cidades[RD3] .



[1] Trata-se da marca de um conjunto de ferramentas. A ferramenta que aparece no filme é uma serra circular utilizada para cortar barras de ferro popularmente conhecida como Makita.


contribuições da andarilha: 

[RD1]Entre si e o mundo, prefira sempre o mundo! Quando você posiciona a cidade como protagonista de sua tese, penso que esteja desubjetivando pelos caminhos andarilhados entre as cidades e as artes... com os sons e marcas que fazem surgir esta sua cartografia.... pensa nisto!

 [RD2]Talvez aqui pudesse entrar com um corte e inserir uma música....um pitaco.. mas você deve ter um repertório intensivo para conectar estas marcas.... Construção do Chico

 [RD3]Penso que seja interessante fazer ligas entre os filmes... ou criar uma estratégia de texto que expresse as marcas entre sujeito e cidade e sua dimensão empírica com o pp jogo estético do capítulo

Aurora


clique aqui para ouvir a canção:



Chegamos ao fim de 2021, mais um ano marcado pelo aprofundamento da miséria, da fome e da violência no Brasil, marcado pelo sucateamento do Estado e entrega do patrimônio público, desmonte de políticas públicas. Surpresa? acho que não: desde 1991, Jair foi um deputado insignificante e, em 2018, uma campanha eleitoral recheada de mentiras e fatos duvidosos, incluindo uma facada, levou Jair à presidência da república. Um deputado fake, uma campanha fake, não deu outra: um presidente fake que defende apenas interesses corporativos. Chega ao fim o terceiro ano desse governo desastroso e entreguista cujas consequências pesam nas costas dos brasileiros e brasileiras. Mas vamos falar de música!

Paulinho Moska é carioca. Multiartista: cantor, compositor, fotógrafo, produtor, apresentador, desde pequeno conviveu com grandes nomes da música popular brasileira. Iniciou sua carreira como ator, se formou em teatro e cinema na Casa de Artes e Cinema das Laranjeiras, Rio de Janeiro. São muitas as canções dele que convocam minha atenção. A canção Seu Olhar diz assim:

Gosto quando olho pra você / Gosto mais quando seu olho vem / Na direção do meu / Na direção do meu / Gosto ainda mais quando esquecemos / Onde estamos e olhando em volta escolhemos / A mesma coisa pra olhar / A mesma coisa pra olhar

Olhar, mudar o olhar, mudar o ponto de vista. Apontar o olhar e colocar a atenção na mesma direção, num mesmo objeto, numa mesma paisagem, num movimento, num processo, no horizonte. A canção continua:

Gosto quando olho com você o mundo / E gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele com você / Gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele com você

A canção sugere que duas pessoas façam isso juntas. E se considerarmos que o ‘mundo’ citado na canção pode ser tudo? São mundos em objetos, em tecnologias, paisagens. A cidade, por exemplo, compreendida como um mundo em movimento, a vida em seu fluxo. Mas também uma gota d'água observada na lente de um microscópio, o fundo do mar através das lentes da mergulhadora, um crustáceo recolhido pela pesquisadora nas rochas da praia. O céu, as estrelas, uma nuvem, as asas do beija flor. A fermentação da cerveja, a transformação dos alimentos nas mãos mágicas da bruxa de Tucuruí… tudo isso são mundos. E duas pessoas movidas por um sentido comum, escolhendo um mundo para olhar, acrescentam algo novo, uma novidade nesse mundo. Numa outra canção, Paulinho Moska fala disso com uma palavra: Aurora.

A canção Seu Olhar termina reforçando a frase:

Gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele com você / Gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele... com você

Na aurora de 2022, meus sentidos captam as boas novas: ar para respirar, esperança, amores. Inclusive no território árido da política visto as pesquisas eleitorais apontando a superação dessa treva que o Brasil atravessa desde 2018. Estamos em contagem regressiva, a esperança vencerá o medo, a verdade vencerá a mentira. Bom olhar para 2021 como princípio do fim do PIOR governo da história democrática do Brasil.

Ivan Rubens Dario Jr



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 28 de dezembro de 2021


PEDAGOGIAS DA CIDADE - corpos e movimento


sobre a experiência do Orçamento Participativo em Suzano/SP
no período de 2005-2008

Disponível no site da editora, clique: COMPRAR



Depois de ter você, o que querer?

 disponível também no spotify: podiquesti Andarilhagens

Leitura de Catiê Machado


No vídeo, Adriana Calcanhoto fala da canção Cantada
(sinônimo de piropo), ou
Depois de ter Você.




O que querer depois de ter você? Pra quê?
Tudo fica menor, exceto a vida.

Depois de ter você, o desejo fica vivo e quer mais você!!!
E quer vc, quer viva porque quer mais vida. Vida com você.

Depois de ter vc o mundo fica mais colorido e a vida quer expandir.
O ar ganha perfume, leveza no pesadume.
Rios e cachoeiras pra banhar.
Há mar. Há casa.
Amar, amor acalma.
Felinas, plantas, horta no quintal, hortelã, coentro
Fã, alegria: eu entro!

Depois de ter você, os objetos viram brinquedos para nosso prazer.
Bicicleta, planta molhada, passarim.
Relva no chão, areia, capim.
Hortênsia, rosa, ora pro nobis, jasmim.
Orquídea pra plantar, amigos pra visitar.
Crianças para criar.
Amores para amar, dormir, acordar.

Mochila nas costas, escola, café.
Fruta do conde, amora.
Chupar a manga do pé.

Depois de ter vc vem o desejo, cada vez maior de estar com vc. Pra viver, pra conhecer mundos, inventar mundos e desvendar mistérios.
Livros para ler, filmes para ver. Estudar!
Uma suavidade que acalenta as dores, o vírus e o verme.
Políticas em disputa, luta para lutar. As vitórias pequenas, as salas de aula e gente simples para encontrar. Crianças, criaturas e criadoras, crias. Creio

Depois de ter você?
Apenas um intervalo pra ficar e ficar.

dez_Envolvimento


Amazonas é o maior estado brasileiro em extensão territorial. Sua capital é Manaus. Parintins é a segunda cidade mais populosa do estado. É mundialmente conhecida pelo Festival de Parintins.


Bate forte o tambor / Que eu quero é tic tic tic tic tac / É nesta dança que meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar / É nesta dança que meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar...


Toada de Boi é tradição que traz muita gente para a festa de Parintins. Não foi o caso de Paulo. Paulo é professor, mas um professor andarilho. Ele não foi ao Amazonas para a festa de Parintins. Ele carregava a festa dentro de si. Por muito tempo guardou no peito um desejo muito grande, uma curiosidade imensa de conhecer a região Norte do Brasil. Esse desejo foi, durante os anos de espera, se materializando em leituras, estudos, conversas com toda a gente que trouxesse elementos, histórias, experiências amazônicas. Tinha especial interesse pela floresta e seus mistérios, pelos rios em sua imensidão de água, pela gente da floresta e pelos povos indígenas. Pela geografia enfim. Sim, Paulo é geógrafo que desconfiava do suposto des-envolvimento do Brasil, marcadamente econômico e supostamente social, talvez um equívoco em certo aspecto. Porque a exploração desenfreada e gananciosa dos recursos naturais produzem um modo de viver “sem vida”, desvitalizam, agridem a Mãe Terra, esse frágil planeta azul. Geram destruição: poluem as águas e o ar, envenenam o solo. Ele queria mesmo é comer peixe de rio, fresco, que nada rio abaixo procurando comida e rio acima procurando águas camas para desovar na piracema. Ele queria comer açaí do pé, tomar suco da fruta. Estava cansado da gastronomia dos congelados, da proteína criada em confinamento e à base de ração de soja, dos sucos de caixinha.

As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar / As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar

De Manaus partiu para o interior. Pegou a primeira “estrada”, no caso o Rio Negro já no contato com o Solimões. Primeira grande descoberta: a diferença gritante de coloração. Não se conteve, mergulhou. Precisava sentir com o corpo inteiro aquilo que conhecia pelos livros. Percebeu a diferença de temperatura, de densidade e se certificou que ambos não se misturam. As águas do Negro e do Solimões fluem lado a lado por quilômetros. Na “esquina” do Rio Amazonas com o Madeira, virou à direita e durante horas olhou, do barco, as barrancas de terra caída, a floresta, as casas em palafitas e canoas atracadas, gente roçando mandioca.

Amazonas rio da minha vida / Imagem tão linda / Que meu Deus criou / Fez o céu a mata e a terra / Uniu os caboclos / Construiu o amor

É como se devorasse tudo com a boca, os olhos, os sentidos, o corpo enfim. Sentia a exuberância de vida que pulsava nas águas e na floresta. Sobretudo a gente do interior do estado. Gente simples, gente humilde, gente boa. Que sabe esperar, sabe receber. E que ensina o professor que o ENVOLVIMENTO é o caminho para que a vida seja mais viva. Porque, no limite, o que temos de verdade é uns/umas aos outrs.

E o professor andarilha se perguntando: de que des_envolvimento fala o cara pálida? Os povos ribeirinhos do Brasil das Águas mostram para o professor andarilho que envolver é bom, envolver é 10: dez_Envolvimentos!!!

Tic tic tac é uma toada de boi composta pelo pescador Braulino Lima.

 

Ivan Rubens

Educador popular


publicado no jornal Cidade de Rio Claro em 30 de novembro de 2021

Toda Menina Baiana

Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link: 



“Toda Menina Baiana” é uma canção de Gilberto Gil. Uma canção é uma obra que nasce dentro de um corpo e vai para o mundo. Neste caso, o corpo do Gil. Claro, uma criação nasce dentro de um corpo que está no mundo e é, portanto, atravessado pelas forças vivas do mundo. Confuso? Então vamos para a obra, vamos para a canção:

Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá / Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá / Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá / Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá / Que Deus deu / Que Deus dá...

Segundo o compositor, essa canção nasceu em Salvador para a sua filha mais velha, Nara Gil. Nara estava entrando na adolescência, a primeira filha adolescente na vida do então casal Gilberto Gil e Belina de Aguiar. Na canção, Gil faz uns alertas para a primeira filha: fala do caráter fundador da Bahia, fala também das virtudes e defeitos do homem. Localizei a primeira gravação desta canção no álbum Realce de 1979 e, acredito que os comentários de Gil acerca da canção pertençam também a essa época.

Que Deus entendeu de dar a primazia / Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia / Primeira missa, primeiro índio abatido também / Que Deus deu

Nesta perspectiva, compreendemos que ele esteja se referindo à dimensão da humanidade de mulheres e homens: “Por força da busca de compreensão do divino no humano, eu me empenhava em me desvencilhar do maniqueísmo, abarcando as idéias ligadas tanto ao bem quanto ao mal, um tema básico de minhas canções: reiterar o sentido da tolerância, do perdão, da compreensão de que o homem é permeado pelo bem e pelo mal e de que a superação de um implica a superação do outro; você não se livra do mal sem se livrar do bem. A promessa das religiões reside nisso: na superação transcendental de ambos", disse Gilberto Gil a propósito dessa canção.

Que Deus entendeu de dar toda magia / Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia / Primeiro carnaval, primeiro pelourinho também / Que Deus deu

Podemos pensar o maniqueísmo como um conflito entre o bem e o mal. Para livrar-se do mal é necessário livrar-se do bem, e vice-versa. Bem e mal são as duas faces de uma mesma moeda. Bem e mal são as duas cabeças de um mesmo dragão, duas cabeças cujo olhar está carregado de magia, uma certa magia com ares de sedução.

Que Deus deu / Que Deus dá

Salvador, capital da Bahia, é considerada a cidade mais negra fora do continente africano. Na canção, toda magia, o bem e o mal aparecem como primeiro chão, como a base, uma espécie de território de dor mas também de festa porque a vida também é feita dessas antíteses, dessas contradições. Talvez seja essa a obra que nasce dentro do corpo do artista que, atravessado pelas forças vivas do mundo, sai do corpo e rebenta. E nos coloca nesse lugar e neste tempo, novembro de 2021, celebrando uma África que se faz em nós.

Viva Zumbi, viva Antônio Conselheiro, viva Corisco, Lampião e Maria Bonita. Viva Gilberto Gil cujo corpo negro vestido de Ministro da Cultura levou a menina baiana (e a Bahia menina) e fez a festa no plenário das Nações Unidas.

Ivan Rubens
Estudante




o show completo da Bahia menina no plenário da ONU pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=l7PjqJLGq7w


https://www.youtube.com/watch?v=l7PjqJLGq7w


texto publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 02 de novembro de 2021.

Partiu na chalana florida



            Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:      

Foi uma espécie de agonia. Agonia é uma palavra polissêmica. Agonia pode ser compreendida como aflição, sofrimento intenso, forte, profundo. Agonia pode ser compreendida como o instante da vida que precede imediatamente o momento da morte. Na medicina, agonia pode ser respiração cheia de ruídos feita por quem está prestes a morrer. Na música, melodia do sino que anuncia a morte de alguém. Agonia ainda pode ser compreendida como uma dificuldade para decidir, como dúvida. Mas quero trazer para esse breve texto os significados de encerramento, de conclusão, término. Final de um ciclo, fechamento, partida. Maria Witzel Jordão partiu na manhã de 12 de setembro de 2021. Ela partiu numa chalana florida antecipando a primavera. 

Lá vai uma chalana, bem longe se vai / Navegando no remanso do Rio Paraguai / Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor

Mariquinha cantava para nós. Ela nos apresentou seu repertório de Vicente Celestino, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Orlando Silva e outros. Dentre as canções mais recentes, a trilha sonora da novela Pantanal na antiga TV Manchete que nos encantava com belíssimas paisagens. Mariquinha nunca esteve no Pantanal, não colocou os pés no rio Paraguai e seus afluentes exceto nas viagens fabuladas a partir das imagens e a poética da trama.

Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando o meu amor

Naquela manhã de domingo a respiração estava ofegante, acelerada. Mariquinha já se despedia desde os últimos dias. Foi quando a neta mais velha segurou na mão dela e foi, devagar e delicadamente, falando algumas palavras que acalmaram o coração cansado. A respiração foi diminuindo, mais e mais, enfraqueceu, o coração entrou num ritmo mais lento, o semblante foi aliviando. A neta cantou para embalar a partida, vibrando nela uma melodia que, aos poucos, transformou a voz afinada e carinhosa da neta num coro de anjos e santos que a receberam no céu. Fim da agonia: a_Deus.

E assim ela se foi, nem de mim se despediu / A Chalana vai sumir na curva lá do rio...

Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas

Atenta à beleza do colorido na paisagem da cidade, Mariquinha nos ensinou um olhar contemplativo especialmente aos ‘ipês’. Imagino o caminho percorrido por ela nesta manhã de setembro: numa chalana navegando águas calmas de um rio estreito cujas margens emolduradas por imensos ipês que soltaram suas flores amarelas, brancas, roxas e rosas numa espécie de tapete florido, flores coloridas sobre as águas para passagem de nossa mãe Maria em sua viagem derradeira.

Ah, Chalana sem querer tu aumentas minha dor / Nessas águas tão serenas vai levando meu amor

Mariquinha está no céu. Foi recebida por São João Batista e talvez esteja visitando parentes, as amigas do Círculo Bíblico e as baronesas, amigas da Escola Barão de Piracicaba. Feliz por reencontrar o Juca Jordão, seu Anastácio e a mãe Maria.

Chalana é uma canção de Mário Zan e Arlindo Pinto.

Ivan Rubens

Neto encantado.



para saber das origens da Chalana de Mario Zan, veja a reportagem.



publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 5 de outubro 2021

NÃO ao Marco Temporal

Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:



Quando os colonizadores chegaram, milhões de indígenas habitavam essas terras cobertas por florestas, rios, árvores, frutas, plantas, bichos, peixes e aves de todas as cores. E gente, gente diversa, distinta entre si e falando diferentes línguas, produzindo e reproduzindo suas culturas. Gente, muita gente. Segundo a FUNAI, mil povos indígenas diferentes, nações indígenas, milhões de pessoas. Exuberância de vida e beleza.

Jês, Kariris, Karajás, Tukanos, Caraíbas, Makus, Nambikwaras, Tupis, Bororós, Guaranis, Kaiowa, Ñandeva, YemiKruia, Yanomá, Waurá, Kamayurá, Iawalapiti, Suyá, Txikão, Txu-Karramãe, Xokren, Xikrin, Krahô, Ramkokamenkrá, Suyá / Curumim chama cunhatã que eu vou contar / Curumim, cunhatã / Cunhatã, curumim

Na canção Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar, um samba de 1981, Jorge Ben Jor nos provoca a pensar sobre o modo como os povos indígenas foram colocados em um único espaço, sem distinção, reduzidos a uma figura meio caricata. E a construção da unidade nacional: um país, um povo, um idioma. A passagem do diverso, do multi, do pluri para o único, o uno. Um ser humano universal para um Estado nação.

Antes que os homens aqui pisassem / Nas ricas e férteis terraes brazilis / Que eram povoadas e amadas por milhões de índios / Reais donos felizes / Da terra do pau-brasil / Pois todo dia, toda hora, era dia de índio / Mas agora eles só têm um dia / O dia 19 de abril

Pouco sabemos de nossas origens, de nossa ancestralidade, da potência desse encontro de raças que aconteceu aqui nestas terras, indígenas e negritudes, do Brasil original e do continente africano ancestral. Somos indígenas, até mesmo quem diz não ser. Nosso passado é indígena e, penso, indígenas são as possibilidades de futuro para a espécie humana neste planeta. Caso contrário, o fracasso ambiental se anuncia.

Amantes da pureza e da natureza / Eles são de verdade incapazes / De maltratarem as fêmeas / Ou de poluir o rio, o céu e o mar / Protegendo o equilíbrio ecológico / Da terra, fauna e flora / Pois na sua história, o índio / É o exemplo mais puro / Mais perfeito, mais belo / Junto da harmonia da fraternidade / E da alegria / Da alegria de viver / Da alegria de amar

Se ainda resta floresta na Amazônia, devemos AGRADECER aos povos indígenas que, em seu modo de vida, resistem ao modelo de desenvolvimento que destrói a natureza e devasta as formas de vida. Mais terras aos indígenas, esse é o caminho para a vida ser mais bela. Demarcação das Terras Indígenas já!

Mas no entanto agora / O seu canto de guerra / É um choro de uma raça inocente / Que já foi muito contente / Pois antigamente / Todo dia, toda hora, era dia de índio / Todo dia, toda hora, era dia de índio

Curumim é uma palavra de origem tupi: criança pequena; Cunhatã também do tupi: menina moça. Nascimento desse mundo novo: câmara e senado indígenas, supremo indígena, presidência indígena, ministério xamânico. Sonho com um Brasil mais indígena, aldeado e aquilombado, que canta, dança e batuca, mais colorido, mais bonito, alegre e mais vivo.

Indígenas são a terra.

Não ao marco temporal !!!

Ivan Rubens

Publicado no Jornal Cidade de 7 de setembro de 2021




Clique aqui para assistir uma versão com a Baby do Brasil cantando, com o filho Pedro Baby. Aqui a canção está como Dia de Índio.

Regressar é reunir dois lados

disponivel em áudio na bela narração de Greice Moraes


Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:




Essa frase parece esconder mas, na verdade, revela. As canções escritas por Aldir Blanc nos levam aos bairros e ruas do Rio de Janeiro, seus personagens em suas carioquices. Estou te convidando a pensar numa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem da paisagem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. Tem uma beleza singular, uma alegria que se revela num cem número de blocos de carnaval, na praia, na Lapa, na favela, no Aterro, na Bossa, no Samba, no Choro, no Rap, no Charme, no Funk...


Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã


Coração do Agreste, canção de Moacyr Luz e Aldir Blanc, conhecida na voz de Fafá de Belém para protagonista da novela Tieta do Agreste (1989-1990), não fala exatamente disso. Mas fala. Fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de ligação (a)temporal. Fala de sentimentos adormecidos e que retornam, que emergem inesperadamente. A psicanalista Suely Rolnik diria das marcas subjetivas que vibram. Aldir talvez esteja falando de um tempo aión, compreendido como experiência, um tempo fora do tempo, alforriado da tirania de Chronos


Eu voltei pra juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador


Sinto que a força da escrita de Aldir Blanc vem da sua infância em Vila Isabel. Uma infância não como a parte inicial da sua vida mas compreendida como experiência. Uma infância viva nele independentemente da idade. 


Uma canção que se escuta muitas vezes produz efeitos no ouvinte. Ouvir Coração do Agreste é procurar por si mesmo, se encontrar num trecho e se perder noutro. Essa deriva dispara sentidos, sentidos outros, novos ou repetidos, retornando à canção vez por outra. E seguir compondo.


Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir


Rio pode ser a cidade do Rio de Janeiro, terra de Blanc e de Luz. Mas pode também ser um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma vida em fluxo, uma deriva, movimento de germinar, brotar, desabrochar. Uma espécie de nascimento, um certo vir ao mundo como disse a filósofa Hannah Arendt. Tornar-se presença na emergência de uma obra. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. A obra imortaliza seu criador.


Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui


Ivan Rubens Dário Jr


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 9 de agosto de 2021







eu e ela: viela

eu visitei um bairro residencial
ao lado de uma área industrial
que mal há?

lá havia uma vila
uma não, muitas
eu estava com ela

e lá a vi
e lá vinha ela
caminhando na viela

e eu vi
eu a vi
menina linda caminhando na viela

vi paredes sujas
vi gente do povo
imaginei cenas novas
novos cenários

pelas fotografias eu também vi
imagens que congelam cenas reais
de gente real
gente do povo que constrói lugares

maiores
menores
altares

nas imagens congeladas vi temperaturas
comidas quentes
temperos quentes

vi gente de trança
gente que transa
se lança 
entrelaça

e pinta com cores vivas
deixa marcas no muro
aquilo que era monocromático ganha nova cromatologia
gente que cria

vi grafites
grafiteiros
gente por inteiro colorindo a viela

lugares de passagem transformando-se em lugares de paragem
para conversas
para conquistas

meninos eu vi
meninas eu vi
dentre tantas, vi tranças
emoldurando sorrisos
derramando alegria
estimulando poesias

sim, eu vi
viela
com ela
vi ela
a vi
viva

Em mim a embarcação





Em mim a embarcação             (Rabicho Luís e Ivan Rubens)

Deu-me o tempo a paciência
Feita em mim a embarcação
Sobre o mar da existência
Vim remando da ilusão
De um tempo à deriva aprendi
Que o mar arrebenta e passa
E o leme é de quem resistir
Quando a solidão disfarça
Navegante eu sei que sou
E espero amansar a maré
Confiante que o amor
Ancore seguro onde a vida der pé
Quero uma nova emoção
Como se eu fosse um marujo aprendiz
E um novo amor embarcando
No meu coração na rota mais feliz
Com as marés sempre tranquilas
E os bons ventos a favor
Singrando sonhos e aventuras
Velejando sem temor
E o amor comandando a proa
E uma nova tripulação
Sem plano, sem hora
Com outras histórias
Viva em mim a embarcação


Pessoa e pessoas


Disponível no podiquesti Andarilhagens no spotify



O poeta Fernando Pessoa nasceu em Lisboa no ano de 1888. Foi educado numa escola católica irlandesa na África do Sul. Pessoa não era apenas uma pessoa, ele era muitas pessoas. Para escrever seus poemas ele ia além da criação de personagens. Imagine que Fernando Pessoa criava um outro Pessoa, e outro e outros, criava outros poetas. À medida que criava outro poeta, ele fazia-se outra pessoa. Pessoa fazia mais: ele criava heterônimos, ou seja, outro nome, outros autores, gente com nascimento, cultura, personalidade, singularidades, ele criava toda uma biografia e isso sustentava cada heterônimo. Assim, Fernando Pessoa diluiu a fronteira entre real e imaginário. Vejamos três heterônimos de Fernando Pessoa:

Ricardo Reis nasceu na cidade do Porto em 1887. Pessoa imaginou o poeta em 1913 quando sentia vontade de escrever poemas pagãos (Reis até falava palavrões). Estudou num colégio de jesuítas, formou-se em medicina e, por ser monárquico, expatriou-se espontaneamente em 1919 e viveu no Brasil.

Álvaro de Campos nasceu na cidade de Tavira ou Lisboa em 13 ou 15 de outubro de 1890. É considerado o alter ego do criador Fernando Pessoa. Morreu no ano de 1935.

Alberto Caeiro é uma espécie de mestre ingênuo de Álvaro de Campos e de Ricardo Reis e também de Fernando Pessoa. Detalhe: Caeiro teve apenas instrução primária. Caeiro escreveu o poema Guardador de Rebanhos. Veja um trecho:

Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações. / Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca. / Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Fernando Pessoa, ops… Alberto Caeiro define pensamento: pensamentos são sensações. E ele nos dá uma imagem: “pensar uma flor é vê-la e cheirá-la e comer um fruto é saber-lhe o sentido”. Ele sugere que pensar não é um ato apenas da cabeça, não é mecânico. Pensar é uma experiência de corpo inteiro. Caeiro pensa com os olhos, ouvidos, mãos e pés, nariz e boca. Pensar é, assim, movimentar todos os sentidos: visão e audição, tato, olfato e paladar. É saber-lhe o sentido, palavra que pode ser compreendida como direção ou como o passado do verbo sentir, o já sentido. Pensar é, disse minha mãe, puro movimento: “é feito uma dança”. Olha que imagem bonita ela nos deu: pensamento movimento. O poema continua:

Por isso quando num dia de calor / Me sinto triste de gozá-lo tanto, / E me deito ao comprido na erva, / E fecho os olhos quentes, / Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz.

Saber a verdade é estar ao sol, em contato com a terra. E tem um detalhe no mínimo curioso: ele fecha os olhos. E fechando os olhos o poeta nos convida a olhar para dentro. Mas olhar para dentro à procura da verdade? Sim, porque a verdade está fora, a verdade está no mundo real, mas a verdade também está dentro de cada um(a) de nós. Olhar atentamente para a realidade do mundo e para dentro do ser é buscar a verdade e ser felicidade.

Ivan Rubens Dário Jr

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 12 de julho de 2021





EU MANGUE

EUGMAN, que prefiro chamar de EU MANGUE, é um estudo sobre o Mangue em Trancoso.

Depois de várias idas ao mangue em Trancoso/BA, vários estudos, músicas e conversas... experimentamos o mangue como gente, como peixes e como caranguejos. Preocupados com a tensão turismo x preservação, estudantes decidiram dizer alguma coisa para a cidade. E disseram... veja que belezura. Veja também o manifesto Caranguejos com cérebro, do movimento Mangue Beat.




disponível no canal da Associação Despertar Trancoso. https://www.youtube.com/channel/UC5CztHvUlJtmn4TEmKmihzw




Leia a seguir o manifesto "Caranguejos com cérebro", escrito em julho de 1992 pelo jornalista e músico pernambucano Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S/A.

 

Mangue, o conceito.

Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. 

 

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.

Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.

Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.

Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown. 



Movimento breve

Movimento Breve (voz e violão Nuno Moraes)

ouça o texto na voz de Nuno Moraes

Dois amigos trocando ideias: “estou aqui com uma melodia na cabeça mas não tem palavra”, e envia um arquivo de áudio com solfejo e um cuidadoso dedilhado. São breves movimentos da mão direita acariciando cordas, e um bailado suave da mão esquerda no braço do violão. “O que você está pensando?”, pergunta o ouvinte, dedicado ouvinte. A resposta é direta: “se deixe levar pela música”.

O aprendiz de letrista passa a ouvir atentamente a melodia. Ela é delicada, doce e singela. Coloca a atenção no solfejo do amigo, esse sim, artista das melodias, dos graves e agudos, da arte de criar, dar ao mundo algo novo, de fazer cantar uma alegria imensa cujas raízes estão fincadas na terra da beleza. Não de qualquer beleza mas da estética das ruas, da estética mesma da vida comum. Essa beleza da casa, do dia a dia, da criança esperada, das relações comezinhas, da mesa de bar, das esquinas e encruzilhadas. E o aprendiz, aceitando o movimento breve da melodia, continua ouvindo. Ele sabe que não sabe fazer então, só há uma saída: inventar. Sim, inventar um jeito, nem melhor e nem pior, mas um jeito possível. Então, surgiram os primeiros versos:


QUANDO FOR PARTIR / LEVE NO OLHAR / LIVROS / DISCOS / UM QUADRO PRA LEMBRAR / DE ONDE VOCÊ VEM / FLOR ALFAZEMA. / PRA VOCÊ SORRIR / AO TE VER CHEGAR / FAÇO / CAFÉ. / VOU TE PERFUMAR / VASO DE ALECRIM / VIM PRO TEU POMAR.


Diante das sutilezas da melodia, o já feito precisa ser esquecido abrindo espaço para uma nova tentativa. Pode parecer estranho e é: esquecer o já feito para dar espaço ao ser feito. E tudo começa novamente: escuta, escuta, escuta...

A temperatura começa a subir, a tensão aumenta e a dúvida aparece. Seria capaz de fazer? Olha para a palavra ‘composição’ e pensa: tem ‘posição’, tem ‘si’ e tem ‘com’. Tem ‘posição’ ‘com’. A palavra composição sugere uma espécie de posição que se assume não por um mero desejo individual mas que se assume na tensão do encontro com a diferença. Composição deriva do verbo compor. Escrever é verbo, escrever é uma ação. É o ato de pôr palavra com palavra, palavras na melodia. A deriva meio tresloucada reforça a presença de uma pessoa que sempre esteve ali na imaginação, uma pessoa querida que aparece em cenários. São paisagens que aparecem e desaparecem. São paisagens que aparecem apenas para quem está criando e, escrevendo, elas podem ser reais também na imaginação que for tocada pela canção. 


NO TEU MOVIMENTO BREVE / SOPRA UM VENTO / LEVE NAS PEGADAS / QUE A ONDA APAGA / CRIANÇA NA AREIA / VIRANDO SEREIA / VIDA NA BEIRA DO MAR


Neste caso, é escrever aquilo que não se sabe. É uma espécie de vida que, rompendo a casca do ovo, nasce e vai para o mundo.


QUANDO ENTARDECER / HORA DE VOLTAR / O HOMEM QUE TE AMA / ESTARÁ / ESPERANDO POR VOCÊ LÁ / SORRINDO POR TE VER / NO AVARANDAR. / CHORO DE CRIANÇA / UM RAIO DE IANSÃ / LIVROS NA CADEIRA / CHUVA NA ROSEIRA / FRESTA DA JANELA / LUNA CASA DELA / VIDA QUER ME NAMORAR.


Movimento breve é uma canção de Nuno Moraes e Ivan Rubens.


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro dia 15 junho 2021

Movimento breve





MOVIMENTO BREVE
(Nuno Moraes e Ivan Rubens)

QUANDO FOR PARTIR
LEVE NO OLHAR
LIVROS
DISCOS
QUADRO PRA LEMBRAR
DE ONDE VOCÊ VEM
FLOR AL_FA_ZE_MA

PRA VOCÊ SORRIR
AO TE VER CHEGAR
FAÇO
CAFÉ.
VOU TE PERFUMAR
VASO DE ALECRIM
VIM PRO TEU POMAR

NO TEU MOVIMENTO BREVE
SOPRA UM VENTO
LEVE NAS PEGADAS
QUE A ONDA APAGA
CRIANÇA NA AREIA
VIRANDO SEREIA
VIDA NA BEIRA DO MAR

QUANDO ENTARDECER
HORA DE VOLTAR
O HOMEM QUE TE AMA
ESTARÁ
ESPERANDO POR VOCÊ
SORRINDO POR TE VER LÁ
NO AVA_RAN_DAR

CHORO DE CRIANÇA
UM RAIO DE IANSÃ
LIVROS NA CADEIRA
CHUVA NA ROSEIRA
FRESTA DA JANELA
LUNA CASA DELA
VIDA QUER ME NAMORAR