Escolarizando o mundo - (transcrição)


Documentário:       Escolarizando o Mundo
EUA, Índia, 2010, 65 min. - Direção: Carol Black
Ladakh índia
Texto das legendas, tradução dos diálogos no documentário.



“A minha filha mais nova se mudou para cidade para frequentar a escola. A mais velha também se foi com o seu marido para mandar seus filhos para a escola em Leh. Eu fico aqui sozinha para cuidar da casa... Regar as plantações, cuidar das vacas... Não é como era antes. Estão todos ‘educados’ agora. Então eles não ficam aqui. Era mais feliz quando estávamos todos aqui juntos... Mas eles dizem que temos que mandá-los para a escola”.

Uma pintura de 1872, chamada “Progresso Americano” mostra uma mulher branca flutuando sobre as planícies do oeste norte-americano. Colonos brancos a seguem... Enquanto índios animais selvagens fogem. Em sua testa ela veste a estrela do império. Em sua mão direita ela traz um livro escolar. Conforme os Estados Unidos toma o oeste, milhares de crianças nativas são retiradas à força de suas famílias e enviadas para internatos administrados pelo governo. O objetivo é evidente: é destruir o seu modo de vida.

“Para civilizar os índios... Insira-os em nossa civilização e quando nós os tivermos nela... Segure-os lá até que estejam completamente imersos.”
– General Richard Pratt, fundador da Escola Indígena da Carlisle.

“Deixe tudo que for indígena dentro de você morrer.”
- Discurso de inauguração da Escola Indígena de Carlisle.

Na Índia, os ingleses também estão escolarizando uma nação.
“Nós devemos no momento fazer o nosso melhor para formar... Uma classe de pessoas indianas de sangue e cor... mas inglesas em gosto, em opiniões, em moral, em intelecto.”
- Lorde Macaulay em “Minuta sobre Educação Indiana.”

Os próximos a serem educados são os cubanos e os filipinos. O exército americano invade as Filipinas; Mais de 500.000 civis são mortos. Um exército de professores é enviado para educar os sobreviventes. Um desenho do período mostra um homem branco carregando uma figura de pele escura para uma escola. Com o titulo: “O fardo do Homem Branco”. “A bandeira americana não foi fincada em solo estrangeiro para adquirir mais território... mas sim para o bem da humanidade.”

ESCOLARIZANDO O MUNDO O ÚLTIMO FARDO DO HOMEM BRANCO

Tradicionalmente nós criamos nossas crianças de acordo com os ensinamentos de Buda. Mas agora, com o desenvolvimento, todos mandam suas crianças para a escola... E os antigos valores de bondade e compaixão estão começando a declinar. Agora as pessoas estão pensando: “eu tenho que ser um médico ou um engenheiro.” E as formas tradicionais de compaixão, bondade, e ajuda estão lentamente desaparecendo. Através de nossa “miopia cultural” achamos que educamos nossas crianças, enviamos nossas crianças para escola, nós temos uma forma de enculturar crianças em nossa sociedade, que é a educação. E povos que não seguem aqueles mesmo padrões de educação, de alguma forma, não educam seus filhos. E com certeza, isto é um absurdo.
Antes da escolarização moderna, nossa educação focava ensinamentos espirituais... Mas agora a ênfase é no sucesso material. Pessoas vão a escola para que possam ganhar muito dinheiro, ter uma grande casa, dirigir um bom carro... Toda ideia de aprendizagem foi transformada para significar: “Como eu posso ganhar muito dinheiro?”

Hoje, a escolarização ocidental é responsável por introduzir uma monocultura humana ao redor do mundo todo. Praticamente um mesmo currículo está sendo ensinado e está treinando pessoas para empregos muito escassos. Mas para empregos em uma cultura urbana e de consumo. A diversidade de cultura, assim como a diversidade de indivíduos únicos, está sendo destruída dessa forma.

Os antigos missionários

(Escola Missionária Moráviana Leh)
Essa escola que foi estabelecida, chamada Escola Missionária Moráviana era secular no sentido de serem dados alguns ensinamentos cristãos. Como parte da propagação evangélica feita pelos Morávianos. (Reverendo Elijah Gergen, Diretor da Escola Missionária Moráviana).

O diretor: A Escola Missionária Moráviana foi fundada por missionários alemães. É considerada uma das melhores escolas de Ladakh.  Em 1887, quando a escola abriu pela primeira vez, haviam certas percepções que eram erradas, por exemplo... Uma escola iniciada por missionários... Em uma esquina... Deve ter algum interesse por trás. De conversão. De ensinamentos que estão em conflito com os ensinamentos da sociedade tradicional, em conflito com a religião.
As crianças: “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino, Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu...”. 
O diretor: Me disseram que as crianças tinham que vir a força para a escola, e as pessoas simplesmente não mandavam as crianças para escola.
As crianças: “E perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...”
O diretor: Eu acredito firmemente que a existência de um sistema de educação secular e uma sociedade cosmopolita não deveria ser o custo de perder as características culturais de Ladakh.
As crianças: “E não nos deixe cair em tentação, mas livrai-nos do mal, pois Teu é o reino, e o poder, e a glória para sempre. Amém”.
O diretor: Se você perdeu sua história você perdeu tudo.

Uma cultura tradicional
É um ecossistema, uma rede complexa de relações entre humanos e a terra onde eles vivem. Cada elemento está interligada com outros e como qualquer ecossistema mudanças repentinas tem efeitos imprevisíveis.
“Nós somos a juventude da nação”...........

Seis mil vozes
“A grande lição da antropologia é a ideia de que o mundo no qual você nasceu não existe em um senso absoluto. É apenas um modelo de realidade. A consequência de um conjunto particular de escolhas de adaptação que seus antepassados fizeram, de alguma forma com sucesso, há muitas gerações atrás. E as outras pessoas do mundo não são tentativas falhas de ser você. Ou no nosso caso, tentativas falhas de modernidade. Elas são por definição, facetas únicas de imaginação humana. E quando perguntadas sobre o significado de ser-humano, elas respondem com seis mil vozes diferentes. E essas vozes coletivamente tornam-se o repertório humano para lidar com os desafios que irão nos confrontar nos próximos milênios. Nós sempre tivemos essa ideia de que nossa sociedade não é uma cultura, mas sim o mundo real. E essas outras culturas de fora, elas sim são as culturas. Esse tipo de miopia cultural que realmente não podemos mais ter. E nós não somos a real inexorável onda da história. Nós somos apenas outro conjunto de possibilidades. Nós somos apenas outra realidade cultural com escolhas que nós fizemos. E é por isso que todo o aspecto de criar uma criança e educa-la nos responsabiliza em olhar os modelos de enculturação, de iniciação, de trazer as crianças para o universo adulto que outras sociedades celebraram e desenvolveram ao longo de milhares de anos de experiência”.
Wade Davis Etnobotânico, explorador residente National Geographic Society.

“Não há duvidas de que se nós olharmos honestamente as formas tradicionais de educação e compará-las ao sistema de educação atual veremos que as formas tradicionais de conhecimento promoveram sustentabilidade. Todas essas culturas não foram perfeitas. Mas elas conheciam seu próprio e específico clima, solo, água, e elas conseguiram sobreviver independentemente, responsáveis por suas próprias vidas, por geração após geração Na economia moderna e com o sistema educacional moderno, as crianças não aprendem nada daquilo, mas ao invés disso elas aprendem basicamente como usar produtos corporativos em uma cultura urbana de consumo. Então uma vez educadas em escolas modernas, elas literalmente não sambem como sobreviver em seu próprio meio-ambiente.”
Helena Norberge-Hodge - Sociedade Internacional pela Ecologia e pela Cultura

Os que saem para ir para a escola não sabem fazer nada aqui. Eles não sabem como levar os animais para pastar, como cuidar das plantações. Eles não conseguem fazer nada.

“Educação não é simplesmente a transmissão de informação, é por definição a transmissão, e de fato a enculturação, ou poderia ser dito mais duramente, a doutrinação de uma criança para uma certa forma de saber, de aprender, de ser. E novamente, quando nós projetamos nossas noções de que educação é ou o que uma forma de ser é em outros continentes na vida de outras pessoas, nós esquecemos que nós estamos projetando apenas algo que nós mesmos inventamos. E uma das coisas que vejo no meu trabalho é que diferentes formas de saber, diferentes formas de ser e diferentes formas de aprender, realmente criam diferentes seres humanos. Se você foi criado no Colorado para acreditar que uma montanha é uma pilha inerte de pedras esperando para ser minada, você terá uma relação muito diferente com aquela montanha do que uma criança do sul do Peru que acredita piamente que uma montanha é um espírito Apu, uma deidade protetora, que irá direcionar seu destino ao longo da vida. Mas a observação interessante não é nem que a montanha seja de fato um espírito ou apenas uma pilha de terra. A observação interessante é como o sistema de educação que define o que a montanha é, cria um diferente ser humano com uma diferente relação com a terra. Eu fui criado nas florestas da Colúmbia Britânica a acreditar que aquelas florestas existiam para ser cortadas. Aquela foi a base ideológica da ciência florestal que me foi ensinada na escola e que eu pratiquei como madeireiro nas florestas. Foi baseado na ideia que nós tínhamos que eliminar todo o crescimento mais antigo para conseguir o crescimento de plantações saudáveis, porque afinal, o incremento adicional de celulose seria maior em uma planta... Enfim isso foi toda uma construção. Mas de maneira drástica, aquele sistema de crenças me fez um ser humano muito diferente com uma relação muito diferente com a floresta do que meus amigos das comunidades nativas que acreditavam que aquela floresta era a moradia de Hokuk e o beiral do paraíso. E por causa da minha ideologia e da minha educação, aquelas florestas não existem mais.”
Wade Davis Etnobotânico, explorador residente National Geographic Society.


“A escola forçosamente arranca as crianças de um mundo repleto de artesanatos de Deus... é um mero método de disciplina que se recusa a levar em consideração o indivíduo... uma fábrica para gerar resultados uniformes. Eu não fui uma criança da direção escolar: o Ministério da Educação não foi consultado quando eu nasci neste mundo.”
Rabindranath Tagore, Vencedor do Prêmio Nobel da Poesia de 1927.


Filhos de Macaulay
“Uma educação geral pelo Estado é uma mera invenção para modelar as pessoas para serem exatamente umas iguais às outras: e como o molde em que são plasmadas é o que agrada a força dominante no governo.. ele estabelece um despotismo sobre a mente que, por uma tendência natural, conduz a um despotismo sobre o corpo”.
John Stuart Mill, “Sobre a Liberdade”.

“Eu acho que a maneira pela qual a educação ocidental tem crescido ao longo dos últimos séculos, especialmente com o crescimento da industrialização, foi basicamente, não para criar seres humanos totalmente preparados para lidar com a vida e todos os problemas dela, cidadãos independentes capazes de exercitar suas decisões e viver suas responsabilidades em comunidade, mas sim elementos para alimentar um sistema de produção industrial. Eles eram produtos, com conhecimento parcial. Nós migramos da sabedoria para o conhecimento, e agora estamos migrando do conhecimento para a informação; E essa informação é tão parcial, que estamos criando seres humanos incompletos”.

“Se olharmos para trás, para o inicio da chamada ‘educação’, veremos que o plano era muito claro. Havia uma elite que queria treinar pessoas para servir suas necessidades, para essencialmente criar uma economia extrativista que servisse a poucos ao custo de muitos. Há muita literatura explícita sobre isso: era muito claro que a educação estava lá para treinar uma classe de pessoas para servir as necessidades da elite. Quando Macaulay veio para a Índia...
...Não sei quantos de vocês sabem, mas Macaulay criou o que é chamado de ‘crianças de Macaulay’. Ele dizia que as ‘crianças de Macaulay’ seriam marrons por fora mas brancos por dentro. E que eles saberiam basicamente uma coisa só: como comandariam a Índia como se eles mesmos fossem Europeus.
Vandana Shiva Navdanya
- Fundação de Pesquisa pela Ciência, Tecnologia e Ecologia.

Se você voltar aos anos 60 e analisar a literatura sobre a modernização, fica bem claro que o idioma local, a tradição local e os costumes locais são uma barreira para a modernização. E para comunidades progredirem nos tipos de estágios de desenvolvimento,essas coisas precisam ser eliminadas.
Manish Jain Shikshantar
- Instituto dos Povos para Repensar a Educação e o Desenvolvimento

99% de todas as atividades que acontecem sob o rótulo de ‘educação’ vem desse plano bem específico que se estendeu além da expansão colonial europeia ao redor do mundo. E agora, em diferentes países do chamado Terceiro Mundo, o plano fundamental básico é o mesmo: puxar as pessoas para a dependência de uma economia moderna e centralizada. E empurrá-las para fora de suas independências, de suas próprias culturas e auto-respeito.

“A modernização... Segue um ritmo limitado dentro de uma sociedade ainda caracterizada pelos métodos tradicionais de baixa produtividade e pela antiga estrutura social e valores...”
“A maioria da população deve estar preparada para aceitar o treinamento para um sistema econômico... Que cada vez mais confia o indivíduo em grandes disciplinadas organizações que a designa tarefas limitadas e especializadas.”
Walt Rostow.
Os estágios do Crescimento Econômico – 1960

“Nossas escolas são, em certo sentido, fábricas, nas quais as matérias primas – crianças - são moldadas e modeladas em produtos.
“As especificações para a produção vêm das demandas da civilização do século 20, e é o dever da escola construir seus alunos de acordo com as especificações dadas.”
Ellwood P. Cubberly, Dean
Universidade de Educação de Stanford 1898.

“Em nossos sonhos, as pessoas se rendem com perfeita docilidade às nossas mãos modeladoras”.
John D Rockefeller
Bancada de Educação Geral 1906.


Educação para todos
Na verdade, há um grande programa global que está acontecendo neste momento, chamado “Educação para Todos”. E todas as pessoas que eu conheci que estão associadas a isso, basicamente não questionam o plano ou a intenção desse programa, o que é algo bem perturbador. É um programa sancionado por todos os governos do mundo, é um programa que o Banco Mundial e a ONU apoiam, é um programa que grandes corporações, como McDonalds e tantas outras também estão por trás. E o plano do programa é colocar toda criança na escola. A alegação é de que, indo para a escola, comunidades serão capazes de se desenvolver e serão capazes de fazer parte da sociedade de massa. Mas acho que temos que questionar o que significa tornar-se parte da sociedade de massa hoje. E isso para mim está muito mais ligado a um claro plano de tornar-se parte da economia global, e trocar a economia local, a cultura local e os recursos locais, tanto pessoais quanto coletivos, para estar a serviço da economia global.
Então encontrará primeiros ministros e presidentes de países, constantemente dizendo: “Nós temos que mudar nosso sistema de educação para nos tornarmos mais competitivos na economia global”. Isso quer dizer que terão que treinar os seus jovens para que eles satisfaçam as necessidades de corporações gigantes e móveis.

Os novos missionários
“A iniciativa da ‘Educação para Todos’ é uma tentativa de reparar o que foi visto como um sério desequilíbrio no financiamento para educação primária. A intenção é realmente colocar toda criança na escola.
A missão anunciada pelo Banco Mundial é de ‘reduzir a pobreza global’.
Eu acho que vemos a educação como crucial. É uma condição absolutamente necessária para a continuação da redução de pobreza.
Mas muito vieram a questionar aos interesses de quem o Banco realmente serve.
Agora, a demanda por educação não está vindo apenas de pessoas como o Banco Mundial e pessoas de fora, está vindo de homens de negócios, que estão descobrindo que eles não conseguem desenvolver suas fábricas, porque eles não conseguem desenvolver seus negócios, porque há uma escassez de trabalhadores qualificados.
Mas quem realmente se beneficia quando toda criança do planeta é educada da mesma forma?
Temos que ser muito cuidadosos para não sermos paternalistas com as chamadas culturas tradicionais. Nós podemos ajudá-las e certamente não arruinar ou tentar estragar suas próprias culturas. Mas por outro lado, eu acho que nós deveríamos ser cuidadosos ao tentar preservar suas culturas em um tipo de ‘congelamento’. Se eles não querem isso, nós deveríamos estar lá para ajudá-los.
“A bandeira americana não foi fincada em solo estrangeiro para adquirir mais território... Mas sim para o bem da humanidade”.
Se visitar uma área tribal na Índia e fizer perguntas... Você senta com um grupo de mulheres, e diz a elas:
- Por que a educação é importante para suas crianças?
Elas olham para você como se você fosse completamente estúpido: “é claro que é importante para nossas crianças.”
Então você diz: Por quê? Me diz o porquê ?
- “Porque nós não queremos que elas vivam como nós vivemos.”
Julian Schweitzer
- Banco mundial, Diretor de desenvolvimento humano para região Sul da Ásia.

Então viva como nós vivemos.

Distúrbio de déficit de atenção.
16 milhões de crianças nos EUA sofrem de depressão e outros problemas emocionais;
1,6 milhões estão atualmente sob duas ou mais drogas psiquiátricas;
69 mil garotas entre 13 e 19 anos se autoflagelam regularmente;
78 crianças no EUA foram mortas ou machucadas em tiroteios em escola nos últimos oito anos;
120 mil tentaram cometer suicídio nos últimos 12 meses;
55,5% dos alunos de ensino médio dos EUA acreditam que o governo não deveria ser capaz de censurar jornais; 32,5% acreditam que o governo deveria censurar jornais; 12 % não sabem.
Alunos de escolas públicas americanas que NÃO CONSEGUIRAM FINALIZAR O ENSINO MÉDIO: Nova Orleans 46,6%; Detroit 78,3%; Dallas 53,7%; Pittsburgh 35,9%; Cidade de Nova Iorque 61,1%; Cidade de Kansas 54,3%; Atlanta 54%; Chicago 47,8%; Los Angeles 55,8%;
13.247.845 crianças nos EUA vivem na pobreza.
“Enquanto a massa da população não é educada, é iletrada, eles... se manterão atrasados, e seguirão superstições velhas e religiosas”.
- Livro de economia de Ladakhi

Atrasados e primitivos
“Enquanto a maioria das pessoas é iletrada e atrasada, seus padrões de vida são baixos quando comparados com seus semelhantes que estão bem educados e avançados”.
– Livro de economia de Ladakhi.

Quando a educação ocidental moderna é introduzida nas culturas tradicionais ao redor do mundo, ela cria um imenso sentimento de inferioridade. Os livros escolares falam sobre uma cultura ocidental urbana como sendo o progresso, como se fosse a única forma de existência. E o resultado final é que as crianças acabam sentindo que sua própria cultura, seu idioma e sua maneira de fazer as coisas são atrasados, primitivos e vergonhosos.
Eu ouvi da minha avó que antes do desenvolvimento, as mulheres não costumavam ir à escola, elas apenas ficavam em casa... Iam com as vacas para as montanhas. Elas voltavam à noite e faziam comidas e outras coisas. Uma das coisas que eu vi que a educação realmente criou foi o senso de inferioridade em muitos níveis. Um em nível dos idosos. Eu visitei muitas vilas querendo aprender com os idosos todos os tipos de práticas tradicionais e a primeira resposta é sempre: ‘Eu não sei nada, vá fale com meu filho. Ele esta na décima série. Eu não sei nada, eu não entendo nada’. Na minha vida, isso foi provavelmente uma das coisas mais dolorosas que eu ouvi repetidamente nas vilas.
No passado, as mulheres costumavam gostar e respeitar o trabalho na terra. Agora como o desenvolvimento, elas pensam que educação é apenas ler e escrever. Elas dizem ‘Eu não sou educada, eu não sei nada’.
Um filho se mudou com suas crianças para Leh, o mais novo está em Jammu, outro está em Délhi. Agora na minha casa é só meu marido e eu. Uma vez que os filhos vão para a escola, eles não podem mais ficar aqui. Eles precisam ganhar dinheiro. Eu seria mais feliz se eles estivessem aqui mas eles precisam ganhar dinheiro.

Pobreza
Hoje existe uma crença que é através da educação moderna que vamos tirar as pessoas da pobreza. Mas se prestarmos atenção no que está acontecendo, veremos que foi advento do colonialismo, desenvolvimento, e a ideia de “ajuda” que criou a pobreza. Nos sistemas e economias pré-modernas, ou pré-desenvolvimento, você não encontrará o tipo de pobreza que se encontra nas favelas de Calcutá, Cidade do México e Pequim. Hoje, nas maiorias das vilas tradicionais seja na China, Índia ou África, as pessoas são levadas a acreditar que o futuro é essa cultura moderna, urbana e consumista. E elas estão se endividando, vendendo suas casas para dar educação aos seus filhos. A grande esperança é que elas vão conseguir um bom emprego como engenheiros ou médicos na economia moderna. Menos de 10% estão obtendo sucesso. 90% acabam como fracassados. Elas talvez conseguirão um emprego como faxineiras ou mecânicos de carro, mas não é a vida gloriosa que as pessoas esperavam.
Falas de alguns jovens:
As maiorias dos alunos de Ladakh não se dão muito bem. De 10, 2 se darão bem, mais do que bem. Mas aproximadamente oito não serão melhores.
Muitos alunos não estão conseguindo trabalho depois que se formam, e eles ficam depressivos, frustrados e revoltados.
Uma das coisas que é mais perturbadora para mim, em termos de justiça e moralidade, é que você tem uma instituição presente no mundo todo, que está classificando milhões e milhões de pessoas inocentes como fracassadas. Pessoas muito brilhantes, maravilhosas, e talentosas estão sempre se apresentando pra mim na Índia como? ‘eu sou repetente da oitava série’ ou ‘eu sou repetente da décima série’... É assim que eles se apresentam. O que é incrível é que as pessoas que dizem estar preocupadas com justiça social não conseguem ver o gigantesco tipo de hierarquia e desigualdade social que é criada através da educação moderna. É incompreensível para mim como as pessoas não enxergam isso. Uma outra questão é em termos de perda da riqueza imaginativa e dos recursos culturais que as pessoas poderiam trazer, porque eu acho que aqueles que são classificados como fracassados, na verdade possuem uma variedade de capacidades de pensar de diferentes maneiras. E isto está sendo perdido e suprimido, e as pessoas que só conseguem pensar de maneira muito fragmentada e unidimensional, estas estão sendo recompensadas. Qualquer um que se diz preocupado com justiça social, precisa sentar e ter uma conversa séria sobre este assunto.

Eu venho da região central do Himalaia, que é chamada Garhwal. As mulheres de Garhwal trabalhavam arduamente para terem certeza de que seus filhos tivessem uma escolarização. Mas uma escolarização institucional do tipo que não ensina nada sobre a sua ecologia local, a sua cultura local, a sua economia local, ou sua habilidade de ser produtivo. Ela te ensina basicamente a ser um semi-alfabetizado para outro sistema, ao qual você não tem acesso, porque você não pertence à classe certa, ao privilégio certo, etc. Agora eu volto àquelas mesmas vilas e as mulheres dizem que o pior erro que elas cometeram foi pensar que aquele tipo de educação iria ajudar. Nós temos um ditado hindú: “É o cachorro do lavadeiro que não pertence nem ao lugar onde a lavação é feita, nem ao lar”. Elas são pessoas excluídas, e elas estão caindo pelas rachaduras de um mundo excludente.

Ajuda mental
É tão triste ver quantos ocidentais vem para culturas e economias remotas, relativamente intactas e sustentáveis, e se apaixonam pelo lugar. Eles querem ficar, querem voltar, eles adoram as pessoas, acham as pessoas incrivelmente felizes, incrivelmente generosas, incrivelmente prestativas. E então eles querem ajudar, desenvolver, trazendo a escolarização ocidental para ‘melhorar’ a vida dessas pessoas.

“Bem, meu nome é Heidi. Eu venho do sul da Alemanha, a Baviera. Como eu moro na Baviera eu sou boa em montanhismo e foi por esse motivo que eu quis ir ao Himalaia. Como eu era professora e estava ensinando ética anglo-germânica, que é um tipo de religião, ou estava interessada em escolas. E então acabei conhecendo a Escola Lamdon.”
(A escola Modelo de Lamdon é considerada uma das melhores escolas seculares privadas de Ladakh.)
“E eu aprendi tanto sobre as pessoas daqui, sobre suas crenças religiosas, sua mentalidade, o caminho de compaixão, tolerância que eu pensei: bem, eu preciso fazer algo por essa escola. Passo a passo eu fui tentando encontrar patrocinadores, levantar dinheiro... Por exemplo: eu tenho orgulho de por lá existir um albergue, um albergue para meninas, para cem alunas. E isso foi construído principalmente com o dinheiro que eu consegui levantar.”
(Graças a Heidi, centenas de Crianças de vilas de todas Ladakh podem deixar suas famílias e lares para a Escola de Lamdon.)
Na sala de aula, o professor diz: aqui está uma lista de razões possíveis para se usar um espelho. Primeiro para verificar a aparência, para verificar a aparência? Vocês fazem isso? Olhar para checar? E para ficar bonita. Para checar a aparência, sim? Você checa sua aparência. Você checa a aparência não só pra ver como você está, mas também como está vestida, ok? Certo? Como você está vestida. E então, para ficar bonita. Qual importante é isto? Vaidade, beleza, todos se importam com sua aparência, ok? Tipo como você se aparenta, sua aparência é importante.
(Heidi) Mesmo se eles ficam aqui por um ou dois anos e às vezes eles têm que voltar forçados por seus pais a trabalhar nos campos e cuidar das crianças mais novas, eles ganham alguma coisa para a vida deles. Alguns vão para as forças armadas. Então eles são bons comerciantes, eles abrem lojas e vendem todos aqueles colares, suéteres e essas coisas. Ou eles aprendem profissões especiais. E agora, principalmente, como eu sei e como eu espero, em computação. Então eles vão para Índia e tem uma boa chance. Então, eu acho que eles superaram a real pobreza aqui. E algumas pessoas dizem: ‘Bem, por que você não vai para o Congo ou algo assim?’, mas eu acho que eles ainda precisam de ajuda. Não é só jogá-los na água e deixá-los nadar. Eles precisam de tudo, de roupa a ajuda mental.”
“Se nós devemos adequar e treinar as crianças para o futuro, elas não podem ser deixadas como são. E, apesar dele mesmo, o nativo deve ser ajudado”.
“Você está no processo de ser doutrinado. Nós ainda não desenvolvemos um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação”.
“O que você está sendo ensinado aqui é um algema do atual preconceito e das escolhas dessa cultura em particular”.
“O menor olhar sobre a história mostrará quão impermanente elas devem ser” Doris Lessing - Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2007

Ligando os pontos
Quando eu vejo o número de pessoas realmente bem intencionadas que estão tentando ajudar e outras pessoas com um pacote de escolarização e ajuda, eu realmente acho que não há uma má intenção por trás disso. Eu acho que é puramente de coração e boa vontade em ajudar outras pessoas. Só que elas simplesmente não ligam os pontos. Elas normalmente não ficam tempo suficiente para realmente perceber o impacto geral. E elas simplesmente não vêem de forma abrangente suficiente.
Falas dos jovens:
“Eu estudei na Escola Missionária Moráviana que fica em Leh, eu acho ser a melhor escola de Ladakh.”
“No começo eu estudei na Escola Modelo de Lamdon, até a sexta série”.
“Eu fiz o ensino médio em Delhi mesmo. Eu estive em Delhi durante os últimos oito, nove anos”.
“Quando eu estava na idade em que fiz minha primeira aula. Eu me mudei pra cá. Eu me mudei para Mussoorie, depois para Dehradun e então para Delhi.”
“Eu não sei muito sobre minha cultura. Nós não temos muito conhecimento sobre a nossa tradição e tudo mais.”
“Basicamente, quando os estudantes vêm para Delhi para estudar, eles ficam expostos a um ambiente que é muito diferente de Ladakh. E eles tendem a esquecer a sua própria cultura. Às vezes eles nem sequer sabem falar o seu próprio idioma. Eles esquecem suas tradições. Eu acho que não é um bom sinal para Ladakh”.
“Ninguém fala Ladakhi fluentemente, que era o original antes.”
“Nós estamos aqui e seguimos a tradição global, nós estamos tentando competir com eles”.
“Nós só estamos atrás de dinheiro, dinheiro, dinheiro...”.

O inglês comanda o mundo
No ano em que você nasceu, haviam seis mil línguas faladas na Terra. Uma língua não é só gramática e vocabulário, uma língua é um lampejo do espírito humano. É um veículo pelo qual a alma de toda cultura vem ao mundo. Eu sempre digo que cada língua é como uma floresta nativa da mente, um ecossistema de pensamentos, uma bacia hidrográfica de possibilidades espirituais e sociais. Enquanto estamos sentados aqui metade daquelas línguas não estão sendo ensinado às crianças.

(Diretor da Escola Missionária Moráviana) Em algumas áreas nós somos muito rigorosos. Por exemplo: falar em inglês.
Fala de criança: “Minha escola é de currículo britânico, todas as crianças estão falando em inglês. E quando elas estão no playground também estão falando em inglês. Em classe também, em todos os lugares da escola temos que falar em inglês”.
(diretor) Exigimos que as crianças falem em inglês com os professores na classe e entre elas.
(Criança) “Se alguém falar outra língua, Ladakhi ou Hindú, o professor dá uma punição.” “O que acontece quando alguém é punido?” “Dinheiro. Sim, é uma multa em dinheiro, de 5 rúpias”
(diretor) Mas essa disciplina inculca um hábito de inglês. E inglês é uma língua que comanda o mundo hoje, seja o mundo virtual, internet, negócios, qualquer coisa... Você tem que aprender inglês na Índia.
(criança) “Quando vamos para outros países, temos que falar inglês. Se não falarmos inglês não poderemos ir a outros países. Falar inglês é muito bom, e quando eu me formar eu irei para outros países. (onde você pensa em estudar?) em Delhi. (sua mãe vai sentir sua falta quando você mudar para Delhi?) Sim, sentirei saudades da minha mãe.”
(outro jovem) “Sinto saudade da minha cidade, de verdade. E dos meus pais. Porque eu estou aqui, não aqui exatamente, mas fora da minha cidade há... 10 ou 12 anos. E sobre um lugar chamado Ladakh... você viu, é paradisíaco, realmente é um paraíso. Sinto muita saudade de Ladakh, porque lar é lar, certo?”

Natureza + Humana
“O grande propósito da escola pode ser melhor realizado em lugares feios, escuros e sem ar... É para dominar o ser físico... para transcender a beleza da natureza... A escola deve desenvolver o poder de afastar-se do mundo exterior”
William Torrey Harris. Ministro da Educação dos EUA 1889 - 1906.

Uma das grandes tragédias da escolarização é como ela arrancou as pessoas da natureza e as trancou em salas durante 8 horas por dia. E eu acho que o profundo dano que está nos fazendo só será reconhecido gerações adiante. Então olharemos para trás e diremos: “Como pudemos ter feito esse tipo de coisa às pessoas? E pensar que criando prisões de concreto e trancando pessoas lá, e as dando livros que falam sobre natureza, é uma melhor forma de pensar sobre a vida do que realmente passar tempo na natureza.
(Professora na sala de aula com jovens) Porque isso é chamado – porque isso tem esse nome? Vocês podem me dizer? Vocês tem alguma ideia do porque chamamos isso por esse nome? Se soletra “xe-ró-fi-ta”. É xerófita. Por que chamamos por esse nome? Vegetação xerófita. O tipo de vegetação que temos aqui em Ladakh é xerófita. Agora, vocês podem citar por que razões chamamos esse tipo de vegetação xerófita? Alguém na sala?
Alguém? Alguém?
Nós temos chuvas pesadas aqui? Não. Nós temos pouca chuva aqui. Então por essa razão, nós, como havíamos discutido não temos um bom tipo de vegetação aqui. Não podemos esperar que tenhamos florestas, boas florestas, não podemos esperar que tenhamos uma grande vegetação aqui. Eu apenas queria acrescentar que com o distinto tipo de plantas, animais e meio-ambiente, o ser humano também está incluso no ecossistema. Entendem?  Agora como o ser humano está incluso? Porque dizemos que o ser humano é uma parte integral no ecossistema? Como vocês acham que os seres humanos estão envolvidos no ecossistema? Alguém da classe?
Alguém, Alguém?

“É, de fato, nada menos que um milagre... que os métodos modernos de instrução... ainda não estrangularam por completo a sagrada curiosidade da pesquisa; pois esta delicada plantinha, independente de estimulação... existe principalmente pela necessidade de liberdade”. Albert Einstein

“Educação... faz uma vala de corte reto de um livre e sinuoso riacho”. Henry David Thoreau.

(falas das indianas) Tradicionalmente, os pais ensinaram seus filhos a manter a água limpa. Nós aprendemos a nunca sujar as nascentes ou córregos... Já que as pessoas precisam de água limpa para beber, ou para fazer oferendas às divindades.
Tendo aprendido isso quando éramos bem jovens, permaneceu em nossas mentes para sempre. Agora, talvez seja o desenvolvimento, ou o progresso... Ou os pais que não estão dizendo boas coisas aos seus filhos, ou as crianças não os estão escutando. Em todo lugar as pessoas estão jogando coisas na água e poluindo todo meio ambiente á sua volta.
A terra é nossa verdadeira mãe. Esta terra é nosso banco, a terra é algo que podemos manter a salvo por gerações e gerações. Quando falamos de educação, precisamos passar nosso conhecimento sobre a terra e como plantar comida para nossas crianças. Muitas pessoas deixam Ladakh para estudar fora voltam e dizem: ”O que existem Ladakh? Não há nada aqui”. As pessoas dizem que os turistas e estrangeiros são sortudos, eles são tão ricos, e não precisam trabalhar duro. Mas na verdade, nós temos nossa própria terra... Nós temos nossas próprias casas... Nós temos nossa própria comida, tradições e cultura. Para onde o desenvolvimento levou as pessoas?

Muitas ciências
A coisa mais incrível, se você parar pra pensar, é que os biólogos finalmente provaram ser verdade o que os filósofos sempre sonharam que fosse verdade, que é o fato de que nós somos todos irmão e irmãs, somos todos, por definição, frutos da mesma árvore genética. Isso significa que todas as populações humanas, todas as culturas, em geral dividem a mesma capacidade mental, capacidade intelectual, acuidade mental, etc...
E isso quer dizer que, se um povo coloca seus gênios na inovação tecnológica, como tem sido a tradição no ocidente, ou, em contraste, no caso dos Budistas Tibetanos, em passar 2500 anos tentando entender a natureza da existência, no que chamamos sempre de uma ciência da mente. E por que usamos a palavra “ciência”? o que é ciência senão a busca da verdade? E o que é o Budismo senão a busca empírica da verdade? Como Matthieu Ricar, um monge tibetano e antigo biólogo molecular do instituto Pasteur de Paris, sempre diz: “A ciência ocidental é uma imensa resposta para minúsculas necessidades.” Nós passamos todas nossas vidas tentando ter certeza que viveremos para ter cem anos sem perder nossos dentes ou cabelo, e no Tibet as pessoas passam suas vidas tentando entender a natureza da existência. Ele diz que todos os nossos (ocidentais) outdoors propagandeiam com jovens crianças em roupas íntimas. Em seus (indianos) “outdoors”, que são muitas paredes, estão gravadas em pedras as orações para o bem-estar de todos os seres sencientes.

“A liberdade real virá quando nós nos libertarmos da dominação da educação ocidental, da cultura ocidental, do modo de vida ocidental”. Mahatma Gandhi.

Uma das coisas que sempre foi surpreendente para mim é o entendimento que as pessoas possuem de Gandhi. Por todo o mundo as pessoas afirmam ser grandes fãs de Gandhi, e se você realmente observar o que ele escreveu notará que ele era extremamente crítico quanto à educação moderna. E particularmente do conhecimento ocidental, que era algo que Gandhi estava questionando abertamente: “Qual é realmente a grande contribuição do conhecimento ocidental para o bem- estar da vida no planeta?”.
E então as pessoas o entenderam errado, elas pensavam que Gandhi era contra os britânicos e na verdade, ele disse: “Eu não tenho problemas com os britânicos, mas eles precisam entender que este sistema que foram criados por todo o mundo são fundamentalmente desempoderadores, desumanizantes e destrutivos. Não só para os seres humanos, mas também para toda a vida existente no planeta. E eles não podem se sustentar.” Ele disse isso em 1909. E ele disse: “Nós não estamos apenas tentando nos livrar dos britânicos e manter os seus sistemas”. E ele usava uma boa frase: “Essa luta por liberdade não é o ato de se livrar do tigre, mas manter a natureza do tigre”.

“Educação é uma ação compulsória e forçada de uma pessoa sobre outra... Cultura é a relação livre entre pessoas...”.
“A diferença entre educação e cultura está apenas na coerção, a qual a educação se julga no direito de exercer”.
“Educação é a cultura sob limitação. Cultura é livre”
Leon Tolstói.

E nós não nos vemos como uma cultura, portanto quando nós exportamos algo, como o nosso modelo econômico, não vemos isso pelo que é, que é apenas uma opção, uma maneira de organizar o comportamento econômico. E ainda quando você pensa nisso, todos os índices do paradigma do desenvolvimento não dizem quase nada sobre qualidade de vida. As pessoas falam sobre renda per capita ter quadruplicado. E o que isso quer dizer? Pode significar que algum agricultor saiu de uma economia agrária não monetária para entrar numa fábrica que explora os empregados numa favela em Delhi. Sua qualidade de vida melhorou porque sua renda foi quadruplicada? Essa é uma outra parte da nossa “miopia cultural”. Nós vendemos essa ideia, que eu penso ser uma mentira descarada, que se as pessoas aderirem à ditadura do nosso paradigma econômico, elas de alguma forma mágica alcançarão a riqueza que nós desfrutamos no ocidente. Não vai acontecer! Só para ter os recursos energéticos necessários seria preciso 4 planetas Terra para trazer toda população para nosso nível de consumo. Então nós projetamos essa visão de mundo para outros continentes com a ilusão de que se pessoas aderirem a isso, eles alcançarão o que nós (ingleses) temos. E então você tem que parar e dizer: “Bem, o que é que nós temos que nos faz tão espetaculares?” Muitas coisas incríveis. Acredite, se eu me envolver em um acidente de carro, e meus braços forem cortados, eu não quero ser levado para um herbalista africano, eu quero ser levado para um pronto-socorro. Eu não estou desprezando nossa cultura; mas por outro lado, se analisarmos a maneira como nós ganhamos dinheiro, a maneira com que nós tiramos nosso ganha-pão, é baseada num paradigma econômico que, segundo qualquer definição cientifica, está mudando a bioquímica da biosfera. Isso não é trivial. E certamente não sugere que nosso modo de vida é um protótipo do potencial humano.
O que
É
Conhecimento?

O que
É
Saúde?

O que
É
Ignorância?

O que
É
Pobreza?

O caminho para as culturas sobreviverem no mundo de hoje não é se isolando ou se excluindo. Na verdade, eu acredito que mais do que nunca que nós precisamos de um diálogo mais profundo entre o ocidente e as partes do mundo não industrializado. Nós precisamos desse diálogo porque a mídia e a educação convencional estão perpetuando basicamente uma mentira sobre uma forma de atingir sucesso e como todos nós podemos atingir esse glorioso, rico e luxuoso estilo de vida. Nós precisamos urgentemente sentar e conversar uns com os outros, e comunicar o fato de que este modelo não está funcionando nem mesmo no EUA, que é o centro desse sonho.
E é realmente importante notar que quando nós pensamos nossas diferentes culturas, há uma espécie de ideia de que esses outros povos, embora singulares e coloridos, talvez de alguma maneira, estão destinados a desaparecer. Enquanto o “mundo real”, que seria o nosso mundo, segue em frente. Essas culturas não são fracas e frágeis. Pelo contrário, elas são povos vivos e dinâmicos, sendo levados à inexistência por forças identificáveis. Por que isso é tão importante? É importante porque a cultura não é trivial. A cultura não é decorativa, não é penas e sinos, não é dança, nem mesmo rituais. Cultura é o coberto de valores morais e éticos com que o individuo é coberto.
E se você quer saber o que acontece quando uma cultura é perdida e ainda o individuo sobrevive, quando uma sombra de seu ser anterior, incapaz de voltar para o conforto da tradição e suas raízes, se lança à deriva em um mundo alienígena, onde geralmente, o destino é simplesmente o mais baixo degrau da escada econômica que não dá em lugar algum, basta olhar para o mar de miséria que são os centros demográficos do Terceiro Mundo.

A estrada para o inferno
Houve muitos casos na história em que atos evidentes de violação dos direitos humanos, como o deslocamento de povos, têm sido absolutamente motivado por interesses econômicos e políticos das elites e das estruturas de poder. Não há dúvidas quanto a isso. Eu acho que, de uma maneira estranha, as maiores ameaças surgiram através das boas intenções daqueles que não entendem que estas boas intenções podem não ser apropriadas pode refletir apenas uma projeção de nossa própria ideologia. Se alguém vai para uma outra cultura e diz: “Eu estou aqui para educar suas crianças”, isso é uma das coisas mais ultrajantes e audaciosas que você pode imaginar. Se você vai àquela cultura e diz: “nós temos algumas habilidades que vocês provavelmente poderiam usar”. Para mim, essa é a partilha de informação que deveria ser tanto recíproca quanto honrosa. Mas é muito diferente de eu ir e dizer: “os seus caminhos não são mais aceitáveis... sigam o programa, eduquem seus filhos nesta escola, livrem-se de suas ideias supersticiosas e aceitem algumas das minhas”.

Há uma suposição de que a educação ocidental, o conhecimento ocidental, é universalmente aplicável, é algo superior. Existe uma ideia de que evoluímos para um nível de existência mais elevado, e que essas pessoas, tão amáveis, irão se beneficiar deste conhecimento superior.

A situação mais triste é a das ong’s que realmente pensam que estão se inserindo e ajudando comunidades, ao auxiliá-las na perda de sua língua nativa e na perda de sua autossuficiência. Amarrando elas à economia global e trazendo para elas mais dinheiro, que por fim as levará à perda de controle de suas próprias vidas. Muitas dessas ong’s são muito bem intencionadas, pessoas boas, que acham que realmente estão fazendo o bem para as crianças e para as comunidade. Mas eu acho que elas não entenderam o jogo maior no qual elas são os peões.

Em resumo, estamos passando por um período de transição que simplesmente nos obriga a prestar atenção. Foi como disse Margaret Mead antes de morrer, seu maior medo era que, enquanto nós escorregássemos cegamente em direção a esse, levemente sem forma, mundo genérico, nós acordaríamos um dia como se acordássemos de um sonho, tendo esquecido de que haviam ainda outras possibilidades de vida. Esses povos, essas visões, não são tentativas falhas de serem como nós. Elas são preciosas respostas para uma questão fundamental: o que significa ser humano e estar vivo? E muitas destas pessoas, quando respondem a esta questão, elas respondem de maneira que as possibilitaram viver de maneira sustentável no planeta por gerações. Nossa espécie está aqui há um bom tempo. Quando podemos dizer que começou como uma forma social, há 150 mil anos atrás? A revolução neolítica que deu início à agricultura começo há apenas 10 mil anos atrás. A sociedade industrial moderna como a conhecemos dificilmente possui seus 300 anos de idade.  Isso não deveria sugerir que temos todas as respostas para todos os desafios que iremos enfrentar enquanto espécie no próximo milênio.

Canção final.
“Pequenas caixas na encosta, pequenas caixas feitas de material padrão / pequenas caixas na encosta, toda iguais / tem uma rosa e uma verde uma azul e uma amarela. E elas todas são feitas de material padrão e elas todas parecem exatamente iguais.
E as pessoas nas casas foram todas para a universidade, onde foram colocadas em caixas e saíram todas iguais. E há médicos e advogados, e executivos de negócio. E eles são todos feitos de material padrão e eles todos parecem exatamente iguais. Eles todos jogam no campo de golfe e bebem seus Martines secos, e todos eles tem crianças bonitas e as crianças vão para a escola, e as crianças vão para o acampamento de verão ou então vão para universidade onde são colocadas em caixas feitas de material padrão e elas todas parecem exatamente iguais.
Os meninos entram para os negócios e se casam e constituem famílias em caixas feitas de material padrão. E elas todas parecem exatamente iguais tem uma rosa uma verde e uma azul e uma amarela. E elas são todas feitas de material padrão e elas todas parecem exatamente iguais.


Marchando em Carnaval


A Páscoa é, para cristãos, o dia em que se comemora a ressurreição do Cristo. O ovo da Páscoa é o símbolo da vida que inicia, uma espécie de novo tempo. Quaresma é o período de 40 dias que antecede o domingo de Páscoa. É um tempo dedicado à penitência, ao sacrifício como preparação para a Páscoa. Mas o que interessa nesta 3a feira é o carnaval.


Uma das origens da palavra carnaval vem do latim “carnem levare”, que significa “afastar-se da carne”. Então, pense comigo: vamos nos afastar de nossa carne, vamos libertar o corpo da realidade para brincar o carnaval. Vamos profanar no sentido de um tempo para, suspendendo a dureza do dia a dia, brincar. Então, carnaval é uma festa profana. No carnaval, a realidade está suspensa. É uma espécie de autorização para viver outras dimensões da existência. No carnaval as pessoas vestem suas fantasias, vivem suas fantasias. No carnaval as pessoas são pirata, bailarina, Pierrô, Colombina...


Renato Terra é um artista brasileiro. Ele assina o roteiro e a direção do documentário “Uma noite em 67”, registro do 3º Festival de Música Brasileira ocorrido em 1967. Entre os concorrentes estão Chico Buarque e MPB4, Caetano Veloso e Beat Boys, Gilberto Gil e Mutantes, Edu Lobo, e outros. Canções como Roda Viva, Alegria Alegria, Domingo no Parque, Ponteio e Sérgio Ricardo quebrando seu violão sob vaias do público presente. Mas voltemos ao carnaval.


Marchinha de carnaval é um gênero musical muito utilizado para ironizar a vida cotidiana, marcante sobretudo no século XX. Falo do humor sadio, aquele humor que torna a vida mais leve, em oposição a ironia de bolso, que rebaixa e desqualifica as pessoas, uma ironia de péssimo gosto que enverniza o racismo, o sexismo e a xenofobia. Encontrei num texto de Renato Terra e circulando na internet, marchinhas atualizadas para 2020. Veja:


Mamãe eu quero / mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar. / Dá a chupeta / dá a chupeta, dá a chupeta pro bebê não chorar. Em 2020: Papai eu quero / papai eu quero, papai eu quero mamar. / Dá embaixada / dá embaixada, dá embaixada pro PT não voltar.


Yes, nós temos banana / Banana pra dar e vender... Em 2020: Yes, nós temos laranja / Laranja pra dar e vender / Laranja milícia / Emprega a família / Laranja é vitamina Q.


Sa-sa-saricando! Em 2020: Ra-ra-rachadinha / Todo mundo leva a vida na boquinha / Ra-ra-rachadinha / A viúva e o brotinho do Adriano / Flagraram no caixa eletrônico / Foi um assombro / Passaram pano. 


Lata d’água, assim: Lata d’água na cabeça / Lá vai Maria, não vai pra Disney / Sobe o dólar você dança / Acabou essa festança / Não vai pra Disney


Jardineira: Ô paneleiro por que está tão triste? / mas o que foi que te aconteceu / trocou o Temer pelo Bolsonaro / pagou de otário e se arrependeu.

E Cabeleira do Zezé, assim: Qual o paradeiro do Queiroz? / Onde é que ele tá? / Onde que ele tá? / Será que ele foi motorista? / Será que ele foi assessor? / Parece que anda sumido / Ninguém sabe onde ele foi / Corta o sigilo dele! / Corta o sigilo dele!

Um índio e um idiota


Na canção ‘Um Índio’, o baiano Caetano Veloso fala de dois mundos: o mundo dos indígenas e o mundo dos não indígenas, dos kubéns como diz o Cacique Raoní.


Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante / De uma estrela que virá numa velocidade estonteante / E pousará no coração do hemisfério sul / Na América, num claro instante / Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida / Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias / Virá...


Tendo os kubéns dominando a Natureza com avançadas tecnologias e completado seu projeto ‘civilizatório’, colonial e escravagista, comprometendo a biodiversidade, poluindo as águas, devastando a natureza e exterminando povos originários, chega um índio.


Impávido que nem Muhammad Ali / Virá que eu vi / Apaixonadamente como Peri / Virá que eu vi / Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee / Virá que eu vi / O axé do afoxé Filhos de Gandhi / Virá...


Um índio singular: impávido e apaixonado, tranquilo e infalível, pacífico e dançarino. Ele é uma mistura de interessantes seres humanos como Muhammad Ali, Gandhi e Peri (personagem de José de Alencar em O Guarani).


Um índio preservado em pleno corpo físico / Em todo sólido, todo gás e todo líquido / Em átomos, palavras, alma, cor / Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico / Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico / Do objeto-sim resplandecente descerá o índio / E as coisas que eu sei que ele dirá, fará / Não sei dizer assim de um modo explícito / Virá...


Raoní Metuktire é um índio, liderança da etnia Mebengokrê (Kayapó). Cacique Geral, tem levado a causa indígena para o mundo. Frequenta a ONU e o Vaticano, foi indicado para o nobel da paz 2019. Raoní reuniu recentemente o povo Mebengokrê e diversas lideranças indígenas visando a uma aliança de povos em defesa de suas terras, da floresta e da vida, contra a ganância dos kubéns. Durante muitos séculos a floresta foi habitada por milhões de indígenas até a chegada dos kubéns que colonizaram e exploram a América. Atualmente habitam apenas cerca de 13% do território brasileiro. E os setores da mineração e do agronegócio, em aliança com o Governo, avançam sobre as terras indígenas. Para os kubéns, 87% das terras nacionais não são suficientes, eles querem mais.


E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio


“Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”. De que humano estais falando, cara pálida? talvez algum torturador que a excelência cultua? porque cultuar a morte e a dor, agir com desrespeito e intolerância, estimular o ódio é desumanizar. Sim porque tira da vida o brilho, o gosto e a alegria. O messiânico capetão seria, então, um animal? Pensando bem, os animais não merecem nenhuma aproximação com este ser abominável. No dicionário etimológico, o indivíduo destituído de qualquer distinção, ignorante e de pouca inteligência é um idiota. Adequado.


Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 27 de janeiro de 2020
27 de janeiro de 2020

Assim o samba vem


Vivemos um tempo de festa: natal e passagem de ano. Natal, natalício, natalidade. Como se uma vida nova estivesse por acontecer, uma espécie de parimento. Sim, parir uma vida nova. E o ano novo ascende este tipo de pensamento. É como se um ciclo se fechasse e um novo ciclo se abrisse. Conheço uma pessoa que faz listas de desejos, de afazeres, de ambições etc. Todo final de ano visita sua lista para checar seu ano em realizações e inaugura uma nova lista para o ano vindouro. Para ela isso afirma possibilidades: coisas acontecem… e isso movimenta sentimentos, carrega emoções.

Vem quando bate uma saudade / Triste, carregado de emoção / Ou aflito quando um beijo já não arde / No reverso inevitável da paixão / Quase sempre um coração amargurado / Pelo desprezo de alguém / É tocado pelas cordas de uma viola / É assim que um samba vem

No início de 2019 recebi o convite para esta coluna no Jornal Cidade. O ambiente era musical, estávamos numa roda de samba. Conversamos rapidamente a respeito do tema geral da coluna: o cotidiano, a política. Optamos pela potência política da arte. Já nos primeiros textos fui me dando conta que escrever com música, falar com música produz uma escrita interessante. Isso: falar com música.

Quando um poeta se encontra / Sozinho num canto qualquer do seu mundo / Vibram acordes, surgem imagens / Soam palavras, formam-se frases

Escrever é um exercício que exige tempo, atenção, presença, pensamento. É uma espécie de tempo fora do tempo e lugar fora do lugar. Suspensão! É como se o escritor estivesse no mundo, presente no mundo, vivendo as coisas próprias do mundo mas sublimando-o. É, por exemplo, estar aberto às canções que nos tocam. Sim porque as canções estão por aí, tocando e nos tocando o tempo todo. O escritor aguça sua atenção, abre seus canais perceptivos até que uma canção, um refrão, um trecho toca o corpo. Isso: uma canção que toca também toca o escritor numa espécie de atravessamento. Vibra e faz vibrar um pensamento novo, uma ideia.

Mágoas, tudo passa com o tempo / Lágrimas são as pedras preciosas da ilusão / Quando, surge a luz da criação no pensamento / Ele trata com ternura o sofrimento / E afasta a solidão

‘A luz da criação no pensamento’ pode ser entendida aqui como colocar ideias lado a lado. Por ideia com ideia, por pensamento com pensamento. Por com, com por. Compor seria criar? em parte sim, em parte não. Porque num mundo tão antigo quanto este nosso mundo, talvez nada seja novo. Mas para nossa breve existência, uma canção inédita é criação, novidade. Compositor é quem faz composição. Junta pedaços, mistura elementos, ideias, pensamentos. As palavras estão prontas para ser misturadas, juntadas, postas parte a parte, postas com outras palavras. Mas a criação é isso: algo que vem de dentro e ganha as luzes deste velho mundo tomado como novidade. Parimento.

Quando bate uma saudade é um samba de Paulinho da Viola (RJ, 1942). Filho do músico Cesar Faria, cresceu num ambiente musical. Conheceu Jacob do Bandolim e Pixinguinha, entre outros músicos que se reuniam para fazer choro, cantar valsas e samba.

Ivan Rubens




Expresso Saudade


Rio Claro tem sua história marcada pela ferrovia. Quem não ouviu histórias desse tempo? Tais marcas estão na cidade: a estação ferroviária situada exatamente na rua 1 com avenida 1. As oficinas da antiga companhia paulista. O horto Florestal Edmundo Navarro de Andrade, o museu do eucalipto e vai por aí.

Começou a circular o Expresso 2222 / Que parte direto de Bonsucesso pra depois / Começou a circular o Expresso 2222 / Da Central do Brasil / Que parte direto de Bonsucesso / Pra depois do ano 2000

A ferrovia entrou em declínio e, desde então, é como se uma nuvem de nostalgia cobrisse a cidade. Percebo nos mais velhos uma certa saudade...

Dizem que tem muita gente de agora / Se adiantando, partindo pra lá / Pra 2001 e 2 e tempo afora / Até onde essa estrada do tempo vai dar / Do tempo vai dar, menina, do tempo vai

Saudade é uma palavra interessante. É um sentimento geográfico, uma espécie de território. Explico: a saudade de uma pessoa que está longe. É histórico também. Saudade descreve a mistura dos sentimentos de perda, falta, distância e amor. A palavra vem do latim ‘solitatem’ (solidão), passando pelo galego-português ‘soidade’, que deu origem às formas arcaicas ‘soidade’ e ‘soudade’, que sob influência de "saúde" e "saudar" originaram sua forma atual: ‘saudade’.

Segundo quem já andou no Expresso / Lá pelo ano 2000 fica a tal / Estação final do percurso-vida / Na terra-mãe concebida / De vento, de fogo, de água e sal (...) / Ô, menina, de água e sal

O carnaval também é uma espécie de território. Uma espécie de infância. São 4 dias de folia onde a suposta ‘ordem’ está suspensa para fruição da alegria e da festa. Fruição do corpo onde nos permitimos ser outro/a, ser reis, homens-mulheres, piratas, Napoleão, Guevara, anjo-diabo.

Dizem que parece o bonde do morro / Do Corcovado daqui / Só que não se pega e entra e senta e anda / O trilho é feito um brilho que não tem fim / (...) Ô, menina, que não tem fim / Nunca se chega no Cristo concreto / De matéria ou qualquer coisa real / Depois de 2001 e 2 e tempo afora / O Cristo é como quem foi visto subindo ao céu / Subindo ao céu / Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu

Também podemos pensar a ferrovia como uma linha de vida, e o trem como a cápsula que nos carrega em viagens no tempo e no espaço. Mas falo de uma saudade concreta: no dia 21/jan/2016 nasceu, em Rio Claro, o BLOCO da SAUDADE. Aos pés do cristo no início da avenida da Saudade que finda no cemitério. Numa quinta de carnaval que finda na 4a feira de cinzas. Finda na geometria da cidade, finda na frieza do calendário gregoriano. Permanece viva no desejo que empurra a alegria para frente. Permanece viva no desejo de festa, no imponderável dos encontros. Na magia do ser-outro/a, da fantasia, do permitir-se. Quando a alegria rompe os limites do corpo e explode na rua. Um, por assim dizer, Expresso dionisíaco que passa lentamente convidando a todos e todas, dançando nas ruas, um mar de corpos em esbarramento. Segundo quem já andou no Expresso, o Bloco da 
Saudade vem 2222 em 2020.

Expresso 2222 é uma canção de Gilberto Gil.

(publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 03/12/2019)

Entre lutas e loucuras

Sinto que estou no vórtice do furacão
Sou tragada pela fúria incandescente do dragão
Esta cidade que me oferece tudo, exige contrapartida:
tira minha energia
A luta fere
Cobra um preço fatal
Mesmo assim luto pelos que sofrem
Sem perceber o sofrimento penetrando
Lenta e cotidianamente
E meu tempo, nesta cidade com pressa, é sofrimento
Para viver
não tenho tempo
Para andar
não tenho tempo
Para alegria
não tenho tempo
Para música, 
quase não tenho tempo

Mas tenho amigas. 
Conto com elas p extravasar
No bar
Para falar de tudo: da luta, do trabalho, do sofrimento
Sofrimento dos outros, é claro
E das frustrações travestidas de que?
De luta
Filha da luta
Filhas de luta
Filha ...


Não aguento mais,  rapaz
Recorro
Até lembrar que a luta exige: eu te odeio,
rapaz
Você me oprime 
Me faz sofrer
Machista
Opressor
Séculos de patriarcado estão em você
Vamos matá-lo para acabar com tudo isso
E escrever uma outra história
Quem sabe um patriarcado de outra cor
De outro gênero
Preciso do patriarcado para sobreviver
Preciso da luta para sobreviver
Porque talvez ainda não possa viver


Pra que tanto céu?
Pra que tanto mar?


Sinto que a loucura está entrando em mim
Ela está me ocupando
Descobriu as fissuras do meu corpo
Respiro a loucura
Vejo a loucura
Como a loucura
Ouço sua voz me chamado…
Ela já abriu seu caminho
Fez picada na minha mata virgem
A máquina de produzir doenças me quer matéria prima
Anima?
Desanima

36 anos de idade


Tinha eu 14 anos de idade / Quando meu pai me chamou / Perguntou-me se eu queria / Estudar Filosofia / Medicina ou Engenharia / Tinha eu que ser doutor

Ela nasceu numa família simples do interior. O pai foi um operário brilhante, desses que produz suas próprias ferramentas. Um criador de problemas de toda ordem. Digo problema no sentido forte da palavra. Quando ele se via diante de um problema, procurava superá-lo criando uma situação nova. Veja que não falei em solução do problema. Explico: para ele um problema não demandava uma solução. A solução diminui a criação de novidades. Era um homem de possibilidades, criava possibilidades, expandia a vida e ampliava o mundo. Agora encontrei as palavras precisas: ele era um criador de mundos. Uma fotografia nos dá a imagem simbólica do que estou tentando dizer com palavras: uma criança tentando equilibrar na bicicleta, alegria e medo estampados no rosto negro, um lindo sorriso infantil e a ousadia de quem vai aos poucos se soltando das mãos do pai. Era um grande homem. Um homem que é mais de mil. Mil gestos, poucas palavras. Há de mil sons.

Da mãe herdou a convicção, firmeza e ternura. Com a mãe aprendeu muita coisa, da alquimia gastronômica às bruxarias na cozinha, do encanto com a transformação dos alimentos e sabores aos cuidados com o corpo. Aprendeu a cuidar. Isso mesmo, cuidado é algo que se aprende. Aprendeu a cuidar da terra, cuidar das pessoas, cuidar das coisas, cuidar da casa. Casa e corpo aqui são quase sinônimos. Com o tempo foi aprendendo também a cuidar das coisas do mundo.

Mas a minha aspiração / Era ter um violão / Para me tornar sambista / Ele então me aconselhou / Sambista não tem valor / Nesta terra de doutor / E seu doutor / O meu pai tinha razão

Ela poderia ser o que quisesse. Engenheira? advogada? médica? Todas as profissões que, acredita-se garantir ascensão social e financeira estariam ao alcance das suas mãos. Determinada como a mãe, inventiva como o pai, ela trabalha muito. Reconhece o prestígio e o dinheiro, mas não para nisso. Não se contenta com as superfícies. Ela mergulha fundo, procura tesouros escondidos no fundo do mar.

Vejo um samba ser vendido / E o sambista esquecido / E seu verdadeiro autor / Eu estou necessitado / Mas meu samba encabulado / Eu não vendo não senhor

Para ela, viver é leveza e alegria. Valoriza sobretudo as artes. No cinema ela cria personagens, nas canções ela pensa, na poesia ela dança. Com essa ginga de passista desenvolveu uma habilidade incrível de lidar com as pessoas. Na vida aprendeu que o mundo é povoado de gente diferente dela. Aprendeu que a morte é inexorável e a diferença é condição. Assim ela se produz humana com indígenas, nos quilombos, com os sem teto e sem terra, com pescadores e ribeirinhos. Deseja os ambientes equilibrados e alimentação saudável. Luta no campo e na cidade, afirma a condição feminina e a libertação dos homens da opressão do machismo. Enfrenta a desigualdade social e econômica. Vive entre os esfarrapados do mundo e com eles luta. Poetisa de povo, mestra em gente, doutora em vida melhor para todos e todas. Ela é professora porque acredita que o mundo pode ser melhor, sempre. 14 anos é uma canção do Paulinho da Viola.

BACURAU


Motores roncam. Duas motos levantam poeira na estrada de terra. Dois motoqueiros aceleram até chegar num vilarejo que ainda estava no mapa. Ambos despertam curiosidade e medo nos moradores. Os motoqueiros vestem calça, blusão, botas e luvas. Na porta do único bar do vilarejo, desligam os motores. O ruído cessa. Ao retirar os capacetes, da poltrona percebo: um homem e uma mulher. Dentro do bar, a atendente se mostra ansiosa. Sentada no chão, uma criança criançando. O motoqueiro pede água enquanto a motoqueira, discretamente, deixa um aparelho bloqueador de sinal de telefonia móvel: o vilarejo torna-se incomunicável. Como num filme de ficção científica, será ‘retirado’ do mapa das plataformas digitais nos minutos seguintes. Então chega a cena primorosa, aquela que, se o filme terminasse naquele exato momento, já valeria ter ido ao cinema. A motoqueira pergunta: quem nasce em Bacurau é o que? e a criança responde: GENTE!

São muitas horas da noite / São horas do bacurau / Jaguar avança dançando / Dançam caipora e babau / Festa do medo e do espanto / De assombrações num sarau (da canção Bicho da Noite, Sérgio Ricardo e Joaquim Cardoso, 1967).

No escuro da sala do cinema, risos da platéia. São os primeiros afetos produzidos por esta obra de arte chamada Bacurau. Penso que uma obra de arte se materializa na sua capacidade de produzir afetos e mobilizar emoções. Tanto mais potente quanto mais nos atravessa. Bacurau mobilizou e mobiliza... A crítica foi intensa, muita gente pensando e escrevendo, a favor e contra, recomendando o filme ou não, qualificando-o ou desqualificando-o. O filme mexe !!!

...Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico / Um anticomputador sentimental / Eu vou fazer uma canção de amor / Para gravar um disco voador (...) / Para lançar no espaço sideral / Minha paixão há de brilhar na noite / No céu de uma cidade do interior / Como um objeto não identificado (Objeto não identificado, Caetano Veloso. Gravado por Gal Costa em 1969)

A sinopse do filme diz o seguinte: a partir do velório de dona Carmelita (94 anos), a gente de Bacurau vai percebendo algo estranho na região. Drones no céu e estrangeiros circulando na região. Quando carros são baleados e cadáveres começam a aparecer, os habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.

Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja para melhorar / Tanta vida pra viver / Tanta vida se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar (da canção Réquiem para Matraga, Geraldo Vandré. Do filme ‘A hora e a vez de Augusto Matraga’, 1965)

Chico Sciense disse que “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. Para os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, Bacurau é o homem coletivo lutando no sertão nordestino. Mas poderia ser no Brasil dos morros, das favelas, e outros interiores.

Bacurau é uma ave de plumagem macia, voo silencioso e hábitos noturnos. Bacurau é, sobretudo, uma obra de arte, um filme que vale a pena ser visto e revisto. Está em cartaz nos cinemas do Brasil e do exterior.

Ver ocaso

Ver o nada
Perfeitamente
Porque perfeita, mente
A mentira perfeita
Tipo crime que não se desvenda
Olhares fechados a olhos abertos
Apagamentos
Ocaso

E a vida o que é, meu irmão?


Eu fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita…

Uma colega mostrou citação no material didático: “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Ela estava preparando uma formação para professores e pensava no dualismo ensino - aprendizagem. Pensei na densa obra de Luiz Gonzaga Jr e na sua capacidade de ultrapassar as obviedades. E convidei minha amiga para ouvir a canção.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

A letra remete à ideia de aprendizagem. A aprendizagem nos leva a pensar no ensino. Ensino e aprendizagem são palavras (e conceitos) que andam de mãos dadas. Na minha modesta opinião, Gonzaguinha está falando de outra coisa, de algo maior, algo que vai além… e diz isso com otimismo porque, cantando, a vida é mais viva. Assim, o artista lança perguntas:

E a vida? / E a vida o que é, diga lá, meu irmão? / Ela é a batida de um coração? / Ela é uma doce ilusão? / Mas e a vida? / Ela é maravilha ou é sofrimento? / Ela é alegria ou lamento? / O que é, o que é, meu irmão?

São muitas possibilidades de resposta, da biologia às religiões. Prefiro cultivar a pergunta, mantê-la viva no sentido da busca por respostas, mesmo que provisórias, para acalentar um corpo curioso. Gonzaguinha nos lança numa busca filosófica com os pés fincados no chão.

Há quem fale que a vida da gente / É um nada no mundo / É uma gota, é um tempo / Que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor / Você diz que é luta e prazer / Ela diz que a vida é viver / Ela diz que melhor é morrer / Pois amada não é e o verbo é sofrer / Eu só sei que confio na moça / E na moça eu boto a força da fé

Há quem diga isso e aquilo da vida: você diz, ela diz… Gonzaguinha confia na jovem mulher e, com ela, afirma: “somos nós que fazemos a vida”, cada ser é autor da sua própria canção. E o desejo empurra a vida para a frente.

Somos nós que fazemos a vida / Como der ou puder ou quiser / Sempre desejada, por mais que esteja errada / Ninguém quer a morte, só saúde e sorte / E a pergunta roda e a cabeça agita / Fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita

O tempo passa, a morte é certa. Entre o passado (que não volta mais, exceto nas lembranças) e o futuro (incerto), temos o presente. O que temos feito da vida neste tempo presente? Como criança entende de presente, Gonzaguinha conclui com elas: A vida é bonita ao quadrado.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

Criança canta, criança brinca. Criança se permite viver as belezas e as sutilezas do aqui e do agora. Criança se faz presença. Uma criança não passa despercebida. Quem nunca viu uma criança concentrada numa brincadeira, como se o mundo estivesse completamente parado? Podemos pensar na infância para além do tempo cronológico, não apenas como uma etapa da vida mas como uma experiência de relação com o tempo, com o mundo e com a própria vida. Talvez isso esteja entre ensino e aprendizagem.

Ivan Rubens
estudante de educação





Se eu quiser falar com Deus


Disponível no spotify, podiquesti Andarilhagens.



“O Roberto Carlos me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso... E se eu quiser falar de falar com Deus? Com esses pensamentos, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes”. Assim começou, segundo Gilberto Gil, sua criação.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz / Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós / Dos sapatos, da gravata / Dos desejos, dos receios / Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta / Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus

O compositor sugere que para falar com Deus não precisa muita coisa. Basta estar sozinho, na penumbra, em silêncio, em paz. É bom desatar os nós que nos apertam como os do sapato e da gravata. Mas também é bom folgar as grades que aprisionam nossos desejos e receios. É bom dar-se tempo, libertar-se um pouco das cronologias e ordens. Não carregar nada, não levar nada, ter as mãos vazias. E se expor assim como se é, assim como viemos ao mundo: nus.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor / Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou / Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão / Dos palácios, dos castelos / Suntuosos do meu sonho / Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho / E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração

O ser humano é, de um modo geral, enganador. Ele busca permanentemente o prazer, a alegria, a felicidade. Ele evita a dor, ele engana_a_dor. Contudo, a vida é muito complexa. A linha sugerida por Gil é aceitar a dureza da vida, aceitar também a tristeza e o medo. Mas não qualquer medo. É preciso aceitar um medo específico: o medo que dá-se a si mesmo. É preciso estar atento às palavras que usamos e aos pensamentos que tais palavras significam; atento aos gestos e às atitudes, e agir com prudência até perceber a beleza e a potência que habita os detalhes, as sutilezas, a simplicidade da vida.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar / Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar / Decidido, pela estrada / Que ao findar vai dar em nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar

Desprender-se um pouco dos planos e projetos para libertar-se ao acaso. Permitir-se. Como diz outra canção: ‘para se perder tem que se achar’. Primeiro perder-se para, depois, se encontrar. Encontrar-se consigo mesmo, estar diante de si, perceber-se, sentir-se. ‘Conhece-te a ti mesmo’. Aventurar-se ao encontro de si mas também ao encontro do outro. Porque o mundo é povoado de seres diferentes. Então, nesse movimento encontros e des_encontros podemos nos diferenciar de nós mesmos? podemos diferir? Talvez sim, porque ao se aventurar, corre-se um risco muito bom: encontrar no outro um fragmento, um pedaço daquilo que dificilmente encontra-se em si mesmo. É mais ou menos como um caminhar sem destino, decidido, pela estrada que ao final vai dar em nada do que eu pensava encontrar. Porque criar expectativas, esperar resultados, fecha a possibilidades de outros acontecimentos.

Roberto Carlos não gravou esta canção. Talvez por crer num Deus mais pleno. O Deus de Gil nesta canção é um tanto vago, ou a ser preenchido. Elis Regina gravou.

Ivan Rubens






Maranhões

Trançar suas tranças 
com a linha do equador 
Deitar com você 
Sob o sol, amador 
Há Mar_anhão 

Você coberta 
Lençóis maranhenses 
Pescar 
Você sereia 
Queimar os pés na areia 
No chão da cidade alheia 
Alhures, descansar nos tambores, crioula 

Te amar 
Antes, durante, depois 
Amar 
Te amar 
No mar 
Rolar na areia, arranhões 
Maranhões