BACURAU


Motores roncam. Duas motos levantam poeira na estrada de terra. Dois motoqueiros aceleram até chegar num vilarejo que ainda estava no mapa. Ambos despertam curiosidade e medo nos moradores. Os motoqueiros vestem calça, blusão, botas e luvas. Na porta do único bar do vilarejo, desligam os motores. O ruído cessa. Ao retirar os capacetes, da poltrona percebo: um homem e uma mulher. Dentro do bar, a atendente se mostra ansiosa. Sentada no chão, uma criança criançando. O motoqueiro pede água enquanto a motoqueira, discretamente, deixa um aparelho bloqueador de sinal de telefonia móvel: o vilarejo torna-se incomunicável. Como num filme de ficção científica, será ‘retirado’ do mapa das plataformas digitais nos minutos seguintes. Então chega a cena primorosa, aquela que, se o filme terminasse naquele exato momento, já valeria ter ido ao cinema. A motoqueira pergunta: quem nasce em Bacurau é o que? e a criança responde: GENTE!

São muitas horas da noite / São horas do bacurau / Jaguar avança dançando / Dançam caipora e babau / Festa do medo e do espanto / De assombrações num sarau (da canção Bicho da Noite, Sérgio Ricardo e Joaquim Cardoso, 1967).

No escuro da sala do cinema, risos da platéia. São os primeiros afetos produzidos por esta obra de arte chamada Bacurau. Penso que uma obra de arte se materializa na sua capacidade de produzir afetos e mobilizar emoções. Tanto mais potente quanto mais nos atravessa. Bacurau mobilizou e mobiliza... A crítica foi intensa, muita gente pensando e escrevendo, a favor e contra, recomendando o filme ou não, qualificando-o ou desqualificando-o. O filme mexe !!!

...Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico / Um anticomputador sentimental / Eu vou fazer uma canção de amor / Para gravar um disco voador (...) / Para lançar no espaço sideral / Minha paixão há de brilhar na noite / No céu de uma cidade do interior / Como um objeto não identificado (Objeto não identificado, Caetano Veloso. Gravado por Gal Costa em 1969)

A sinopse do filme diz o seguinte: a partir do velório de dona Carmelita (94 anos), a gente de Bacurau vai percebendo algo estranho na região. Drones no céu e estrangeiros circulando na região. Quando carros são baleados e cadáveres começam a aparecer, os habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.

Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja para melhorar / Tanta vida pra viver / Tanta vida se acabar / Com tanto pra se fazer / Com tanto pra se salvar (da canção Réquiem para Matraga, Geraldo Vandré. Do filme ‘A hora e a vez de Augusto Matraga’, 1965)

Chico Sciense disse que “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. Para os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, Bacurau é o homem coletivo lutando no sertão nordestino. Mas poderia ser no Brasil dos morros, das favelas, e outros interiores.

Bacurau é uma ave de plumagem macia, voo silencioso e hábitos noturnos. Bacurau é, sobretudo, uma obra de arte, um filme que vale a pena ser visto e revisto. Está em cartaz nos cinemas do Brasil e do exterior.

Ver ocaso

Ver o nada
Perfeitamente
Porque perfeita, mente
A mentira perfeita
Tipo crime que não se desvenda
Olhares fechados a olhos abertos
Apagamentos
Ocaso

E a vida o que é, meu irmão?


Eu fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita…

Uma colega mostrou citação no material didático: “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Ela estava preparando uma formação para professores e pensava no dualismo ensino - aprendizagem. Pensei na densa obra de Luiz Gonzaga Jr e na sua capacidade de ultrapassar as obviedades. E convidei minha amiga para ouvir a canção.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

A letra remete à ideia de aprendizagem. A aprendizagem nos leva a pensar no ensino. Ensino e aprendizagem são palavras (e conceitos) que andam de mãos dadas. Na minha modesta opinião, Gonzaguinha está falando de outra coisa, de algo maior, algo que vai além… e diz isso com otimismo porque, cantando, a vida é mais viva. Assim, o artista lança perguntas:

E a vida? / E a vida o que é, diga lá, meu irmão? / Ela é a batida de um coração? / Ela é uma doce ilusão? / Mas e a vida? / Ela é maravilha ou é sofrimento? / Ela é alegria ou lamento? / O que é, o que é, meu irmão?

São muitas possibilidades de resposta, da biologia às religiões. Prefiro cultivar a pergunta, mantê-la viva no sentido da busca por respostas, mesmo que provisórias, para acalentar um corpo curioso. Gonzaguinha nos lança numa busca filosófica com os pés fincados no chão.

Há quem fale que a vida da gente / É um nada no mundo / É uma gota, é um tempo / Que nem dá um segundo / Há quem fale que é um divino mistério profundo / É o sopro do criador numa atitude repleta de amor / Você diz que é luta e prazer / Ela diz que a vida é viver / Ela diz que melhor é morrer / Pois amada não é e o verbo é sofrer / Eu só sei que confio na moça / E na moça eu boto a força da fé

Há quem diga isso e aquilo da vida: você diz, ela diz… Gonzaguinha confia na jovem mulher e, com ela, afirma: “somos nós que fazemos a vida”, cada ser é autor da sua própria canção. E o desejo empurra a vida para a frente.

Somos nós que fazemos a vida / Como der ou puder ou quiser / Sempre desejada, por mais que esteja errada / Ninguém quer a morte, só saúde e sorte / E a pergunta roda e a cabeça agita / Fico com a pureza da resposta das crianças / É a vida, é bonita e é bonita

O tempo passa, a morte é certa. Entre o passado (que não volta mais, exceto nas lembranças) e o futuro (incerto), temos o presente. O que temos feito da vida neste tempo presente? Como criança entende de presente, Gonzaguinha conclui com elas: A vida é bonita ao quadrado.

Viver e não ter a vergonha de ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz / Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita

Criança canta, criança brinca. Criança se permite viver as belezas e as sutilezas do aqui e do agora. Criança se faz presença. Uma criança não passa despercebida. Quem nunca viu uma criança concentrada numa brincadeira, como se o mundo estivesse completamente parado? Podemos pensar na infância para além do tempo cronológico, não apenas como uma etapa da vida mas como uma experiência de relação com o tempo, com o mundo e com a própria vida. Talvez isso esteja entre ensino e aprendizagem.

Ivan Rubens
estudante de educação





Se eu quiser falar com Deus


Disponível no spotify, podiquesti Andarilhagens.



“O Roberto Carlos me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso... E se eu quiser falar de falar com Deus? Com esses pensamentos, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes”. Assim começou, segundo Gilberto Gil, sua criação.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz / Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós / Dos sapatos, da gravata / Dos desejos, dos receios / Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta / Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus

O compositor sugere que para falar com Deus não precisa muita coisa. Basta estar sozinho, na penumbra, em silêncio, em paz. É bom desatar os nós que nos apertam como os do sapato e da gravata. Mas também é bom folgar as grades que aprisionam nossos desejos e receios. É bom dar-se tempo, libertar-se um pouco das cronologias e ordens. Não carregar nada, não levar nada, ter as mãos vazias. E se expor assim como se é, assim como viemos ao mundo: nus.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor / Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou / Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão / Dos palácios, dos castelos / Suntuosos do meu sonho / Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho / E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração

O ser humano é, de um modo geral, enganador. Ele busca permanentemente o prazer, a alegria, a felicidade. Ele evita a dor, ele engana_a_dor. Contudo, a vida é muito complexa. A linha sugerida por Gil é aceitar a dureza da vida, aceitar também a tristeza e o medo. Mas não qualquer medo. É preciso aceitar um medo específico: o medo que dá-se a si mesmo. É preciso estar atento às palavras que usamos e aos pensamentos que tais palavras significam; atento aos gestos e às atitudes, e agir com prudência até perceber a beleza e a potência que habita os detalhes, as sutilezas, a simplicidade da vida.

Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar / Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar / Decidido, pela estrada / Que ao findar vai dar em nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar

Desprender-se um pouco dos planos e projetos para libertar-se ao acaso. Permitir-se. Como diz outra canção: ‘para se perder tem que se achar’. Primeiro perder-se para, depois, se encontrar. Encontrar-se consigo mesmo, estar diante de si, perceber-se, sentir-se. ‘Conhece-te a ti mesmo’. Aventurar-se ao encontro de si mas também ao encontro do outro. Porque o mundo é povoado de seres diferentes. Então, nesse movimento encontros e des_encontros podemos nos diferenciar de nós mesmos? podemos diferir? Talvez sim, porque ao se aventurar, corre-se um risco muito bom: encontrar no outro um fragmento, um pedaço daquilo que dificilmente encontra-se em si mesmo. É mais ou menos como um caminhar sem destino, decidido, pela estrada que ao final vai dar em nada do que eu pensava encontrar. Porque criar expectativas, esperar resultados, fecha a possibilidades de outros acontecimentos.

Roberto Carlos não gravou esta canção. Talvez por crer num Deus mais pleno. O Deus de Gil nesta canção é um tanto vago, ou a ser preenchido. Elis Regina gravou.

Ivan Rubens






Maranhões

Trançar suas tranças 
com a linha do equador 
Deitar com você 
Sob o sol, amador 
Há Mar_anhão 

Você coberta 
Lençóis maranhenses 
Pescar 
Você sereia 
Queimar os pés na areia 
No chão da cidade alheia 
Alhures, descansar nos tambores, crioula 

Te amar 
Antes, durante, depois 
Amar 
Te amar 
No mar 
Rolar na areia, arranhões 
Maranhões

Moska e Cristo



O que Jesus Cristo diria hoje?

Foi essa a pergunta que se fez o compositor Paulinho Moska ao se deparar consigo mesmo. Sua imagem refletida no espelho, magro, barbudo e cabeludo, o conduziu a uma reflexão: o que Jesus diria para leitores e leitoras da bíblia nos dias de hoje? Moska é filho de família católica e, ao tornar-se “ateu-ativo” (palavras dele) ampliou seu interesse pela literatura religiosa. Afirma ler compulsivamente livros que constroem, destroem, reconstroem, re-destroem as várias religiões. Afirma também perceber nas religiões um intenso e profundo processo, algo que lhe fascina: uma espécie de obra de arte. Fala da bíblia como um livro belíssimo, uma literatura fantástica. Vê Cristo como o maior poeta do amor. E critica a maneira como as instituições religiosas transformaram a palavra, a partir da bíblia, em dispositivos de controle dos corpos. Daí vem a inspiração para as primeiras frases da canção A Seta e o Alvo: Eu falo de amor à vida, você de medo da morte / Eu falo da força do acaso e você, de azar ou sorte / Eu ando num labirinto e você, numa estrada em linha reta / Te chamo pra festa mas você só quer atingir sua meta / Sua meta é a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera Paulinho Moska é um multiartista. Passeia por muitas linguagens: a música, a composição, letras e melodias. O violão. Mas o teatro está na origem. E essa experiência de viver personagens o ajuda a criar canções. Imagine a situação descrita acima: “é como se” Paulinho e Jesus Cristo estivessem frente a frente, conversando, trocando ideia. É um jeito de empurrar o pensamento, de colocá-lo em movimento. É como se o artista colocasse o pensamento para cumprir seu papel: pensar! e a imaginação se lembra que possui asas, e começa a voar. Então nasce uma obra de arte, neste caso uma canção. Eu olho pro infinito e você, de óculos escuros / Eu digo: "Te amo" e você só acredita quando eu juro / Eu lanço minha alma no espaço, você pisa os pés na terra. / Eu experimento o futuro e você só lamenta não ser o que era. / E o que era? Era a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera A bíblia foi escrita no seu tempo. Há que considerar seu contexto. Há que perceber o contexto atual para leitura e interpretação das palavras presentes no livro visto que, lembra o compositor, “nada é eterno”. Nem a palavra pode ser eterna: a palavra é frágil, a palavra não explica quase nada. A palavra é pouca para o nosso pensamento, a palavra é curta para nossa potência. A palavra é uma diversão barata. Porque nada, nem mesmo as palavras, nem mesmo nossa capacidade de dizer, nem mesmo a linguagem toda dá conta da própria vida. A vida é mais, a vida é maior do que nossa capacidade de dizer da vida. Eu grito por liberdade, você deixa a porta se fechar / Eu quero saber a verdade, e você se preocupa em não se machucar / Eu corro todos os riscos, você diz que não tem mais vontade / Eu me ofereço inteiro, e você se satisfaz com metade / É a meta de uma seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera Uma canção na sua dimensão obra de arte se faz por si. A criação de Moska começou assim nas primeiras frases, e vai ganhando vida própria. Segue um curso singular até nascer. Ela é em si, ela é arte é criação. Neste sentido, humanos assumem uma dimensão divina: criadores e criaturas. Criar é um ato divino. Então me diz qual é a graça / De já saber o fim da estrada / Quando se parte rumo ao nada... Ivan Rubens Dário Jr Geógrafo, doutorando em Educação

Alguém me avisou



Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há / Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há

Às vezes o convite chega todo bonito, embrulhado em palavras organizadas e precisas, embrulhado num envelope de papel ou aquele envelope iconográfico do email. Ou num chat, numa rede social, num desses aplicativos causadores de ansiedade e conversas instantâneas. Convites também nos chegam escondidos, camuflados em frases enigmáticas, distorcidos no sentido de uma ou outra palavra. Bem, nos importa aqui o convite.

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho / Mas eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho / Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho

Tenho recebido convites para visitar Escolas, conversar com professoras e alunxs. Ao aceitá-los sinto um primeiro incômodo: o que vai acontecer? o que vou fazer lá? como serei recebido? Um bom incômodo é aquele que te tira do lugar, que te lança para frente, que te empurra, te coloca em movimento e você caminha, busca, procura um novo lugar. Um bom incômodo é aquele de te empurra pra pensar. Movimenta o corpo-pensamento. Dona Ivone Lara nos dá a dica: “pisar nesse chão devagarinho”. Isso mesmo. Porque é preciso saber que se chega, é prudente saber que se chega e saber(-)se chegar. Porque há um chão com características peculiares. Todo chão é singular.

Pensemos num rio. Entra-se pela primeira vez num rio. O ineditismo é seu, não do rio. O rio está ali em seu fluxo há tempos, séculos, milênios… O rio tem seu fluxo; entra-se no fluxo do rio. Ou seja, antes de você chegar, muita coisa já aconteceu. Muitas histórias, muitos acontecimentos, tudo o que constitui uma realidade singular. Pisar nesse chão devagarinho requer cuidado. A leveza do passo, o toque dos pés no chão, sentindo os pés e o chão, um calçado adequado, pantufas de lã, ou mesmo descalço para sentir melhor.

Sempre fui obediente / Mas não pude resistir / Foi numa roda de samba / Que juntei-me aos bambas / Pra me distrair

Ivone Lara nasceu no Rio de Janeiro em 1921. Neta de moçambicanos, a mãe foi cantora do Rancho Flor do Abacate e o pai foi mecânico de bicicletas, violonista e componente do Bloco dos Africanos. Aos seis anos de idade, ficou órfã de pai e mãe. Estudou no internato onde permaneceu até os 16 anos. Foi assistente social e enfermeira especialista em terapia ocupacional. Com a médica psiquiatra Nise da Silveira, introduziram a arte no tratamento de pacientes esquizofrênicos. Com música e principalmente com pintura, essa experiência revolucionou a psiquiatria na segunda metade da década de 1940. Criada pelos tios, Ivone conheceu o samba e aprendeu a tocar cavaquinho. Participava da escola de samba Prazer da Serrinha e, com a fundação do Império Serrano em 1947, passou a desfilar na ala das baianas. Compunha sambas mas não podia apresentá-los por ser mulher.

Quando eu voltar na Bahia / Terei muito que contar / Ó padrinho não se zangue / Que eu nasci no samba / E não posso parar

Ivone tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala dos compositores de escola de samba. Aposentada da enfermagem em 1977 passou a dedicar sua vida a música.

Foram me chamar / Eu estou aqui, o que é que há

Alguém me avisou é um samba de Ivone Lara. A rainha do samba nos deixou em abril de 2018.



Ivan Rubens Dário Jr
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 21/05/2019

Amores e Espumas ao vento



Quem nunca brincou de bola de sabão? ou na infância dos corpos crescidos, duas mãos ensaboadas estendidas, um sopro forte de lábios: espumas ao vento… O pernambucano Accioly Neto nascido em 1950 e falecido em 2000, escreveu um forró que diz assim:


Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim / Um grande amor não se acaba assim / Feito espumas ao vento


Leve, a espuma voa para longe até se desfazer. Parece que é assim também com um amor: leve feito espuma, se desfaz com o vento, desmancha no ar. Apesar do desfazimento, do desmanchamento, parece que não se apaga. E não se apaga porque deixa marcas, profundas marcas.


Não é coisa de momento / Raiva passageira / Mania que dá e passa feito brincadeira / O amor deixa marcas que não dá pra apagar


Terminar um grande amor é uma espécie de luto. Sim, porque o luto se situa na dinâmica entre dois pólos da existência humana: a vida e a morte. Como a perda é real, sente-se uma tristeza profunda mas que é, contudo, superada com o passar do tempo. A exemplo do luto, associemos a perda de um grande amor a uma espécie de morte: algo morreu aqui dentro de quem ama.


Sei que errei e estou aqui pra te pedir perdão / Cabeça doida, coração na mão / Desejo pegando fogo


Podemos também associar um grande amor a uma espécie de vida. Uma vida maior, mais colorida, mais cheia de sentido, mais intensa. “Quando a gente ama é o clarão do luar”, diz um samba. Ou, “o amor é fogo que arde sem se ver” disse o português Luiz de Camões em Os Lusíadas.... o amor é fogo, o amor arde, o amor é chama, o amor é quente… e quando ele chega ao fim, bate aquela tristeza, aquela vontade danada de não deixá-lo ir, uma vontade de poder ressuscitá-lo como fez o super-homem ao voar contra o movimento de rotação para, fazendo a Terra girar para trás, fazendo o relógio rodar para trás, salvar da morte, com seus super poderes, a mulher amada. Esta cena emblemática do filme Superman foi representada por Gilberto Gil em ‘Super Homem - a canção’.


Sem saber direito aonde ir e o que fazer / Eu não encontro uma palavra só pra te dizer / Mas se eu fosse você, amor, eu voltava pra mim de novo


As marcas deixadas por um grande amor não são necessariamente marcas de dor. Cicatriz é uma marca na superfície do corpo. Cicatrizes lembram machucados, ferimentos. Cicatrizes são marcas de dor. Tatuagens também são marcas na superfície do corpo. Tatuagens costumam representar bons afetos, bons momentos, gente querida. Entretanto, lá no fundo, aqui dentro do corpo, o amor deixa marcas que não se pode apagar. Depois de um grande amor não somos mais a mesma pessoa. Superado o luto, percebemos que fica dentro da gente um pouco da pessoa amada. Estamos diferentes, somos mais, estamos melhorados com (ouso dizer) a melhor parte da pessoa amada que ficou aqui dentro, numa espécie de corpo emocional ou, como dizem, dentro do coração. O compositor recomenda não fechar a porta. Porque uma fresta é suficiente quando um amor pede passagem. E quando se sente o corpo vibrando por dentro, aquele amor continua pulsando, a chama não se apagou, o chão de amor permanece fértil para germinar a semente e brotar mais uma vida nova. É festa !!!


E de uma coisa fique certa, amor / A porta vai estar sempre aberta, amor / O meu olhar vai dar uma festa, amor / Na hora que você voltar


com Mariana Aydar

com Fagner

com Elza Soares

para o filme Lisbela e o prisioneiro


Suzano: luto na cidade das flores


Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade. / Muitos temores nascem do cansaço e da solidão / E o descompasso e o desperdício herdeiros são / A glória da virtude que perdemos. / Há tempos tive um sonho, não me lembro / não me lembro…


2/abril/1999 - Dois estudantes mataram 12 alunos e um professor da Columbine High School/EUA. 21 pessoas feridas. Os dois estudantes se mataram. Oscar de melhor documentário para Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore. Suzano completava 50 anos.


Tua tristeza é tão exata / E hoje o dia é tão bonito / Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso. Os sonhos vêm e os sonhos vão / O resto é imperfeito.


2003 a 2012 - Durante 8 anos morei na rua da Escola Estadual Raul Brasil em Suzano/SP. Parte dessa história está no livro “Pedagogias da Cidade: corpos e movimento” lançado em 2018 pela Appris editora. Em Suzano conheci muita gente bonita, colorida, mistura de raças e etnias, gente trabalhadora e dedicada. Suzano é conhecida como a Cidade das Flores.


13/março/2019
9 horas. Um jovem de 17 anos e um rapaz de 25, atiram em um comerciante de carros em Suzano, tio de um dos rapazes.
9h30. Os dois jovens entram na escola Raul Brasil, ambos ex-alunos, e matam a tiros 2 funcionárias e 5 estudantes do ensino médio. Tristeza exata e precisa: eles usaram um revólver com numeração raspada e armas  brancas: uma machadinha e uma besta. Onze pessoas ficaram feridas. Na versão oficial, a dupla se matou no momento da chegada da polícia. Dez pessoas foram mortas. Jovens estudantes pularam os muros da escola às fugindo do massacre e buscando refúgio nas casas da vizinhança.


Disseste que se tua voz tivesse força igual / À imensa dor que sentes / Teu grito acordaria / Não só a tua casa / Mas a vizinhança inteira.


14/março/2019 - A polícia civil informou que os jovens planejaram o crime há tempos. Conseguiram apoio de pessoas que, na internet, discutem e incitam crimes de ódio e intolerância protegidas por ferramentas de anonimato. Ainda segundo a polícia, os jovens tentavam superar o massacre de Columbine. Num lado da cidade, um velório coletivo com parte das vítimas: milhares de vozes, gritos de dor ecoando pelo mundo. Noutro lado, uma desértica cerimônia de enterro dos réus: policiais, jornalistas e o grito surdo de uma mãe.


E há tempos nem os santos têm ao certo / A medida da maldade / Há tempos são os jovens que adoecem / Há tempos o encanto está ausente / E há ferrugem nos sorrisos / E só o acaso estende os braços / A quem procura abrigo e proteção.


17/março/2019 - Voltei a Suzano. Andei pela bairro e pela rua Otávio Miguel da Silva num reencontro com meu passado. Vi gente consternada. Sobre a tinta branca das paredes da escola, pedidos de paz em desenhos, sinais, palavras e frases. Marcas de mãos espalmadas. E muitas flores. A cidade das flores homenageando os filhos que partiram. A rua, o bairro e até mesmo a cidade já não são as mesmas. Talvez a cidade das flores seja conhecida, a partir de agora, como a cidade das mortes na escola.


Qual seria a medida da maldade? quantas vítimas somos? qual a nossa responsabilidade na produção de uma sociedade, uma juventude, que sente imensa dor? por que tanto cansaço e solidão? Estamos chocados, inconformados porque aconteceu desta vez dentro de uma escola pública. Parece que já não mais nos afetamos com chacinas nas periferias e favelas. Mas tanto um quanto o outro são, de alguma maneira, a materialização do gesto de campanha do atual presidente do Brasil. Dois jovens o levaram a sério.


disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem / Lá em casa tem um poço / mas a água é muito limpa.


Há tempos é uma canção da banda Legião Urbana. A canção começa falando de uma tristeza que entorpece. O clipe da canção sugere que o caminho de saída está nos livros, nas artes e na cultura. O buraco do poço é fundo e escuro, mas a água é limpa.


Ivan Rubens Dário Jr

geógrafo, doutorando em Educação.




publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 26 de março de 2019

Anunciação, brumas, Brumadinho

Na bruma leve das paixões que vem de dentro / Tu vens chegando prá brincar no meu quintal / No teu cavalo peito nu cabelo ao vento / E o sol quarando nossas roupas no varal

Anunciação é uma canção de Alceu Valença, gravada pela primeira vez no álbum Anjo Avesso de 1983. Pernambucano de São Bento do Una, Alceu é atento ao sentido das palavras. Vejamos o título desta canção em uma palavra: ‘Anunciação’ pode ser compreendida como ação ou efeito de anunciar. Na teologia, é a notícia, levada pelo anjo Gabriel à virgem Maria, de que ela seria a mãe do filho de Deus.

Tu vens tu vens / Eu já escuto os teus sinais

Esta canção me fazia pensar na deliciosa sensação que precede o encontro com alguém, uma pessoa muito querida que está por vir. Pensar também na sensação da espera pelo beijo, quando o coração acelera, a mão transpira. E vai por aí...

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido / E eu não duvido já escuto os teus sinais / Que tu virias numa manhã de domingo / Eu te anuncio nos sinos das catedrais
Dizem que a canção nasceu quando o compositor esperava a chegada do filho: Alceu ouvia os gritos da mãe durante o trabalho de parto quando, à espera do primeiro choro que anuncia a chegada do bebê, ouve sinos de uma igreja das redondezas. Essa mistura de sons foi compondo as melodias da canção na cabeça do artista. São, então, duas novidades: uma vida nova vem ao mundo, uma bela criação vem ao mundo.

Tu vens tu vens / Eu já escuto os teus sinais

Abordei o sentido que esta canção produz em mim. Contudo, um episódio recente iniciou uma nova significação: ‘bruma’ pode ser compreendida como neblina, nevoeiro, algum embaçamento que, ao dificultar a visão, exige do observador muita atenção. Brumadinho é diminutivo de bruma. Brumadinho é, também, um município no estado de Minas Gerais cujo nome vem exatamente das brumas comuns naquela região de montanhas. Em 2019 o município ficou conhecido pelo acidente ambiental devido ao rompimento de uma barragem da empresa Vale S.A. Não foi a primeira vez. Vale lembrar Mariana/MG: em 2015 ocorreu o maior acidente ambiental da mineração brasileira com o rompimento da barragem do Fundão pela Samarco, empresa controlada pela Vale. Ao tratar como um acidente, parece que não há uma empresa privada explorando o minério e administrando todo seu processo produtivo. Mas isso vale para quem? para a multiplicidade de espécies animais e vegetais devastadas pela lama? para a multiplicidade de culturas devastadas? muita vida não pulsa mais. Vale a morte?

Podemos tratar o caso Mariana como crime ambiental. No caso de Brumadinho, 157 pessoas mortas e 182 pessoas desaparecidas (dados de 8/fev). Talvez estejamos diante de um crime contra a humanidade.

Ao tratar como acidente estamos preservando a empresa, estamos higienizando a marca Vale. Segundo o site da empresa, “a Vale é uma mineradora global que transforma recursos naturais em prosperidade”. Prosperidade inclui seus crimes? inclui toda a vida sentenciada de morte?

Mariana anunciou. Brumadinho anuncia. Triste Anunciação.

Ivan Rubens Dário Jr
geógrafo, doutorando em Educação.

Máscara Negra

Tanto riso, oh quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão / Arlequim está chorando pelo amor da Colombina / No meio da multidão (...)


Calor naquele samba dominical em Rio Claro quando recebi o convite para esta coluna. Falávamos da vida cotidiana quando uma questão nos ocorreu: será que existe uma canção a respeito deste (ou daquele) tema? para tudo já existe uma canção? Então, pensei: se procurar bem, garimpar, vasculhar o cancioneiro popular, encontraremos sinais, pensamentos, ideias e reflexões, encontraremos os sentimentos e elaborações, os acontecimentos cotidianos mais elementares da existência humana. Nesse fluxo, me lembrei de um silencioso José.


Canções populares como ‘Máscara Negra’, ‘A voz do morro’, ‘Diz que fui por aí’, ‘Opinião’, imortalizadas na voz de grandes intérpretes da música brasileira, são composições de José Flores de Jesus, o Zé Keti.


Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro / Sou eu quem levo a alegria / Para milhões de corações brasileiros (...)


Nascido no subúrbio Rio de Janeiro em 1921, Zé Keti cantou o samba, as favelas, a malandragem, seus amores. Seu avô, flautista e pianista, costumava promover reuniões musicais em sua casa, frequentada por bambas como Pixinguinha por exemplo. Mais tarde mudou-se para Bento Ribeiro onde passou a frequentar a quadra da Portela. Um menino quieto, um José, um Zé quieto como era chamado na infância. Quieto virou kéti, daí seu nome artístico. Zé Keti foi peixeiro. Em 1960 abriu uma barraca de peixes na Praça Quinze no RJ.


Podem me prender / Podem me bater / Podem, até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui do morro / Eu não saio, não


Além de suas canções, um episódio marcou a história da MPB: o Teatro Opinião. No contexto do golpe de militar de 1964, a canção ‘Opinião’ foi traduzida para o teatro e dirigida por Augusto Boal. Zé Keti interpretava um favelado, João do Vale fazia um nordestino das caatingas do Maranhão e Nara Leão, uma garota da alta sociedade carioca, estudante da PUC. Com alguns problemas de saúde, Nara foi substituída pela baiana Maria das Graças, ainda com 17 anos de idade. Para chegar ao Rio de Janeiro a convite de Boal, a menina contou com a ajuda do irmão Caetano Veloso. Assim, entra na cena cultural brasileira a artista Maria Bethânia. Mas essa história fica para outro dia....


No início dos anos 1970, Zé Keti foi para São Paulo onde trabalhou na reforma de prédios, trabalhou como funcionário público e representante de laboratório farmacêutico. Passou os últimos anos de sua vida na casa dos filhos entre SP e RJ. Nunca deixou de compor. Em 1999 recebeu uma homenagem pelos 60 anos de carreira. Em agosto do mesmo ano, com a morte de sua ex-mulher, entrou em profunda depressão. Morreu em 1999 aos 78 anos de idade.


Se alguém perguntar por mim / diz que fui por aí…


José Flores de Jesus é Zé Keti. Um negro suburbano carioca. Um artista brasileiro.


Ivan Rubens, estudante.

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 29/01/2019

Eleições 2018: alguns dados...


Vivemos tempos de eleições. Em outubro, diante da urna eletrônica, o povo brasileiro escolherá Presidente da República, Governador/a nos 27 estados da federação, Senadores/as, Deputados/as Federais e Deputados/as Estaduais. Por meio do voto vamos definir dois poderes em dois níveis, a saber: o poder Legislativo e o poder executivo, tanto no nível federal quanto no nível dos Estados Federados. Ou seja, escolheremos quem nos representará em Brasília e em São Paulo. Deputados e deputadas Federais, Senadoras e Senadores, deputados e deputadas estaduais; e para o poder executivo escolheremos quem, em nosso nome, governará o Estado de São Paulo, portanto o governador ou governadora, e o Brasil ou a União, portanto Presidente ou Presidenta. Bem, para colaborar com os/as (e)leitores/as, vamos colocar o processo de votação na ordem correta:

1. Primeiro voto é para deputado/a federal. Votaremos para escolher nosso representante para a Câmara Federal. Serão 4 dígitos na urna eletrônica mais a tecla confirma. Nesse caso, cada eleitor/a escolherá um/a representante, mas a Câmara Federal é composta por 513 deputados que representam os interesses do povo do seu estado. Então, o eleitorado paulista será representado por 70 deputados, o limite máximo segundo a legislação, compondo a maior bancada. O limite mínimo são 8 deputados representando a população dos estados de menor eleitorado como o Acre por exemplo.

2. Segundo voto é para Deputado/a Estadual. Votaremos para escolher nosso/a representante para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Serão 5 dígitos na urna eletrônica mais a tecla confirma. Neste caso, cada eleitor/a escolherá um/a representante, mas no total serão eleitos 94 deputados à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

3 e 4. Terceiro voto é para Senador/a. Votaremos para escolher nosso/a representante para o Senado. Serão 3 dígitos na urna eletrônica mais a tecla confirma. No Senado Federal, diferente da Câmara dos Deputados, a representação é federativa, ou seja, cada Senadora ou Senador representa seu estado. Por isso, são três representantes para cada um dos vinte e seis Estados e do Distrito Federal totalizando 81 senadoras/es. Apenas no Senado o mandato é de oito anos, mas a renovação é de quatro em quatro anos alternadamente. Ou seja, em 2018 elegeremos dois senadores. O terceiro e o quarto voto serão para Senadora e Senador.

5. O quinto voto será para Governador do estado de SP. 

6. E o sexto voto será para escolher a Presidente da República.

Seis votos no total. Se considerarmos a quantidade de dígitos por votação mais os ‘confirma’, serão vinte e cinco toques na urna eletrônica, número que pode aumentar em caso de correção ou diminuir se a opção for votar na legenda, por exemplo. Mas isso será no dia 7 de outubro. Até lá, é importante pesquisar bem para decidir em quem confiar o voto. Veja os materiais de campanha, veja o programa eleitoral, pesquise a biografia dos candidatos, quais compromissos políticos assume, que grupos de interesse representa. As informações estão aí. Seja crítico, questione, tire suas dúvidas. Exija compromissos públicos. Converse sobre isso, reflita. Esse é o jeito de exigir mais qualidade dos/as candidatos/as. Afinal, os resultados disso serão sentidos por todos nós durante os 4 (ou 8) anos do mandato.

Ivan Rubens – educador.
24/set/2018

a boa política de segurança pública

Durante o debate entre os candidatos a governador do estado de São Paulo em 16/agosto/2018, Marcelo Candido falou das possibilidades de reduzir a violência com políticas sociais. Aqui um bom exemplo:

Ser neta de Maria W. Jordão. por Ivanessa Jordão Dário Chill

Dos meus quase 40 anos vividos, vivi também outros 50 anos da vó Quinha. Pensando que ela tinha tanta lembrança anterior a mim, tive o privilégio de ouvir muuuiiiitttooossss causos, presenciei muitos aconselhamentos, e também certas aflições da vida….

Algumas lembranças da infância dela e do que vivemos me vieram à memória enquanto lia um texto que meu amado irmão escreveu para este dia primeiro de julho de 2018 quando comemoramos aniversário de 90 anos. Vou falar de alguns episódios, incluindo alguns “grandes delitos” que ela cometeu:
para poder ler romance escondido de sua mãe, a bisa Maria, que a proibia desse tipo de leitura, ela usava suas artimanhas de garota: subia nos galhos mais altos das árvores do quintal. E, mais perto das nuvens no céu, voava nas asas da literatura brasileira;
- A ânsia de esperar seu pai chegar do trabalho para mimá-la e embebedar-se de sua mansidão;
- O prazer de ornamentar, com as flores de papel que fazia, o fio do lustre da casa;
- Subir o mais alto nas árvores;
- Do mais, ter podido ser apenas uma criança que foi muito desejada e amada….

Eu penso que a palavra que resume a minha vó é “cuidado”. Ela é, desde sempre, muito atenta tanto aos detalhes quanto aos grandes atos. Detalhes que poderiam nos parecer menores mas que, com o tempo, percebemos a grandeza dos detalhes. Os detalhes, os pequenos gestos, porque é na simplicidade que estão as grandes revelações. Assim ela sempre nos revelou os valores que nos transmitia: cuidado com a casa, com os amigos (que cultivou muitos), com os problemas e defeitos de todos nós. Ela nos ensinou que não se é humano. Porque ser humano não é algo dado, fixo, pronto e acabado. Não !!! Ser humano é sempre um vir a ser humano. É um esforço paciente, cotidiano, cuidadoso de tornar-se humano. E para tornar-se humano, mais humano, o desafio permanente é o de cuidar de si, estar atento a si e ao próximo, é cuidar dos encontros que acontecem e nos acontecem ao longo da vida. É cuidar da casa. E são tantas casas: o corpo é a casa do espírito, a igreja é a casa, a cabeça é a casa do pensamento e da imaginação, a cidade é casa de uma sociedade inteira, o Brasil é casa, o mundo é casa. O livro é casa, a poesia é casa, a música é casa. E que todas essas casas são habitações de Deus.
É tentar ser melhor a cada dia. Ela sempre teve um olhar muito humano com todos à sua volta e com os que estavam longe (mas aquecidos por seus sentimentos de amor e carinho).

Impossível não lembrar:
- daquele pão quentinho cedo?
- da campainha que tocava na casa da vizinha para avisar e ser um socorro? isso mesmo: havia um interruptor que dona Auzira acionava da casa ao lado em caso de emergência.
- do lanche para levar na escola esperando no portão antes das 7h da manhã? (isso é de uma delicadeza e de um carinho indescritível)
- Impossível não lembrar:
- das revoadas de pássaros, no início e no final de cada dia, sem dizer: os pássaros da vó !
- do carinho com que recebia, e recebe até hoje, as amigas para o círculo bíblico;
- As jogatinas intermináveis de buraco?…. Sábado era sagrado!
- a ritualística dos nossos dias de aniversário;
- As trocas das toalhinhas da casa a cada ocasião especial......
Impossível não lembrar das noites de cantoria! são tantas as canções antigas que fazem parte de nosso repertório musical que aprendemos na sua voz afinada e doce;

A brincadeira de observar as placas dos carros na estrada durante nossas viagens; qual é a música? e….. olhar pela janela do carro e observar a mesma árvore, o ipê amarelo, aquela baixada, o rio, a ponte…. assim aprendemos a perceber as estações do ano, a seca, a temporada de chuva… com essa prática ela, sem anunciar, nos mostrava que o mundo é encantador. Ela despertava em nós uma curiosidade com o planeta e nos ensinava, sem grandes alardes, a urgência de cuidar da Terra, mesmo que aqui numa pequena parte de sua imensidão.

Ela nos ensinava a perceber a vida pulsante da natureza e em nossa dimensão humana: Veja a vida! Não deixe ela apenas passar….

Dentre tantos ensinamentos, aprendi crochê, tricô, costura, produzir coisas com as próprias mãos para embelezar ou presentear. Quem não passava o ano todo escolhendo o cardápio do almoço do próprio aniversário? E ela se dedicava em fazê-lo, preparava a comida com um carinho especial.

Por não estar na idade adequada, fiz o antigo pré primário duas vezes. ´meio que típico dos irmãos não perderem uma oportunidade de ‘zoar’. Os meus irmãos diziam que eu havia repetido o pré. Penso hoje em dia que vivi um ano particularmente especial…. tive uma oportunidade muito especial, única eu diria: a presença diária da minha avó Mariquinha. Fiquei em sua companhia um ano inteiro. Uma espécie de preparação intensiva para o início da minha vida (por assim dizer) formal. Foi um ano maravilhoso. Assim como é simplesmente maravilhoso ser neta da Mariquinha, conviver com ela, amá-la e receber seu amor.

Ivanessa Jordão Dário Chill

A infância do amor: os 90 anos de Maria Witzel Jordão

Dia desses uma vibração no meu celular causou uma certa vibração em mim. Isso mesmo: a chegada de uma mensagem me causou terremotos. Uma infância se fez em mim. Passei a brincar com o tempo como aquela criança que, brincando, parece habitar um mundo à parte, um mundo sem o tempo marcado pelo relógio, um mundo fantástico de fabulações e fantasias. Como se o relógio parasse e existisse no mundo apenas a criança, seus brinquedos e sua imaginação. Como disse o filósofo pré-socrático Heráclito de Eféso (535 – 475 dC), uma criança criançando.

No meu celular chegou uma imagem que não era uma fotografia qualquer: Maria Witzel Jordão e Aurora de Carvalho Bartiromo frente a frente. Olhares se atravessando e entre elas 90 anos. Presentes  tataravó e a recém nascida. Algumas perguntas me ocorreram na mesma velocidade em que meus olhos curiosos percorriam a imagem: o que minha avó estaria pensando? Mais do que isso, o que diria Mariquinha para a recém nascida Aurora? Me ocupei um pouco desta questão quando outra pergunta me ocorreu: o que dizer para uma mulher às vésperas de completar 90 anos de idade? Poderia encher de vãs palavras muitas páginas... mas, voltemos à fotografia.

Estava ali registrado: duas vidas, 90 anos e muitas vidas. Nos braços de Mariquinha estava Aurora, sua segunda tataraneta. Mariquinha lançava para Aurora um olhar enigmático, alegre e carinhoso. Um olhar emoldurado por um sorriso monalítico, um quase ri comunicativo. Como se dizendo alguma coisa com seu olhar penetrante e doce, forte e meigo. Basta pensar um pouco para surgir uma lista extensa de temas, de assuntos, de conselhos, de recomendações que os olhos da tataravó poderiam sugerir para a tataraneta. Palavras, frases, afirmações que, certamente, tornariam a caminhada da pequena mais leve, mais suave, mais tranquila. Mas quais seriam exatamente as palavras cuidadosamente escolhidas para compor esta frase? Fiquei pensando se uma única palavra resumiria esse diálogo silencioso, mudo de palavras e inesgotável em conteúdo, em sabedoria de vida.

Tentei saber da Mariquinha o que ela diria para Aurora. Ela me disse que seu neto Francisco, agora avô pela primeira vez, conversa com a pequenina. Que ela ouviu o infante marujo dizendo: você é linda, você é muito querida aqui, você é muito amada, e coisas desse tipo. Num primeiro momento pensei que ela esquivara da minha pergunta mas, logo percebi a grandeza de sua resposta. Francisco experimenta uma infância em ser avô e constitui uma linguagem entre ele e Aurora; eu experimento uma infância ao olhar aquela linda fotografia e tentar uma linguagem para a festa que se produz em mim; Aurora tem diante de si um mundo imenso de afecções que, neste momento é experimentado à flor da pele em frios, calores, umidades... já podem estar chegando os primeiros cheiros, as cores, os sons como aquele percebido na voz doce do avô. Daqui algum tempo chegarão as palavras, as frases, e com a linguagem também chegarão os primeiros entendimentos. Porque entender vem depois de sentir.

Aurora, sua segunda tataraneta, aquela que é como o nascer do sol, instaura em nossas vidas uma nova vida. E nós, descendentes da Mariquinha e seu amor por Juca Jordão que vive em nossos corações, 2 filhas, 3 netas e 2 netos, 4 bisnetas e 3 bisnetos, 2 tataranetas, que desde os primeiros raios de sol de nossas vidas recebemos todo amor da Mariquinha queremos, neste dia que remontam 90 anos, dizer de todo nosso sentimento por ela em apenas uma única palavra: AMOR!

publicado no jornal Diário de Rio Claro em 01 de julo de 2018

A que conduz?


a que conduz?
pergunta que ecoa.
não à toa
a cada entrada na sala de aula
a cada encontro que provoca ou acalma
com jovens e educadores
nas dores
no amadorismo dessa vocação
no metamorfismo da educação
no amor: qual o papel de um educador?

Existência

Se Deus existe....
Ele está no trabalho
E na alegria que nasce dessa dedicação

Se Deus existe...
Ele está na canção
E no olhar vivo de cada adultocriança

Se Deus existe....
Ele está na esperança
E no sonho de vida melhor neste mundo

Se Deus existe...
Ele está no mundo
Nas cores tatuadas do arco-iris do céu

Se Deus existe...
Ele está no céu, no mar,
Nos raios de sol, na noite de luar

Olha:
Se Deus existe...
Ele está na arte
A vida exige a arte
A arte existe porque a vida não basta. (como disse uma amiga que disparou esta escrita)

Aprendendo com o Girassol



“O girassol que inquieto procura a luz, ao ver o sol se enche de cor” 

Vários seres do reino animal desenvolveram a capacidade de enxergar no escuro. O bicho Homem não. Homens e mulheres não enxergam no escuro. Dentre outros motivos, o bicho homem talvez observando o sol e o fogo, inventou a luz. De imediato pensamos na iluminação como tornar algo visível. Acender uma lâmpada, um fósforo, o farol do carro que ilumina a estrada durante a noite e nos permite seguir um caminho. Pois bem, também associamos a escuridão àquilo que é inexorável: a morte. Neste sentido, podemos entender a ressurreição como uma nova vida, uma oportunidade para viver uma vida outra, um renascimento. Uma espécie de segunda chance (terceira, quarta, quinta...). Penso que são tantas as vidas que vivemos dentro de uma vida. Pois toda vida, nasce com uma certeza: a certeza da morte. 

Podemos aprender com os seres do reino vegetal. O Girassol, por exemplo, recebe esse nome porque sua flor acompanha a trajetória do sol, do nascente ao poente. Esta é sua necessidade vital. Girassol é um dos símbolos pascais menos conhecidos em algumas regiões. Segundo os cristãos, os seres humanos devem estar voltados para o Sol-Cristo garantindo luz e felicidade. 

Vamos aprender com o Girassol e seguir a luz na tentativa de busca permanente pelo conhecimento e na renovação da vida, uma vida outra, uma nova vida nesta mesma vida. 

(texto para Revista da Paróquia Matriz São João Batista - Rio Claro/SP)

Sistema político brasileiro: sobre a República

APRESENTAÇÃO
Recebemos o convite para colaborar com a Revista da Paróquia São João Batista que chegou pelas mãos gentis de uma representante da Pastoral da Comunicação. Alegria e expectativas produziam uma boa mistura... Devagarinho a expectativa ganhava forma de pergunta: qual seria o tema?
E a resposta veio apimentada: Sistema Político Brasileiro. Isso mesmo.
Não se tem muito a ensinar sobre um assunto tão complexo e tão presente. Cada um com o seu olhar, com sua história de vida, sua formação, suas leituras, cada um à sua maneira pensa e fala sobre a política... porque ser humano é ser político. Contudo, pensar sobre isso nos ajuda a separar o joio do trigo, sobretudo neste tempo de intensa circulação de informações, este tempo que nos convoca a opinar sobre tudo. Você não se sente meio atordoado/a às vezes?
Pois bem, aceitamos o convite com o propósito de pensar a Política neste país complexo, colorido e potente.
Quem nunca viu um novelo de lã com fios enrolados? Dá um trabalho danado para desenrolar: você começa puxando um fio do novelo, e puxa, e percebe que se puxar muito aperta um nó. Então você desata esse nó e consegue soltar mais um pouco do fio. E aquilo que era apenas um fio vai se tornando uma linha. Então você tira outro fio, que vira uma linha e o novelo vai se transformando em linhas, que se bem utilizadas podem ganhar outras formas: tecendo linhas de lã, minha avó Maria Witzel Jordão faz meias de frio que; tecendo linhas de carinhos e cuidado, aquecem pés e corações das filhas, netas/os, bisnetas/os e tataraneta.
Pensamentos são como linhas. Nosso desejo para esta ‘coluna’ é desfazer um pouco do novelo e esticar pequenas linhas de pensamento sobre o sistema político brasileiro.

Sobre o sistema político brasileiro
O Brasil é uma República Federativa Presidencialista, formada pela União, 27 Estados, o Distrito Federal e 5.570 municípios. O Estado de São Paulo, por exemplo, possui 645 municípios, dentre eles, Rio Claro.
O exercício do poder é atribuído a órgãos distintos e independentes, submetidos a um sistema de controle para garantir o cumprimento das leis e da Constituição.
O Brasil é uma República porque o chefe de estado é eleito pelo povo, por período de tempo determinado. É Presidencialista porque o presidente da República é Chefe de Estado e também Chefe de governo. É Federativa porque os estados têm autonomia política.

A União está divida em três poderes, independentes e harmônicos:
- Executivo, que atua na execução de programas ou prestação de serviço público e, para tanto, executa o orçamento público;
- Poder Judiciário, que soluciona conflitos entre cidadãos, entidades e o estado.
- Legislativo, que elabora leis;
No nível federal, o legislativo é composto por: câmara e senado. Os senadores representam os interesses dos Estados. Os deputados federais representam os interesses da população de cada estado. Quanto maior o eleitorado de um estado, maior será sua bancada de deputados.

Curiosidades
Minas Gerais possui 853 municípios;
Roraima possui 15 municípios;
A câmara federal é composta por 513 deputados. São Paulo, o estado mais populoso e com maior eleitorado, possui a maior bancada com 70 deputados. Acre, Amazonas, Amapá, o DF, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins possuem 8 deputados cada.
O Senado brasileiro: 81 senadores sendo 3 por estado.
Senadores têm mandato de 8 anos.
Deputados Federais tem mandato de 4 anos.


(para a Revista da Paróquia Matriz São João Batista - Rio Claro/SP)

O texto baba. Transcrição da fala de Suely Rolnik





Por que que a gente inventou esse nome de texto baba?
A palavra texto baba foi inventada para dar conta de alguma coisa que estava querendo produzir... mais do que uma coisa que agente estava querendo produzir, é um lugar desde o qual a gente pensa. E a palavra baba veio porque uma vez conversando com Pierre Fédida, (analista da Lygia Clark), um psicanalista muito interessante porque se ligava muito na questão dos afetos, e ele disse: as palavras são excreções do corpo, elas são baba e aos poucos ela vai encontrando as roupinhas com as quais elas vão se apresentar.
As palavras, elas tem o conteúdo delas o significado que a gente apreende com a nossa capacidade cognitiva (nossa capacidade cognitiva é integralmente estruturada na linguagem, no repertório cultural de que a gente dispõe), então as palavras estão dentro de uma cartografia de representações, de significado. Mas as palavras são vivas nas inscrições do corpo. Que corpo? essa capacidade que tem um corpo, que é muito diferente da sua capacidade cognitiva, que é de ser afetado pelo corpo vivo do mundo é nossa condição. Uma coisa é nossa experiência subjetiva como sujeito integrado na cultura e etc; e outra coisa é nossa capacidade subjetiva como ser vivo. A experiência que a capacidade subjetiva faz como ser vivo, que é como o mundo (o cosmo e não só a Terra) que é um imenso corpo feito de forças de todas as espécies em relações que vão variando, afeta nosso corpo. Palavra afecto com c (porque não é afeto de carinho), é afecto de ser afectado, de ser tocado, de ser perturbado, de ser contaminado. E isso produz uma experiência que não tem imagem, não tem palavra, mas que ela cria uma outra maneira de ver e de sentir. E é essa experiência que, na sua tensão com o nosso campo todo de representações, significados e etc, é ela que funciona como um alarme que força o desejo a agir. O desejo entra em ação pra conseguir dar um corpo para essa experiência de maneira que ela passe a participar da realidade, das nossas imagens e etc... E que muda, muda o mapa ali. Então, essa experiência, essa ação do  desejo é que é o pensamento.

Então o pensamento tem uma função ética, porque ele tá a serviço da vida pras demandas da vida;
O pensamento tem uma função cultural, porque ele produz algo novo que muda a cartografia cultural do presente;
O pensamento tem uma função política, porque através dessa experiência (e o pensamento sobre o que fazer com essa experiência) que a gente cria escolhas e cria o que é necessário criar para que a vida individual e social volte a respirar, volte a pulsar.

E o nosso texto baba é um exercício pra poder conquistar essa capacidade de se reconectar com isso que eu chamo de saber do corpo que nós, caras pálidas, estamos destituídos desta conexão, (isso é uma das características fundamentais da subjetividade na cultura moderna-ocidental-colonial-capitalista-burguesa etc etc etc….) inclusive na subjetividade de esquerda. A esquerda é a melhor que nós temos a democracia burguesa que é o que zela, que visa a uma melhor distribuição das riquezas materiais e imateriais.

Na nossa tradição de cara pálida o pensamento, ao contrário (como a gente está desconectado com isso), ele serve pra nos apaziguar da turbulência que essa experiência nos traz e do medo que a gente  fica de se desagregar, do mundo cair, de acabar o mundo. Porque como a gente não tem essa outra capacidade, a gente só se baseia apenas na capacidade cognitiva, o mundo que é tal como é, parece que é O MUNDO e não esse mundo. Então, quando isso fica desestabilizado com essas  novas experiências, essa subjetividade reduzida ao sujeito ela fica apavorada.
E no pensamento acadêmico como é que se traduz? eu crio uma coisa, uma espécie de alucinação de completude, de verdade, que me acalma. Qual é a consequência disso? isso é  gravíssimo!
  • do ponto de vista ético, você tá interrompendo um processo de criação vital absolutamente necessário para vida estar bem, o tal do viver bem dos indígenas (que agora entrou na moda, entrou para esse sentido da perspectiva de quem está desconectado). Então, do ponto de vista ético é uma interrupção do processo vital;
  • do ponto de vista político é uma conservação de status quo;
  • do ponto de vista cultural também, é a manutenção do campo de representações.
A ideia é a gente praticar isso juntos: nós, os alunos, porque eu também... os professores…(haaaa, os professores já sabem…???!!!) mas isso é a luta de uma vida. E o  que é uma vida pra valer? é quando você está o tempo inteiro, do começo ao fim, cada vez conquistando mais possibilidades de dar espaço para isso. Então o nosso objetivo é compartilhar um exercício do pensamento desta maneira para agente ir avançando junto. Nossos seminários convidam as pessoas a apresentarem o que estão pensando nessa forma do texto baba, e ao mesmo tempo os grupos de trabalho vão trabalhando nisso e avançando junto…..

produção do texto baba:
Como é que a gente combina o texto baba? como são as consignas?
Primeiro você entre em contato com aquilo que está mais te inquietando, você sabe que tá no teu corpo, é uma experiência que tá tendo ou que acabei de ter, uma experiência que é real, e que você não tem palavra, não tem imagens... então o texto baba é pra tentar achar as palavras pra dizer, e a gente pede pra fazer só um parágrafo, é mais fácil do que escrever um monte pra dar nome pra essa inquietação, né?
Essa inquietação que é a experiência do mundo enquanto ser vivo ou o modo como o mundo enquanto o corpo vivo nos afecta, cria novas experiências, novas maneiras de ver e sentir que não tem palavra, não tem gesto, que não tem imagem. Então o exercício do pensamento consiste em encontrar essas palavras.
E uma dica que a gente dá é: se você começa a se agarrar nas palavras de autores que a gente adora (e a gente adora porque encontra essa ressonância lá - não se trata de imitar as ideias dele - é que encontra porque o autor está fazendo esse esforço e a gente fica mais fortalecido), então na hora que vem essa palavra você tem que ver que experiência você está nomeando com aquela palavra. Às vezes você botou uma palavra de um autor e quando você vai escrever saem duas palavras, saem duas frases sai um parágrafo, sai um livro às vezes... Então esse é o esforço…
E a gente pede também pra buscar em algum autor que você encontre uma ressonância, não que eu ele esteja pensando que você quer pensar, mas que leve em conta que o autor está nesse esforço e que as palavras dele estão vivas porque elas são (palavras) portadoras dessa experiência. Porque a palavra ela não é só o significado, isso é, o que a gente decifra com nossa capacidade cognitiva. As palavras são vivas porque são portadores de experiências vivas. Então quando a gente sente que tá pulsando isso lá a gente se sente acompanhado,  não para imitar, a gente se sente acompanhado para fazer o próprio caminho, o próprio processo, a própria criação.
Então a gente perde: encontra algum parágrafo de alguém (ou pode ser um pedacinho de filme) onde você sente que está. E só. Porque quanto mais conciso, mais a gente vai ter que batalhar para estar só nessas palavras não escapar. Porque aí o grupo de trabalho vai ajudar todo mundo a ver aquilo, desenvolver aquilo, ver aonde aquilo escapou. Porque em geral, como eu dizia, escapa porque baixa o superego acadêmico eu sou burro, como é que vou falar com minhas palavras, eu tenho que falar com as palavras do Foucault, do Deleuze, do Marx, (do raio que o parta, depende do meu repertório), porque caso contrário serei mal visto. Ainda vão dizer: isso aí é subjetivo! Porque como o cara pálida tá acostumado a usar só uma parte da experiência subjetiva que é o sujeito com sua capacidade cognitiva, com sua vontade, com sua consciência, totalmente estruturado no mapa cultural, a gente costuma achar que tudo o que fala a partir da experiência subjetiva é o sujeito, mas não é. É justamente nosso esforço de conquistar essa outra experiência da subjetividade que é essencial para assumir, tomar nas mãos, tomar a responsabilidade da vida... porque não tem outro lá no Céu. Porque essa responsabilidade é nossa!!!

Referências
Suely Rolnik e o texto baba. Seminário Novos Povoamentos, 2016. Disponível em: . Acesso em: 17/set/2016.