Mais que um rio




Muitas histórias começam com ‘era uma vez’… E o contador ou contadora da história continua sua contação. Gosto de pensar a palavra 'contação' como ‘ação de contar’ uma história ou um causo. Compreendida desta maneira, a contação dá a liberdade para agir na história/causo. Partindo de um ‘causo’, um contador, uma contadora de história tem essa capacidade de torná-la mais interessante, mais agradável, mais atraente. É uma espécie de charme, um certo poder de sedução, uma certa magia que atrai a escuta, que atrai a atenção.

Pois bem, ERA UMA VEZ um grupo de pessoas no coração do Brasil. Gente que vive da terra, que cultiva banana, arroz, milho e mandioca, gente que faz farinha e polvilho no quintal das casas. Gente que vive da pesca, da criação de galinha e porco, gente que tira leite da vaca e produz manteiga. Gente que entende e sabe a língua dos ventos, dos bichos, gente que sabe da chuva, do frio e da seca, gente que canta as belezas das plantas, gente que toca viola de cocho para dançar São Gonçalo, Siriri e Cururu. Gente cabocla, gente quilombola, gente... Brasileiros e brasileiras que rezam numa língua própria, mistura de latim e bugre, mistura de nações e povos num vão grande entre Américas e Áfricas, um caldeirão de misturas culturais, poções mágicas, narrativas do interior e narrativas de interiores.

São famílias que vivem no seu território quilombola cuja paisagem é modelada pelo rio Jauquara que, entre curvas, cheias e vazantes vai tecendo, tem tecido uma comunidade tradicional. “O rio é muito mais que um rio”.

O rio não é visto como recurso natural. Não!!! Quem vê num rio apenas um recurso, precisa consultar um oftalmologista desses que cuida dos olhos da alma e da imaginação. Um rio é água e água é fonte da vida, então o rio é os peixes, o rio é o lençol freático, o rio é as frutas, os alimentos, o rio é a mata, a banana e a mandioca, os bichos, a roça. O rio passa por você na chuva ou no banho, no macarrão, no arroz e no feijão, na bolacha de água e sal. E o rio passa por dentro da gente porque eu sou água, sangue, o rio é o feto, a barriga grávida e a mãe. O rio entra em mim misturado com as uvas na taça de vinho, e sai de mim na lágrima caída. Nesta perspectiva, um rio é da família: somos parentes!

Vejo tais comunidades na bacia do rio Paraguai, no Pantanal matogrossense, comemorar o aniversário dos rios, águas e nascentes. Está na nossa cultura comemorar o aniversário das pessoas queridas. Cantamos assim: PARABÉNS PRA VOCÊ / NESTA DATA QUERIDA / MUITAS FELICIDADES / MUITOS ANOS DE VIDA. Nos reunimos em torno das pessoas que amamos para desejar alegrias e vida longa. É exatamente isso: o rio é querido. Assim celebramos o dia do rio Jauquara, afluente do rio Paraguai, fizemos uma linda festa, cortamos o bolo e cantamos o hino num lindo coro de vozes:

RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / FAÇO AQUI A MINHA LUTA PARA ESSAS ÁGUAS QUE NÃO PÁRA / RIO JAUQUARA / RIO JAUQUARA / SUAS ÁGUAS COR DE ANIL / FAÇO AQUI A MINHA HOMENAGEM 28 DE ABRIL.

Era uma vez o Comitê Popular das Águas do rio Jauquara.

Ivan Rubens
Educador Popular

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 14 de junho 2022

Sobre (o fim de) a escola como espaço público - Jorge Larrosa Bondía


Sobre (o fim de) a escola como espaço público[1]

Jorge Larrosa Bondía[2]

Transcrição, tradução, traição: Ivan Rubens.

 

Esta fala parte do livro intitulado Em defesa da escola: uma questão pública. Esse livro tenta mostrar o que a escola é. Não o que a escola faz ou o que a escola deveria fazer, mas o que a escola é. Isto é, mostrar a escola na sua própria materialidade. O que faz uma escola ser uma escola e não outra coisa. O autor constrói a ideia de escola basicamente em três condições que fazem que uma escola seja uma escola. A primeira delas é uma doação de tempo, isto é, a escola aparece como instituição quando uma sociedade decide liberar as crianças do trabalho e dar a elas de presente tempo livre, tempo para estudar, tempo para se ocupar dos assuntos do mundo, tempo para aprender. Essa ideia de tempo livre é interessante porque a palavra escola vem de uma palavra grega: skolé significa literalmente tempo livre, um tempo que não é um tempo escravo, que não é um tempo que está capturado pelas necessidades, e o tempo livre também é constitutivo de outra invenção grega que é a democracia. A palavra política, a palavra democracia, a palavra escola e a palavra pedagogia, quatro palavras gregas. A democracia aparece quando uma sociedade decide que todos os seus cidadãos tem que ter tempo para se ocupar dos assuntos de todos, não dos assuntos particulares de cada um, mas dos assuntos da cidade, dos assuntos públicos, dos assuntos da pólis. Num regime aristocrático só algumas pessoas tem tempo para se ocupar dos assuntos de todos, mas uma democracia exige que todos cidadãos disponham de tempo livre para se ocupar dos assuntos comuns. Eu venho da cidade de Barcelona donde talvez vocês saibam que ganhou as últimas eleições municipais um estranho grupo que não estava conformado com os partidos políticos tradicionais e, das poucas coisas que eu sei que estão acontecendo na minha cidade, há duas que tem haver com o assunto do tempo livre. 1) todos vocês devem conhecer, estão nos discursos, são muito comuns, sobre a necessidade de conciliar a vida profissional e a vida laboral (social). Essa coisa de que é preciso, de que as empresas organizem horário, o tempo dos trabalhadores de maneira que as pessoas possam conciliar o tempo do trabalho com o tempo da família. Mas, a equipe da prefeitura de Barcelona começou um experimento muito interessante que não passa pela conciliação do tempo do trabalho com o tempo da família, mas de uma conciliação do tempo do trabalho com o tempo da política, isto é, como fazer que as pessoas comuns tenham tempo livre para participar, para debater e para se ocupar dos assuntos de todos. Então, essa é a primeira coisa, a democracia exige que todas as pessoas tenham tempo para se ocupar dos assuntos comuns. Mas, ao mesmo tempo, dizem que é muito difícil conciliar o tempo da democracia com o tempo da política institucional, porque a democracia exige um tempo lento. Vocês sabem que a participação, a consulta, o debate, o diálogo, quando comprometem muitas pessoas, requer um tempo lento, e o tempo das decisões, o tempo da política institucional, é um tempo diferente. As escolas compartilham com a democracia o fato de se constituir sobre um tempo livre, isto é, sobre a doação de tempo para as crianças. Um tempo liberado do trabalho para se ocupar de outras coisas que não seja trabalhar.

No livro do Jan Masschelein a escola também aparece como um espaço público. Um espaço público significa o lugar no qual as coisas são feitas em público, isto é, em presença de outros. Portanto você tem que tomar responsabilidade pelo que você faz na frente de outros, pois, é um espaço onde você não está sozinho. Você tem que fazer as coisas em presença de outros. E também espaço público, quer dizer o espaço onde alguma coisa é publicada, isto é, uma coisa é tornada pública. Alguma coisa é feita pública, vira pública, se faz pública, isso no livro do Jan Masschelein tem a ver com uma questão fundamental da política que é a questão da desprivatização. Tal palavra que nos aguça, que a escola comuniza, faz comuns os saberes e a relação com o mundo. Tem cidades onde a possessão, a posse de alguns saberes é uma posse privada, isso dá alguma autoridade, algum status que possuem saberes que só ele tem, e a escola aparece quando esses saberes privatizados são, de algum jeito, comunizados, isto é, feitos públicos. E aqui eu queria insistir que a palavra que ele usa, uma palavra linda, comunização. Não tem a ver com comunicação, mas tem haver com comunismo, isto é, com fazer comum, desprivatizar, com fazer público alguma coisa que até então estava nas mãos de algumas poucas pessoas. A escola é uma combinação de tempo livre, de espaço público e, para que a escola seja escola, precisa também de um assunto comum. O assunto seria a matéria de estudo, a escola traz forma ao mundo. O que acontece no mundo, o saber do mundo, transforma isso em matéria de estudo, então essa matéria de estudo, esse assunto comum é colocado no meio, porque uma coisa a propósito da qual todos podem falar, todos podem pensar, todos podem aprender.

Então essas seriam as três características básicas de uma escola: 1) liberar o tempo, separar o tempo, 2) constituir um espaço público e, ao mesmo tempo, 3) colocar à disposição das crianças o mundo comum, o mundo feito matéria de estudo. Desses três elementos da escola, eu vou falar apenas da questão do espaço público, o que significa que uma escola seja um espaço público.

Que a escola seja ou não um espaço público, não depende exclusivamente da sua titularidade. No Brasil e na Espanha, escola pública significa escola que não é particular, escola que é de titularidade pública, uma escola que está sob responsabilidade de administração pública, seja municipal, seja estadual, federal, escola pública. Mas o que está acontecendo agora, é a escola sendo privatizada nos seus procedimentos, na sua maneira de agir, na sua maneira de atuar, na sua maneira de fazer. Eu vou colocar um exemplo da parte da escola que eu mais conheço. Na lógica desse livro intitulado Em defesa da escola, escola é escola desde a creche até o doutorado, tudo é escola. São espécies diferentes de escolas, mas tudo é escola. Como professor universitário, habito uma parte da escola, trabalho numa universidade pública, mas independentemente da sua titularidade a lógica dos estudos universitários está se colocando cada vez mais a serviços dos interesses econômicos. Vocês sabem que a reforma de Bologna tem a ver como a Universidade tradicional declarada obsoleta e, então, teve que se adaptar as demandas dos novos agentes econômicos. Portanto, a Universidade está sendo privatizada, independentemente de qual seja a sua titularidade. Porque está sendo privatizada no seu funcionamento, na sua lógica, então, quando uma Universidade ou uma escola é administrada como se fosse uma empresa, do mesmo jeito que se fosse uma empresa, então esse espaço deixa de ser um espaço público, independentemente da sua titularidade.

Mas eu vou falar desse aspecto que significa que a escola é, ou ainda é, ou ainda é um pouquinho um espaço público, mas isso não tem a ver com exatamente o que seja ou não a sua titularidade. Por isso a minha fala terá como que duas faces. Por um lado eu vou tentar mostrar o que é a escola como um espaço público e, por outro lado, eu vou tentar mostrar também para vocês como essa dimensão da escola, o fato de ser um espaço público, está sendo progressivamente arrasada, destruída, desmantelada por outras lógicas de funcionamento que estão acabando com essa dimensão de espaço público.

Para começar o meu argumento eu vou mostrar para vocês um filme que muitos de vocês devem conhecer. É um filme que foi e é muito usado na formação de professores, mas eu acho que eu vou ler o filme de um jeito não tão comum. Eu vou ler o filme um pouquinho diferente de como normalmente ele é usado. E para introduzir a visão do filme eu queria dizer duas coisas: a primeira eu poderia dizer como uma piada, uma história, uma piada filosófica que diz o seguinte: um peixe velho, estava nadando na lagoa, e ele se encontrou com dois peixinhos mais novos, uns peixinhos pequenininhos, então o peixe velho perguntou para os meninos:

- meninos como é que está a água?

E os peixinhos responderam:

- mas o que é água?

Então, às vezes, aquilo que nós temos mais perto é exatamente aquilo que a gente não percebe. Então, para um peixe que nasceu na água e que respira na água e que vive na água, o mais difícil de perceber é precisamente a água. Então, isso que eu vou fazer é um pouquinho complicado, vocês vão me perdoar a arrogância, porque todos vocês trabalham na escola, alguns de vocês acreditam na escola e talvez alguns de vocês amam a escola. E eu vou ter a arrogância de mostrar para vocês que trabalham na escola, que talvez acreditam na escola e que talvez amam a escola, eu vou ter a arrogância de mostrar para vocês o que é a escola, isto que é um pouquinho como a água que está ao redor dos peixinhos e eles nem percebem. Então veremos o filme e depois eu faço alguns comentários.

(exibe o curta metragem 11 de setembro, dirigido por Samira Makhmalbaf)




Algumas pessoas criticam a postura da professora no filme no sentido do que a professora não deveria fazer, ou deveria fazer de outro jeito. Então essa coisa que a gente gosta tanto de se sentir superiores aos outros e olhar para os outros do ponto de vista do que eles deveriam fazer, eles deveriam fazer de outro jeito.

Mas o curta metragem mostra exatamente o que é uma escola. O filme conta um deslocamento: ao início do filme, as crianças estão ao redor do poço, e vocês sabem que o poço está secando e a água do poço está sendo utilizada para fabricar os tijolos e também dá para pensar que a pouca lenha que tem pelos arredores foi consumida também para fabricar os tijolos. Então o filme começa com as crianças ao redor do poço e o filme acaba com as crianças ao redor da torre, que são duas imagens claramente simétricas, o poço e a torre são duas imagens simétricas. O filme conta basicamente um deslocamento, onde as crianças são arrancadas do poço e são levadas até a torre. E no meio entre o poço e a torre acontece a cena escola. Quando as crianças estão ao redor do poço fabricando tijolos porque o bombardeio pode chegar em qualquer momento, então as crianças estão falando das histórias do lugar: alguém que caiu e quebrou uma perna, caíram dois, caíram quatro, estão falando das histórias do lugar, como qualquer um. Então as crianças estão ali ao redor do poço, fabricando tijolos, falando das histórias do lugar, e nesse contexto aparece a professora. A professora atravessa a cidade chamando as crianças para a escola. A escola começa às 8 horas, tem um tempo marcado e tem também um lugar marcado, uma espécie de pórtico onde a professora entra pela primeira vez, há dois meninos que estão preparando as cadeiras e, se vocês lembram, quando a professora entra pela primeira vez nessa espécie de pórtico, tem umas pessoa trabalhando no fundo. Portanto o espaço da escola está ocupado pelo trabalho e a escola não pode começar até que trabalho saia dali. Portanto, a escola separa o tempo do trabalho do tempo da escola. Então, a professora atravessa a pequena cidade chamando as crianças para a escola: “a escola começa as oito, temos que ir para escola”. E ela usa uma coisa como isca, ela diz: “crianças vocês têm que ir para a escola porque na escola há livros”.

Ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola vocês serão felizes, ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola vocês vão aprender a conviver, ela não diz vocês tem que ir na escola porque na escola podemos construir um mundo onde não tenha mais bombardeios, onde o bombardeio não seria mais possível – se ela falasse isso, estaria mentindo, porque os tijolos não salvam do bombardeio, mas a escola também não salva do bombardeio e, se os aviões bombardeiros chegarem essas crianças não tem salvação. Então, ela diz que tem que ir na escola porque na escola há livros. E isso para mim é fundamental, porque se a gente olha um pouquinho a história da escola como dispositivo na sua materialidade, a escola está ligada desde o seu início à o que o IVAN ILLICH[3] chamava de mentalidade alfabética. A escola é um lugar onde aprende-se a ler e a escrever. Porque nas sociedades alfabéticas, ocidentais, o saber, o saber dos adultos, está codificado na escrita e, portanto, para ter acesso a esse saber você tem que conhecer os códigos da leitura e da escrita. Talvez isso esteja começando a mudar. Eu não sou o único a dizer que talvez a época alfabética esteja chegando ao seu final e que a gente esteja entrando numa outra época onde a função principal da escola já não vai ser ensinar a ler e a escrever, mas a escola está intimamente ligada a leitura e a escrita.

A escola é uma instituição muito violenta. [por exemplo, nem todas as sociedades tiveram escola. A escola é uma invenção grega, europeia, portanto eurocêntrica; na América a escola foi imposta pelos colonizadores]. Então a escola é um mecanismo violentíssimo, violentíssimo, de deslegitimar a oralidade popular, as culturas orais e impor como a única cultura legítima a cultura escrita. Tanto, é verdade que para nós a escrita é um mecanismo emancipador. É o único mecanismo emancipador. Porque a escrita permite entrar em um mundo praticamente infinito, mas na história da coisa, a escrita, como toda a tecnologia, é violenta, isto é, tem uma capacidade enorme de destruir o que tinha antes. Mas em qualquer caso a escola, que é um invento europeu, eurocêntrico, ligado a uma cultura da escrita, etc, está intimamente ligada ao livro, ao texto, e talvez uma das invenções fundamentais da escola seja o livro de texto. É uma invenção escolar, claramente escolar...

Então, a professora no filme diz: tem que ir à escola porque na escola há livros; [insisto, ela NÃO diz “na escola vocês vão ser mais felizes”; ela NÃO diz: “vocês vão se sentir bem”; ela NÃO diz: “vocês vão aprender a conviver”. Essas crianças não precisam da escola nem para ser felizes, nem para conviver, nem para nada; também ela não diz: “para se salvar do bombardeio”.]

Ela diz: “vocês têm que ir para a escola porque, na escola, há livros”.

Depois dessa isca que ela usa a gente esperaria uma cena de leitura no interior do pórtico da escola, mas não é uma cena de leitura que acontece. A cena que acontece é de outro jeito. Então, a escola começa quando todas as crianças estão sentadas olhando para mesma direção, e então a professora estabelece um assunto.

- Crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo. Quem sabe o que aconteceu?

Ela estabelece o assunto. As crianças naturalmente continuam falando das histórias do lugar. Alguém morreu, alguém quebrou a perna, alguém nasceu. E a professora diz:

- isso não é, isso não é, isso não.

Porque a escola não tem a ver com as histórias do lugar, mas a escola tem a ver com as histórias que são importantes para todos.

Tem uma sequência que para mim é impressionante, quando aquela menina fala:

- Professora, eu posso cochichar ao ouvido?

E a professora responde:

- Não, fale em voz alta.

A escola não é um lugar de falar as coisas ao ouvido, a escola não é o lugar da confidência, a escola é um lugar onde as coisas tem que se fazer públicas. Então a menina conta, ousa contar o seu trauma particular:

- A minha tia foi enterrada até o pescoço no Afeganistão e jogaram pedra nela até ela morrer.

Ela conta o seu trauma particular. Mas, há um momento maravilhoso em que a menina que está ao lado repete a história.

- A tia dela foi enterrada até o pescoço...

No momento em que a menina do lado repete a história, a natureza da história mudou completamente. Já não é o trauma particular dessa menina (que ela queria falar no ouvido da professora) mas virou uma história pública. História que pode ser de interesse para todos, virou uma história de todos. E é muito lindo que quando a menina ao lado conta a mesma história, ela conta a história com um sorriso. Portanto a história já é uma representação da história. É um pouco o acontece com a literatura, sei lá, o que acontece com essas coisas; Nós sabemos que os mortos no cinema não são mortos reais, e ainda que a gente chore muito, e que os mortos do romance não são mortos reais, ainda que a gente chore muito. Por isso, com o cinema e com os filmes a gente aprende a brincar com a morte. A morte de brinquedo, a morte de mentira. Então, no momento em que a segunda menina conta a história da morte, a morte já é de mentira, já é uma história pública, já não é um trauma particular e a professora poderia, se ela quisesse, poderia fazer dessa história um assunto de todos, um assunto para estudar. Fazer dessa história uma matéria de estudo. Então, no momento em que a professora fizesse dessa história uma matéria de estudo, ela apresentasse isso publicamente, esse negócio deixaria de ser já um trauma psicológico de alguém, a história de alguém, e passaria ser uma história que a professora acha que é interessante para todos. Já não é a minha historinha, a minha dor, o meu trauma, mas seria uma história que é importante para todos. A professora naturalmente não usa, decide não usar esse assunto.

Ainda quando os meninos falavam das histórias do lugar, a professora diz:

- Em Nova York, nos Estados Unidos, dois aviões se chocaram contra as torres. Quem sabe o que é uma torre? Olhem lá fora: a torre onde bateram os aviões é como se fosse aquela torre dessa olaria.

Para mim, isso também é fundamental na definição da escola porque a escola não trabalha com o mundo, a escola não é o mundo, mas a escola trabalha com representações do mundo. Isto é, a escola sempre trabalha com um como se. As torres são como esta. Então a escola trabalha com desenhos, com mapas, com imagens, com palavras, trabalha com representações do mundo. Portanto, quem sabe o que é uma torre? Ninguém sabe? Olhem para fora... a torre é como a torre dessa olaria.

Então, o que ela está fazendo? Está usando o que ela tem ao redor para representar um acontecimento que aconteceu a milhares de quilômetros dali e que para a experiência das crianças é muito difícil de compreender. Então é como essa olaria. Chega um momento em que as crianças continuam com as suas coisas, e a conversa já muda um pouco: quem as destruiu? Uns dizem que foi Deus, outros dizem que não foi Deus. E a professora pega um quadro verde e desenha um relógio, então ela diz:

- vamos fazer um minuto de silêncio e um minuto vai daqui até aqui.

Portanto ela está abrindo um tempo, vai criar um minuto, ela está abrindo um tempo para se dedicar ao assunto, ao que ela está tentando mostrar para as crianças. Naturalmente, as crianças não respeitam um minuto de silêncio. Não é sua obrigação respeitar o minuto de silêncio, e a conversa continua.

Eu notei que vocês riram ao ouvir a conversa das crianças durante o vídeo. A conversa é muito linda, é uma conversa quase teológica que tem a ver não com os fatos, mas com os sentidos dos fatos. Para alguns desses meninos, e eles aprenderam isso dos seus pais, dos adultos, tudo o que acontece no mundo acontece porque deus quer. Então, as torres caíram porque deus quis. “Amanhã a gente se vê se deus quiser”. Então, tudo o que acontece no mundo, acontece porque é a vontade de deus. Portanto deus pilotava os aviões, assim como deus pilota tudo o que acontece no mundo, que é vontade de deus. Tem outra menina que diz que deus não tem aviões e que deus só destrói gente porque tem que construir gente nova. Então, essa conversa dessa menina é quase arendtiana, no livro do meu amigo belga[4] ele segue um pouco as ideias de educação da Hannah Arendt[5] onde ela diz que a educação tem a ver com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo, isto é, os seres humanos não são fabricados, mas chegam ao mundo por nascimento, chegam novos ao mundo e portanto a educação é uma relação entre os velhos e os novos. A educação tem a ver como os velhos, que já estamos no mundo, entregamos o mundo aos que chegam por nascimento. Portanto essa ideia de Hannah Arendt de que a educação está ligada à natalidade, ao fato de que os seres humanos nascem no mundo, e também significa que a educação está ligada à mortalidade. Como vocês estudaram nos livros de biologia, os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem, envelhecem e morrem. Então essa nossa condição mortal, portanto a nossa condição mortal faz com que, como essa menina diz, deus só destrói a gente porque tem que criar gente nova. Talvez a escola tenha a ver com isso que deus faz, que é ter estabelecido a nossa condição mortal e, ao mesmo tempo, a nossa condição natal, isto é, os seres humanos somos mortais e somos também natais. Chegamos ao mundo por nascimento.

O que eu queria sublinhar para vocês é que essa conversa que as crianças fazem ali, é uma conversa que é já completamente distinta da conversa do poço e da conversa dos primeiros minutos. Essa conversa já não tem a ver com as conversas locais, já tem haver com outra coisa. Ainda que a professora não controle, essa conversa só pode se produzir quando a professora abre esse tempo. Senão essa conversa não teria tido lugar nunca. Então tem essa conversa ali, as crianças continuam falando do assunto... tem um menino muito engraçado que tenta fechar a conversa dizendo: “bom, deus faz o que ele quer e ponto, não tem mais conversa; deus faz assim e a gente morre”. Então a professora diz: “vocês não estiveram calados, então vamos lá fora e vamos ao lado da torre”.

Aí entra o segundo deslocamento: as crianças saem da escola para irem à outro lugar, e isso é também muito interessante. O primeiro deslocamento, quando as crianças saem do poço para ir para a escola, é um deslocamento fundamental porque à escola tem que ir, à escola tem que ir. A escola não está na sala da sua casa, à escola você tem que ir. Então tem que acordar de manhã, tem que sair cedo, tem que pegar um ônibus, e tem que ir. A escola é um lugar diferente, tem um portão que tem que entrar. À escola você tem que ir. Mas, ao mesmo tempo, uma vez que você está na escola, a escola às vezes organiza saídas. Esse é um tema bem clássico das escolas, excursões escolares. Então, crianças vamos sair e vamos visitar, sei lá, o museu do folclore, uma oficina de mandioca que está fazendo no bairro, qualquer coisa. Então ali, nesse segundo movimento, a professora pega as crianças da escola e as leva para outro lugar, mas durante o trajeto ela quer continuar o assunto. E aí vem o finalzinho que todos vocês adoraram, quando, mesmo proibido de falar o menino diz:

- o que é que a gente faz se a gente quer falar?

E a professora disse:

- você morde os lábios.

Isso é constitutivo da escola. Aí tem uma dificuldade também porque a escola significa uma deslocação atencional: os meninos estão interessados pelo futebol, as meninas estariam interessadas pelo aniversário do próximo domingo, e o presente, e as unhas, seja lá o que for. Então, os meninos querem falar. E a gente podia imaginar uma sala como esta onde eu não tivesse conseguindo capturar a atenção de vocês, e algumas pessoas estariam aí olhando as suas maquininhas, respondendo whatsapps. É um pouco isso: se a gente quer falar a gente faz o que? Pois você não fala, você morde os lábios e você olha aqui. Portanto esse gesto da professora é um gesto constitutivo da escola. A gente quer falar, mas agora você tem que atentar ao assunto.

Eu vou voltar um pouquinho para aquele ponto do: “aconteceu uma coisa muito importante no mundo e quem sabe alguma coisa?” Vocês lembram que eu falei que com esse gesto a professora está deslocando os meninos das histórias do lugar e levando os meninos para histórias que ela acha que são interessantes para todos. Que são importantes para todos. Então eu acho que esse gesto também é constitutivo da escola. Quando um professor de História começa uma aula de história e vai falar (sei lá) de João VI e a mudança da Corte Portuguesa para o Brasil na época bloqueio napoleônico, esse professor está falando a mesma coisa: crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo, a Corte Portuguesa veio para o Brasil, quem sabe alguma coisa?

- Professora eu quero falar.

- Morda os lábios porque agora nós não estamos falando dos teus assuntos, estamos falando de uma coisa muito importante que aconteceu no mundo e que é do interesse de todos, é de interesse público.

Quando o professor de literatura portuguesa tenta ler com as crianças um conto de Guimarães Rosa e a aula poderia começar com o mesmo gesto: “crianças, aconteceu uma coisa muito importante no mundo, pelo menos é muito importante para nós que falamos o português do Brasil, um escritor chamado Guimarães Rosa, ali onde ele estava, pegou uma caneta e escreveu um neologismo (que é a palavra nonada, que é a palavra que, como vocês sabem, começa O Grande Sertão). Então o gesto é exatamente o mesmo: “aconteceu uma coisa muito importante no mundo, quem sabe alguma coisa?”

Quando um professor começa uma aula sobre a história da escravidão no Brasil ou sobre a história de São José dos Campos e a sua relação com a abolição da escravidão, naturalmente os meninos não estariam interessados no futebol e as meninas estariam interessadas na festa da amiguinha, mas o gesto do professor é exatamente esse: “crianças, aconteceu uma coisa muito importante nesse país. Neste país teve escravos por muito tempo, e isso não é importante só para ti, ou para ti ou para ti, é importante para todos nós”. Então o gesto pedagógico é exatamente esse. E o gesto pedagógico é também exatamente... “se a gente quer falar morda os lábios e olhe aqui”. Então eu acho que neste curta filme (curta metragem) mostra precisamente o que é a água. Se a discussão fosse sobre como é a escola que queremos, como deveria ser a escola, o que a escola do futuro deveria fazer, sei lá, a leitura deste filme seria completamente distinta. Mas, na leitura do filme eu atendi exatamente à materialidade do que acontece, por isso não critiquei a professora, nem critiquei nem deixei de criticar, eu falei exatamente dos gestos que ela faz e como estes gestos constituem esse estranho dispositivo chamado escola porque abre um tempo, porque cria um espaço público e porque de algum jeito cria um assunto comum. A gente pode pensar o que essas crianças tem a ver com as torres (gêmeas) de Nova York no dia 11 de setembro de 2001, mas vocês sabem e essas crianças também deverão saber algum dia que o destino delas está ligado a isso que aconteceu a milhares de quilômetros dali, isto é, se o bombardeio chegar ali onde estão as crianças do filme, vai chegar por alguma coisa que aconteceu muito longe. Portanto, o que a professora diz, “aconteceu uma coisa muito importante no mundo, quem sabe alguma coisa?”, é algo constitutivo da vida dessas crianças ainda que elas não saibam. Até aqui a minha descrição do que é uma escola, sobretudo a minha descrição da escola como espaço público, lugar onde as coisas são feitas em presença de outros e também aonde algumas coisas são publicadas, são feitas públicas e, portanto, são tomadas como um assunto de todos, como um assunto comum.

Para finalizar, vou citar um filósofo espanhol que chama José Luis Pardo. Neste texto que fala da escola como um espaço público, José Luis Pardo diz que a escola aparece entre dois espaços sem se confundir com nenhum deles. Por um lado a escola estabelece uma separação, no que diz respeito ao espaço da família, a escola não é a família e nem é uma extensão da família, por isso as crianças têm que ir para a escola, têm que sair de casa e ir para escola; a família seria o espaço privado, o espaço onde cada um tem a sua história e cada um é filho de alguém, um é filho de coronel, outro é filha de professor universitário, outro é filho da funcionária e a outra é filha de sei lá; o lugar onde a gente tem nome e sobrenome, o lugar onde somos conhecidos pelo nosso nome e pelo nosso sobrenome. Ao sair para a escola, as crianças são arrancadas de casa, são arrancadas da família e levadas para a escola. Na escola pública ninguém tem nem nome e sobrenome. Na escola é indiferente se aquele é filho de coronel, ou se é filho de professor universitário ou se é filho de morador de rua. A escola pública recebe a todas as crianças, contanto que escolares, contanto que iguais. Pardo diz no seu texto que a escola é um espaço separado da família, que é um espaço privado, mas também é um espaço separado da fábrica, do lugar do trabalho que também é um espaço privado. Vocês sabem: a fábrica, a empresa está estruturada por um contrato privado entre o empresário o trabalhador. Então entre a família e a fábrica, se diferenciando tanto da família quanto da fábrica, a escola é um espaço público. A citação é a seguinte:

“A escola existe para fazer dos filhos adultos responsáveis, para fazer deles indivíduos. Converter-se em indivíduos significa de certa forma trair a comunidade, trair a família, trair a comunidade, então tem que sair de casa. Localizar-se em um espaço além da relação familiar ou do relato comunitário, essa traição é o que chamamos de emancipação e ou maioridade. A escola é o mecanismo que permite aos membros das distintas comunidades se tornarem adultos, quer dizer, se protegerem tanto contra os abusos das suas comunidades natais, como da fábrica”.

Portanto a escola, segundo esse primeiro trecho, deixa de ser um espaço público quando a escola é colonizada pela família ou é colonizada pela fábrica, isto é, quando a escola vira uma extensão da família ou vira uma preparação para o trabalho. Estão entendendo? Quando é colonizada pela lógica econômica ou é colonizada pela lógica familiar.

Aonde a escola é colonizada pela família? Obviamente vocês sabem muito bem, nas escolas particulares, aonde os pais pagam e, portanto, são clientes. A obrigação da escola é que os pais que pagam estejam contentes com os resultados da escola e, assim, continuem pagando. Mas a escola pública não aceita clientes, mas aceita escolares. Portanto a escola pública não tem nada a ver com que os pais estejam contentes. Então tem uma separação, não uma prolongação da família, mas como eu já falei no princípio, a escola é cada vez menos escola pública porque cada vez mais está colonizada pela família e cada vez mais trata as famílias e as crianças como que clientes. Vocês sabem também claramente que a escola é cada vez mais considerada como uma preparação para o trabalho, portanto a escola vira uma espécie de pré-trabalho. Uma espécie de espaço de preparação para o trabalho que começa a ter também a lógica das produtividades e as lógicas da rentabilidade próprias do mundo do trabalho. E quando a escola é colonizada pela economia, seguindo essa citação do Pardo, a escola também perde o seu caráter público.

Neste outro trecho, o Pardo usa a história do Pinóquio. Vocês sabem... Gepeto, que fez um boneco de madeira, envia o boneco para escola. O uso que o Pardo faz da história é interessante. Em seu caminho da casa até a escola, o menino já saiu de casa. Portanto, o pai Gepeto não está ali para protege-lo dos perigos, pois, os perigos estão sempre no caminho. E Pinóquio ainda não chegou à escola, portanto não está sobre a proteção da escola, está no caminho. No seu caminho de casa até a escola, Pinóquio se encontra com João Ninguém, que é o porta voz do mercado capitalista mundial, que o engana prometendo-lhe uma vida em Jauja. Eu não sei como é o nome na versão portuguesa, mas Jauja seria esse lugar que Pinóquio vai, vocês lembram, onde os frangos iam caindo assados, onde só tem brinquedos, o parque de diversões, exatamente! Então, Pinóquio é desviado no caminho da escola por alguém que o leva ao parque de diversões. O medo de Gepeto, é bom não esquecer que Gepeto é um artesão, ou seja, pertence ainda ao mundo do trabalho pré-industrial, é o medo infinito que todos os pais sentem é de que seus filhos sejam cooptados pela sedução do mercado, sequestrados pela Disney e arrastados ao parque de diversões, terra onde a infância é perpétua e onde nunca se cresce. Ainda hoje eu estava falando com um grupo de professores, então eu contei uma história que me aconteceu no aeroporto: eu estava pegando a avião e entrou no mesmo avião uma turma de crianças de doze anos, que iam acompanhadas dos seus professores à Disneylândia, e estavam com uma camiseta onde estava escrito “bem vindos ao mundo da diversão”. Então, essa minha tese que tem a ver com o que uma escola é, e que uma escola não pode enviar as crianças à Disneylândia, porque isso significa entregar as crianças à Mickey Mouse, que (vocês sabem) ama as crianças. Então, levar as crianças é introduzir as crianças no mundo do consumo. Mickey Mouse é um desenho antigo, hoje talvez seja à Porca Pêpa que vocês entregam os seus filhos. Quando vocês entregam os filhos de vocês ao parque de diversões, quando vocês levam os filhos de vocês ao shopping para passar o domingo, porque vocês não sabem o que fazer com os filhos, tem que se desembaraçar deles, a gente só sabe se relacionar com os filhos comprando coisas, porque a gente já não tem vida, não sabemos fazer outra coisa que não seja comprar. Então a gente leva os filhos ao parque de diversões. Porque a gente leva os filhos ao parque de diversões? Porque nós já nascemos em Disneylândia. Gepeto ainda não nasceu em Disneylândia e ainda tinha horror da Disneylândia, mas nós já nascemos em Disneylândia, já nascemos no mundo do shopping e achamos que é tão chique levar os nossos filhos a Disneylândia ou que a escola deve levar os nossos filhos à Disney. Então é a terra aonde a infância é perpétua e nunca se cresce. No shopping a infância é perpétua e nunca se cresce. E temem isso porque sabem que a Disney World se converte rapidamente em Horrolândia, quer dizer, é uma terrível fábrica onde as crianças sem chegar ao estado de adultos, se tornam animais, ou seja, burros de carga. Lembram que Pinóquio sente suas orelhas crescendo como orelhas de burro quando ele está no parque de diversões?

Sem perceber, ele é atado a um carro, portanto, sem ter chegado a ser adulto, porque no parque de diversões e no shopping nunca se cresce, ele vira burro de carga. Para os filhos das sociedades modernas o mercado aparece em primeiro lugar como um paraíso do consumo e termina por se converter em um inferno da produção.

O texto de Pardo continua: “a exigência amplamente manifestada de que a escola esteja adaptada ao mercado de trabalho, que seja atualizada como um mundo virtual. Adaptar ao mercado de trabalho significa atualizar a escola com o mundo virtual”.

Vocês devem lembrar também de acusações de que a escola está velha, está atrasada em relação a esta época. Eu acho que desde que a escola é escola tem sempre alguém que diz que a escola está obsoleta e que a escola tem que se atualizar. Isso para mim é um negócio bem impressionante porque quem decide o que é atual e o que não é atual, o que está mais avançado e o que está mais atrasado? Então virou clichê dizer que a escola está atrasada e tem que ser atualizada ao mundo do trabalho, isto é, ao mundo virtual. Então a exigência amplamente manifestada de que a escola se adapte ao mercado de trabalho, que seja atualizada com o mundo virtual não significa converter Pinóquio em burro de carga antes mesmo de se tornar adulto? Essa é a pretensão.

Com essa citação de Pardo, eu declarei Mickey Mouse como primeiro corruptor da juventude, o sedutor [etimologicamente, seduzir é uma palavra grega que tem a ver com educação, se ducere, que significa literalmente desviar do caminho], então o menino que vai de casa para a escola ele é desviado do caminho, é seduzido por Mickey Mouse que ama as crianças, então ele vai à um lugar a onde você nunca cresce e onde você, sem ter chegado a ser adulto, vira animal de trabalho. Então, se o primeiro sedutor seria Mickey Mouse, quem seria o responsável da captura econômica da escola? Não tanto a captura da escola pelo mundo do consumo, pelo mundo da diversão, pelo mundo de que tem que ser divertido, tem que ser feliz, ou sei lá, pelo mundo do shopping. Mas, a captura da escola pelo mundo da produção, aqui claramente vocês sabem, bom, pelo pouco que eu sei da realidade política e educativa do Brasil, vocês sabem que os que estão definindo agora as políticas educativas são as corporações, os bancos, os interesses industriais. Tem toda essa coisa de Todos pela Educação, essa coisa de que os ricos agora adoram fazer uma fundação para intervir na educação para a criança pobre.

Para finalizar, o que é que a escola tem que fazer? Isso seria a captura econômica da escola, portanto da vontade de fazer das crianças burros de carga antes de terem se tornado adultos. Então as três coisas: a escola colonizada pela família, a escola colonizada por Mickey Mouse e o parque de diversões, e a escola colonizada pela economia, estariam colocando em perigo essa dimensão pública da escola. Essa dimensão da escola como um espaço público. Essa é a minha tese.


MASSCHELEIN, J. e SIMONS, M. Em defesa da escola. Uma questão pública. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.


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[1] Conferência proferida no III Seminário Internacional de Educação de São José dos Campos no dia 30/julho/2015.

[2] Universidade de Barcelona, Espanha.

[3] Ivan Illich (1926-2002) foi um pensador, filósofo e pedagogo, e polímata austríaco. Crítico das instituições da cultura moderna, escreveu sobre educação, medicina, trabalho, energia, ecologia e gênero. Sobre ecologia política, figura como importante crítico da sociedade industrial.

[4] Jan Masschelein, ‘em defesa da escola: uma questão pública’, citado no início.

[5] referência ao texto “A crise na educação”, 1957.

EDUCAÇÃO POPULAR e INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA


6o encontro de Assistentes Sociais Hospital Santa Marcelina

EDUCAÇÃO POPULAR e INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA


no site da congregação:

https://santamarcelina.org/missao-visao-e-valores/


A Congregação das Irmãs de Santa Marcelina foi fundada pelo Beato Luigi Biraghi em 1838, na Itália, motivado pelos valores que fundamentam seu programa educativo e social, com objetivo de oferecer assistência, bem como o ensino, por meio do amor e do exemplo, sobre o espírito de família e respeito ao ser humano.

Missão

Oferecer assistência, ensino e pesquisa em Saúde com excelência, à luz dos valores éticos, humanitários e cristãos.


Pano de fundo é a campanha da fraternidade.

https://cffb.org.br/campanha-da-fraternidade-2022-fraternidade-e-educacao/



“Educar é um ato eminentemente humano. Somos renovados quando aprendemos mais a respeito da vida e seu sentido, quando nos ensinam novos conhecimentos e quando percebemos que em nós existe a profunda sede de aprender e ensinar”.
Tema: Fraternidade e Educação

Lema: “Fala com sabedoria, ensina com amor”

objetivos específicos:

educação humanizadora;


refletir sobre o papel da família, da comunidade de fé e da sociedade no processo educativo com a colaboração das instituições de ensino;


incentivar propostas educativas que promovam a dignidade humana, a experiência do transcendente, a cultura do encontro e o cuidado com a casa comum;


estimular a organização do serviço pastoral junto às escolas, universidades, centros comunitários e outros espaços educativos;


e promover uma educação comprometida com novas formas de economia, de política e de progresso verdadeiramente a serviço da vida humana, em especial, dos mais pobres.


“Ver, Julgar e Agir”.

“Ver” será na perspectiva de escutar;


“Agir” seguirá no caminho do propor;


“Julgar” voltará o olhar para o discernimento.



o conceito de Vida Ativa em Hannah Arendt

Vida ativa reúne o labor, o trabalho e a ação.



1. Labor como a atividade biológica do corpo humano para sustentação da vida. A repetição sem fim, comer para laborar e laborar para comer. “A condição humana do labor e, portanto, a própria vida” (BIESTA, 2017 p. 110). Diz respeito à interação de seres humanos com o mundo material;


2. Trabalho como a atividade que cria um mundo artificial, cria as coisas, que não é da naturalidade mas da inaturalidade da existência humana. Trata-se do fazer, dos instrumentos e, portanto, determinado pelas categorias de meio e de fim. Produz um mundo de objetos duráveis e permanentes, tem objetividade. Diz respeito à interação de seres humanos com o mundo material;


Trabalho e labor colocam seres humanos em relação com as coisas.


3. Ação coloca seres humanos em relação com seres humanos diretamente. Agir compreendido como tomar iniciativa, como iniciar, como dar início a algo. Humanos são, portanto, iniciadores, natalícios. Natalidade: “a ação como um início corresponde ao fato do nascimento, já que a cada nascimento algo “unicamente novo” vem ao mundo. A ação é a realização da condição humana da natalidade”.



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Com base nas informações acima, preparamos duas provocações.


A primeira veio com a leitura da imagem da campanha da fraternidade acima para dizer que educação é encontro e, se necessário, a lousa é o chão e o próprio dedo funciona como o giz. Tendo duas pessoas abertas para o encontro, a partilha dos saberes pode acontecer de forma generosa.


segunda provocação veio com o exercício do olhar, um exercício de deslocamento do ponto de vista, do ponto de observação, um deslocamento que se dá no sujeito que observa. Isso aconteceu a partir do vídeo Caminhando com Tim Tim, https://www.youtube.com/watch?v=1dYukOrq5RI



Citamos muito rapidamente o conceito de Vida Ativa de Hannah Arendt para dizer do exercício de produção de sentido.



lançamos duas perguntas pra pensar:

como promover o Engajamento Político no território?


como fomentar a Participação Política no território?


Em grupos menores, trabalhamos com os textos linkados abaixo.


segundo exercício: trabalho em grupos.

Gonzaguinha - A VIDA, o que é?

Ivone Lara - Território: pisar nesse chão devagarinho

Arlindo Cruz - o que é o amor?

Gilberto Gil - se eu quiser falar com Deus

Paulinho da Viola - A casa comum, natal e ambiente.



Conversações.

As conversas nos grupos foram muito ricas e interessantes. Em seguida, cada um dos grupos apresentou sua leitura do respectivo texto e os diferentes olhares foram aparecendo. Falas fortes, potentes, torções no texto e nas canções, significações outras. Um momento muito bom de exercício de leitura e pensamento coletivo.

Caravana do Orçamento Participativo em Suzano

 veja a matéria no site da Escola de Ativismo

https://escoladeativismo.org.br/das-missoes-as-caravanas-mobilizacao-para-educacao-de-jovens-e-adultos/ 

Saindo de mim

Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:



Ivan Lins e Vitor Martins são parceiros numa canção de título bem sugestivo: Saindo de Mim. Ivan apresenta essa canção quase como um fado. Ivan poderia narrar essa saída, essa partida, Ivan poderia tornar essa despedida pesada, um fardo. Mas a canção sugere uma leveza. Ivan, talvez Vitor. Via de regra nas canções em parceria, primeiro vem o nome de quem fez a música e depois o nome de quem escreveu a letra. Música e letra, letra e música se fundindo, confundindo. Letrista e músico, músico e letrista compondo. Certamente existem composições que se fazem na força do encontro. Sim, porque na força de um encontro intenso tudo se mistura, e ambos vão fazendo tudo, letra e música, música e letra, tudo junto e misturado. A canção diz assim:


Você foi saindo de mim / Com palavras tão leves / De uma forma tão branda / De quem partiu alegre


Veja que interessante: a canção tem uma personagem que aparece na segunda pessoa do singular: você! A voz do Ivan sugere ser uma mulher. Nessa nossa primeira hipótese, uma mulher foi saindo de mim... ela deixou a relação mas não de qualquer jeito. O artista qualifica esse movimento, uma espécie de saída, de retirada, de deserção, seja lá o que for mas num movimento de dentro para fora. Você foi saindo...


Você foi saindo de mim / Com um sorriso impune / Como se toda faca não tivesse / Dois gumes


Ouvindo mais a canção, formulamos uma segunda hipótese: 'você' pode ser uma canção. Neste caso, o sentido da canção muda completamente. O movimento é o mesmo, um movimento de dentro para fora, mas neste caso é uma canção que nasce dentro do compositor e vai pedindo passagem e, movida por seu desejo de mundo, vai saindo. Me parece que aconteça mais ou menos assim com as obras de arte, elas nascem dentro de um corpo humano mas são vocacionadas para o mundo. Neste caso é parir e partir. É parir uma obra que imediatamente vai para o mundo. Então, você foi saindo…


Você foi saindo de mim / Devagar e pra sempre / De uma forma sincera / Definitivamente


São duas palavras, nesse caso dois verbos, praticamente vizinhos: parir e partir. A propósito disso, um jovem escritor que pariu recentemente, e uma jovem poetisa que também pariu recentemente, me disseram gostar dos feedbacks. Apesar da minha dificuldade com estrangeirismos, me parece que estão se referindo a essa sensação interessante de perceber, de sentir o efeito da obra nos leitores e leitoras. Porque uma obra de arte, seja uma música ou um texto, seja uma poesia ou uma dança, atravessa quem se deixa afetar por ela. Essa é a força, essa é a potência da arte: atravessar e produzir trans_formações.


Você foi saindo de mim / Por todos os meus poros / E ainda está saindo / Nas vezes em que choro


Seja uma pessoa saindo da relação, seja uma canção saindo do compositor, seja um texto saindo do escritor, seja uma poesia saindo da poetisa, seja uma lágrima saindo dos olhos, seja lá o que Ivan e Vitor quiseram dizer, isso não depende mais deles. É parir e partir. E partindo, a obra ganha tantos sentidos quanto a imaginação puder produzir.


Assim, você foi saindo de mim, de Ivan Lins e de Vitor Martins.


Ivan Rubens










 

A seta e o alvo

(Na Moska)

Componha sua paisagem sonora, 
leia o texto ouvindo a canção.
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A Seta e o Alvo é uma canção de Paulinho Moska. Certo dia, durante uma roda de conversa, um professor colocou a canção para alimentar o diálogo entre estudantes. A canção diz assim:

Eu falo de amor à vida, você de medo da morte / Eu falo da força do acaso e você, de azar ou sorte / Eu ando num labirinto e você, numa estrada em linha reta / Te chamo pra festa mas você só quer atingir sua meta / Sua meta é a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera

O diálogo entre estudantes fluindo… A menor distância entre dois pontos é a reta. Podemos olhar a reta em sua extensão: um risco numa folha de papel. Podemos olhar a partir de uma extremidade, de um ponto a outro ponto como se fosse um tubo, como sendo um ponto de partida e um ponto de chegada: um alvo, uma meta.

Eu olho pro infinito e você, de óculos escuros / Eu digo: "Te amo" e você só acredita quando eu juro / Eu lanço minha alma no espaço, você pisa os pés na terra / Eu experimento o futuro e você só lamenta não ser o que era / E o que era? Era a seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera

O diálogo entre estudante continua fluindo… Existe uma certa obsessão por metas. Olhar apenas para a meta é uma espécie de vale tudo para atingir a meta, para chegar ao sucesso num jogo cruel onde os fins justificam os meios. E assim vamos criando pessoas “producentes”, “ambiciosas”, bem sucedidas. Mas, para que mesmo?

Eu grito por liberdade, você deixa a porta se fechar / Eu quero saber a verdade, e você se preocupa em não se machucar / Eu corro todos os riscos, você diz que não tem mais vontade / Eu me ofereço inteiro, e você se satisfaz com metade / É a meta de uma seta no alvo / Mas o alvo, na certa não te espera

O diálogo esquenta… Mesmo a seta não segue em linha reta até o alvo. A seta desenha uma parábola, ela faz um desvio, uma curva, um arco. E dá um susto danado perceber que os caminhos na vida não são linhas retas. Dá um susto danado perceber que a existência assumirá contornos que findarão na ironia da incerteza da chegada. Porque, limitar os processos a uma meta, a um alvo, é reduzir a acerto e sucesso de um lado, quando do outro lado está frustração, tristeza, fracasso. Mas, e o caminho? o caminho tocou você? O que você tocou durante a caminhada?

O diálogo pega fogo… Colocar a atenção no ponto final retira a atenção do trajeto, das paisagens, dos acontecimentos. As pedras do caminho exigem equilíbrio, nos fazem desacelerar. Então, apontamos o nosso olhar para a pedra e vemos uma pepita, um diamante de valor estético, uma escultura, uma obra de arte da natureza. Como “nasce” uma pedra?

Então me diz qual é a graça / De já saber o fim da estrada / Quando se parte rumo ao nada?

“Obrigada por me ensinar a olhar o caminho”, diz a estudante. E o professor, por sua vez, agradece ao artista cuja obra funciona como lanterna, a luz que ilumina o caminho, funciona como vela, a chama que anima a caminhada.


Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 19/abril/2022

triste despedida

 lua clara, noite

manga rosa caída 

triste a despedida

votos de breve retorno

saudade desmedida

triste a despedida


nua, clara noite

estrada, neblina

triste a despedida

abraço apertado

votos de boa ida

beijo de despedida


um breve retorno

esperança incontida

despertar da alegria

o caminho tem volta

e a volta tem vida

contra partida, contrapartida.

OUTONO

Componha sua paisagem sonora, leia o texto ouvindo a canção.
 Clique aqui:


 
Virgínia levava o pequeno Djavan pela mão até a beira do rio onde as mulheres lavavam roupa. Isso era comum na Alagoas da década de 1950. Parece haver uma direta associação entre lavar e cantar. Talvez a fluidez do rio, talvez o canto dos pássaros, talvez a paisagem…. O fato é que as lavadeiras cantavam. Virgínia puxava o canto das lavadeiras, distribuía as vozes e fazia solos. E o canto encantava o menino. Sem saber, tinha ali, à beira de um rio na periferia de uma cidade do Nordeste do Brasil, seus primeiros afetos com a música e com a beleza.

Um olhar, uma luz / Ou um par de pérolas / Mesmo sendo azuis / Sou teu e te devo por essa riqueza

Em casa, ouviam na Rádio Nacional as vozes de Orlando Silva, Ângela Maria e Dalva de Oliveira. E, mais próximos no sotaque e na geografia, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, a música que se ouvia nas ruas, nas feiras e no serviço de auto-falantes da praça em Maceió/AL. Djavan já era craque com a bola nos pés, despontava como meio de campo juvenil do time do CSA, ao mesmo tempo que a sensibilidade de artista ganhava campo na casa de um amigo de escola cujo pai possuía uma vitrola e discos. Djavan encontrou Bach a Beethoven, Miles Davis, John Coltrane, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday. Misturando com toda tradição musical brasileira de Noel Rosa a Tom Jobim e a bossa nova, das escolas de samba ao samba canção.

Uma boca que eu sei / Não porque me fala lindo, e sim, beija bem / Tudo é viável pra quem faz com prazer

Toda essa mistura vai, devagar, compondo um artista de musicalidade singular. Um artista que está compondo com os outros artistas, compondo com a arte, compondo com o mundo, compondo com o tempo. É uma espécie de escultura. É uma espécie de vida se fazendo obra.

Sedução, frenesi, sinto você assim / Sensual, árvore / Espécie escolhida pra ser a mão do ouro / O outono traduzir, viver o esplendor em si

Outono é uma das quatro estações do ano. Outono faz a transição do verão para o inverno. Outono é mistura porque ainda tem um pouquinho de verão e já tem um pouquinho do inverno.

Vivemos os primeiros dias do outono. No outono, as folhas e os frutos caem das árvores. Outono é o início da renovação, é aquela etapa dolorosa, mas necessária para o crescimento. Outono também é conhecido como a primeira linha que se faz na testa, o primeiro fio de cabelo branco, sinais do tempo que passa deixando marcas no corpo. Para o poeta Carlos Drummond de Andrade, “o Outono é mais estação da Alma que da Natureza”.

Tua pele, um Bourbon / Me aquece como eu quero, sweet home / Gostar é atual / Além de ser tão bom

Djavan não dá uma música pronta. Suas canções são um convite para pensar, para mergulhar, para devorar palavra por palavra, frase por frase. Sinto que ele nos convida a produzir um sentido. Ele parece repetir o gesto da mãe: oferece a mão, caminha até a beira do rio para um encantamento musical.

Outono é uma canção do Djavan. Bem vinda, outono.



Ivan Rubens

Educador


publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 22 de março de 2022


AQUARIUS - o filme


AQUARIUS – Leitura comentada do filme

Nossa relação com a cidade do Recife começa, de forma embrionária, muito antes do lançamento do longa metragem Aquarius. O filme mobilizou emoções e afetos que aguçaram nossa curiosidade com a capital pernambucana. Para lá nos dirigimos várias vezes em situações onde o trabalho formal e o campo de pesquisa se misturaram. Investigações nos colocavam em movimentos tantos na cidade. Iremos, a partir de agora, nos debruçar um pouco sobre o Filme como o disparador dos pensamentos.

Aquarius é um drama escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho. A produção é assinada por Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd e Michel Merkt, co-produção de Walter Salles. Interessante perceber que as filmagens aconteceram no intervalo de sete semanas entre agosto e setembro de 2015, em vários bairros do Recife, na Praia dos Carneiros (80 quilômetros da capital pernambucana). Como numa rápida apresentação, podemos antecipar que o filme vai apresentando algumas linhas de vida a partir da personagem principal, Clara que, aos 65 anos de idade resiste à especulação imobiliária no edifício Aquarius, com dois pavimentos acima do piso térreo, na avenida Boa Vista, bairro de Pina no Recife. No enredamento, apresentaremos temas como a já citada especulação imobiliária, a temporalidade e as memórias produzidas nos personagens, a vida e as questões típicas de uma mulher, seus dramas à medida de sua própria escultura subjetiva. O filme marca o retorno de Sônia Braga às telas numa produção brasileira. Em entrevistas na época do lançamento, disse a atriz que, ao receber o roteiro do filme com o convite para participar do elenco, aceitou quase que imediatamente. Por se encantar com a personagem Clara, pela particularidade de uma protagonista que aparece em quase todas as cenas e pela curiosidade com os conflitos urbanos na cidade do Recife provocada pela leitura do documento, muito provavelmente o roteiro, que ela recebera.

Aquarius foi filmado em agosto e setembro de 2015 na capital pernambucana. Foram 12 semanas de produção e 8 semanas de filmagem totalizando cerca de 850 horas de trabalho. A equipe chegou a 94 pessoas envolvendo técnicos e atores. São 42 personagens que, apresentados no filme, vão nos revelando facetas da cidade do Recife.

O Filme começa com a voz de Taiguara. Interessante a escolha da trilha sonora. As canções igualmente chamam nossa atenção durante a exibição do Filme. O cinema tem essa marca: composição de obras de arte. As canções serão trabalhadas neste texto enquanto acontecimentos que orientam a atenção do espectador numa espécie de suporte ao movimento de afecções que a obra produz. Fotografias em preto e branco vão, ao som de Taiguara, apresentando a região urbanizada da praia de Boa Viagem por volta da década 1970. O roteiro foi inspirado no Edifício Caiçara, erguido nos anos 1930 e parcialmente demolido em 2013. Cabe dizer que a protagonista Clara (personagem vivida por Sônia Braga em quase a totalidade do filme) foi, durante a década de 1970, crítica musical. O filme tem uma trilha sonora cuidadosamente escolhida, referências em áudio e vídeo permeiam o filme todo.

Como estávamos dizendo, a voz inconfundível de Taiguara entra logo depois dos caracteres anunciarem os dados gerais do filme ao som do mar, certamente das ondas quebrando na praia de Boa Viagem como se anunciando para o espectador que antes, desde antes, desde sempre (pensando na temporalidade humana) ele está ali repetindo e repetindo o mesmo movimento. Uma espécie de recado, de informação: esta história que iremos contar, remonta muito tempo. Até que as primeiras fotografias apresentam cenas da vida cotidiana costeira. No geral são imagens de uma urbanização da cidade com muitos edifícios de gabarito baixo e alguns edifícios mais elevados, uma modesta avenida à beira mar e alguma urbanização de passeio na orla. Muita gente banhando no mar e ao sol, brinquedos infantis, crianças. Gente enfim. Ao que Taiguara diz

Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo.
Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos
Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você.

O silêncio de Taiguara é ocupado novamente pela canção do mar no rebentar das ondas, sua imagem, seu movimento. Em seguida o anúncio da primeira parte do filme, que é organizado em três partes.


Parte 1: o cabelo de Clara
A marcação temporal nos coloca no ano 1980. Um chevrolet opala novo, idêntico ao do meu avô, está na areia da praia. A faixa de areia na paisagem litorânea de Boa Viagem, o estirâncio, é relativamente grande, relativamente maior do que pude observar durante esta pesquisa nas vezes que estive em Boa Viagem. O filme segue....

Festa no apartamento.

Duas características nos chamam a atenção. Primeiro a temporalidade de Clara que, ainda muito jovem nesta primeira parte do filme, mostra-se atenta. Sabe ouvir, dedica tempo para a escuta e, pausadamente, devolve em palavras na construção cuidadosa de cada diálogo. A segunda característica é o que chamaremos aqui de cuidado. Clara cuida dos e das à sua volta. Uma espécie de relação de vizinhança vai se construindo ao redor da personagem. O marcador desta segunda característica é, em nossa opinião, a priorização de alguns rostos na cena. Num apartamento de classe média alta, numa área (por assim dizer em termos do preço de mercado da terra urbana) cara da cidade, Clara atrasa os momentos de formalidade do aniversário para levar um “pratinho para o seu Zé”, como ela diz. Trata-se do porteiro do prédio. E neste trajeto a câmera fixa nos rostos de gente simples, de pele preta, de cabelo preto. E as homenagens à aniversariante, Tia Lúcia, que completa 70 anos de idade.

Enquanto as crianças, filhos de Clara, leem os textos contando um pouco da história de vida da tia Lúcia que remontam à década de 1930, uma narrativa outra vai se materializando em imagens e conduzem os espectadores às cenas que estão na memória da homenageada: ao observar a mobília da sala de estar, ela se lembra do seu grande amor e outras festas que ali mesmo aconteceram. São cenas de amor. E ao agradecer as homenagens, tia Lúcia aponta uma falta: “vocês mencionaram uma série de coisas que fizeram parte da minha vida. Mas vocês esqueceram de falar de Augusto, o amor da minha vida… Meu companheiro por mais de 30 anos. A gente nunca se casou, alguns de vocês sabem, porque ele era casado. Ninguém é perfeito. Um brinde a Augusto”. Neste momento, fisionomias de aprovação com pequenos sorrisos e fisionomias de desaprovação também. Como se julgamentos morais estivessem também tecendo os primeiros fios de uma narrativa paralela no filme. Falaremos mais disso...

Adalberto toma para si a palavra causando certo impacto. Anuncia um agradecimento. Diz que 1979 foi o ano da doença de Clara, “esta mulher que eu amo tanto”. Silêncio. Ele segue narrando a dureza daquele ano que exigia dele cuidado consigo mesmo, cuidado com a casa, cuidado com os filhos, cuidado com Clara que estava com câncer. “Clara está bem e a gente continua seguindo a nossa vida”. Diz que entende a ausência de alguns, afinal “a vida não vem com um manual pra gente lidar com essas situações”. O cabelo curto estilo Elis Regina que denuncia, de alguma maneira, a recuperação de uma doença que acometeu Clara. Daí o título da primeira parte de Aquarius. A personagem passou pela experiência de quase morte ainda muito jovem. Adalberto finaliza brindando: viva Clara! Viva tia Lúcia! E a festa segue com canções da época. Toda menina baiana de Gilberto Gil, corpos que dançam, corpos que se abraçam, laços, entrelaçamentos. A música permanece no fundo apesar dos movimentos na tela. O mesmo apartamento e um salto no tempo apresentado por outra arrumação do cenário, outra decoração da mesma casa, e surge uma Clara outra, agora contemporânea. O filme faz um salto temporal e, a partir deste momento, a atriz Sônia Braga vive a personagem Clara; a praia de Boa Viagem - Pina se mostra outra, Gilberto Gil é outro apesar da gravação mostrar a mesma voz de quarenta anos atrás. O apartamento é outro. Certo que está reformado, está organizado para o dia a dia e não para uma festa de 70 anos. Mas algumas mobílias marcam um passado que se materializa nos afetos que produz: o mesmo piano, o mesmo armário de sala que sustentou a festa dos corpos no tempo de tia Lúcia. O diretor antecipa sinais de que os objetos são mais do que simples objetos frios e, a depender dos personagens, serão mais ou menos valorizados em sua materialidade e na sua força subjetivadora.

Neste primeiro trecho do filme destacamos também uma ideia, por assim dizer, de intensidade. Como se duas personagens, Tia Lúcia e Clara, trazendo essa mensagem subliminar: duas vidas vividas intensamente. Outras personagens figuram como o oposto disso, na nossa modesta opinião. Dizemos isso como que antecipando um pouco do que virá: uma espécie de luta hercúlea de intensidades e paralisias. Dito de outra maneira, forças de vida e forças de morte, movimento e interdição, forças de transformação e forças de conservação.

Pois o filme faz um salto no tempo. As primeiras cenas na cidade contemporânea apresentam-na barulhenta. Carros, motores, roncos, buzinas. E o esforço de Clara dentro do apartamento buscando algum encontro consigo mesma, com uma vida simples, sem grandes agitações, uma vida tranquila naquele aqui e agora. Os problemas cotidianos parecem simples: o vento que insiste em desfolhar revistas fazendo bater a porta da cozinha, o desejo de comer verdura no almoço. Um passeio na praia. E o mesmo armário da sala como a ligação com o passado, com a história, com o que compõe aquele lugar e também Clara em sua singularidade.

O mar vazio e placas informando em caixa alta: DANGER. RISK OF SHAKE ATTACK. O diálogo entre os homens do corpo de bombeiros que trabalham como guarda vidas na praia denuncia uma prática habitual de Clara, agora arriscada e perigosa: tomar banho de mar. O movimento da câmera agora mais largos. Há cenários da cidade, há imagens da Boa Viagem - Pina de hoje: prédios enormes em seus condomínios fechados, muros enormes, arranha-céus como que impedindo o céu aos olhos do espectador. Barreiras que contrastam duas paisagens: a imensidão do mar e de céu quando a câmera dá as costas para a cidade e, na posição inversa, paredes de concreto e vidro que impedem olhares e ventos, verticalizam a cidade, verticalizam as relações na pólis e inibem horizontalizações. Aqui mais uma marcação do filme: horizontes nas paisagens naturais, ver_tigens verticais das paisagens construídas. Horizontes nas paisagens psicossociais a partir de Clara, verticalização nas paisagens psicossociais, sobretudo nas paisagens político-econômicas, na cidade do Recife. E as cenas da fachada do edifício Aquarius como uma brecha que permite ao olhar, na tela, ver imagens do céu.

A partir deste momento, aproximadamente o minuto 23, as cenas dos espaços comuns do edifício começam a apresentar um estado de abandono, de um imóvel quase totalmente desocupado. Exceto pela presença de Clara. E a exibição explícita de uma marca de dor: a cicatriz denunciando a ausência da mama direita de Clara. Esta cena contrasta com a cena seguinte onde são apresentados discos de vinil e fitas K7 quando Clara, agora numa entrevista para jovens jornalistas, uma repórter e uma fotógrafa, conhecem, talvez pela primeira vez, um disco de vinil que toca perfeito aos 40 anos de idade. Esta passagem merece um pouco da nossa atenção também. Vamos lá…

A pergunta da repórter sugere sua preocupação com o choque das temporalidades. Se dirigindo a Clara como escritora de um livro novo, apresenta certa surpresa em ver mídias físicas na paisagem da casa justamente num tempo onde as mídias digitais armazenam as informações:

- Você está escrevendo um livro novo. E eu percebi que na sua casa tem muita mídia física. Vinil, disco, fita. Numa época em que a mídia digital toma conta de tudo, você só escuta música no estilo antigo?


À pergunta da jovem repórter, uma resposta com algumas palavras e uma atitude da entrevistada:

- Vamos encurtar um pouco essa história para não gastar o tempo meu, o teu, o teu (dirigindo-se à fotógrafa). Eu gosto de tudo. Tendo música para mim está bom…

Clara conta a história de um disco comprado num sebo de Porto Alegre. E dentro tinha uma matéria de jornal Los Angeles Times que dizia dos planos de John Lennon semanas antes de ser assassinado. Neste momento ela mostra que os objetos têm significado, que carregam histórias, que são singulares na medida que singularizam, que contam uma história, que materializam acontecimentos. E a cena termina com um comentário da repórter:

- então mídia digital tudo bem?

Parece que Clara procura as rupturas no pensamento quase cartesiano das jovens jornalistas. Ela também é jornalista formada numa outra época. Neste ponto pensamos muito no jornalismo nessa tensão com o entretenimento, com as abordagens mais superficiais em forma de apresentação plana, ou seja, sem profundidade, sem investigação, sem pensamento. Pelo contrário, como se o jornalismo estivesse mais para a produção de imagens que servem às colunas sociais e à publicidade na perspectiva da propaganda. Como se o suporte (que tipo de mídia) da informação fosse mais importante que a informação, como se a mídia digital ou analógica fosse tão importante quanto seu conteúdo, neste caso como se o vinil, o k7 ou qualquer tipo de mídia digital fosse mais importante que a obra, que a canção que ela carrega a ponto de aparecer na pergunta da repórter a uma escritora.

Entra em cena outro personagem paradigmático: Bonfim Engenharia. Aqui chamada de construtora, que no filme materializa a Empresa. Vamos retratar a Empresa com letra maiúscula quando nos referirmos particularmente à Bonfim Engenharia, Empresa privada de seu Geraldo e neto Diego, uma Empresa específica. E empresa com letra minúscula a esse ente, qualquer empresa, os interesses privados que disputam no livre mercado e jogam um verdadeiro vale tudo para multiplicar seus ganhos e capitais. O personagem Diego, interpretado por Humberto Martins, traz no rosto a face jovem e limpa que mascara toda voracidade do mercado no contemporâneo.

A rotina tranquila de Clara é interrompida pela campainha. Representantes da construtora, seu Geraldo e seu neto Diego, este orgulhoso do seu primeiro ‘projeto’ na Empresa do avô. Enquanto Clara pretende comprar o apartamento do andar acima, os representantes da construtora fazem uma proposta muito generosa pelo apartamento habitado por Clara e sua história. A Bonfim Engenharia possui todos os apartamentos do prédio. A intenção da Empresa é colocar no chão o pequeno e modesto edifício Aquarius para construir o Atlantic Plaza Residence, ou o Novo Aquarius. Um rápido parêntese: ouvimos do diretor em várias entrevistas, esse jogo que se faz com os nomes dos empreendimentos imobiliários. Como se uma cidade que vai se produzindo também no imaginário de seus habitantes numa espécie de glamourização, numa espécie de apologia a um outro idioma ou, nas palavras do personagem Geraldo, um nome “que soa bem”. Ou seja, que apresenta bem, de convence, que vende bem. Pensamos na coerência entre as duas cenas em sequência: a entrevista em sua superficialidade e a denominação dos projetos imobiliários na produção de uma cidade. Cabe trazer uma coincidência que reforça este aspecto do filme em nós: no percurso deste estudo, este pesquisador veio a prestar serviço a um instituto sediado bem ali, em Pina, no JCPM Trade Center que aparece no filme inclusive.





Foto XX. vista de Brasília Teimosa. No primeiro plano e à esquerda, o JCPM Trade Center[1] marcando o contraste da paisagem.



Diego fala do prédio atual usando verbos no passado. A Empresa se comporta como empresa. A Empresa é empresa: empreende. Sua fúria empreendedora torna cegos seus representantes. Eles não enxergam e, portanto, não conseguem compreender nada que não seja seu empreendimento. Neste sentido, empreender cega o compreender. Nega a compreensão de tudo o que não for o empreendimento da Empresa. Os empreendedores não conseguem compreender a dimensão da vida que se materializa nos objetos, que significa, que produz sentidos e subjetividades. Não compreendem outras dimensões que não as do negócio, da compra e da venda, dos investimentos. Do dinheiro enfim. Esta cena que vai do minuto 27 ao minuto 33, finaliza a primeira parte do Filme ao mesmo tempo em que antecipa o que virá na parte seguinte. Ocorre que seu Geraldo trata dos interesses da empresa com Clara no plano dos negócios. Já o neto, jovem e ambicioso, lança para Clara olhares sedutores sugerindo que o mundo dos negócios não tem limites para fazer valer seus interesses. Como se, para a empresa, as fronteiras entre vida pública e vida privada fossem porosas. Nada contra, absolutamente. Mas o que nos provoca certa ojeriza neste comportamento do personagem Diego como falando pela Bonfim Engenharia aqui representando o mundo dos negócios, os interesses do mercado, do capital, do investidor, ignorando as vidas, atropelasse tudo e todos que obstaculizarem seus interesses de reprodução. Noutro momento do filme, Diego fala exatamente isso para Clara.





Parte 2: O amor de Clara[IRDJ1]



Devagar Clara vai percebendo o aspecto de abandono do prédio. Se todos os apartamentos são da Empresa e estão vazios, o prédio já está praticamente vazio. Apenas Clara ocupa o último apartamento. Preferimos dizer, apenas Clara habita um apartamento no edifício Aquarius. Todos os outros apartamentos estão desabitados.



Uma rápida passagem do filme traz o tema da intensidade. Clara está no carro com o jovem sobrinho. Falam de canções, das formas de armazenagem em pen drive, no dispositivo celular e tal. A canção de fundo é escolha de Clara, e a voz penetrante de Maria Bethânia[2] ocupa todo o espaço da sala de cinema, preenchendo todo o entre tela e plateia.



Eu sei que eu tenho um jeito

Meio estúpido de ser

E de dizer coisas que podem magoar e te ofender

Mas cada um tem o seu jeito

Todo próprio de amar e de se defender

Você me acusa e só me preocupa

Agrava mais e mais a minha culpa

Eu faço, e desfaço, contrafeito

O meu defeito é te amar demais





Logo nas primeiras frases da canção, o rapaz diz de sua alegria com a chegada de uma garota carioca ao Recife. Se conheceram pelo facebook, conversaram durante um tempo, se curtiram. Júlia, lindo nome diz Clara. E aconselha:

- Mostra Maria Bethânia para ela. Mostra que tu é intenso!



Ao que a voz da Bethânia rasga a cena:



Palavras são palavras

E a gente nem percebe o que disse sem querer

E o que deixou pra depois

Mais o importante é perceber

Que a nossa vida em comum

Depende só e unicamente de nós dois

Eu tento achar um jeito de explicar

Você bem que podia me aceitar



Queremos aqui fazer mais um parêntese para falar do que está junto desta canção mas não foi apresentado no filme. No disco, na gravação original tem uma passagem que pode nos dizer muita coisa a ser trabalhada nesta pesquisa. Trata-se de um texto de Fauzi Arap[3] lido por Bethânia cuja transcrição está a seguir:



Eu vou te contar que você não me conhece, e eu tenho que gritar isso porque você está surdo e não me ouve. A sedução me escraviza a você. Ao fim de tudo você permanece comigo mas preso ao que eu criei, e não a mim.

E quanto mais falo sobre a verdade inteira, um abismo maior nos separa.

Você não tem um nome, eu tenho. Você é um rosto na multidão e eu sou o centro das atenções.

Mas a mentira da aparência do que eu sou e a mentira da aparência do que você é, porque eu, eu não sou o meu nome e você não é ninguém.

O jogo perigoso que eu pratico aqui, ele busca chegar ao limite possível de aproximação através da aceitação da distância e do reconhecimento dela.

Entre eu e você existe a notícia que nos separa. Eu quero que você me veja a mim. Eu me dispo da notícia, e a minha nudez parada te denuncia e te espelha.

Eu me delato. Tu me relatas.

Eu nos acuso e confesso por nós.

E assim me livro das palavras com as quais você me veste.



E entra na cação:

Eu sei que eu tenho um jeito

Meio estúpido de ser

E de dizer coisas que podem magoar e te ofender

Mas cada um tem o seu jeito

Todo próprio de amar e de se defender (...)



Fechando o parêntese da intensidade com Maria Bethânia que nos levou a Fauzi Arap, voltamos ao eixo narrativo principal. Lembrando que Clara havia feito uma proposta pela compra do apartamento acima do seu, Geraldo respondeu com uma contraproposta para a compra do apartamento de Clara. Generosa proposta e muito acima dos padrões de mercado. Ao rasgar a proposta sem ler, o espectador compreende claramente os interesses de Clara. Ela é clara. Ela é Clara. Mas isso vai, devagar, no conjunto de cenas seguintes tornando sua vida cada vez mais difícil. Não há ilegalidade no assédio da Empresa sobre Clara. O jogo imobiliário vai se apresentando, a disputa beligerante pela terra nesta porção muito valorizada de uma importante capital brasileira está apresentada. O filme segue agora para, coerente com o título da segunda parte, a vida amorosa da protagonista.



No Clube das Pás[4], durante a dança, Clara conhece um capixaba, viúvo assim como ela. Ambos dançam, conversam e os corpos se compõem, na dança e no carro, até que as marcas da ausência da cirurgia de mama interrompem os últimos passos da dança dos corpos.



E indícios da busca por sexo profissional, ao que Clara recusa o número de telefone do garoto de programa oferecido por uma amiga.



Nas cenas do baile, algumas marcações do movimento de Clara. A cena do banheiro feminino com corpos e rostos que apresentam um pouco dos contrastes. As cenas e imagens do salão de dança que realçam tais contrastes. São corpos diferentes e em movimento, são rostos dos mais diferentes tipos, cabelos, sotaques. E movimento expresso na dança dos corpos. Cabe salientar que a festa foi um convite de Clara. Por iniciativa dela as amigas se reuniram para festejar. Pela segunda vez no filme, um close fechando nos pés das amigas debaixo da mesa e, apenas os pés de Clara estão em movimento. Ainda no baile, uma canção parece juntar todos os participantes: Recife minha cidade, uma espécie de hino da cidade que coloca todas as vozes em coro.

A noite acaba com Clara dançando sozinha na sala de sua casa ao som de Roberto Carlos, a canção O quintal do vizinho. Trechos marcantes da canção dizem, pela boca da protagonista do filme:

Sonhei que entrei no quintal do vizinho

e plantei uma flor

no dia seguinte ele estava sorrindo

dizendo que a primavera chegou.

E quando eu abri a janela….



E uma cena quase imperceptível apresenta uma virada no percurso do filme. Uma manta, dessas de proteção de grandes obras verticais, cai do arranha céu em fase final de construção ao lado do Aquarius (hoje, edifício Château Mouton). CORTA - Corte na cena. Na manhã seguinte a manta está sobre os carros parados na calçada. E o filme ganha uma espécie de nova cobertura: fica mais tenso. Clara é alertada pelo bombeiro guarda-vidas, seu amigo, dos perigos que agora se apresentam no bairro. O exemplo dessa mudança nos hábitos e costumes é trazido no filme por meio de um vendedor de drogas ilícitas: um rapaz branco, bem vestido, de classe média que, com presença regular no calçadão com sua bicicleta cara, distribui a droga aos consumidores residentes naquela região. O consumo de maconha em cigarros é comum no filme desde o início. Não há indícios de consumo ou tráfico de outras drogas exceto na presença do vendedor que, sugere a cena, vende drogas mais pesadas. A tensão vai ganhando um tom de ameaça com a chegada de um ex-vizinho de apartamento. Daniel, filho de Jorge mostra uma interpretação diferente das atitudes de Clara. Ele se sente prejudicado pelo ‘egoísmo’ de Clara ao se negar sair do apartamento. Seu pai negociou o apartamento há tempos mas o negócio não se confirmou até aquele momento. O pai já morreu.



Uma canção não está na lista das canções do filme. Ao aparecer pela segunda vez, agora no momento em que Clara abraça Leidijane pelo seu aniversário, fomos à sua procura. Trata-se de uma das Canções de Cordialidade[5]. Em nossa breve investigação, a oportunidade da letra nos anima a reproduzi-la aqui. Música de Heitor Villa Lobos e Letra de Manuel Bandeira:



Saudamos o grande dia

Em que hoje comemoras

Seja a casa onde moras

A morada da alegria.

O refúgio da ventura

Feliz aniversário



No abraço pelo aniversário de Leidijane, Clara afirma: “você sabe que pode contar comigo para tudo, não sabe?”. Clara parece afirmar, em vários momentos, sua opção preferencial, seu respeito, ao se dirigir constantemente a todos as pessoas que entram na cena. Parece se interessar muito pelos mais simples: sempre pergunta o nome aos funcionários e trabalhadores que se relacionam com ela. Na tentativa de sair com seu carro do estacionamento do edifício, Diego e dois funcionários estão por ali. O carro de Diego obstrui a passagem de Clara. Ela, por sua vez, primeiro se dirige aos funcionários perguntando o nome. E pede que Diego retire seu carro do caminho. Pura provocação. Num breve diálogo entre ambos, Diego afirma: “os apartamentos estão vazios mas são de propriedade da Construtora. A gente pode trazer o que for necessário para o trabalho”. Os objetos em questão são colchões. E a pergunta que tem ocupado Clara, afinal, para que colchões em apartamentos vazios?

Na cena seguinte, mais uma afirmação do diretor. Clara está no cemitério para colocar flores do túmulo de Adalberto Henrique (1945-1997). Aqui parece iniciar um deslocamento para a vida familiar de Clara. Até então apareceram rapidamente no filme um sobrinho e o irmão de Clara. A partir de agora, com a visita ao ex-marido, aparecem nas cenas seguintes o universo familiar: filhos e filhas, genros e noras, netos e netas, numa reunião familiar. Duas observações ainda na cena do cemitério: 1) um close na lápide onde Clara deposita flores vermelhas e retira galhos secos. 2) Clara caminha como se pensando, como se elaborando suas emoções, como se conversando consigo mesma tendo a lembrança de Adalberto numa forte presença ali. A câmera se movimenta na mesma medida do movimento de Clara até que seu olhar é capturado pelo trabalho de dois homens num jazigo. Neste momento, a câmera assume o lugar de Clara quando os leitores do filme são colocados no lugar dela. A construção de uma sepultura obstaculiza o olhar. Para que o diretor interrompe desta maneira? para que uma mensagem subliminar fique: ‘in loving memory[2] ”. Esta frase fica na tela por cerca de 2 segundos e parece dar a pista da caminhada e da passagem de Clara pelo cemitério, logo um cemitério onde ficam os mortos, fazendo uma ligação importante entre os dramas particulares da mulher Clara e da mãe, da avó Clara. Voltaremos a este ponto mais tarde.

Voltando aos trabalhadores no jazigo, ambos retiram ossadas humanas em seu trabalho de manutenção rotineiro. O que o diretor deseja destacar nesta passagem? quais afetos ele deseja mobilizar nos espectadores? de nossa parte, destacamos aqui uma preparação para ingressar, no sentido de dar mais um passo na direção dos amores de Clara. Do mundo que o cinema constrói, este mundo que aqui se apresenta em movimento, em mutação, em deslocamento. E nos parece que aqui um deslocamento é marcado, afinal o drama da casa tem implicações diretas na vida, nas relações familiares e amorosas. Uma memória amorosa se nos mobiliza...





Foto XX. Clara observando os trabalhadores em manutenção num túmulo.





Foto XX. No movimento da câmera, o olhar passa rapidamente pelas palavras no mármore.



Foto XX. A imagem da morte que irá contrastar com a cena seguinte, imagem da vida.



A dureza da passagem pelo cemitério é quebrada com uma canção infantil. De Vinícus de Moraes[6], o poema musicado O vento. Na tela, um vinil azul reproduzindo a voz do poetinha:



Esse é para Maria João e Bruninha:

Não tenho cor,

não tenho forma

peso nenhum

Quando sou forte me chamo veeento

quando sou cheiro me chamo pum.



O vinil azul dá lugar para uma porta branca entreaberta. O movimento da câmera simulando o olhar de Clara novamente se aproxima e abre a porta. Dentro do quarto de Clara, a cama de casal arrumada com travesseiros e almofadas protegendo um bebê que mexe lindamente braços e pernas. Um bebê sendo bebê. Uma vida que começa. Como tantas que, neste apartamento do edifício Aquarius, desde a tia Lúcia, se tornaram matéria. A memória amorosa está impregnando a paisagem, as portas e janelas, as paredes e os tijolos. Isto também se mostra na fotografia: ao lado da cama, livros e fotografias, ou seja, ideias, pensamentos e rostos. Gente por dentro e por fora. Clara pega o bebê no colo e segue com ele para a sala, onde encontra as filhas e os filhos. A câmera passa pelo armário de madeira, o mesmo que já deu suporte para o amor de tia Lúcia e Augusto, agora apoiando objetos coloridos que remetem a brinquedos infantis. São tantos amores neste apartamento. No chão da sala, duas crianças criançando entre brinquedos e panos coloridos, formas, cabanas e um polvo com tentáculos coloridos que pula pelas mãozinhas em movimento. Close no sorriso largo no rosto de Clara que lança uma afirmação contundente aos adultos na sala:

- Tão bom ter vocês aqui !

Entramos no mundo familiar. Um passo importante para o que virá agora. Vamos perceber que as relações externas, o assim chamado mercado produz as relações afetivas. Como se as linhas tecidas na vida pública em sua esfera mercantil, em sua força subjetivadora, interferindo no tecido familiar. Um dia de festa será colonizado por uma tensão que está se processando em outra esfera. O drama do apartamento, a pressão da imobiliária e a negação de Clara, seu desinteresse causa desconforto entre os presentes. Incompreensão dos valores de Clara. E nos perguntamos: como os valores são produzidos? para alguns, valores estão materializados na proposta financeira acima do praticado mercado conforme as palavras do Geraldo, patriarca da Bonfim Engenharia. Poucos parecem compreender que os valores de Clara são de outra ordem. Clara não leu a proposta, rasgou o envelope com tudo dentro num gesto de recusa em silêncio.



Este trecho que inicia com o Vento de Vinícius, a família reunida do apartamento do Aquarius, finaliza com a despedida no estacionamento, somam 16 minutos de intensidade estética e dramática. Clara é uma velhinha e menina, como explicita a filha Ana Paula. Ela parece a mais insensível dos três:

Vamos entrar um pouco em cada um deles. Nossa lente para leitura é a sensibilidade apresentada nos personagens. São 5 personagens adultos que se revezam nas cenas do almoço.



- Ana Paula é a única filha. Recém separada, ainda enfrenta dificuldades na organização da vida com um filho pequeno. Sugere estar em dificuldades de várias ordens, inclusive dificuldades financeira. É ela que traz para o almoço em família na casa de Clara, o tema da venda do apartamento. Se coloca com a filha preocupada com o bem estar da mãe, fala em nome dos irmãos sem pedir autorização para eles que se mostram contrariados na cena. Em momento nenhum ela está com seu filho; pelo contrário, ele aparece no colo da babá. Uma cena mostra, inclusive, o menino deixando os brinquedos e brincadeiras e se dirigindo à babá e não à mãe. Clara conhece os detalhes da proposta que a Construtora fez pelo apartamento: R$ 2 milhões, e apresenta detalhes da oferta, parece falar pela Construtora. Ela procurou pela empresa para “saber o que está acontecendo”. Mais para frente, na terceira parte do filme, Ana Paula mostra sua afinidade com Diego, um rapaz simpático e atencioso, ela diz.



- Martinho parece o filho mais velho. Casado e pai do bebê que Clara traz de sua cama para a sala. A companheira de Martinho também aparece na cena quase sempre com o bebê no colo, algumas vezes, amamentando. O pai contracena com o bebê também. Este casal parece polarizar antíteses com Ana Paula: eles com o bebê, ela sempre afastada do seu filho que não é mais um bebê mas ainda é bem pequeno. Martinho parece funcionar como um pêndulo entre os argumentos da irmã e a sensibilidade da mãe;



- Murilo, aparentemente o mais novo, está num relacionamento com Márcio. Martinho é quem fala de Márcio. Ana Paula já viu uma foto. Clara, nem foto. Parece o mais quieto, introspectivo e que não partilha muito sua vida. Não entra nos assuntos do apartamento mas, quando o assunto está colocado por Ana Paula na direção clara do interesse de vender o apartamento mas anunciado como ‘preocupação com a mãe’, se posiciona em apoio a mãe. Nossa sensação é de maior afinidade entre Clara e Murilo.



Clara se diz puta com a situação. Estressados estão os filhos. Ela parece afirmar que fica muito incomodada com o movimento disparado pela Construtora que lhe tira o sossego. Clara está tentando manter sua vida no seu ritmo próprio mas forças externas atrapalham. E esta tensão está aumentando. Para Ana Paula o apartamento é um problema, para Clara, não. E os diálogos nesta sequência são muito interessantes. E o são porque colocam interesses comerciais, negócios num momento que se pretendia inicialmente de puro ócio. É o negócio negando literalmente o ócio. É possível perceber os papéis típicos do mundo familiar e doméstico. No longa metragem tais personalidades nos movimentam. Tentaremos aqui dialogar com eles no plano da sensibilidade.



Ana Paula traz para o encontro a questão da disputa pelo imóvel. Ela explicita suas preferências e, no jogo das cenas, a intenção do diretor parece exagerar, parece elevar a enésima potência a falta de sensibilidade dela, a incapacidade de escuta, as falas que querem se impor ignorando absolutamente a existência do outro em sua singularidade, a outridade, a alteridade. Ana Paula olha para a mãe mas não a enxerga. Ela consegue ver apenas na fisionomia de descontentamento de Clara um adversário acusando cada golpe de suas palavras. E se arma para receber uma resposta que, sabe ela, não irá agradar. Porque apenas a concordância, a aceitação a agradaria. Apenas. É um diálogo que não existe. Não há conversa visto que as possibilidades não existem. Ana Paula está fechada ao encontro. Então pensamos que o mercado, ou melhor, este tipo de mercado agressivo, não abre possibilidades; pelo contrário, fecha, impede. Ele busca a afirmação de seus interesses que são, em última instância, a reprodução do capital e tudo o que ele carrega consigo em termos de produção de mundos, de produção de um sujeito chamado consumidor. Não há espaço para produção de sentidos outros.



No momento do diálogo entre mãe e filhos, Clara traz o tema da loucura de um jeito interessante:

- você vai falando com essa gente (o pessoal da construtora), me coloca como uma louca. É que vocês não sabem o que é se sentir louco sem ser louco, parece que você vai endoidando, você sabe o que é isso meu filho”.

E se dirigindo a Murilo, continua:

- “saber que não está endoidando e que a loucura está lá fora (...) Outra coisa que é muito louca aqui é a gente estar falando de dinheiro (...)”

Clara não precisa de dinheiro. Estão num momento de convívio familiar mas a Empresa interfere. Ana Paula trouxe a empresa para a cozinha, depois para a sala. Ana Paula insiste. Ela quer falar deste assunto. Se diz preocupada com a mãe. Será? com a mãe?



Se referindo a Paulinho da Viola, Clara interrompe cantarolando, numa prática que muito nos agrada:

há pessoas com nervos de aço

sem sangue nas veias e sem coração

mas às vezes passando o que eu passo…

E conclui colocando as coisas no lugar: “Lupicínio”.



É como se colocando as palavras na boca de outras pessoas ou, colocando as palavras de outras pessoas na nossa boca em determinados momentos. É como se produzindo um outro território para a constituição de um diálogo menos tenso, um território mais comum tendo a arte como uma espécie de sublimação. É dizer sem ser explícito, sem afirmar, sem impor mas, pelo contrário por em suspensão até que algumas brechas se abram dando passagem para outros fluxos de composição dos sentidos.



O diálogo segue tenso. Ana Paula passa do limite, os irmãos reclamam. E Martinho interrompe a irmã lembrando-a da dedicatória do livro escrito pela mãe, conforme os frames abaixo:





Frame XX. Capa do livro assinado por Clara Amorim de Melo





Frame XX. Título do livro escrito por Clara





Frame XX. Dedicatória aos filhos.





Queremos aqui fazer pequenas considerações acerca das imagens acima. Primeiro para o título do livro: TODAS AS MÚSICAS QUE NÃO CONSEGUIMOS VER. Uma obra sobre Heitor Villa-Lobos. Uma leitura atual de sua contribuição para educação musical no Brasil. O que pretende o diretor do filme com essa provocação? música é uma linguagem que mobiliza o sentido da audição, então o que a visão tem com isso? voltaremos a esse ponto no momento oportuno[3] . Uma segunda consideração se refere ao texto da dedicatória: Pelas horas de lazer que lhes foram roubadas. O que significa para uma mulher apaixonada pela música se lançar numa busca, numa pesquisa, num trabalho cujo produto está ali materializado num livro? qual o nível de implicação deste corpo mutilado que se lança neste movimento de vida empurrado pela força do desejo? Ana Paula agridfala em termos de trabalho colocando em dúvida a capacidade da profissional Clara em erguer o patrimônio da família colocando no falecido pai a dedicação e a conquista. Pode estar certa, mas isso não importa. E a sutileza, o gesto delicado de Clara ao, reconhecendo a ausência num determinado período da vida dos filhos, dedicar a eles o livro, a obra mais importante e valiosa na vida dela de então. Aqui está marcada a diferença, a polarização, o contraste dos personagens que nos referimos acima.

Este trecho destacado do filme termina com o pedido de desculpa de Ana Paula, e Clara oferecendo colo para a filha.

- É que às vezes a senhora parece uma mistura de velhinha com criança.

- Eu sou uma velhinha com criança, tudo junto.



CORTA!!!



Mais uma vez o sossego de Clara é quebrado. Uma festa acontece no apartamento de cima. Mais um avanço da Construtora na direção dos seus interesses. Parte do prédio está locado para uma produtora de filmes eróticos. Clara tenta manter-se em casa colocando suas canções para competir com o ruído sexual que vem de cima. Tenta o vinho também. Mas é impossível. Tal constatação é possível tanto para Clara quanto para o espectador ao, movida pela curiosidade, Clara olhar pela fresta da porta entre aberta e ver a orgia sexual. Isso ativa em Clara sentimentos adormecidos ou reprimidos. Neste momento ela decide se aventurar com Paulo, um profissional do sexo. Ela se ativa eroticamente e se lança na experiência.

Mais uma vez a personagem parece tatear o rapaz e se decepciona. Ela parece ficar entre a tentativa de um romance, um pedido que ele vá embora numa espécie de decepção e, por fim, uma decisão:

- eu quero que você me coma !



A cirurgia na mama ainda mostra suas marcas em Clara. Aqui ele se apresenta como mulher.



Um pequeno salto… A relação com Thomaz, o sobrinho.

Interessante pensar a cena na praia de Boa Viagem na caminhada sentido Pina - Brasília Teimosa. Caminham Clara, Thomas e Julia, a carioca que está no Recife para encontrá-lo. E as manifestações de carinho entre tia e sobrinho. Como se o filho que ela não teve, quase que nas palavras de Clara. E mais uma demonstração de um amor por afinidade, uma espécie de suavidade que se produz na relação entre duas pessoas que, aparentemente, partilham uma sensibilidade especial apesar de Thomaz ainda não ter apresentado Maria Bethânia para Julia.

Neste diálogo, mais um destaque que nos obriga um rápido retorno. Ocorre que a festa, orgia, gravação de um filme pronográfico ocorrido na noite anterior no edifício Aquarius que, além de incomodar, lançou Clara em outras viagens, acabou em sujeira. Clara percebe cocô nas escadas. E, na praia, mostra para Julia que a divisa entre Pina e Brasília Teimosa é, precisamente um emissário de esgoto. Interessante pensar a cidade nesta perspectiva: uma cidade como Recife, numa região extremamente ‘valorizada’. O filme retrata uma disputa pela terra urbana, por imóveis à beira mar. Para o mercado aqui representado pela Construtora e seus empresários, sem esquecer do jogo que envolve o interesse das pessoas ao redor de Clara e dos apartamentos, porque não um arranha céu para muita gente? nas palavras de Caetano Veloso se referindo a São Paulo: “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Porque a situação apresentada no filme é Recife, mas poderia ser, como afirma o próprio diretor, muitas cidades Brasileiras. Cabe lembrar que o roteiro nasce motivado basicamente por algumas situações. Clara foi inspirada na força da mãe do diretor. A história, por sua vez, vem das insistentes ligações que Kléber recebia de empresas oferecendo produtos os mais variados, inclusive e principalmente apartamentos em áreas nobres da cidade. Em suas andanças pelo Brasil, vai se dando conta que o mercado imobiliário tem tornado as cidades cada vez mais insensíveis. Aliás, nas nossas idas recentes a Recife, é impressionante a vista da janela do avião no momento da aproximação para o pouso: um verdadeiro paliteiro de prédios. São extensas áreas de uma cidade verticalizada.



Enquanto escrevo, vibra meu celular. Ocorre que estamos em período de isolamento social devido ao Coronavirus. Neste período de, por assim dizer, uma temporalidade suspensa, não tranquila mas suspensa, temos acompanhado as maneiras que artistas têm encontrado para divulgar sua arte, para encontrar em entre si e com seu público. Tenho acompanhado especialmente as aulas em vídeo de Adriana Calcanhoto, Mônica Salmaso entre outros. Além de nosso mergulho recente em Zélia Duncan e tal. E o telefone nos trouxe um encontro novo, via internet, de Salmaso e Duncan. A canção não está na trilha de Aquarius mas poderia. Estamos recriando, ‘recreando’, uma brincadeira na caminhada-flanagem agora imaginária pelo Recife com FELIZ CAMINHAR, de Paulinho Moska[7] e Zélia Duncan[8]:



Boto[9] sua cabeça no meu colo

Te imploro pra respirar macio

Pra lembrar que quando a vida esmurra a porta

A gente solta o trinco e Ihe oferece um chá

Pede calma e bota a alma pra pensar

Guardo sua mão dentro das minhas

Pra dentro dos meus olhos, seu olhar

Te mostro o filme que fiz outro dia

Num enredo suave e a vida a nos enveredar

Pede calma e bota a alma pra pensar

Final feliz já nem importa

Mas um feliz caminhar

Que pede calma e bota a alma pra pensar...



Interessante perceber as linhas de vida e seus entrelaçamentos. Estamos aqui mergulhados no Aquarius, nas tramas do enredo, e pinta um nó. Nem raiva nem tristeza, antídoto da cantora e compositora para enfrentar “essa aspereza que a gente vem vivendo” são: suavidade e delicadeza.[10]





Bem, estávamos na caminhada de Clara, Thomas e Júlia de Pina a Brasília Teimosa. O esgoto separa, divide, limita a “parte rica da parte pobre”. Caminham com destino à casa de Leidijane carregando a indignação com a história da morte prematura e recente do filho por um motorista bêbado que não foi condenado pelo crime que cometeu. Este clima de indignação toma a cena. A câmera se afasta mostrando o contraste entre Brasília Teimosa e Pina, paisagens vão se compondo e se decompondo. E a música que sustenta emocionalmente a cena é Sufoco, na voz forte de Alcione:



Não sei se vou aturar

Esses seus abusos

Não sei se vou suportar

Os seus absurdos



Este percurso da câmera e dos personagens marca também, e sobretudo, um deslocamento. Até aqui o filme projeta a Recife a partir de Pina. Neste trecho há uma inversão: a cidade está projetada a partir de Brasília Teimosa, da festa na laje. Mais um rápido parêntese neste ponto do texto para caracterizar um pouco os lugares no sentido de dar um pouco mais de materialidade para o leitor, para a leitora. Vamos lá…



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Brasília Teimosa

(alguns dados retirados do sítio da prefeitura do Recife[11])



Está 2,33 km do Marco Zero de Recife;

Área Territorial: 61 hectares;

População Residente: 18.334 habitantes;

Predominantemente brancos e pardos;

Crescimento Anual da População (2000/2010): - 0,44% (diminui)

Densidade Demográfica: 302,81 habitantes por hectare

5.464 domicílios

R$ 1.220,81 Rendimento Nominal Médio Mensal dos Domicílios





Imagem XX. Destacado em vermelho, Brasília Teimosa



Brasília Teimosa recebe esse nome porque “a ocupação aconteceu no mesmo período em que o ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek trabalhava na projeção da cidade de Brasília. A teimosia faz alusão à resistência dos moradores, pescadores, comerciantes e donas de casa, que ocuparam essas terras e viveram em condições insalubres, resistindo dia após dia em conflito com poder público que queria desmobilizar e desocupar a região”, segundo Marcos Barbosa[12].





Imagem XX. Localização do Edifício Oceania, locação do edifício Aquarius.





Imagem XX. Destacado em vermelho, Boa Viagem.


Pina

(alguns dados retirados do sítio da prefeitura do Recife[13])



Está 4,57 km do Marco Zero de Recife

Área Territorial: 629 hectares

População Residente: 29.176 habitantes

Predominantemente brancos e pardos;

Taxa de Crescimento Anual da População (2000/2010): 0,62%

Densidade Demográfica: 46,38 habitante por hectare;

9.457 domicílios

3,1 habitantes por domicílio;

Rendimento Médio Mensal dos Domicílios: R$ 2.446,83





Imagem XX. Destacado em vermelho o bairro Pina.





Em Brasília Teimosa são 18.334 habitantes em 61 hectares, ou 302,81 hab/hectare. Em 5.464 domicílios. Renda mensal de R$ 1.220,81.

Em Pina são 29.176 habitantes em 629 hectares, ou 46,38 hab/hectare. Em 9.457 domicílios. Renda mensal de R$ 2.446,83.



***



Voltemos ao filme...



A cena segue com a sessão de fotografias no apartamento de Clara. Ocorre que um sobrinho, certamente o irmão de Thomas, está preparando a cerimônia de casamento e precisa de fotografias antigas. Toda a cena é interessante. Mistura elementos de realidade e memória, de presente e passado seja nas imagens reveladas no papel fotográfico, seja nos percursos em Clara, seus movimentos afetivos. Lembranças e sonhos vão se embaralhando e as cenas vão conduzindo e espectador a experimentar com ela esse passeio. Outro detalhe que merece destaque é o movimento de Julia. Ela e Thomas estão se amando, ouvindo os discos de Clara que Thomas chama de ‘futura herança’, e Julia cumprimentando Leidijane ao acordar. São duas linhas se cruzando: uma linha é o diálogo que se trava na sala, branco e classe média, acerca de um casamento branco e classe média. E na ante sala, Thomas e Julia estão olhando os discos. Leidijane entra na cena, serve de vinho os presentes e, em seguida, mostra a todos a foto de seu falecido filho por atropelamento, motorista bêbado, provavelmente branco de classe média que não foi condenado. Silêncio sepulcral e ela volta para a cozinha. Então vem o momento mais bonito e delicado que finaliza essa passagem: Julia escolhe uma canção, coloca o vinil na vitrola e se dirige a Clara:



Pai e mãe

Gilberto Gil



Eu passei muito tempo

Aprendendo a beijar

Outros homens

Como beijo o meu pai

Eu passei muito tempo

Pra saber que a mulher

Que eu amei

Que amo

Que amarei

Será sempre a mulher

Como é minha mãe



Como é, minha mãe?

Como vão seus temores?

Meu pai, como vai?

Diga a ele que não

Se aborreça comigo

Quando me vir beijar

Outro homem qualquer

Diga a ele que eu

Quando beijo um amigo

Estou certo de ser

Alguém como ele é

Alguém com sua força

Pra me proteger

Alguém com seu carinho

Pra me confortar

Alguém com olhos

E coração bem abertos

Pra me compreender



O casal nubente demonstra um certo descontentamento. Os presentes parecem desconhecer a canção de Gil. Julia e Clara a conhecem bem. O diálogo se trava entre olhares numa comunicação bonita, profunda e delicada. Clara tenta segurar a expressão de alegria e lança um sorriso monalítico para Julia. Esta, por sua vez, na sua inocência, ou melhor, na sua pureza juvenil, apresenta um sorriso largo ao sentir a comunicação por meio das palavras de Gil.

Cabe aqui um pontuar um depoimento do compositor baiano: “Pai e mãe é uma canção composta no dia em que eu completei 33 anos, 26 de junho de 1975. Uma música de confissão de afeto profundo pelos pais, colocando todos os homens queridos como sendo um prolongamento do pai e todas as mulheres amadas como um prolongamento da mãe. Meus pais moravam em Vitória da Conquista na época e festejaram muito a canção", disse o próprio Gil[14].



Corta !

Novo Take: Leidijane de costas, na cozinha preparando o almoço.

Corta !

A canção continua na tela preta.





Parte 3. O câncer de Clara.



A abertura da terceira e última parte do filme trazem duas passagens importantes. A primeira reforça a absoluta falta de sensibilidade da filha Ana Paula. Ela demitiu a babá. Ao redor dessa informação importante está uma construção simbólica em cenas que contrastam a aceleração de Ana Paula com a dedicação de Clara ao neto e às pessoas como a babá (que já apareceu no filme durante o almoço em família) bem como Leidijane. A segunda cena é o diálogo duro, uma discussão quente entre Clara e Diego, com a presença de Leidijane.



Caminhando para o final, a Construtora usa dos recursos mais agudos para interferir na decisão de Clara. Muito suspensa é empreendido na cena em que Clara descobre os andares superiores do Aquarius com cupim de demolição colocados ali pela Construtora para comprometer estruturalmente o prédio. Como se iniciada a demolição com um apartamento habitado. Não há limites para para a empresa.

A firmeza e convicção de Clara, apoiada pela amiga e advogada, pelo irmão e o sobrinho Thomáz, conclui o filme numa trama que parece materializar artisticamente uma característica brasileira: as relações de compadrio. Um amigo jornalista dá uma pista para Clara: informações e documentos que, se tornados público, podem causar muito constrangimento para a Construtora. Não fica claro do que se trata. Mas a fisionomia de raiva do seu Geraldo, as ameaças de Diego para Clara trazendo os aspectos jurídicos para a mesa de reunião que acontece no alto do arranha céu sede da Construtora denunciam a gravidade dos documentos. O filme termina sugerindo que a Empresa recuou. Mas isso pouco importa. Importa a narrativa, os deslocamentos, o movimento que tentamos trazer para esta pesquisa.



E o filme termina como começa. Com Taiguara e o som musical e ritmado das ondas quebrando na praia. Certamente em Recife,























SOBRE A TRILHA SONORA DO FILME

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Como já dissemos, Clara foi crítica musical e a trilha sonora funciona como uma espécie de paisagem sonora mostrando o entrelaçamento temporal intencionado pelo diretor.



As canções selecionadas para Aquarius tem um papel de ligação com o universo musical de Clara, especialmente na década de 1970, período em que a personagem trabalhou como crítica musical. Um fato curioso: a distribuidora Vitrine Filmes produziu cerca de 100 fitas K7 com as canções do longa-metragem e as enviou para um público selecionado. As fitas vieram acompanhadas de uma carta redigida em máquina de escrever e assinada pela personagem Clara. As canções foram disponibilizadas no serviço Spotify, assim:





N.º

Título

Intérprete(s)


1.

Another One Bites The Dust - Remastered 2011

Queen


2.

Hoje

Taiguara


3.

O Quintal do Vizinho

Roberto Carlos


4.

Sentimental Demais

Altemar Dutra


5.

Recife Minha Cidade

Reginaldo Rossi


6.

Dois Navegantes

Ave Sangria


7.

Toda Menina Baiana

Gilberto Gil


8.

Pai e Mãe

Gilberto Gil


9.

Canções de Cordialidade III - Feliz Natal

Heitor Villa-Lobos, Sonia Rubinsky


10.

Fat Bottomed Girls - Remastered 2011

Queen


11.

Sufoco

Alcione


12.

Nervos de Aço - Remaster 2012

Paulinho da Viola




O Diretor fala da trilha sonora do filme, de cada canção como um personagem que entra na cena. Tem um gesto interessante que valoriza a música na composição do ambiente, de cada ambiente, quando os personagens colocam a música para tocar.



Coincide com esta pesquisa uma coluna no mensal no Jornal Cidade de Rio Claro. A coluna nasceu como um desafio a partir da seguinte questão: para todos os sentimentos e dramas humanos existe uma canção que fale do assunto. Um pouco isso: algum compositor ou compositora fez uma canção falando do assunto. Ou ainda, os dramas humanos são elaborados, contador, retratados de forma artística. Óbvio. Então vamos dialogar nossos texto mensal com a linguagem textual musicada.







Roteiro e direção



Kleber Mendonça Filho



● Função: Diretor, Fotógrafo Still, Montador, Roteirista.

● Mini-currículo: Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, tem um trabalho abrangente como crítico e responsável pelo setor de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Escreveu para o Jornal do Commercio, no Recife, seu site CinemaScópio, Revistas Continente, Cinética e o jornal Folha de S. Paulo. É também diretor artístico do Janela Internacional de Cinema do Recife, que terá sua 5a. edição em 2012. Como realizador, migrou do vídeo nos anos 90, quando experimentou com ficção, documentário e videoclipes para o digital e o 35mm na década de 2000, realizando A Menina do Algodão (co-dirigido por Daniel Bandeira, 2003), Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005), Noite de Sexta Manhã de Sábado (2006), Crítico (2008) e Recife Frio (2009). Seus filmes receberam mais de 120 prêmios no Brasil e no exterior, com seleções em festivais como Brasília, Tiradentes, Festival do Rio, Gramado, Karlovy-Vary, Clermont-Ferrand, Hamburgo, BAFICI, Indie Lisboa e Cannes (Quinzena dos Realizadores). Os festivais de Santa Maria da Feira, Toulouse e Roterdã já apresentaram retrospectivas dos seus filmes. Sua primeira experiência no longa metragem é o documentário Crítico, realizado ao longo de oito anos. O Som ao Redor é o seu primeiro longa-metragem de ficção.





Filmografia encontrada:

● Bacurau (2019). Codirigido e coescrito com Juliano Dornelles. Ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019.

● Aquarius (2016). Indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2016.

● O som ao redor (2012). Prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci) no Festival de Roterdã de 2012. Prêmio de melhor filme pelo júri popular e Júri da Crítica, melhor diretor e melhor desenho de som no Festival de Gramado. Prêmios de melhor filme e melhor roteiro na Première Brasil do Festival do Rio 2012, entre outros.

● Recife frio (2009). Curta-metragem. Prêmio de melhor curta no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Prêmio de melhor filme pelo público e crítica, melhor diretor e roteiro no Festival de Brasília.

● Crítico (2008)

● Noite de sexta, manhã de sábado (2006). Curta-metragem. Prêmio de melhor direção no Cine PE. Prêmio de melhor atriz e prêmio da crítica no Festival de Brasília.

● Eletrodoméstica (2005). Curta-metragem. Prêmio de melhor filme pelo público e crítica e melhor atriz no Cine PE.

● Vinil verde (2004). Curta-metragem. Prêmio de melhor filme pela crítica, melhor direção e montagem no Festival de Brasília.

● A menina do algodão (2003). Curta-metragem codirigido com Daniel Bandeira.

Kléber apresenta uma visão muito particular do Recife. Um filme em particular nos chamou a atenção. Um curta metragem chamado A copa do mundo no Recife[15], de 2014.



Outras obras como O som ao redor e Eletrodoméstica, lançados em 2012 e 2005 respectivamente, apresentam similaridades diversas.



Um pouco sobre outras obras de Kleber.

SOM AO REDOR

RECIFE FRIO: o questão dos apartamentos na beira mar. o quarto de empregada.

Eletrodoméstica: pensei: numa cidade extremamente verticalizada, o olhar para a cidade não é o mesmo. há um certo perspectivismo. as relações são verticais. as pessoas aprendem a olhar de cima para baixo para ver a rua.

olhar a rua, o movimento pode ser interrompido por outro prédio. ouvir mais do que ver. e sentir o que? calor?

o ruído intermitente. até faltar energia quando deu para ouvir um piano tocando.

o isolamento, o convívio, o coronavirus.

a quantidade de portas, portões e grades. muros altos e espetos sobre os muros






pequeno glossário de termos específicos



Frame/ Fotograma

A menor unidade de um filme é o frame/fotograma. É basicamente uma fotografia da cena. Vários frames num curto tempo dá sensação de movimento. O olho humano capta algo em torno de 30 frames por segundo.



Take/Tomada

O take é basicamente do momento de play na câmera até a pausa ou stop na gravação.



Plano

A câmera dá um close no ator, depois dá um close no outro ator. Eles estão se encarando, a câmera vai pro discurso de um e depois vai pro discurso do outro. Cada destaque é um plano. Se tiver uma parte em que a câmera retrata os dois, um olhando pro outro de longe, é um outro plano. O uso de troca de planos, sempre em algum diálogo com close que é pra poder mostrar a emoção dos atores.



Cena

A cena nada mais é do que um conjunto de planos. Usando o mesmo exemplo que usamos no parágrafo acima. Um personagem faz um discurso é um plano; o outro personagem da cena faz seu discurso, é outro plano; a câmera mostrando os dois se encarando de longe, é mais um plano; o enfrentamento de ambos, é outro plano; até que um deles sai da cena, outro plano... O conjunto de planos é a cena.










Elementos para pensar um pouco mais:

- Tudo começa com Taiguara, o artista mais censurado do Brasil. (tem um vídeo com o Cristian Duncker falando disso).

- advogar a cultura da desistência, do fracasso.

- a pós-utopia. encerrar os sonhos da redemocratização sem decretar o ressentimento.

- Clara está comprometida com um futuro que não aconteceu. E está comprometida com um passado de histórias não contadas. a relação de clara com o imóvel, um conflito meramente burguês? a era de aquarius? a resistência ao neoliberalismo financeiro. Em algumas entrevistas a propósito do lançamento do Filme, Sônia Braga se mostra indignada com a pobreza em suas várias dimensões, com os valores rebaixados da vida. Clara parece demonstrar uma certa pobreza em seus filhos, sobressaltada nos diálogos e na relação com a única filha mulher.

- pensar em ume espécie de vida plástica, uma vida plastificada como um rosto ‘deformado’ pelas cirurgias.

- Diego, um jovem de cara ótima (como a própria Clara comenta) empreendedor sem limites e sem escrúpulos. Ele acredita neste mundo, nesta vida, ele se mostra obcecado na ideia de sucesso.

- a pobreza do presente.

- Clara como personagem simbólico de um outro modelo de resistência: corajoso, sintético, cirúrgico, uma transgressão.

- o filme antagoniza personagens de classe social, raça, muito parecidos.

- A recusa com um ato político. O não de clara para os interesses da construtora, para os interesses dos demais proprietários de apartamento no edifício Aquarius que aceitaram o modelo de desenvolvimento imobiliário.

- A casa como uma espécie de extensão do corpo de clara. Aqui me ocorreu pensar no tema do Ambienta, na questão ambiental, na produção de um ambiente onde o corpo se alarga, se amplia. As cenas de Clara na rede, as portas abertas entre os cômodos...

- Pensar o câncer como uma espécie de sabotagem. Uma sabotagem psíquica quando ela se limita na cena da transa e, ao mesmo tempo, uma espécie de sabotagem do parceiro, uma espécie de susto com repulsa que pode ser outra coisa, pode ser confundida com zelo ou qualquer outra coisa. Uma espécie de castração em ato, no encontro dos corpos.

- Clara não é enferma da nostalgia. Ela respeita o passado, tem ligações fortes com seu passado. Clara vive o presente, sua vida passado e presente. A atriz Sonia Braga consegue colocar na personagem uma presença intensa em cada cena. CLARA ESTÁ PRESENTE. Interessante pensar isso sobretudo em se tratando de uma interpretação, Sônia representa Clara e, ao mesmo tempo, torna Clara de fato presente em cada cena.

- Pensar a desigualdade no Brasil (este estudo acontece num período de transição, de um período onde as desigualdades diminuíam para um período onde, claramente, as desigualdades se aprofundam);

- a relação de Clara com as pessoas. Leidijane, por exemplo, trabalha na casa de Clara mas não fica nisso, a relação é muito maior que a relação de trabalho, uma participa da vida da outra. Forças de agregação, conciliação e reconciliação.



Sônia Braga afirma, em várias entrevistas (outros atores e atrizes também falam isso) que Kléber compõe com a equipe, abre o roteiro, abre possibilidades durante os ensaios e mesmo durante as filmagens para que o personagem seja criado e recriado no encontro. Compreendemos encontro aqui entre pessoas, personagens, roteiros, direção, equipe de preparação de elenco e etc. Encontro e fluxo, encontro em fluxo de afetos.

- Clara



Kohan, Walter Omar. A infância da educação: o conceito de devir-criança. Disponível em: < http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html> Acesso em 10 de abril de 2020.

Para pensar:

Entre Clara e Baterbly (de Herman Melville, O escrivão): a esquiva, a negação. Uma espécie de dança, uma certa ginga. Pelo direito da recusa, de esquivar-se, de preferir outra(s) coisa(s), de valorizar (no sentido de dar valor) a um modo de vida que não o orientado pelo desenvolvimentismo, o capital, o lucro e etc. Um “preferiria não”.








[1] “O JCPM Trade Center é o único empresarial à beira-mar do Recife, proporcionando uma visão única do litoral. Ele está localizado próximo a hotéis, restaurantes, shoppings e bancos, além de ser de fácil acesso através das principais vias da cidade. Tudo isso para oferecer mais comodidade, conveniência e economia de tempo para todos (...) O JCPM Trade Center apresenta diferenciais que ajudarão a otimizar a sua rotina e de seus clientes com todas as facilidades: segurança 24h, amplo estacionamento, heliponto, recepção, elevador e docas exclusivos para serviços”. disponível em <https://www.jcpmtradecenter.com.br/> Acesso em 13 de abril de 2020.


[2] Maria Bethânia Viana Teles Veloso (Santo Amaro, 18 de junho de 1946) é uma cantora e compositora brasileira. Maria Bethânia é irmã do também cantor e compositor Caetano Veloso. Em 1965, mudou-se para o Rio de Janeiro onde começou sua carreira musical substituindo a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião, ao lado de Zé Ketti e João do Valle entre outros. Considerada uma das grandes vozes da música brasileira em todos os tempos.


[3] Fauzi Arap (São Paulo, 1938 - 2013) foi diretor, autor e ator de teatro. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fauzi_Arap> Acesso em 08/abril/2020.


[4] o mais antigo do país - remonta à sua fundação no dia 19 de março de 1888, dois meses antes da Abolição da Escravatura no Brasil. dados disponíveis em <https://clubedaspas1888.com.br/biografia> Acesso em abril de 2020.


[5] Na década de 1940, dentro do espírito nacionalista vigente no país, Villa-Lobos e Manuel Bandeira compuseram uma série de canções para datas festivas como Natal e aniversário, na tentativa de substituir as versões importadas. O conjunto, batizado de “Canções de cordialidade”, era ensinado nas escolas e incluía títulos como “Feliz Natal”, “Feliz aniversário” e “Boas festas”. A ideia é que elas fossem adotadas no lugar de canções populares como “Parabéns para você”, tradução da americana “Happy birthday to you”, ou “Noite feliz”, versão da canção austríaca “Stille Nacht”. Os versos de Manuel Bandeira para a canção de aniversário diziam: Saudamos o grande dia/Em que hoje comemoras/Seja a casa onde mora/A morada da alegria. Nenhuma delas prosperou.

https://culturaalternativa.com.br/manuel-bandeira-um-dos-poetas-mais-cantados-de-sua-geracao-porem-pouco-ouvido/

Interessante perceber esta opção do diretor. Em sua obra não percebemos outra forma de celebrar o aniversário dos personagens senão com Villa-Lobos e Manuel Bandeira.




[6] Carioca, (19/outubro/1913 - 9/julho/1980), dramaturgo, jornalista, cantor e compositor, boêmio. Poeta e diplomata. O branco mais preto do Brasil.


[7] Carioca, nascido em 27 de Agosto de 1967. Pluri-artista, cantor e compositor, foi aluno de Cláudio Ulpiano. Disponível em <http://paulinhomoska.com.br/site/> Acesso em março de 2020.


[8] Zélia Cristina Duncan Gonçalves Moreira, nascida em Niterói/RJ em 28 de outubro de 1964. É cantora e compositora. Disponível em <http://www.zeliaduncan.com.br/> Acesso em março de 2020.


[9] Ela canta: Deito sua cabeça no meu colo.


[10] Junho de 2019, em entrevista para a Folha de São Paulo. Disponível em <https://f5.folha.uol.com.br/musica/2019/06/zelia-duncan-revisita-o-som-do-inicio-da-carreira-em-seu-novo-disco-autoral-pop.shtml>. Acesso em 11 de abril de 2020.


[11] disponível em <http://www2.recife.pe.gov.br/servico/brasilia-teimosa?op=NTI4Mg⇒ Acesso em março de 2020.


[12] Em reportagem para o Brasil de Fato publicada em 23 de agosto de 2018. Disponível em <https://www.brasildefatope.com.br/2018/08/23/historia-de-resistencia-da-brasilia-teimosa-e-contada-em-livro-por-moradora-do-bairro> Acesso em abril de 2020.


[13] Disponível em <http://www2.recife.pe.gov.br/servico/pina> Acesso em abril de 2020.


[14] Disponível em https://gilbertogil.com.br/conteudo/musicas/?letra=P. Acesso em 11 de abril de 2020.


[15] https://vimeo.com/groups/01shortfilm/videos/403365142.




[IRDJ1]Continuar a revisão daqui



na memória amorosa



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