Há momentos na vida em que a questão de
saber se podemos pensar diferentemente do
que pensamos, e perceber diferentemente do que
vemos, é absolutamente necessária se quisermos
continuar de algum modo a olhar e refletir.
Michel Foucault
A leitura de Gert Biesta nos convida a pensar na relação entre educação e democracia. Este autor tem nos ajudado nessa empreitada em nossos estudos sobre a pedagogia social desde 2014. Neste breve texto vamos trabalhar um pouco a partir de questões que disparam nosso pensamento sobre o tema. Seria a escola o lugar de preparar as crianças e jovens para futura participação na democracia? Queremos superar a ideia da escola como preparação e pensar a escola como o lugar onde indivíduos podem agir. E agindo se produzem enquanto sujeito. Assim, ao superar a produção de indivíduos democráticos, a questão educacional chave é como os indivíduos podem ser sujeitos, tendo sempre em mente que ser sujeitos é em ação, ou seja, agindo com outros seres.
- que tipo de escola precisamos para que estudantes possam agir?
- quanta ação é realmente possível nas escolas?
- é possível ser uma pessoa democrática na escola hoje?
Um aspecto importante nesse nosso exercício de pensamento é o ambiente. É necessário um ambiente educacional onde estudantes tenham oportunidade real de tomar iniciativa. Este ambiente (1) requer que a linguagem não seja apenas uma habilidade que estudantes devem adquirir mas seja compreendida como uma maneira de se introduzir no mundo: a linguagem media as relações entre EU e OUTRO. (2) Requer ainda mais educadores com real interesse pelas iniciativas de estudantes. E (3) requer menos atenção aos resultados expressos em tabelas classificatórias; mas a busca de um novo equilíbrio entre criança e currículo de forma que haja tempo disponível e condições para tais iniciativas empreenderem algo inesperado por nós. Estamos falamos de um escola centrada na ação.
Quanto mais ações possíveis na escola, melhor. Porque a prática de um grêmio estudantil, por exemplo, ou decisões tomadas em assembleia, não configuram necessariamente uma escola democrática. A deliberação é apenas uma possibilidade que os indivíduos possam se tornar sujeitos agindo no mundo. Há tantas outras possibilidades a serem experimentadas na escola e ainda inúmeras a serem inventadas.
Ainda nesse exemplo do grêmio como uma forma de participação dos estudantes na escola, a legislação em vigor assegura a organização livre dos grêmios estudantis em nossa rede municipal de ensino fundamental. A mesma legislação assegura que compete exclusivamente aos estudantes a definição das formas, dos critérios, dos estatutos e demais questões referentes à organização dos grêmios. Mais do que isso, tanto eleição de seus membros quanto aprovação do Estatuto são atribuições específicas dos alunos da respectiva unidade escolar. Como podemos ver numa rápida análise da legislação local específica, há garantias jurídicas que permitem à escola muita ação com/entre alunos. Destacamos que utilizamos a figura do grêmio estudantil como um exemplo de espaço institucionalizado para ação de um segmento específico da escola em seu dia a dia. Poderíamos citar o Conselho de Escola e ainda outros.
E temos uma excelente notícia: não existe uma fórmula pronta que transforme da noite para o dia uma escola tradicional em uma escola democrática. Tais iniciativas devem ser experimentadas permanentemente, porque uma iniciativa que se aplica bem num determinado tempo e numa determinada escola, não é necessariamente exitosa numa outra escola ou noutro tempo.
Pensando a democracia, haveria uma fronteira rígida separando escola e sociedade? Consideremos a sociedade como ela é e cujas transformações são possíveis na medida mesma da participação democrática dos indivíduos. Não podemos esperar o dia em que a escola seja a ideal, não podemos esperar a sociedade ideal para uma participação democrática. A única maneira de aperfeiçoar a qualidade democrática da sociedade é tornar a sociedade mais democrática, isto é, providenciar mais oportunidades para a ação – que é sempre ação num mundo de pluralidade e diferença. Se nosso trabalho acontece num mundo real repleto de contradições e incoerências, é nele que devemos atuar inclusive para transformá-lo. Portanto, o professor tem muito trabalho. De acordo com as investigações deste pesquisador,
as abordagens tradicionais da educação democrática perguntam como os indivíduos podem aprender a se tornar uma pessoa democrática. Se a subjetividade democrática só existe na ação, se consiste em vir ao mundo pelas maneiras como os outros respondem e adotam nossas iniciativas, então a questão de aprender não consiste em como se tornar um sujeito mas em aprender com o fato de ser e ter sido um sujeito. (Biesta, p 186)
Então, o que pode ser aprendido com o fato de ser/ter sido um sujeito? Aprendizagem compreendida com e sobre o significado da ação, do vir ao mundo, confrontando a outridade e a diferença em relação aos demais inícios e ações. É saudável inclusive perceber, a partir da ação, que outras pessoas não agiram e portanto, ainda não entraram no mundo da ação, porque se uma experiência de ação bem sucedida tem impactos na produção do sujeito, essa experiência de frustração impacta mais profundamente. Ser um sujeito tem a dimensão de estar sujeito ao que é imprevisível, diferente e outro. Nesta condição, a subjetividade pode aparecer e a democracia pode se tornar real.
O que as escolas podem fazer é tornar possível a ação e, desta maneira, criar as condições para que estudantes experimentem o que é e o que significa ser um sujeito. Porque a aprendizagem nesta experiência não é aquela que produz cidadãos democráticos. A aprendizagem que está em jogo é aquela que resulta de ter sido (ou não ter sido) um sujeito.
O desafio que está diante de nós, cada vez mais visível, é oferecer os apoios e a sustentação necessária aos movimentos de participação nas escolas, seja nos espaços existentes como o grêmio estudantil, conselho de escola ou tantos outros, ou mesmo nos espaços a serem inventados na ação possível em cada escola.
Finalizamos essa breve reflexão com um convite a partir da epígrafe escolhida para este texto: ser diferente do que somos e agir diferentemente do que agimos.
Está combinado?
Tá combinado
Podemos ver o mundo juntos,
sermos dois e sermos muitos,
nos sabermos sós sem estarmos sós.
Abrirmos a cabeça para que afinal floresça
o mais que humano em nós.
(Caetano Veloso)
Bibliografia utilizada
BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 (coleção Educação: experiência e sentido)
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS. Lei municipal 6372/03 de 21 de agosto de 2003, publicada no jornal boletim do município nr. 1574 em 29 de agosto de 2003. Dispõe sobre a livre organização de grêmios estudantis na Rede Municipal de Ensino Fundamental. Disponível em <http://www.sjc.sp.gov.br/legislacao/leis/2003/6372.pdf> Acesso em: 03/maio/2016.