sobrevivência em tempos de guerra

(aniversário de 6 anos deste texto escrito em 2016)

“a linguagem é território em guerra”.
Esta frase que não é minha, expressa bem o que tenho assistido nesta guerra da comunicação.

- Quem está em guerra?
- Quem se comunica.
- E quem se comunica?
- Nós, todos nós!

Estamos em guerra não por uma escolha nossa, mas por imposições de forças muito maiores do que nós e alheias a nossa vontade.

- E quais seriam as armas utilizadas nesta guerra da linguagem?
A fala é a arma mais comum.
Então a boca é uma arma.
Todos nós estamos armados.
Porque da boca saem palavras.
Palavras balas que saem_disparadas da arma-boca.
Palavras que machucam, que ferem e que matam.
E as palavras mortíferas matam em duplo sentido:
- matam quem as recebe: ferem e machucam quem escuta.
- matam quem as atira: ferem e machucam quem fala.


Algumas falas que ouço ferem de morte.
Permaneço vivo felizmente.
Tenho criado defesas. Elas funcionam como uma espécie de filtros para os ouvidos:
Tampões
Fones
Filtros
Espécies de capas protetoras que, tendo os ouvidos como a porta de entrada, protegem o corpo e protegem o pensamento, nos garantindo ainda alguma sanidade mental.
Sigo o conselho do artista plástico Carlos Petrus que dizia desde o hospital psiquiátrico Pedro II no Engenho de Dentro - RJ: "Eu não sou louco. Foi a loucura que entrou em mim."
Mesmo correndo o risco de ser chamado de 'autista', de ser compreendido como aquele que foge, prefiro pensar num devir peixe: escorregadio, que nada. E para nadar, nada. E quando tirado de louco, mesmo que na forma de mais uma piada despretensiosa, estamos diante da revelação da loucura do mundo?

Cada um procura à sua maneira formas de sobreviver nesta guerra.


Algumas falas que ouço que matam de vergonha.
Sabe vergonha alheia? pois é….
Tem palavra que juntando com outras palavras chegam e enojar, enjoar, dão ânsia de vômito….
Matam de vergonha.
Matam quem as disse.
Matam em quem ouve aquilo que ainda sobra de interessante de quem as disse.
Sim, é isso mesmo: cada ser carrega um pouco do outro em si. E esse pouco de outro-em-si também vive e morre. Tem palavras que matam em mim aquilo de interessante do outro que habita em mim. Tem palavras minhas que matam no outro aquilo de interessante no outro de mim.


Ainda bem que o ser humano dispõe da faculdade do pensamento. Porque antes da boca disparar palavras de morte, existe a ação do pensamento. Quando não pensamos, a chance de atirar palavras de morte é muito maior. Agora, quando pensamos, se pensamos com alguma força, a arma boca se volta muito mais contra nós mesmos.
É como se a arma-boca-língua apontasse sua mira para o autor do disparo.
Neste caso, pensamos.
E pensamos.
E pensamos um pouco mais antes de atirar.
Porque pensar não é essa atividade de manter vivo o corpo físico, a exemplo de respirar ou bombear o sangue a partir do coração. Pensar é mais do que isso. O pensamento está capturado pela disputa sangrenta de opiniões.
Parece que estamos condenados a ter e emitir opiniões para todo e qualquer assunto. Da petrobrás e os royalties do petróleo à vida privada dos representantes políticos. Da honestidade dos outros, sempre a dos outros... como se tais homens (por assim dizer) impuros, estes mesmos que chegaram de um outro planeta, de Marte, da Júpiter, como se os anéis de Saturno fossem o fruto destes seres extraterrestres corruptos. E que por esta força extraterrestre, nós pobres terráqueos vítimas corrompidas do mal externo. Mas não! tudo isso é da natureza humana. Todas as figuras maniqueístas: o bem e o mal, honesto e desonesto, deus e diabo, são e louco, bandido e mocinho, céu e inferno, nos habitam a todos indistintamente. Masculino e feminino, homem e mulher, porque dentre a lista de assuntos habitualmente tratados nestes encontros de família estão as manifestações masculinas ditando o adequado comportamento de mulheres a respostas femininas que colocam sobre a mesa as mesmas partes pudendas como demonstração de sua força opressora insuportável. E, por fim, a constatação de sempre: falta educação e cultura para este povo.

Neste movimento de pensar antes de emitir o primeiro tiro, estamos diante de um perigo muito interessante. Corremos o risco (no melhor sentido da palavra: o primeiro traço de tinta preta sobre a tela branca de Fernando Diniz) de escolher outra coisa que pode ser outra palavra, pode ser inclusive negar o tiro. E neste movimento podemos perceber que o inimigo a quem disparávamos palavras de morte tratava-se de um não inimigo.
Porque se atira palavras de morte em um não inimigo?
Aliás, o que é um inimigo?
Quem nos é inimigo?
Quem, nós cristãos-católicos-brancos, consideramos inimigos?


Talvez aceitemos essa guerra da linguagem porque sabemos
que há sempre a possibilidade do perdão.
Perdão de quem?
Quem perdoa?

A vítima do tiro palavra perdoa por ser um preceito religioso, o que não significa esquecimento, superação, elaboração consciente e inconsciente do ferimento recebido pela bala da palavra ouvida. O ato de perdoar (ou o famoso pedido de desculpas quando ele acontece) não significa sequer a cicatriz da ferida. Porque ela pode permanecer enquanto marca no corpo (físico ou subjetivo) durante toda a vida.
E não nos deixemos enganar por armas e tiros travestidos de brincadeira, de piada. Brincadeiras e piadas (normalmente de péssimo gosto) são cortina de fumaça, são alegorias, são jeitos de escamotear um certo desamor pela vida. Portanto, não contaminemos a vida dos outros e do mundo com o nosso desamor. Tratemos do nosso desamor, tratemos nosso ressentimento, sejamos adultos e cuidemos de nós mesmos primeiro para depois, e só depois, oferecer nosso ‘generoso’ ombro ou mão 'amiga' para cuidado do outro. A mesma mão que fere, acaricia. O mesmo ombro que acolhe o choro do outro é o que faz o movimento do cotovelo no sentido do nariz.

Por outro lado,
(e sempre há outro lado e tantos outros mundos quantos sujeitos para observá-los)


Por outro lado,
as palavras quando bem pensadas podem representar oração.
Ou melhor ainda: poesia.
Porque poesia é muito mais que oração.
Poesia se faz para ouvidos vivos.
Poesia é a palavra que, antes de ser dita, é pensada, pensada, muito pensada.
Procurada, escolhida com muito cuidado.
Poesia revela amor pela vida. Não por esta vida individual, mesquinha, sovina, egoísta, mas pela vida enquanto vida, enquanto o mundo vivo que nos permite estar aqui, que nos permite passar por aqui mesmo que brevemente.
Porque ‘a vida é um sopro’.
Outra frase que também não é minha mas exprime muito bem o que senti numa manhã anos atrás quando telefonemas davam notícias que nos levaram ao hospital da unimed em RC, depois ao hospital em Piracicaba e, por fim, ao velório e ao cemitério. E às vésperas de completar 87 anos, aquela vida se acabou. Acabou e não volta mais.
A vida é um sopro.
Como um rio que não volta para a nascente,
a vida não retorna para sua nascente.
um fluxo inexorável.


façamos poesias com as palavras
e, desta maneira,
talvez aproveitemos melhor
esse nosso sopro de vida.

Sim, é perfeitamente possível.
Porque, outra frase que não é minha, viver é mais que sobreviver.

Que as balas dessas palavras sejam
mais de vida que de morte.
Mais de goma que de borracha
Que estes tiros não sejam letais
mas sejam leituras
Não sejam fatais mas sejam farturas.






Carlos Petrius e Fernando Diniz são artistas plásticos no hospital psiquiátrico Pedro II, RJ.

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