disponivel em áudio na bela narração de Greice Moraes
Leia o texto ouvindo a canção. Clique no link:
Essa frase parece esconder mas, na verdade, revela. As canções escritas por Aldir Blanc nos levam aos bairros e ruas do Rio de Janeiro, seus personagens em suas carioquices. Estou te convidando a pensar numa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem da paisagem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. Tem uma beleza singular, uma alegria que se revela num cem número de blocos de carnaval, na praia, na Lapa, na favela, no Aterro, na Bossa, no Samba, no Choro, no Rap, no Charme, no Funk...
Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã
Coração do Agreste, canção de Moacyr Luz e Aldir Blanc, conhecida na voz de Fafá de Belém para protagonista da novela Tieta do Agreste (1989-1990), não fala exatamente disso. Mas fala. Fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de ligação (a)temporal. Fala de sentimentos adormecidos e que retornam, que emergem inesperadamente. A psicanalista Suely Rolnik diria das marcas subjetivas que vibram. Aldir talvez esteja falando de um tempo aión, compreendido como experiência, um tempo fora do tempo, alforriado da tirania de Chronos.
Eu voltei pra juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador
Sinto que a força da escrita de Aldir Blanc vem da sua infância em Vila Isabel. Uma infância não como a parte inicial da sua vida mas compreendida como experiência. Uma infância viva nele independentemente da idade.
Uma canção que se escuta muitas vezes produz efeitos no ouvinte. Ouvir Coração do Agreste é procurar por si mesmo, se encontrar num trecho e se perder noutro. Essa deriva dispara sentidos, sentidos outros, novos ou repetidos, retornando à canção vez por outra. E seguir compondo.
Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir
Rio pode ser a cidade do Rio de Janeiro, terra de Blanc e de Luz. Mas pode também ser um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma vida em fluxo, uma deriva, movimento de germinar, brotar, desabrochar. Uma espécie de nascimento, um certo vir ao mundo como disse a filósofa Hannah Arendt. Tornar-se presença na emergência de uma obra. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. A obra imortaliza seu criador.
Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui
Ivan Rubens Dário Jr
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 9 de agosto de 2021