Tanto mar


Dia desses, arrumando meus cadernos, textos, organizando o material de estudo na tentativa de organizar as ideias, em meio aos trabalhos de estudantes da geografia encontrei uma anotação minha. Muito interessante re_ver, re_lembrar, re_sentir o estado passado passando para o estado presente, numa espécie de atualização. O bilhete tornando atual um episódio passado.

Já não me lembrava do pequeno relato mas, ao ler o bilhete feito por mim para mim mesmo, tudo voltou imediatamente como se eu estivesse re_vivendo aquele dia. Talvez um geógrafo escreva na medida que se inscreve na paisagem, na medida em que transita na cidade. Tudo nítido em imagens coloridas, em sensações, em descobertas. Tudo isso estava nas poucas palavras daquele bilhete que, inclusive, sussurrou o fundo musical imaginário:

Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim

Aconteceu em Curitiba no ano de 2018. Durante um trabalho de campo fui parar no marco zero da cidade. Na Galeria Júlio Moreira, uma escola de xadrez com muita gente praticando. Conheci a Sala Ivo Moreira (1949-2010), músico do rock e do blues, a Igreja da Ordem datada de 1737. A Casa (historiador) Romário Martins é um Centro de Cultura e Arte onde observei remanescentes da arquitetura colonial luso-brasileira. Numa das placas eu li que Mário Soares, então presidente de Portugal, esteve ali naquela casa exatamente como eu estava naquela tarde. Pensei na revolução dos cravos e a canção do Chico Buarque surgiu em sonoridade imaginária. Tanto imaginária quanto real. Tanto mar diz assim:

Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar / Lá faz primavera, pá / Cá estou doente / Manda urgentemente / Algum cheirinho de alecrim

Saí da casa e continuei errando movido por um desejo incontido de encontrar mais marcas das camadas e camadas de humanidade e de cultura na arquitetura, na urbanidade. Até que me encontro com Paulo Leminski, curitibano, poeta e professor (1944-1989) numa parede. A poesia se chama Amor Bastante:

Quando eu vi você / Tive uma ideia brilhante / Foi como se eu olhasse / De dentro de um diamante / E meu olhar ganhasse / Mil faces num só instante / E você tem amor bastante.

Você que está lendo este texto e conhece a canção Tanto Mar de Chico Buarque talvez esteja percebendo algo diferente na letra. Esta canção teve sua primeira versão censurada pela ditadura militar em 1975. Em 1978 Chico escreveu uma segunda versão que, gravada, tornou-se conhecida do público. Iniciamos este texto falando de atualização e, de alguma maneira, brasileiros e brasileiras atualizaram a ditadura ao eleger o capitão, mero representante mal acabado do autoritarismo, do machismo, do negacionismo fascistóide que emerge das profundezas de nossas catacumbas coloniais.

Dedico a Zuza Homem de Melo, falecido no dia 04/outubro.

Ivan Rubens Dário Jr


A roda está viva

Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino prá lá

Tem dias e dias. Tem dias que estamos assim e tem dias que estamos assado. Tem dias que sentimos muita coisa interessante e tem dias que sentimos um imenso vazio. Quem nunca sentiu um vazio? Um vazio que parece ocupar tudo, parece te ocupar por inteiro, um vazio que pré_enche. Ficamos cheios de um vazio angustiante. É como uma roda gigante: ora está em cima, ora em baixo.

A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir / Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a roseira prá lá

Tem também dias de intensa alegria, dia que o céu parece mais azul, o ar parece mais fresco e uma alegria te toma, uma sensação de que o corpo quer brincar, quer dançar. E você se sente pleno, senhor de si e senhor do tempo, faz planos, projeta no futuro aquilo que deseja realizar. Mas alguma coisa acontece e tudo escapa por entre os dedos.

A roda da saia, a mulata / Não quer mais rodar, não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou / A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a viola prá lá

Tem dias que nos sentimos loucos, fazemos coisas que estão completamente fora da ordem, fora do normal. De que ordem estamos falando? De que normal? Da norma que se estabelece! Mas quem estabelece as normas? Hum… Talvez a nossa loucura não seja tão louca assim, talvez seja apenas um sinal que estamos enxergando a loucura que tomou conta do mundo. Estamos falando de uma pequena loucura que significa uma compreensão da grande loucura do mundo: essa norma, essa normatização de um modo de vida que destrói, que mata, que despotencializa, que desvitaliza.

O samba, a viola, a roseira / Um dia a fogueira queimou / Foi tudo ilusão passageira / Que a brisa primeira levou / No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega a saudade prá lá

Apesar das normas, da domesticação, da desvitalização, um corpo dança: mulher negra grá_vita. Dança livre das normas, livre das sanidades, livre das camadas e camadas de moral e de ‘bons costumes’ que desencantaram a vida mundana. Ela dá vida à vida.

Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração...

Tudo seguia normalmente até que chega a pandemia e… até respirar está levando à morte. O Coronavírus revela que tratar a natureza como mercadoria, tratar o meio ambiente como fonte de exploração é matar a vida neste Planeta. O governo do Pandemônio é a expressão deste tempo de morte nas relações econômicas e políticas que transborda para as relações sociais cotidianas. Este tempo de morte vai passar.

Roda-viva é uma canção de Chico Buarque.

Ivan Rubens

Geógrafo

Uma Suzano que se faz em mim

Meu primeiro contato com Suzano em sua materialidade concreta foi no 2º semestre de 1996. Me lembro bem, chegamos pelo Miguel Badra, atravessamos a Cidade Boa Vista. Nada de GPS, celular e aplicativos de navegação. Usávamos uma tecnologia politicamente mais eficiente: perguntar para as pessoas na rua, assim ‘navegamos’ até o Jardim Revista. Na mão, um papel com o endereço anotado e alguns pontos de referência. Chegamos. Era, provavelmente uma sexta feira, talvez um sábado.

Depois de acomodado, saí para observar a paisagem urbana, sentir um pouco a cidade que já me agradava. Estudante de geografia, me esforçava em ler as paisagens urbanas, até que, ao escurecer, uma movimentação chamou minha atenção. Na altura da Padaria Sabor Mineiro havia um ato político-eleitoral, um showmício. Muitos candidatos a vereador sobre um caminhão palco. Em 1997, Estevam Galvão de Oliveira assumiu seu 3º mandato como prefeito de Suzano.

Frequentei Suzano habitualmente desde então, morei em Suzano por 10 anos. Em 2014 retomei minha vida acadêmica analisando a experiência do Orçamento Participativo em Suzano que aconteceu durante a gestão do prefeito Marcelo Candido. Era preciso me afastar para poder observá-la de outros ângulos, analisá-la sob outros aspectos. Desta pesquisa misturada com vida resultou o livro Pedagogias da Cidade - Corpos e Movimento. Corpos e movimento, corpos em movimento, cidade é movimento. Suzano está marcada nas minhas linhas de vida, nas relações afetivas, na minha produção subjetiva, na escultura do meu pensamento… Uma cidade não sai da gente mesmo que a gente saia de uma cidade. Talvez nem exista uma cidade, existam cidades, muitas cidades, multipli_cidades. Acho que apareceu a palavra que me faltava: multiplicidades. A cidade são muitas, diversas, complexas. Gosto de pensar com o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, a cidade como obra aberta. Isso mesmo, como materialidade do trabalho humano, coletivo e ao mesmo tempo singular, ou seja, de todas as pessoas e de cada pessoa que contribuiu com seu suor e sangue para Suzano ser o que é hoje, e será amanhã.

E por falar em amanhã, por pensar e sonhar com vida melhor para todos e todas que brotaram desta terra e ou levantaram deste chão, quero, com esta minha rápida passagem por este sítio, te convidar para construir conosco uma cidade colorida, mais bela, mais justa e democrática como a Suzano vista pelos olhos generosos do saudoso José de Souza Candido que falava desta cidade com brilho nos olhos e seu inconfundível sorriso. A cidade pode ser mais.

Ivan Rubens Dário Jr

Marcas na cidade

Você que conhece um pouco Rio Claro certamente já observou as marcas na paisagem urbana. Normalmente elas chamam nossa atenção quando surgem e, aos poucos, vão ficando opacas, vão perdendo a cor e a gente praticamente não olha mais para elas. Tem umas marcas que parecem que estão ali desde sempre, só que não. Elas não são obras do acaso, não caem do céu como a chuva. Pelo contrário, alguém as fez, alguém pagou a conta.

Tenho certa paixão pelas cidades. Gosto de experimentá-las, gosto de conhecê-las, gosto de caminhar, de andarilhar como dizia o Paulo Freire, andar sem um destino certo, errar pelas cidades, assim me apresento a elas e elas vão se revelando para mim. E olha, já andei por algumas cidades brasileiras. Disse que já andei porque não posso dizer que as conheço. Não, não as conheço mas me lembro bem de várias. As cidades nos marcam...

Por exemplo, em Macapá caminhei sobre a linha do Equador, um pé no hemisfério Norte e o outro pé no Hemisfério Sul. Assim, partido ao meio, andei por horas. Tudo imaginação. Enquanto caminhava, minha cabeça também passeava, entretida, entre textos de Ítalo Calvino e outros autores que chegavam para me fazer companhia. Mas voltemos a Rio Claro.

Gosto de pensar as cidades como obra aberta. Explico: cada cidadão, cada cidadã que derrama seu suor nesta terra, que já derrubou seu suor nesta terra estiveram, estão e estarão construindo esta cidade, esta obra humana, material, concreta. Rio Claro é uma cidade de 193 anos com população estimada em 206.424 habitantes, dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para 2019. Estamos pensando nos corpos que trabalharam para levantar esta cidade, aos poucos, do chão; estamos falando das gotas de suor do trabalho e das gotas de sangue que molharam este chão, estamos falando dos corpos que adubaram esta terra. Estamos falando de muita gente… Estamos falando de muitas marcas, milhares delas, milhões de marcas pequenas, imperceptíveis nas obras, nas casas, nas fachadas, nas ruas, nos espaços privados e também no espaço público, no cotidiano da vida urbana. Lembro das ruas enfeitadas para as festas juninas dos bairros, das ruas decoradas na copa do mundo de 1982, fruto das relações de vizinhança. Lembro disso com alegria, uma alegria que brota na infância da minha educação: eu cresci aqui andando de bicicleta nas ruas, experimentando esta cidade, lendo esta cidade. Fui me fazendo nestas ruas, praças, campinhos de futebol e quadras, nas escolas que frequentei e etc.

Portanto, a cidade não é do prefeito. Rio Claro não é do senhor Jesus apesar do anúncio na entrada da cidade pela avenida 29. Rio Claro não apoia o ex-juiz parcial, Rio Claro não apoia o presidente nem sua anunciada política de morte. Tem gente que apoia e até marca a cidade com outdoor. Infeliz_cidade ser do senhor Jesus e apoiar políticas de morte. Cem mil pessoas mortas por Covid-19, é muita gente.

E tem tudo isso, todas essas contradições, todas essas posições e oposições compõem as cidades. Uma cidade é muitas, é mais, é múltipla, é diversa.

Ivan Rubens

Apl_Aldir - Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado

(artigo publicado na revista Mnemosine, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ISSN: 1809-8894. v. 16, n. 1 (2020): Edição Especial: Dossiê Formação inventiva de professores: ensaios microfísicos, pesquisa-intervenção e estudos foucaultianos.) 
disponível em: 



Apl_Aldir - Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado

 

A propósito da confirmação da morte de Aldir Blanc naquele dia 4 de maio de 2020, uma declaração de João Bosco nas redes sociais convoca a mim um rigor estético. No turno daquela taciturna segunda feira o texto em sua força crepuscular, reproduzido integralmente a seguir, dissipou minha neblina.

Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio. João Bosco

 

Autor de versos memoráveis da música brasileira, cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu aos 73 anos com infecção generalizada em decorrência do covid-19. O compositor deu entrada na coordenação de emergência regional do Leblon no dia 10 de abril com infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado numa sala da unidade de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20 foi transferido para um leito de terapia intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel.

Assim como João Bosco[1], muita gente tornou público seu sentimento naquele dia do pandêmico 2020. Foram muitas manifestações de carinho e de pesar. Ivan Cosenza de Souza informou seu pai, Henrique de Souza Filho[2] (o Henfil) por meio de uma carta pública, reproduzida a seguir:

 

Rio de Janeiro, 5 de maio de 2020.

Pai, você tinha hemofilia, e por causa da hemofilia acabou recebendo sangue contaminado e contraiu HIV. Foi se tratar de um problema e saiu com outro,  numa época que a doença era implacável, e você se foi muito rápido. Se foi, mas deixou escancarado o descaso do governo com o controle de sangue no país. Ninguém testava o sangue. Ele era comercializado, como uma mercadoria qualquer. Deixavam o dinheiro ficar na frente da vida das pessoas. Nós não deixamos barato e denunciamos! Você mesmo começou a denunciar, antes da doença se agravar. Hoje, por sua causa e por causa de nossa luta, quando se trata de sangue, a vida vem em primeiro lugar! Acabamos com o comércio de sangue no Brasil. É proibido por lei!

No dia 4 de janeiro de 1988, uma segunda feira, eu me despedia de você.
Seu amigo Aldir Blanc, pegou uma pneumonia, e precisou se tratar. Por causa da pneumonia, acabou contaminado com COVID-19. Foi se tratar de um problema e saiu com outro, numa época que a doença ainda é implacável, e se foi, muito rápido.
No dia 4 de Maio de 2020, também numa segunda feira, a gente se despedia dele.
Exatamente 32 anos e 4 meses depois, a história se repetiu. Mais uma vez temos que denunciar, e mostrar o descaso do governo com a vida da gente! Temos que mostrar mais uma vez que a vida tem que vir sempre na frente do dinheiro. Vencemos uma vez e vamos vencer de novo!

Pelo Flávio Migliaccio, que não aguentou a história se repetindo!

Pelo Aldir!

Por você, pai!

Um beijo do seu filho,

Ivan.

 

Breve percurso

5 de dezembro de 2019, homenagem aos 50 anos de estrada de Aldir Blanc no Beco do Rato (Lapa, Rio de Janeiro). No dia anterior, pelo telefone, Moacyr Luz[3] e Aldir falaram da homenagem e outros assuntos com o carinho de longa amizade. Uma conversa que durou cerca de 1/2 hora e a confirmação da ausência do homenageado: Aldir não estará! Pensei: ainda não será desta vez. Eu estava no Rio de Janeiro para me encontrar com a cidade que tanto me encanta, tentando me encontrar na cidade que canta... Admito: carregava uma esperança de ver pessoalmente aquela figura quase mítica.

Aldir aparece na minha vida pela voz da Elis Regina. Sobretudo na voz do João Bosco, depois com Moacyr Luz. Em Prá que Pedir Perdão? no disco Mandingueiro de Moacyr Luz (1988), a voz do próprio Aldir então aos 52 anos de idade me chegou. Recentemente mergulhei no disco Vida Noturna (2005), gravado em três dias com Aldir interpretando suas canções e recebendo parceiros. Foi, contudo, no cinema meu primeiro contato...

Engenho de Dentro.

O filme Nise – O coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner, me aproximou do pensamento e do trabalho da médica psiquiatra Nise da Silveira (1905 – 1999). Ao deixar a prisão, Nise retoma seu trabalho no hospital psiquiátrico Pedro II no subúrbio do Rio de Janeiro, e recusa o emprego de eletrochoque e lobotomia no tratamento dos esquizofrênicos. Ela não sabia bem o que fazer, mas sabia exatamente o que não fazer. Então inventou. E o filme mostra um pouco da dureza do tratamento a essas pessoas naquela época e a beleza do ateliê de pintura e artes plásticas no setor de Terapia Ocupacional. Diretamente com Nise estava a enfermeira Ivone Lara (1922 – 2018), Almir Marvignier (1925 – 2018) e muitos artistas plásticos produzindo a si mesmos na medida mesma das obras que compõem o acervo do Museu do Inconsciente. No hospital do Engenho de Dentro estava o médico psiquiatra residente Aldir Blanc.

Voltemos à Lapa, precisamente ao Beco do Rato e à Homenagem... no mês pandêmico de abril recebi as primeiras notícias da pneumonia e da internação de Aldir, drama que se estendeu até 4 de maio do ano pandêmico de 2020 com a confirmação do seu falecimento. Em meio ao isolamento social, me coloco no movimento de aproximação com sua obra, seu pensamento, a história dessa figura singular da música brasileira. Ao que recebo um convite formal para esta revista e o engenho aqui dentro vai se ativando.

 

Introdução

Aldir Blanc é um compositor brasileiro. Ele é também outros. E poderia vir a ser ainda outros.

Pensei em falar de um Aldir psiquiatra, cronista, escritor, leitor inveterado, boêmio, pai, avô etc... Passando inevitavelmente por essas facetas todas tentarei, neste texto, conversar sobretudo com o compositor e o parceiro.

Aqui, então, tentarei desenvolver linhas de envolvimento. Envolvimento na perspectiva de ‘compor com’. Envolvimento na perspectiva de quem ‘caminha ao lado de’.

O compositor e o parceiro. Me parece que composição e parceria estão quase que, por assim dizer, na mesma sintonia.

Sim_tonia, sim: tonias.

Tons, tonalidades.

Sonoridades e colorações. E tudo o que me atravessa pela força da arte materializada na obra. Quero, então, fazer uma composição e uma parceria. Compor com Aldir e escrever com Aldir. Com aquele Aldir que é em mim, que se faz em nós. Pois, como cantava João Nogueira com as palavras de Paulo César Pinheiro[4] no samba Súplica:

O corpo a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobe pra'as trevas / O nome a obra imortaliza (...)

Por corpo, por copo, por com. Com por.

Pé com pé, passo com passo, compasso. Parça, parceiro.

Penso que compor significa sempre estar com alguém, significa por algo perto, uma espécie de entrelaçamento. São linhas que se cruzam, se tocam, se emaranham, se entrelaçam. Formam nós, novelos, novelas. E um fio mostra sua extremidade, você puxa, aperta em nós, desfaz um nó e, devagar, o fio vem se fazendo só. Não mais o mesmo de antes. Parece confuso e pode até ser confuso mesmo.

Confusão. Com fusão. A temperatura que aquece até o ponto de fusão. Tudo isso para chegar a um ponto muito simples: nada é novo. Talvez seja novo para quem escreve. Mas, se considerarmos que o que escrevo aqui está marcado por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras, marcado pela letra do Aldir na voz do João, pela palavra do Aldir na voz da Elis, pelo pensamento do Aldir na música do Moacyr Luz... letra, palavra e pensamento do Aldir estão marcados por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras de bosque, Boscos e Bastos[5], de luas e Luzes, tapumes e Tapajós[6], pingas e Guingas[7], e comigo. Pode parecer pretencioso de minha parte. Como assim? Parceria com Aldir Blanc? Pois é.

Na parte final da canção Caça à Raposa, Bosco e Blanc dizem assim:

 

Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo

***

 

Primeiro texto

Iniciei o mergulho na obra de Aldir. Os livros escritos por ele, livros a respeito dele, vídeos, entrevistas, laives e, sobretudo, suas canções, suas parcerias, suas composições. Mas o eixo pulsante é, pela primeira vez em mim, o Aldir. Como já disse, suas canções chegavam até mim noutras vozes, tocavam em mim na respiração melodiosa de seus parceiros, interpretações espalhadas em um sem número de discos e obras, gravações daqui e dacolá. Então me empenhei em ouvir o pensamento musical do Aldir independente da parceria. Cidades maravilhosas outras foram se revelando em mim. Revelando mesmo como no antigo processo de transformação da imagem latente registrada num filme fotográfico em imagem visível por meio de uma química líquida. E uma primeira tentativa de escrita se esboça. Sim, porque a escrita deste texto (assim como as composições) são por si. Uma espécie de vida própria, de força criativa que move a caneta sobre o papel na metodologia de trabalho do Aldir, ou com o toque dos meus dedos sobre o teclado na metodologia utilizada neste texto. ‘Aldir Blanc, epidemia e pandemia’ vem dos atravessamentos da canção O Bêbado e a Equilibrista.

Aldir Blanc, epidemia e pandemia

Caía / a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto...

Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu (Ceceu), homem de poucas palavras, neto do afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel, bairro de origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu olhar aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem carioca. Na Tijuca conheceu a vida noturna, a boemia, futebol, blocos de carnaval, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...

Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil / pra noite do Brasil.

Em 1969 esteve com Ivan Lins, Luiz Gonzaga Junior (o Gonzaguinha) e Paulo Emílio da Costa Leite (grande ídolo de Aldir por sua capacidade de escrita e por sua postura ética) no Movimento Artístico Universitário. Graduado em medicina, fez residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do samba) em luta contra o uso do eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no ‘manicômio’ (para usar as palavras da época). As práticas de vida cantam, as lógicas de morte calam.

Não raro era visto conversando nas ruas, nos bares do centro do Rio de Janeiro com seus pacientes. As práticas de vida expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… Em 1973, canções em parcerias com João Bosco encantavam o Brasil na voz de Elis Regina. No ano seguinte Aldir perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do casamento com a professora Ana Lúcia. “Aí, é o seguinte: se eu não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso o que eu quero fazer." Decide abandonar a Medicina e a Psiquiatria para se dedicar exclusivamente à sua arte. Na medicina se luta contra a morte; na arte a vida se faz mais viva, mais e mais viva. O médico dá lugar ao artista.

Na rua Garibaldi, Tijuca, viveu no mesmo prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras em papéis, a parceria pariu muitas canções. Nos anos 1980 foi se afastando dos hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista, Aldir se dedicava a longas ligações telefônicas com amigos, à música e literatura.

Moacyr Luz conta uma história interessante. Saíram numa 5a feira para o final de semana num sítio. Aldir levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise, romances policiais, do jazz.

E nuvens, / lá no mata-borrão do céu / chupavam manchas torturadas / Que sufoco / Louco / Um bêbado com chapéu torto

Este trecho da canção “O Bêbado e a Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:

Chora / a nossa Pátria mãe gentil / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil

Maria, viúva do metalúrgico Manoel Fiel Filho[8], Clarisse, viúva de Vladimir Herzog[9], e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.

 

***

Nesta aproximação inicial com sua vida e obra, encontrei Suely Costa[10] se referindo, mais ou menos assim, a Aldir Blanc. Ocorreu durante um Festival da canção quando Aldir perguntou por que ela havia gostado de uma determinada canção. “Mas o por que? do Aldir vai lá dentro da gente”. E esta frase ficou vibrando como a corda de um violão... “É como se uma pergunta simples e direta atingisse diretamente o fundo da alma”. Nestes casos não basta uma resposta qualquer. Ele está investigando o mais profundo, ele procura a sua verdade como faz o maestro Daniel Daréus[11], em A Vida no Paraíso[12], à procura do tom mais profundo de cada coralista. O regente vai tecendo as vozes, o compositor vai tecendo as palavras exatas para cada intérprete. Como se colocasse na boca da cantora a palavra precisa, “uma espécie de psicografia musical”, finaliza Suely.

Depois desse primeiro texto mais sintético, publicado num Jornal da minha Cidade natal, recuperei o fôlego, enchi meus pulmões e mergulhei um pouco mais fundo entre livros, vídeos, entrevistas, crônicas e muitas, mas muitas canções. Foram dias ouvindo Aldir, buscando Aldir, encontrando Aldir, virando Aldir.

Aldir carrega nas suas canções as marcas de sua infância. Em algum momento deste mergulho me peguei pensando numa espécie de Manoel de Barros urbano. Uma infância aqui compreendida para além de uma fase da vida, mas uma infância compreendida como experiência, compondo com o professor Walter Omar Kohan. No caso de Aldir, um longo período de experimentação da alegria e da liberdade seguido pela sucursal do inferno, um período violento, uma espécie de relação de repressão da força vital... que poderia ser assim significada pelo poeta: a vida entre polifonia e paráfrase.

 

Da alegria e da liberdade à sucursal do inferno

Com 3 anos e meio Aldir chega a Vila Isabel, numa casa imensa, quintal enorme e muitas árvores, mangueiras, laranjeiras, bananeira e outras. Tinha uma goiabeira branca que se curvava até o chão onde Aldir subia para brincar, para buscar sossego, para observar ao redor e por sobre, para brincar de atiradeira. Fala disso se colocando na perspectiva da criança, usa escala da criança para dimensionar a casa e o quintal e apresenta sua relação com a vida, suspeito que influenciada em grande parte pelo avô: “não atirava pedras em passarinhos, não tinha coragem, mas tentava derrubar as mangas maduras dos galhos. Também sonhava lá de cima e lia Monteiro Lobato”.

Pouco antes de completar 11 anos de idade tem início a sucursal do inferno, nas palavras de Aldir. Nada de bullying, Aldir nos conta um pouco da realidade dura de um menino vítima de pequenas violências por parte dos adultos na cidade do Rio. “Sou surpreendido com o retorno para a rua Maia de Lacerda no bairro do Estácio (...) Você saía de casa, com 12, 13 anos, apanhava, seus trabalhos eram jogados na água, suas cartolinas com trabalhos da escola eram rasgados, o conteúdo das pastas eram jogados na água que corria no meio fio, levava uns tapas se estivesse com sorte. Quem fazia isso? Mecânicos, Policiais Militares, motoristas de caminhão, todos com mais de 20 anos.” Ao ouvir Aldir Blanc falar de sua história, desta fase mais inicial por assim dizer, é possível ler em sua fisionomia as marcas de alegria e opressão, um certo sorriso monalítico tatuando a vida em Vila Isabel e as cicatrizes produzidas no bairro do Estácio. Assim, afirma Aldir aos 70 anos de idade, quem ‘létra’ as canções desde sempre “sem a menor dúvida, é o garoto do curtíssimo período que passou em Vila Isabel entre os 3 anos e meio aos quase 11 anos de idade. Quando esse garoto morrer, o letrista, o articulista, seja lá o que for, morre junto”.

Com 6 ou 7 anos Aldir acompanhava a avó aos centros espíritas. Diz da avó uma ‘carioca típica’: “extremamente católica, espírita, rosa cruz, se chegasse uma ceita na vizinhança ela entrava imediatamente... intensamente macumbeira assim de punhal com cinza pra curar gripe, uma confusão. Ela me levava aos centros espíritas. E eu ficava fascinado com os atabaques. Na época eu tinha em casa tamboretes de peteca que eram grandes, de madeira e de couro ao contrário dos de hoje. Então eu esquentava aquilo numa fogueirinha e botava aquilo escorado de tal forma de lado a lado e batia neles, e cantava não os pontos que ouvia lá mas os meus próprios pontos. Quero dizer, eu compunha com essa idade o que é uma coisa patética. Era uma misturada de exú com nhambú, com tudo que rimasse com urubu e também tinha, por causa de uma música da época, era um tal de ema gemendo em todo lugar... e tudo isso ali, aquele saco de graça ali, até que sai alguém e diz: esse garoto está possuído... (rs). O primeiro canto, o canto essencial vem da forma com que a voz é solta dentro do terreiro de macumba.” Interessante pensar neste ponto da voz solta, a voz como a expressão da palavra; e solta como oposição a presa, como liberta portanto. Pensar com Aldir nos parece uma espécie de ‘asas à imaginação’, ou dito de outra maneira, um pensamento livre. Ouvir as palavras de Aldir presas nas letras das canções, presas mas livres, abrindo caminhos, conduzindo seu leitor às ruas e cenas da paisagem carioca, conduzindo seu ouvinte a patamares outros da existência. Ler, ouvir Aldir é como se um deslocamento profundo, uma fenda, uma cunha se apresentasse às nossas mãos e, com essa ferramenta, pequenas brechas, picadas, trilhas e caminhos se abrissem pela força de suas palavras soltas produzindo, em nós, perspectivas outras. Talvez Aldir se apresente para mim como Paulo Freire se apresentou, como uma espécie de convocatória, uma espécie de exigência ética a pensar no jogo das forças que aprisionam e libertam, forças de opressão e forças de libertação, forças de conservação e forças de transformação. Ouvi recentemente de uma amiga uma frase que me empurra a pensar com mais cuidado a força na obra do Aldir Blanc, em suas composições. Ela foi ao Rio de Janeiro pela primeira vez com muito medo, fruto da construção cotidiana por meio de imagens, matérias, notícias da violência na cidade via, no caso dela, pela televisão. Seu contato com a cidade foi traumático. O medo foi reforçado por uma correria em Copacabana. E a imagem de uma cidade extremamente violenta praticamente se consolidou. Mas essa cidade desconhecida materialmente e imaginada equivocadamente foi, devagar se diluindo. Nas palavras dela: “O Rio de Janeiro que conheço na música do Aldir Blanc me convida a conhecer essa cidade”. Emblemática e lapidar. E me dei conta da força da obra do Aldir, um carioca mesmo.

 

“Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do Ourives do Palavreado (grifo do autor). Estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Dorival Caymmi[13]em 30 de agosto de 1996.

 

***

A humanidade do compositor

Em 2009, assim se define Aldir:

“Hoje sou um cronista de 60 anos com vários livros publicados. Trabalhei em quase todos os jornais do Rio e São Paulo, mas tem uma coisa que me orgulha muito. É que apesar de toda atividade artística, uma febre de um neto me faz esquecer tudo. Eu sou um vô louco: uma das brincadeiras favoritas aqui junto com outras maluquices, porque eu sou desse avô que deixa jogar bola nos troféus de música popular e montar em cima de mim como se eu fosse cavalo e o cachorro ainda disputa uma corrida junto com outro neto montado em cima. Então é uma bagunça desgraçada. Mas assim como os cientistas querem a teoria de tudo, a brincadeira preferida aqui é a brincadeira de tudo. Vale tudo (...) Essa parte humana que a gente não abandona é que eu acho que influi no compositor e vice versa.”

 

As Drogas

Segue o artista: “Eu nunca usei droga. Por ter vindo da psiquiatria eu vi tanta coisa triste envolvendo droga, tanta gente pirando até mesmo com a pretensamente salutar maconha que eu nunca fui chegado. Sempre tive um problema de sangramento nasal desde a adolescência, então para mim é intolerável a ideia de cheirar qualquer coisa. Devo ser um dos raríssimos sujeitos da minha geração que nunca cheirou pó, nunca e em nenhum momento, por horror da possibilidade de uma coisa dentro da minha narina. E fiz uma vez uma experiência com maconha que me deu uma sede e uma taquicardia desgraçada. Devo ter tomado umas 10 cervejas para o coração serenar e para a língua voltar a funcionar colada no céu da boca. Então por que eu quero essa merda na minha vida? Eu quero é beber, porra!!!”

 

Também sou doutor

Ainda ele:

“(...) ando em casa com a roupa rasgada, às vezes esqueço de tomar banho, fico até 3 dias em casa vendo futebol e torcer até quando joga Ituano e Pé de Pedra... isso é uma característica minha que veio do meu pai, um cara que dizia ‘eu também sou doutor. Quando eu chego no botequim com um jornal para fazer minha fezinha, o cara me pergunta: vai ser cerveja ou limão da casa hoje, doutor?’ Esse diploma é o que me interessa”

“(...) Se criou muito esse lance que a psiquiatria teria me ensinado determinados truques e isso influenciou a carreira do letrista. É claro que é impossível você passar 5 anos da sua vida numa enfermaria no Engenho de Dentro, com só 40 leitos e oitenta e tantos pacientes seminus, e isso não influenciar você é impossível”. O pai, Ceceu, preferia que Aldir fosse médico mesmo reconhecendo os méritos e as conquistas do filho como compositor. Aldir segue: “não foi a psiquiatria que abriu a cabeça do letrista. Eu talvez tenha feito uma boa psiquiatria na época porque eu era antes um músico, percussionista e letrista”.

Escuta, escuta, até que pega o lápis e o papel.

“A letra do bolero ‘Dois pra lá, dois pra cá’ foi a mais difícil que eu fiz. Eu recebi a música, fiquei fascinado, e não conseguia escrever. E um dia, voltando de uma esbórnia num táxi, bem caído, bem escornado, a letra começou a vir na minha cabeça. Fiquei apavorado porque não tinha caneta, não tinha papel, não tinha lápis não tinha nada. E quando eu cheguei em casa peguei o gravador, liguei e ela começou a vir, saiu inteirinha. E esse é um dos milagres da parceria Bosco e Blanc.”

 

Seja na sua produção literária, seja na musical, Aldir escrevia com as próprias mãos. O que não significa que ele não fazia uso das tecnologias. Muito pelo contrário. Aldir aproveita as tecnologias para facilitar sua vida. Lápis ou caneta esboçavam as primeiras versões sobre folhas brancas. Máquina de escrever para as versões finais. Gravador e fita K7 foram tecnologias muito utilizadas também. Disco de vinil e CD. Segundo ele, o computador da casa não se dava bem com ele. Ambos não combinavam: “o computador é macho e eu sou do Estácio”, razão pela qual Mari ou alguma filha se encarregavam de digitar para ele. Duas tecnologias radicalmente revolucionárias ocuparam praticamente todos os 73 anos de Aldir: músicas e livros. 

 

O maior samba

“Uma das figuras mais extraordinárias da música popular que nós conhecemos, por sorte nossa foi nosso parceiro, Paulo Emílio[14]. Nós fizemos diversas músicas juntos, mas eu quero destacar Nação, que na mesma letra homenageia Silas de Oliveira[15], Dorival Caymmi[16], que foi título de um disco da Clara Nunes[17]. E que é uma música que eu posso afirmar, sem nenhum medo de parecer pretencioso, que é um dos grandes sambas do século XX.

Dorival Caymmi falou pra Oxum

Com Silas tô em boa companhia (bis)

O céu abraça a terra, deságua o rio na Bahia

Jeje minha sede é dos rios
A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta
Planta flor irmã da bandeira
A minha sina é verde-amarela feito a bananeira
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda manjedoura d'alma
Labarágua, Sete Queda em chama
Cobra de ferro, Oxum-maré, homem e mulher na cama

Jeje tuas asas de pomba
Presas nas costas com mel e dendê aguentam por um fio

Sofrem o bafio da fera
O bombardeio de Caramuru, a sanha de Anhanguera
Jeje tua boca do lixo, escarra o sangue
De outra hemoptise no canal do mangue
O Uirapuru das cinzas chama
Rebenta a louça Oxum-maré
Dança em teu mar de lama.

 

Ponte Nova

Em visita a Ponte Nova no interior de Minas Gerais, Aldir conheceu Daniel, pai do João. “Nasceu daí uma amizade que não teve nada a ver com a parceria com o João, foi uma coisa espontânea, natural e da maior riqueza. No tempo que a gente bebia muito e ainda conseguia acordar cedo, eu ia pro quintal da casa de Ponte Nova, ele estava me esperando. E num caixote tinha laranja. E desde manhã cedo a gente fazia uma coisa que eu duvido que vocês tenham feito que é tomar Brahma extra chupando laranja. Em homenagem a ele, com música do João (Bosco), do João Donato e letra minha, nós fizemos ‘Nossas Últimas Viagens’. Que foi brilhantemente gravado no songbook do João pelo Dominguinhos.”

Eu passei por Ponte Nova
Procurando Daniel
Disse um cascudo nas águas:
"Teu amigo foi pro céu
Foi botá Deus no seguro
No baú das buginganga
Levou faca afiadinha
Pra mió cortar laranja...

Levou a roupa de goleiro
Os baralho e as fritura
Na matula com cerveja
Pra comer sem dentadura"
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar para trás

Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar pra trás
Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais

 

E Aldir tem razão. A propósito desta afirmação transcrita acima, fui ao songbook do João Bosco para conferir o registro. Além de encontrar uma obra de arte, uma linda e emocionada interpretação, ouvi mais ou menos o seguinte: “Pois é meu irmão João Bosco, aqui você juntamente com o Aldir Blanc e o João Donato disseram tudo, tudo tudo o que eu queria ter falado para o meu pai”, diz Dominguinhos[18].

Interessante perceber a expressão de Aldir durante a interpretação de Bosco nesta canção em homenagem ao Daniel. Amigo e, sobretudo, pai. E a elaboração do luto com a arte. A elaboração da perda, a falta que vai sendo preenchida por uma presença. Podemos falar então de uma saudade avessa ao ressentimento, uma saudade que não é perda mas que atualiza a melhor faceta, as melhores lembranças, que significa a vida presente. Podemos, portanto, pensar que a canção, a criação do filho e do amigo, fazem Daniel presente, vivo. A obra imortaliza.

Eu conheci Daniel pelas palavras melodiosas dessa oração, no melhor sentido da palavra. A expressão de Aldir durante a execução da canção por João no vídeo O Canto de Aldir Blanc, dirigido por Fernanda Figueira, mostra sua fisionomia contemplativa. Ele escuta a canção, na voz e violão de João Bosco, olhos fechados e um pequeno sorriso no rosto. Me parece que Aldir volta ao quintal de Ponte Nova, descasca laranjas com Daniel. Escuta mais uma vez as histórias das defesas impossíveis do goleiro e imagina cada cena com ainda mais cores e poesia. As peripécias do vendedor de seguro. As laranjas, a técnica para tirar a casca amarela sem ferir a fruta, a precisão do instrumento cortante, ferramenta do artífice de frutas e histórias. Mas também se lembra as palavras do cascudo, então eu imagino: um rio onde Daniel e Aldir pescaram, as águas barrentas, peixe pulando, poucas palavras murmuradas para não atrapalhar a pescaria. Pescaria de palavras, poucas, precisas. Palavras que, abertas, revelavam mundos. Palavras, poesias em forma de uma conversa quase muda. Mas desta vez o cascudo, dentro das águas, toma para si a palavra:

Teu amigo foi pro céu / Foi botá Deus no seguro / No baú das buginganga / Levou faca afilhadinha / Pra mió cortar laranja... / Levou a roupa de goleiro / Os baralho e as fritura / Na matula com cerveja / Pra comer sem dentadura

 

A expressão no rosto do filho, João Bosco, durante a execução da canção, violão nos braços, não demonstra tristeza apesar da canção melodiosa e do seu significado. Pelo contrário, tem uma face serena, doce. A arte tem dessas coisas: Daniel está ali entre João e Aldir. Estávamos em 4 pessoas.

 

***

Sobre o nascimento das canções

1)                 ‘O bêbado e a equilibrista’ nasce como um samba em homenagem ao Carlitos, personagem do Charles Chaplin então recém falecido. Acontece que Henfil repetidas vezes falava do irmão, Betinho de Souza, que Aldir sabia da existência, mas ignorava o nome, “o meu irmão que está exilado isso, o meu irmão aquilo...” Na hora de escrever, aparece “que sonha com a volta do irmão do Henfil”. A canção parece captar, mesmo que não tenha sido essa a intenção de seus criadores, uma força, uma onda e o hino da anistia. O artista tem uma sensibilidade capaz de perceber, de antecipar, de traduzir uma onda que ainda não quebrou na areia da praia. Um belo dia, uma figura desconhecida bate nas costas do Aldir dizendo: “Eu sou o irmão do Henfil. Sou o Betinho. Eu voltei por causa daquela música, seu filho da puta!” Ambos se abraçaram selando uma amizade duradoura.

 

1,5) Rápido parêntese: desde sempre me atrai histórias deste tipo. Como nascem as canções? Agora é Moacyr Luz quem dá algumas pistas em uma das laives feitas em homenagem ao Aldir logo após seu falecimento. Abrindo um parêntese para contar uma curiosidade deste encontro: em 1984 Moacyr cantava e tocava no bar Erva Doce e, para sua surpresa Aldir Blanc estava numa das primeiras mesas. O cantor arriscou duas canções de Aldir que estavam no seu repertório para aquele restaurante. Aldir elogiou seu estilo ao violão. O comentário abre um diálogo absolutamente imprevisível. Ao amanhecer, Moacyr oferece uma carona.

- Para onde vai?

- Para a Tijuca, depois da rua Uruguai.

Ocorre que, segundo Luz, assim se referem normalmente à grande Tijuca. Este, recém chegado a Tijuca, gosta da coincidência e afirma:

- É meu caminho, vamos lá!

E seguiram... Moacyr olhava para Aldir no seu carro, até ouvia suas palavras mas já não registrava nada. “Estava diante de uma figura especial, mítica.”

- Na rua Garibaldi.

- Vixi, eu também... como é o prédio, que número?

E entraram no estacionamento do mesmo prédio. Moacyr morava no primeiro andar e Aldir no quarto andar. A conversa se estendeu até o meio dia e a primeira canção nasceu daí. Fecho o parêntese.

Voltando às histórias reveladas por Luz. Vou reproduzir aqui três, sem o Brilho de quem as tem encarnadas apesar do visível abatimento do protagonista neste vídeo, todas da passagem de 1989 para 1990.

2)                 Saudade da Guanabara.

Moacyr entregou uma canção dele para Beth Carvalho que pediu alterações na letra. Consta que a canção trazia algumas afirmações que a cantora não se sentia à vontade em dizê-las. Um belo dia, ele telefona do primeiro para o quarto:

- Aldir, o Paulinho Pinheiro está aqui em casa, desce aqui para tomar uma cerveja.

 Aldir desceu. Quando estavam apenas os três e o ambiente mais tranquilo, Luz abriu o jogo a respeito do samba convidando os dois letristas para uma composição, ou “para fazer alguma coisa juntos”. Cantou o samba, beberam... Aldir se retirou para buscar mais cerveja no quarto andar. Demorou uns vinte minutos. “Pronto, deu o tempo dele, não vai voltar”, pensou Luz.

- Pode mudar essa cortina aí. Abra essa janela para sentir a brisa do sucesso.

De volta ao apartamento do primeiro andar, Aldir se referia à nova canção cuja letra estava numa folha de papel.

Moacyr pega o violão e começa a cantar a primeira parte que diz assim:

Eu sei que o meu peito é uma lona armada,

nostalgia não paga entrada,

circo vive é de ilusão

Chorei, ai, eu chorei!

com saudades da Guanabara,

refulgindo de estrelas claras,

longe desta devastação, e então

 

Segundo Paulo Cesar Pinheiro no livro Histórias das minhas canções, os versos acima foram completados ainda por Aldir com:

Armei pic-nic na Mesa do Imperador

e na Vista Chinesa solucei de dor

pelos crimes que rolam contra liberdade...

Reguei o Salgueiro pra Muda pegar outro alento

e plantei novos brotos no Engenho de Dentro

pra alma não se atrofiar

Brasil, Brasil,

tua cara ainda é o Rio de Janeiro

três por quatro na foto e o teu corpo inteiro

precisa se regenerar.

 

Nas suas Histórias, PC Pinheiro conta uma versão um pouco diferente de Moa. O que importa aqui é a segunda parte, versos de Pinheiro:

Eu sei que a cidade hoje está mudada,

Santa Cruz, Zona Sul, Baixada,

vala negra no coração...

Chorei, ai, eu chorei!

com saudade da Guanabara,

na Lagoa de águas claras

fui tomado de compaixão, e então

passei pelas praias da Ilha do Governador

e subi São Conrado até o Redentor,

lá no morro Encantado eu pedi Piedade.

Plantei Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento,

No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro

pois é pra gente respirar.

Brasil, Brasil,

tira as flechas do peito do meu padroeiro

que São Sebastião do Rio de Janeiro

ainda pode se salvar.

 

Saudade da Guanabara (Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro) é uma espécie de hino do Rio de Janeiro. Segundo Moacyr, esta canção mostrou para ele um Rio de Janeiro a ser cantado, uma canção que muda sua carreira por colocá-lo mais no samba, por perceber a cidade do Rio de Janeiro como cenário da inspiração criativa. E isso veio numa conversa com o Aldir.

 

3)      Aquário

Ambos sentados no sofá da sala do 4º andar no apartamento do Aldir, tomando cerveja e olhando para o aquário. [Neste depoimento tem um comentário engraçado do Moacyr: “sei lá porque o Aldir cismou de ter um aquário... dá uma trabalheira danada”.] A cena de pequenos peixes ‘se beijando’, limpando as paredes do aquário como um cascudinho beijando o vidro. E Moacyr chama a atenção:

- Aldir, olha lá os peixinhos se beijando.

E Aldir:

- Eu sou de peixes, ela de aquário.

Moacyr pega o violão e ambos fazem Aquário, a única canção da dupla simultaneamente música e letra.

Ele me obedece / Ah, se ele soubesse / O mal que ele me faz / Quando ele me ataca / Eu que era gata / Não aguento mais...

 

4)      Coração do Agreste

Tomando muita cerveja na garrafa caçulinha e correndo atrás de música para fazer novela, agosto de 1989. Chico Ribeiro pede uma canção para a novela Tieta do Agreste[19], Moacyr Luz apresenta na editora uma parceria com Aldir Blanc. A resposta da editora desafia o músico: apenas a letra era boa. Naquele tempo não havia celular, e-mail, nada disso. Moacyr pede mais 24 horas de prazo, segue com o carro para casa e vira a noite criando outra música. Na manhã seguinte, com a aprovação do letrista, Moacyr volta para a zona Sul e encontra o diretor musical da novela na areia da praia. A canção foi tema da personagem principal da novela, Tieta, vivida por Beth Faria.

 

Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã  

 

A primeira frase parece esconder, mas, na verdade, revela. A mim, remete ao tempo. Aliás, o poeta Aldir Blanc tem esse poder... de nos fazer viajar. Viajar pelos bairros e ruas do Rio de Janeiro, viajar em seus tipos, personagens, cariocas e carioquices, alguns folclóricos outros inexplicáveis. Afinal, como disse Dorival Caymmi, “todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Pensando com Caymmi, há um pouco de carioca em todo brasileiro assim como, e logicamente, há um tanto de brasileiro em todo carioca. Estamos exagerando é claro, mas não se assuste. Pense comigo numa certa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como a cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. E uma beleza singular, uma alegria que se revela num sem número de blocos de carnaval, na praia, na Bossa, na Lapa, nos morros, nos terreiros e nas quadras das escolas, no samba. 

Coração do Agreste, de Aldir Blanc e Moacyr Luz, conhecida na voz de Fafá de Belém não fala exatamente disso. Mas fala. E fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de tempo estendido passado-presente-futuro. Mas também de sentimentos provocados num tempo, adormecidos e que retornam, emergem num piscar de olhos. Para falar com Suely Rolnik, de marcas que vibram. Podemos, então, pensar que Aldir fala de um tempo aión, um tempo experiência. Um tempo livre do relógio, alforria de Chronos. 

Eu voltei para juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador

 

Até onde percebi no estudo da vida e obra do letrista, o que vitaliza o letrista e o cronista, a força original da sua escrita está na infância em Vila Isabel. Uma infância compreendida para além do tempo cronológico, uma infância compreendida como experiência. As passagens que Aldir fala do avô, da avó, de um tempo que não volta mais mas, e sobretudo, uma infância que é permanentemente nele. O vô Bidu (como se apresenta no livro Cantigas do vô Bidu) parece revelar um pouco disso. Mas eu percebi essa característica nos seus textos e principalmente nas entrevistas. Muitas entrevistas estão disponíveis na internet e nelas pude perceber seu humor cortante. Mas ainda não consegui, apesar do esforço dessas linhas, pensar com mais profundidade os efeitos dessa canção em mim. Persigo Coração do Agreste há anos, me procuro nesta canção, me encontro numa ou outra passagem e me perco de mim nas outras. Essa deriva disparadora de sentidos outros, novos e repetidos, me traz de volta para ela. E seguimos compondo.

 

Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir

 

Rio aqui pode estar compreendido como a Cidade do Rio de Janeiro, cara a Aldir e Moacyr. Mas pode também se referir a um rio, um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma subjetividade em fluxo, uma deriva, errância que renasce, brota, desabrocha. Nas palavras de Hannah Arendt, um nascimento, um vir ao mundo. Nas palavras de Gert Biesta, tornar-se presença, a emergência de uma obra inédita. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam neste mundo como Arendt, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. Imortais.

 

Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui

 

***

 

Ourives do Palavreado

No dia 12 de maio de 2020, a Girândola Produções publicou o vídeo promocional de um documentário por vir, chamado Ourives do Palavreado. Imagens do escritório do Aldir com um violão sentado em sua poltrona de leitura rodeada por livros, muitos livros, livros folheados, lidos e marcados, CDs e K7s, quadros, ilustrações, imagens, charges, fotografias, álbuns, memórias. Não é um cenário. Ou é. Cenário de uma biblioteca em chamas cujas labaredas incendiaram a música popular brasileira por décadas. Palavras do Aldir:

“O sagrado é uma forma como você se comporta. Eu sou uma pessoa profundamente sacra em relação ao momento em que eu boto uma fita (...) pra fazer letra. Naquela hora, ninguém pode mais do que eu. Por incrível que pareça, humildemente, fraco, doente, ferrado, meio bêbado assim como era antigamente, ninguém pode mais do que eu naquele momento. Eu acho que o ato de criar deixa você muito perto de uma certa transcendência, de uma espécie de experiência pessoal em que você também é o outro, profundamente, em que você sabe que outras pessoas vão compartilhar com você daquela experiência (...) ‘E o tempo se rói com inveja de mim’ (trecho da canção Resposta ao Tempo, Cristovão Bastos e Aldir Blanc), isso é coisa de letrista (risos)... é mentira: o tempo come vivo, de um dia para o outro. Não deixem para amanhã, de forma alguma, o famoso projeto pra daqui a não sei a quantos anos porque daqui a não sei quantos anos não existe, fudeu. Corram atrás da vida.”

Guardei essa canção para finalizar este texto neste exercício de compor com Aldir, me enredar com ele mas não será desta vez. Interessante pensar que algumas canções ainda me são impossíveis. Quem sabe um dia... neste caso não me resta escolha a não ser contrariar meu parceiro. Psicanalista, ele me escutaria. Artista, ele me aceitaria. Carioca, ele me convidaria (claro que eu iria) para uma cerveja no Momo, na Muda ou no bar da Maria.

 

Última estrofe

Grande conversador, o cronista coloca seus personagens, todos reais, na roda das conversações. Memórias inventadas, diria Manoel de Barros. Mistura de realidade e fantasia, ou realidade e realidade melhorada na lapidação textual da escrita. Lindauro e sua paixão por futebol, Valdir Iapeteque e seu fabuloso repertório de piadas, Esmeraldo e suas conquistas amorosas na Penha, Ambrósio Gogó de Ouro, Benedito Lacerda e Penteado, o gozador que quebra a gabiroba, Ceceu Rico e as histórias das noites do Estácio. Para o jornalista Luiz Fernando Vianna, a relação entre o pequeno Aldir e seu pai não foi muito próxima. Ceceu gostava muito de sinuca, frequentava o jóquei clube, torcia para o Vasco da Gama e frequentava o estádio. Era aquele tipo de sujeito que sai do estádio e, mesmo com a vitória do cruz-maltino, reclama que um determinado jogador deveria ter passado a bola. Um reclamão que, nas crônicas aparece como “Ceceu Rico, aquele que não gosta de festa.” Mas com o tempo essa relação foi mudando. Adultos, se tornaram grandes amigos. Para a escritora Heloisa Seixas, Aldir é um cronista em tempo integral. Uma espécie de cronista da vida. Observador da alma das ruas suburbanas cariocas, olha para o mundo para extrair dele suas crônicas ou, melhor dizendo, para procurar no mundo, no cotidiano, nos personagens da vida real o enredo que transformará em música, em crônica, em poesia. Talvez não seja possível desenlaçar as linhas de vida das linhas de arte. Aldir fez da sua vida, sua arte. Aldir fez da sua arte, vida. Aldir viveu e entregou parte dela para nós como obra de arte. Um artista digno de muitos aplausos.

Fim. Desce o pano.

Hora de apl_ALDIR Blanc.

 

 

Bibliografia consultada:

ARENDT, Hannah. A crise na Educação. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

BLANC, Aldir. Cantigas do vô Bidu. São Paulo: Lazuli Editora, 2010.

BLANC, Aldir. Direto do balcão. Rio de Janeiro: MV Serviços e Editora, 2017.

DIAS, Rosimeri. Deslocamentos na formação de professores. Aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2011.

KOHAN, Walter Omar. A infância da Educação: o conceito devir-criança. Disponível em <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html> Acesso em 22/maio/2020.

PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade, v.1, nr.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/SP. São Paulo, set/fev, 1993.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2013.

VIANNA, Luiz Fernando. Aldir Blanc: Resposta ao Tempo -Vida e letras. Rio de Janeiro: Casa das Palavras, 2013.

 

Sítios consultados

Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em <http://dicionariompb.com.br/aldir-blanc> Acesso em 15/maio/2020

Museu do Inconsciente. Disponível em <http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/#historico> Acesso em 20/maio/2020.

Souza, Ivan Cosenza de. Cartas ao Pai: a Esperança Equilibrista. In: Revista Fórum, 6/maio/2020. Disponível em <https://revistaforum.com.br/colunistas/ivancosenzadesouza/cartas-do-pai-a-esperanca-equilibrista/> Acesso em 15/maio/2020.

Cronistas do Rio. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=oYeZCdnzIb8&t=835s> Acessado em 27/maio/2020

 

Vídeos Consultados

 

ALDIR BLANC - Ourives do Palavreado – promo-documentário. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WsJOPgppUTU Acesso em 24 de maio de 2020.

Dois para lá, dois pra cá. Direção: Alexandre R. de Carvalho, André Sampaio e José Roberto de Morais, de 2004. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mrxcXXR5ISs&t=6s> Acesso em 06 de maio de 2020.

'Cerveja ou limão da casa?' Aldir Blanc reflete sobre a vida em entrevista de 2016 para O Globo. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VkpDxaXk21s> Acesso em 21 de maio de 2020

Homenagem a Aldir Blanc | Cantos Gerais - O Canto de Aldir Blanc. Direção de Fernanda Figueiredo, 2009. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=uZ1lDbYRQFE&t=4s> Acesso em 24 de maio de 2020.

Moacyr Luz canta Aldir Blanc @ instagram. Live. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=f55LSVutTbw: Acesso em 20/maio/2020

 

Ivan Rubens Dário Jr.

Geógrafo sambista. Estudante, inventor de textos.

Doutorando no Programa de Pós Graduação em Educação. Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus Rio Claro.

Rua 12-B, 533. Vila Indaiá, Rio Claro/SP. 13506-746

blogdoivanrubens.blogspot.com

ivanrubens@hotmail.com.br

 

 



[1] João Bosco de Freitas Mucci, conhecido como João Bosco (Ponte Nova/MG – 13 de julho de 1946) é cantor, violonista e compositor.

[2] Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil (Ribeirão das Neves, 5 de fevereiro de 1944 – Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1988), foi cartunista, quadrinista, jornalista e escritor.

[3] Moacyr Luz (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1958) é músico, violonista e compositor.

[4] Paulo César Francisco Pinheiro (Rio de Janeiro, 28 de abril de 1949) é compositor, letrista e poeta.

[5] Cristovão da Silva Bastos Filho (Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1946) é compositor, pianista e arranjador.

[6] Maurício Tapajós Gomes (Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1943 – RJ, 21 de abril de 1995) foi compositor, instrumentista, cantor e produtor musical.

[7] Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar (Rio de Janeiro, 10 de junho de 1950) conhecido como Guinga, é violonista e compositor, também é dentista.

[8] Manoel Fiel Filho (Quebrangulo/AL, 7 de janeiro de 1927 – São Paulo, 17 de janeiro de 1976) foi um operário metalúrgico.

[9] Vladimir Herzog, nascido Vlado (Osijek/Reino da Ioguslávia, 27 de junho de 1937 – São Paulo, 25 de outubro de 1975) foi jornalista, professor e dramaturgo.

[10] Sueli Correa Costa (Rio de Janeiro, 25 de julho de 1943) é cantora e compositora.

[11] Personagem vivido pelo ator Michael Nyqvist no filme A Vida no Paraíso.

[12] A Vida no Paraíso (título original: Så som i himmelen), filme sueco dirigido por Kay Pollak em 2004. Indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

[13] Dorival Caymmi (Salvador, 30 de abril de 1914 – Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2008), cantor, compositor, violonista e pintor.

[14] Paulo Emilio da Costa Leite (São Paulo, 26 de janeiro de 1941 – Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1990) foi poeta e compositor.

[15] Silas de Oliveira (Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1916 – 20 de maio de 1972), compositor e sambista.

[16] Idem ao 13i.

[17] Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, Clara Nunes (Paraopeba, 12 de agosto de 1942 – RJ, 2 de abril de 1983) cantora, compositora, pesquisadora da música brasileira.

[18] José Domingos de Moraes, conhecido como Dominguinhos (Garanhuns, 12 de fevereiro de 1942 – SP, 23 de julho de 2013), sanfoneiro, cantor e compositor.

[19] Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo de televisão, transmitida entre agosto de 1989 e março de 1990 em 196 capítulos. Inspirada no romance de Jorge Amado, Tieta do Agreste.