Apl_Aldir -
Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado
A propósito da confirmação da morte de
Aldir Blanc naquele dia 4 de maio de 2020, uma declaração de João Bosco nas
redes sociais convoca a mim um rigor estético. No turno daquela taciturna
segunda feira o texto em sua força crepuscular, reproduzido integralmente a
seguir, dissipou minha neblina.
Peço desculpas aos que têm me
procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo
pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em
cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele
esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos
despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar
ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos.
Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos.
Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos
sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que
eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está
com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo,
mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas
canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a
testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os
brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio. João Bosco
Autor de versos memoráveis da música
brasileira, cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu aos
73 anos com infecção generalizada em decorrência do covid-19. O compositor deu
entrada na coordenação de emergência regional do Leblon no dia 10 de abril com
infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado numa sala da unidade
de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20 foi transferido para um
leito de terapia intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila
Isabel.
Assim como João Bosco[1], muita gente tornou
público seu sentimento naquele dia do pandêmico 2020. Foram muitas
manifestações de carinho e de pesar. Ivan Cosenza de Souza informou seu pai,
Henrique de Souza Filho[2] (o Henfil) por meio de uma
carta pública, reproduzida a seguir:
Rio de Janeiro, 5 de maio de 2020.
Pai, você tinha hemofilia, e por
causa da hemofilia acabou recebendo sangue contaminado e contraiu HIV. Foi se
tratar de um problema e saiu com outro, numa época que a doença era
implacável, e você se foi muito rápido. Se foi, mas deixou escancarado o descaso
do governo com o controle de sangue no país. Ninguém testava o sangue. Ele era
comercializado, como uma mercadoria qualquer. Deixavam o dinheiro ficar na
frente da vida das pessoas. Nós não deixamos barato e denunciamos! Você mesmo
começou a denunciar, antes da doença se agravar. Hoje, por sua causa e por
causa de nossa luta, quando se trata de sangue, a vida vem em primeiro lugar!
Acabamos com o comércio de sangue no Brasil. É proibido por lei!
No dia 4 de janeiro de 1988, uma
segunda feira, eu me despedia de você.
Seu amigo Aldir Blanc, pegou uma pneumonia, e precisou se tratar. Por causa da
pneumonia, acabou contaminado com COVID-19. Foi se tratar de um problema e saiu
com outro, numa época que a doença ainda é implacável, e se foi, muito rápido.
No dia 4 de Maio de 2020, também numa segunda feira, a gente se despedia dele.
Exatamente 32 anos e 4 meses depois, a história se repetiu. Mais uma vez temos
que denunciar, e mostrar o descaso do governo com a vida da gente! Temos que
mostrar mais uma vez que a vida tem que vir sempre na frente do dinheiro. Vencemos
uma vez e vamos vencer de novo!
Pelo Flávio Migliaccio, que não
aguentou a história se repetindo!
Pelo Aldir!
Por você, pai!
Um beijo do seu filho,
Ivan.
Breve percurso
5 de dezembro de 2019, homenagem aos 50
anos de estrada de Aldir Blanc no Beco do Rato (Lapa, Rio de Janeiro). No dia
anterior, pelo telefone, Moacyr Luz[3] e Aldir falaram da
homenagem e outros assuntos com o carinho de longa amizade. Uma conversa que
durou cerca de 1/2 hora e a confirmação da ausência do homenageado: Aldir não
estará! Pensei: ainda não será desta vez. Eu estava no Rio de Janeiro para me
encontrar com a cidade que tanto me encanta, tentando me encontrar na cidade
que canta... Admito: carregava uma esperança de ver pessoalmente aquela figura
quase mítica.
Aldir aparece na minha vida pela voz da
Elis Regina. Sobretudo na voz do João Bosco, depois com Moacyr Luz. Em Prá que
Pedir Perdão? no disco Mandingueiro de Moacyr Luz (1988), a voz do próprio Aldir
então aos 52 anos de idade me chegou. Recentemente mergulhei no disco Vida
Noturna (2005), gravado em três dias com Aldir interpretando suas canções e
recebendo parceiros. Foi, contudo, no cinema meu primeiro contato...
Engenho de Dentro.
O filme Nise – O coração da loucura,
dirigido por Roberto Berliner, me aproximou do pensamento e do trabalho da
médica psiquiatra Nise da Silveira (1905 – 1999). Ao deixar a prisão, Nise
retoma seu trabalho no hospital psiquiátrico Pedro II no subúrbio do Rio de
Janeiro, e recusa o emprego de eletrochoque e lobotomia no tratamento dos
esquizofrênicos. Ela não sabia bem o que fazer, mas sabia exatamente o que não
fazer. Então inventou. E o filme mostra um pouco da dureza do tratamento a
essas pessoas naquela época e a beleza do ateliê de pintura e artes plásticas
no setor de Terapia Ocupacional. Diretamente com Nise estava a enfermeira Ivone
Lara (1922 – 2018), Almir Marvignier (1925 – 2018) e muitos artistas plásticos
produzindo a si mesmos na medida mesma das obras que compõem o acervo do Museu
do Inconsciente. No hospital do Engenho de Dentro estava o médico psiquiatra
residente Aldir Blanc.
Voltemos à Lapa, precisamente ao Beco do
Rato e à Homenagem... no mês pandêmico de abril recebi as primeiras notícias da
pneumonia e da internação de Aldir, drama que se estendeu até 4 de maio do ano
pandêmico de 2020 com a confirmação do seu falecimento. Em meio ao isolamento
social, me coloco no movimento de aproximação com sua obra, seu pensamento, a
história dessa figura singular da música brasileira. Ao que recebo um convite
formal para esta revista e o engenho aqui dentro vai se ativando.
Introdução
Aldir Blanc é um compositor brasileiro.
Ele é também outros. E poderia vir a ser ainda outros.
Pensei em falar de um Aldir psiquiatra, cronista,
escritor, leitor inveterado, boêmio, pai, avô etc... Passando inevitavelmente
por essas facetas todas tentarei, neste texto, conversar sobretudo com o
compositor e o parceiro.
Aqui, então, tentarei desenvolver linhas
de envolvimento. Envolvimento na perspectiva de ‘compor com’. Envolvimento na
perspectiva de quem ‘caminha ao lado de’.
O compositor e o parceiro. Me parece que
composição e parceria estão quase que, por assim dizer, na mesma sintonia.
Sim_tonia, sim: tonias.
Tons, tonalidades.
Sonoridades e colorações. E tudo o que me
atravessa pela força da arte materializada na obra. Quero, então, fazer uma
composição e uma parceria. Compor com Aldir e escrever com Aldir. Com aquele
Aldir que é em mim, que se faz em nós. Pois, como cantava João Nogueira com as
palavras de Paulo César Pinheiro[4] no samba Súplica:
O corpo a morte leva / A
voz some na brisa / A dor sobe pra'as trevas / O nome a obra imortaliza (...)
Por corpo, por copo, por com. Com por.
Pé com pé, passo com passo, compasso. Parça,
parceiro.
Penso que compor significa sempre estar
com alguém, significa por algo perto, uma espécie de entrelaçamento. São linhas
que se cruzam, se tocam, se emaranham, se entrelaçam. Formam nós, novelos,
novelas. E um fio mostra sua extremidade, você puxa, aperta em nós, desfaz um
nó e, devagar, o fio vem se fazendo só. Não mais o mesmo de antes. Parece
confuso e pode até ser confuso mesmo.
Confusão. Com fusão. A temperatura que aquece
até o ponto de fusão. Tudo isso para chegar a um ponto muito simples: nada é
novo. Talvez seja novo para quem escreve. Mas, se considerarmos que o que
escrevo aqui está marcado por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras, marcado
pela letra do Aldir na voz do João, pela palavra do Aldir na voz da Elis, pelo
pensamento do Aldir na música do Moacyr Luz... letra, palavra e pensamento do
Aldir estão marcados por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras de
bosque, Boscos e Bastos[5], de luas e Luzes, tapumes
e Tapajós[6], pingas e Guingas[7], e comigo. Pode parecer pretencioso
de minha parte. Como assim? Parceria com Aldir Blanc? Pois é.
Na parte final da canção Caça à Raposa, Bosco
e Blanc dizem assim:
Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo
***
Primeiro texto
Iniciei o mergulho na obra de Aldir. Os
livros escritos por ele, livros a respeito dele, vídeos, entrevistas, laives e,
sobretudo, suas canções, suas parcerias, suas composições. Mas o eixo pulsante é,
pela primeira vez em mim, o Aldir. Como já disse, suas canções chegavam até mim
noutras vozes, tocavam em mim na respiração melodiosa de seus parceiros, interpretações
espalhadas em um sem número de discos e obras, gravações daqui e dacolá. Então
me empenhei em ouvir o pensamento musical do Aldir independente da parceria.
Cidades maravilhosas outras foram se revelando em mim. Revelando mesmo como no
antigo processo de transformação da imagem latente registrada num filme
fotográfico em imagem visível por meio de uma química líquida. E uma primeira
tentativa de escrita se esboça. Sim, porque a escrita deste texto (assim como
as composições) são por si. Uma espécie de vida própria, de força criativa que move
a caneta sobre o papel na metodologia de trabalho do Aldir, ou com o toque dos meus
dedos sobre o teclado na metodologia utilizada neste texto. ‘Aldir Blanc,
epidemia e pandemia’ vem dos atravessamentos da canção O Bêbado e a
Equilibrista.
Aldir Blanc, epidemia e pandemia
Caía / a tarde feito um viaduto / e um
bêbado trajando luto...
Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de
Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu (Ceceu), homem de poucas palavras,
neto do afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel,
bairro de origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu
olhar aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem
carioca. Na Tijuca conheceu a vida noturna, a boemia, futebol, blocos de
carnaval, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...
Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia
irreverências mil / pra noite do Brasil.
Em 1969 esteve com Ivan Lins, Luiz Gonzaga
Junior (o Gonzaguinha) e Paulo Emílio da Costa Leite (grande ídolo de Aldir por
sua capacidade de escrita e por sua postura ética) no Movimento Artístico
Universitário. Graduado em medicina, fez residência em psiquiatria no Centro
Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a
enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do samba) em luta contra o uso do
eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no ‘manicômio’ (para usar as
palavras da época). As práticas de vida cantam, as lógicas de morte calam.
Não raro era visto conversando nas ruas,
nos bares do centro do Rio de Janeiro com seus pacientes. As práticas de vida
expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da
vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… Em 1973, canções em parcerias com
João Bosco encantavam o Brasil na voz de Elis Regina. No ano seguinte Aldir
perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do casamento com a professora Ana Lúcia.
“Aí, é o seguinte: se eu não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô
fora, não é isso o que eu quero fazer." Decide abandonar a Medicina e a
Psiquiatria para se dedicar exclusivamente à sua arte. Na medicina se luta
contra a morte; na arte a vida se faz mais viva, mais e mais viva. O médico dá
lugar ao artista.
Na rua Garibaldi, Tijuca, viveu no mesmo
prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras
em papéis, a parceria pariu muitas canções. Nos anos 1980 foi se afastando dos
hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista,
Aldir se dedicava a longas ligações telefônicas com amigos, à música e
literatura.
Moacyr Luz conta uma história
interessante. Saíram numa 5a feira para o final de semana num sítio. Aldir
levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam
livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente
e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao
RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise,
romances policiais, do jazz.
E nuvens, / lá no mata-borrão do céu /
chupavam manchas torturadas / Que sufoco / Louco / Um bêbado com chapéu torto
Este trecho da canção “O Bêbado e a
Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital
psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:
Chora / a nossa Pátria mãe gentil / choram
Marias e Clarisses / no solo do Brasil
Maria, viúva do metalúrgico Manoel Fiel
Filho[8], Clarisse, viúva de
Vladimir Herzog[9],
e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras
calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da
epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.
***
Nesta aproximação inicial com sua vida e obra,
encontrei Suely Costa[10]
se referindo, mais ou menos assim, a Aldir Blanc. Ocorreu durante um Festival
da canção quando Aldir perguntou por que ela havia gostado de uma determinada
canção. “Mas o por que? do Aldir vai lá dentro da gente”. E esta frase ficou vibrando
como a corda de um violão... “É como se uma pergunta simples e direta atingisse
diretamente o fundo da alma”. Nestes casos não basta uma resposta qualquer. Ele
está investigando o mais profundo, ele procura a sua verdade como faz o maestro
Daniel Daréus[11], em A Vida no Paraíso[12],
à procura do tom mais profundo de cada coralista. O regente vai tecendo as
vozes, o compositor vai tecendo as palavras exatas para cada intérprete. Como
se colocasse na boca da cantora a palavra precisa, “uma espécie de psicografia
musical”, finaliza Suely.
Depois desse primeiro texto mais sintético,
publicado num Jornal da minha Cidade natal, recuperei o fôlego, enchi meus pulmões
e mergulhei um pouco mais fundo entre livros, vídeos, entrevistas, crônicas e
muitas, mas muitas canções. Foram dias ouvindo Aldir, buscando Aldir, encontrando
Aldir, virando Aldir.
Aldir carrega nas suas canções as marcas
de sua infância. Em algum momento deste mergulho me peguei pensando numa
espécie de Manoel de Barros urbano. Uma infância aqui compreendida para além de
uma fase da vida, mas uma infância compreendida como experiência, compondo com
o professor Walter Omar Kohan. No caso de Aldir, um longo período de
experimentação da alegria e da liberdade seguido pela sucursal do inferno, um
período violento, uma espécie de relação de repressão da força vital... que
poderia ser assim significada pelo poeta: a vida entre polifonia e paráfrase.
Da
alegria e da liberdade à sucursal do inferno
Com 3 anos e meio Aldir chega a Vila
Isabel, numa casa imensa, quintal enorme e muitas árvores, mangueiras,
laranjeiras, bananeira e outras. Tinha uma goiabeira branca que se curvava até
o chão onde Aldir subia para brincar, para buscar sossego, para observar ao
redor e por sobre, para brincar de atiradeira. Fala disso se colocando na
perspectiva da criança, usa escala da criança para dimensionar a casa e o
quintal e apresenta sua relação com a vida, suspeito que influenciada em grande
parte pelo avô: “não atirava pedras em passarinhos, não tinha coragem, mas tentava
derrubar as mangas maduras dos galhos. Também sonhava lá de cima e lia Monteiro
Lobato”.
Pouco antes de completar 11 anos de idade
tem início a sucursal do inferno, nas palavras de Aldir. Nada de bullying,
Aldir nos conta um pouco da realidade dura de um menino vítima de pequenas
violências por parte dos adultos na cidade do Rio. “Sou surpreendido com o
retorno para a rua Maia de Lacerda no bairro do Estácio (...) Você saía de
casa, com 12, 13 anos, apanhava, seus trabalhos eram jogados na água, suas
cartolinas com trabalhos da escola eram rasgados, o conteúdo das pastas eram
jogados na água que corria no meio fio, levava uns tapas se estivesse com
sorte. Quem fazia isso? Mecânicos, Policiais Militares, motoristas de caminhão,
todos com mais de 20 anos.” Ao ouvir Aldir Blanc falar de sua história, desta
fase mais inicial por assim dizer, é possível ler em sua fisionomia as marcas
de alegria e opressão, um certo sorriso monalítico tatuando a vida em Vila
Isabel e as cicatrizes produzidas no bairro do Estácio. Assim, afirma Aldir aos
70 anos de idade, quem ‘létra’ as canções desde sempre “sem a menor dúvida, é o
garoto do curtíssimo período que passou em Vila Isabel entre os 3 anos e meio
aos quase 11 anos de idade. Quando esse garoto morrer, o letrista, o articulista,
seja lá o que for, morre junto”.
Com 6 ou 7 anos Aldir acompanhava a avó
aos centros espíritas. Diz da avó uma ‘carioca típica’: “extremamente católica,
espírita, rosa cruz, se chegasse uma ceita na vizinhança ela entrava
imediatamente... intensamente macumbeira assim de punhal com cinza pra curar
gripe, uma confusão. Ela me levava aos centros espíritas. E eu ficava fascinado
com os atabaques. Na época eu tinha em casa tamboretes de peteca que eram
grandes, de madeira e de couro ao contrário dos de hoje. Então eu esquentava
aquilo numa fogueirinha e botava aquilo escorado de tal forma de lado a lado e
batia neles, e cantava não os pontos que ouvia lá mas os meus próprios pontos.
Quero dizer, eu compunha com essa idade o que é uma coisa patética. Era uma
misturada de exú com nhambú, com tudo que rimasse com urubu e também tinha, por
causa de uma música da época, era um tal de ema gemendo em todo lugar... e tudo
isso ali, aquele saco de graça ali, até que sai alguém e diz: esse garoto está
possuído... (rs). O primeiro canto, o canto essencial vem da forma com que a
voz é solta dentro do terreiro de macumba.” Interessante pensar neste ponto da
voz solta, a voz como a expressão da palavra; e solta como oposição a presa,
como liberta portanto. Pensar com Aldir nos parece uma espécie de ‘asas à
imaginação’, ou dito de outra maneira, um pensamento livre. Ouvir as palavras
de Aldir presas nas letras das canções, presas mas livres, abrindo caminhos,
conduzindo seu leitor às ruas e cenas da paisagem carioca, conduzindo seu
ouvinte a patamares outros da existência. Ler, ouvir Aldir é como se um
deslocamento profundo, uma fenda, uma cunha se apresentasse às nossas mãos e,
com essa ferramenta, pequenas brechas, picadas, trilhas e caminhos se abrissem
pela força de suas palavras soltas produzindo, em nós, perspectivas outras.
Talvez Aldir se apresente para mim como Paulo Freire se apresentou, como uma
espécie de convocatória, uma espécie de exigência ética a pensar no jogo das
forças que aprisionam e libertam, forças de opressão e forças de libertação,
forças de conservação e forças de transformação. Ouvi recentemente de uma amiga
uma frase que me empurra a pensar com mais cuidado a força na obra do Aldir
Blanc, em suas composições. Ela foi ao Rio de Janeiro pela primeira vez com
muito medo, fruto da construção cotidiana por meio de imagens, matérias,
notícias da violência na cidade via, no caso dela, pela televisão. Seu contato
com a cidade foi traumático. O medo foi reforçado por uma correria em
Copacabana. E a imagem de uma cidade extremamente violenta praticamente se
consolidou. Mas essa cidade desconhecida materialmente e imaginada
equivocadamente foi, devagar se diluindo. Nas palavras dela: “O Rio de Janeiro
que conheço na música do Aldir Blanc me convida a conhecer essa cidade”.
Emblemática e lapidar. E me dei conta da força da obra do Aldir, um carioca
mesmo.
“Aldir
Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que
sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a
malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do Ourives
do Palavreado (grifo do autor). Estamos falando de poesia verdadeira. Todo
mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Dorival Caymmi[13]em 30 de agosto de
1996.
***
A
humanidade do compositor
Em 2009, assim se define Aldir:
“Hoje sou um cronista de 60 anos
com vários livros publicados. Trabalhei em quase todos os jornais do Rio e São
Paulo, mas tem uma coisa que me orgulha muito. É que apesar de toda atividade
artística, uma febre de um neto me faz esquecer tudo. Eu sou um vô louco: uma
das brincadeiras favoritas aqui junto com outras maluquices, porque eu sou
desse avô que deixa jogar bola nos troféus de música popular e montar em cima
de mim como se eu fosse cavalo e o cachorro ainda disputa uma corrida junto com
outro neto montado em cima. Então é uma bagunça desgraçada. Mas assim como os
cientistas querem a teoria de tudo, a brincadeira preferida aqui é a
brincadeira de tudo. Vale tudo (...) Essa parte humana que a gente não abandona
é que eu acho que influi no compositor e vice versa.”
As
Drogas
Segue o artista: “Eu nunca usei droga. Por
ter vindo da psiquiatria eu vi tanta coisa triste envolvendo droga, tanta gente
pirando até mesmo com a pretensamente salutar maconha que eu nunca fui chegado.
Sempre tive um problema de sangramento nasal desde a adolescência, então para
mim é intolerável a ideia de cheirar qualquer coisa. Devo ser um dos raríssimos
sujeitos da minha geração que nunca cheirou pó, nunca e em nenhum momento, por
horror da possibilidade de uma coisa dentro da minha narina. E fiz uma vez uma
experiência com maconha que me deu uma sede e uma taquicardia desgraçada. Devo
ter tomado umas 10 cervejas para o coração serenar e para a língua voltar a
funcionar colada no céu da boca. Então por que eu quero essa merda na minha
vida? Eu quero é beber, porra!!!”
Também
sou doutor
Ainda ele:
“(...) ando em casa com a roupa
rasgada, às vezes esqueço de tomar banho, fico até 3 dias em casa vendo futebol
e torcer até quando joga Ituano e Pé de Pedra... isso é uma característica
minha que veio do meu pai, um cara que dizia ‘eu também sou doutor. Quando eu
chego no botequim com um jornal para fazer minha fezinha, o cara me pergunta:
vai ser cerveja ou limão da casa hoje, doutor?’ Esse diploma é o que me
interessa”
“(...) Se criou muito esse lance que a
psiquiatria teria me ensinado determinados truques e isso influenciou a
carreira do letrista. É claro que é impossível você passar 5 anos da sua vida
numa enfermaria no Engenho de Dentro, com só 40 leitos e oitenta e tantos
pacientes seminus, e isso não influenciar você é impossível”. O pai, Ceceu, preferia
que Aldir fosse médico mesmo reconhecendo os méritos e as conquistas do filho
como compositor. Aldir segue: “não foi a psiquiatria que abriu a cabeça do
letrista. Eu talvez tenha feito uma boa psiquiatria na época porque eu era
antes um músico, percussionista e letrista”.
Escuta, escuta, até que pega o lápis e o
papel.
“A letra do bolero ‘Dois pra lá,
dois pra cá’ foi a mais difícil que eu fiz. Eu recebi a música, fiquei fascinado,
e não conseguia escrever. E um dia, voltando de uma esbórnia num táxi, bem
caído, bem escornado, a letra começou a vir na minha cabeça. Fiquei apavorado
porque não tinha caneta, não tinha papel, não tinha lápis não tinha nada. E
quando eu cheguei em casa peguei o gravador, liguei e ela começou a vir, saiu
inteirinha. E esse é um dos milagres da parceria Bosco e Blanc.”
Seja na sua produção literária, seja na
musical, Aldir escrevia com as próprias mãos. O que não significa que ele não
fazia uso das tecnologias. Muito pelo contrário. Aldir aproveita as tecnologias
para facilitar sua vida. Lápis ou caneta esboçavam as primeiras versões sobre
folhas brancas. Máquina de escrever para as versões finais. Gravador e fita K7
foram tecnologias muito utilizadas também. Disco de vinil e CD. Segundo ele, o
computador da casa não se dava bem com ele. Ambos não combinavam: “o computador
é macho e eu sou do Estácio”, razão pela qual Mari ou alguma filha se
encarregavam de digitar para ele. Duas tecnologias radicalmente revolucionárias
ocuparam praticamente todos os 73 anos de Aldir: músicas e livros.
O
maior samba
“Uma das figuras mais extraordinárias da música
popular que nós conhecemos, por sorte nossa foi nosso parceiro, Paulo Emílio[14]. Nós fizemos diversas
músicas juntos, mas eu quero destacar Nação, que na mesma letra homenageia
Silas de Oliveira[15],
Dorival Caymmi[16],
que foi título de um disco da Clara Nunes[17]. E que é uma música que
eu posso afirmar, sem nenhum medo de parecer pretencioso, que é um dos grandes
sambas do século XX.
Dorival Caymmi
falou pra Oxum
Com Silas
tô em boa companhia (bis)
O céu
abraça a terra, deságua o rio na Bahia
Jeje
minha sede é dos rios
A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta
Planta flor irmã da bandeira
A minha sina é verde-amarela feito a bananeira
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda manjedoura d'alma
Labarágua, Sete Queda em chama
Cobra de ferro, Oxum-maré, homem e mulher na cama
Jeje tuas
asas de pomba
Presas nas costas com mel e dendê aguentam por um fio
Sofrem o
bafio da fera
O bombardeio de Caramuru, a sanha de Anhanguera
Jeje tua boca do lixo, escarra o sangue
De outra hemoptise no canal do mangue
O Uirapuru das cinzas chama
Rebenta a louça Oxum-maré
Dança em teu mar de lama.
Ponte
Nova
Em visita a Ponte Nova no interior de
Minas Gerais, Aldir conheceu Daniel, pai do João. “Nasceu daí uma amizade que
não teve nada a ver com a parceria com o João, foi uma coisa espontânea,
natural e da maior riqueza. No tempo que a gente bebia muito e ainda conseguia
acordar cedo, eu ia pro quintal da casa de Ponte Nova, ele estava me esperando.
E num caixote tinha laranja. E desde manhã cedo a gente fazia uma coisa que eu
duvido que vocês tenham feito que é tomar Brahma extra chupando laranja. Em
homenagem a ele, com música do João (Bosco), do João Donato e letra minha, nós
fizemos ‘Nossas Últimas Viagens’. Que foi brilhantemente gravado no songbook do
João pelo Dominguinhos.”
Eu passei
por Ponte Nova
Procurando Daniel
Disse um cascudo nas águas:
"Teu amigo foi pro céu
Foi botá Deus no seguro
No baú das buginganga
Levou faca afiadinha
Pra mió cortar laranja...
Levou a
roupa de goleiro
Os baralho e as fritura
Na matula com cerveja
Pra comer sem dentadura"
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar para trás
Fomo os
dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar pra trás
Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais
E Aldir tem razão. A propósito desta
afirmação transcrita acima, fui ao songbook do João Bosco para conferir o
registro. Além de encontrar uma obra de arte, uma linda e emocionada
interpretação, ouvi mais ou menos o seguinte: “Pois é meu irmão João Bosco,
aqui você juntamente com o Aldir Blanc e o João Donato disseram tudo, tudo tudo
o que eu queria ter falado para o meu pai”, diz Dominguinhos[18].
Interessante perceber a expressão de Aldir
durante a interpretação de Bosco nesta canção em homenagem ao Daniel. Amigo e,
sobretudo, pai. E a elaboração do luto com a arte. A elaboração da perda, a
falta que vai sendo preenchida por uma presença. Podemos falar então de uma
saudade avessa ao ressentimento, uma saudade que não é perda mas que atualiza a
melhor faceta, as melhores lembranças, que significa a vida presente. Podemos,
portanto, pensar que a canção, a criação do filho e do amigo, fazem Daniel
presente, vivo. A obra imortaliza.
Eu conheci Daniel pelas palavras
melodiosas dessa oração, no melhor sentido da palavra. A expressão de Aldir
durante a execução da canção por João no vídeo O Canto de Aldir Blanc, dirigido
por Fernanda Figueira, mostra sua fisionomia contemplativa. Ele escuta a
canção, na voz e violão de João Bosco, olhos fechados e um pequeno sorriso no
rosto. Me parece que Aldir volta ao quintal de Ponte Nova, descasca laranjas
com Daniel. Escuta mais uma vez as histórias das defesas impossíveis do goleiro
e imagina cada cena com ainda mais cores e poesia. As peripécias do vendedor de
seguro. As laranjas, a técnica para tirar a casca amarela sem ferir a fruta, a
precisão do instrumento cortante, ferramenta do artífice de frutas e histórias.
Mas também se lembra as palavras do cascudo, então eu imagino: um rio onde
Daniel e Aldir pescaram, as águas barrentas, peixe pulando, poucas palavras
murmuradas para não atrapalhar a pescaria. Pescaria de palavras, poucas,
precisas. Palavras que, abertas, revelavam mundos. Palavras, poesias em forma
de uma conversa quase muda. Mas desta vez o cascudo, dentro das águas, toma
para si a palavra:
Teu amigo foi pro céu / Foi botá
Deus no seguro / No baú das buginganga / Levou faca afilhadinha / Pra mió
cortar laranja... / Levou a roupa de goleiro / Os baralho e as fritura / Na
matula com cerveja / Pra comer sem dentadura
A expressão no rosto do filho, João Bosco,
durante a execução da canção, violão nos braços, não demonstra tristeza apesar
da canção melodiosa e do seu significado. Pelo contrário, tem uma face serena,
doce. A arte tem dessas coisas: Daniel está ali entre João e Aldir. Estávamos
em 4 pessoas.
***
Sobre
o nascimento das canções
1)
‘O bêbado e a equilibrista’ nasce como um
samba em homenagem ao Carlitos, personagem do Charles Chaplin então recém falecido.
Acontece que Henfil repetidas vezes falava do irmão, Betinho de Souza, que
Aldir sabia da existência, mas ignorava o nome, “o meu irmão que está exilado isso,
o meu irmão aquilo...” Na hora de escrever, aparece “que sonha com a volta do
irmão do Henfil”. A canção parece captar, mesmo que não tenha sido essa a
intenção de seus criadores, uma força, uma onda e o hino da anistia. O artista
tem uma sensibilidade capaz de perceber, de antecipar, de traduzir uma onda que
ainda não quebrou na areia da praia. Um belo dia, uma figura desconhecida bate
nas costas do Aldir dizendo: “Eu sou o irmão do Henfil. Sou o Betinho. Eu
voltei por causa daquela música, seu filho da puta!” Ambos se abraçaram selando
uma amizade duradoura.
1,5) Rápido parêntese: desde sempre me
atrai histórias deste tipo. Como nascem as canções? Agora é Moacyr Luz quem dá
algumas pistas em uma das laives feitas em homenagem ao Aldir logo após seu
falecimento. Abrindo um parêntese para contar uma curiosidade deste encontro: em
1984 Moacyr cantava e tocava no bar Erva Doce e, para sua surpresa Aldir Blanc estava
numa das primeiras mesas. O cantor arriscou duas canções de Aldir que estavam
no seu repertório para aquele restaurante. Aldir elogiou seu estilo ao violão.
O comentário abre um diálogo absolutamente imprevisível. Ao amanhecer, Moacyr
oferece uma carona.
- Para onde vai?
- Para a Tijuca, depois da rua Uruguai.
Ocorre que, segundo Luz, assim se referem
normalmente à grande Tijuca. Este, recém chegado a Tijuca, gosta da
coincidência e afirma:
- É meu caminho, vamos lá!
E seguiram... Moacyr olhava para Aldir no
seu carro, até ouvia suas palavras mas já não registrava nada. “Estava diante
de uma figura especial, mítica.”
- Na rua Garibaldi.
- Vixi, eu também... como é o prédio, que
número?
E entraram no estacionamento do mesmo
prédio. Moacyr morava no primeiro andar e Aldir no quarto andar. A conversa se
estendeu até o meio dia e a primeira canção nasceu daí. Fecho o parêntese.
Voltando às histórias reveladas por Luz.
Vou reproduzir aqui três, sem o Brilho de quem as tem encarnadas apesar do
visível abatimento do protagonista neste vídeo, todas da passagem de 1989 para
1990.
2)
Saudade da Guanabara.
Moacyr entregou uma canção dele para Beth Carvalho que pediu
alterações na letra. Consta que a canção trazia algumas afirmações que a
cantora não se sentia à vontade em dizê-las. Um belo dia, ele telefona do
primeiro para o quarto:
- Aldir, o Paulinho Pinheiro está aqui em casa, desce aqui
para tomar uma cerveja.
Aldir desceu. Quando
estavam apenas os três e o ambiente mais tranquilo, Luz abriu o jogo a respeito
do samba convidando os dois letristas para uma composição, ou “para fazer
alguma coisa juntos”. Cantou o samba, beberam... Aldir se retirou para buscar
mais cerveja no quarto andar. Demorou uns vinte minutos. “Pronto, deu o tempo
dele, não vai voltar”, pensou Luz.
- Pode mudar essa cortina aí. Abra essa janela para sentir a
brisa do sucesso.
De volta ao apartamento do primeiro andar, Aldir se referia à
nova canção cuja letra estava numa folha de papel.
Moacyr pega o violão e começa a cantar a primeira parte que
diz assim:
Eu sei que o meu peito é uma lona armada,
nostalgia não paga entrada,
circo vive é de ilusão
Chorei, ai, eu chorei!
com saudades da Guanabara,
refulgindo de estrelas claras,
longe desta devastação, e então
Segundo Paulo Cesar Pinheiro no livro Histórias das minhas
canções, os versos acima foram completados ainda por Aldir com:
Armei pic-nic na Mesa do Imperador
e na Vista Chinesa solucei de dor
pelos crimes que rolam contra liberdade...
Reguei o Salgueiro pra Muda pegar outro alento
e plantei novos brotos no Engenho de Dentro
pra alma não se atrofiar
Brasil, Brasil,
tua cara ainda é o Rio de Janeiro
três por quatro na foto e o teu corpo inteiro
precisa se regenerar.
Nas suas Histórias, PC Pinheiro conta uma versão um pouco
diferente de Moa. O que importa aqui é a segunda parte, versos de Pinheiro:
Eu sei que a cidade hoje está mudada,
Santa Cruz, Zona Sul, Baixada,
vala negra no coração...
Chorei, ai, eu chorei!
com saudade da Guanabara,
na Lagoa de águas claras
fui tomado de compaixão, e então
passei pelas praias da Ilha do Governador
e subi São Conrado até o Redentor,
lá no morro Encantado eu pedi Piedade.
Plantei Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento,
No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro
pois é pra gente respirar.
Brasil, Brasil,
tira as flechas do peito do meu padroeiro
que São Sebastião do Rio de Janeiro
ainda pode se salvar.
Saudade da Guanabara (Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César
Pinheiro) é uma espécie de hino do Rio de Janeiro. Segundo Moacyr, esta canção
mostrou para ele um Rio de Janeiro a ser cantado, uma canção que muda sua
carreira por colocá-lo mais no samba, por perceber a cidade do Rio de Janeiro
como cenário da inspiração criativa. E isso veio numa conversa com o Aldir.
3) Aquário
Ambos sentados no sofá da sala do 4º andar no apartamento do
Aldir, tomando cerveja e olhando para o aquário. [Neste depoimento tem um
comentário engraçado do Moacyr: “sei lá porque o Aldir cismou de ter um
aquário... dá uma trabalheira danada”.] A cena de pequenos peixes ‘se beijando’,
limpando as paredes do aquário como um cascudinho beijando o vidro. E Moacyr
chama a atenção:
- Aldir, olha lá os peixinhos se beijando.
E Aldir:
- Eu sou de peixes, ela de aquário.
Moacyr pega o violão e ambos fazem Aquário, a única canção da
dupla simultaneamente música e letra.
Ele me obedece / Ah, se ele soubesse / O mal que ele me faz /
Quando ele me ataca / Eu que era gata / Não aguento mais...
4) Coração do Agreste
Tomando muita cerveja na garrafa caçulinha e correndo atrás
de música para fazer novela, agosto de 1989. Chico Ribeiro pede uma canção para
a novela Tieta do Agreste[19],
Moacyr Luz apresenta na editora uma parceria com Aldir Blanc. A resposta da
editora desafia o músico: apenas a letra era boa. Naquele tempo não havia
celular, e-mail, nada disso. Moacyr pede mais 24 horas de prazo, segue com o
carro para casa e vira a noite criando outra música. Na manhã seguinte, com a
aprovação do letrista, Moacyr volta para a zona Sul e encontra o diretor musical
da novela na areia da praia. A canção foi tema da personagem principal da
novela, Tieta, vivida por Beth Faria.
Regressar é reunir dois lados / À dor
do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha
mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã
A primeira frase parece esconder, mas, na verdade, revela. A
mim, remete ao tempo. Aliás, o poeta Aldir Blanc tem esse poder... de nos fazer
viajar. Viajar pelos bairros e ruas do Rio de Janeiro, viajar em seus tipos,
personagens, cariocas e carioquices, alguns folclóricos outros inexplicáveis.
Afinal, como disse Dorival Caymmi, “todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é
carioca mesmo”. Pensando com Caymmi, há um pouco de carioca em todo brasileiro
assim como, e logicamente, há um tanto de brasileiro em todo carioca. Estamos
exagerando é claro, mas não se assuste. Pense comigo numa certa alegria
tipicamente carioca, uma alegria que vem de uma cidade que, não à toa, é
conhecida como a cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem
suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. E uma beleza singular,
uma alegria que se revela num sem número de blocos de carnaval, na praia, na
Bossa, na Lapa, nos morros, nos terreiros e nas quadras das escolas, no
samba.
Coração do Agreste, de Aldir Blanc e Moacyr Luz, conhecida na
voz de Fafá de Belém não fala exatamente disso. Mas fala. E fala de uma
ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de tempo estendido passado-presente-futuro.
Mas também de sentimentos provocados num tempo, adormecidos e que retornam,
emergem num piscar de olhos. Para falar com Suely Rolnik, de marcas que vibram.
Podemos, então, pensar que Aldir fala de um tempo aión, um tempo experiência.
Um tempo livre do relógio, alforria de Chronos.
Eu voltei para juntar pedaços / De
tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu
amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio
pescador
Até onde percebi no estudo da vida e obra do letrista, o que
vitaliza o letrista e o cronista, a força original da sua escrita está na
infância em Vila Isabel. Uma infância compreendida para além do tempo
cronológico, uma infância compreendida como experiência. As passagens que Aldir
fala do avô, da avó, de um tempo que não volta mais mas, e sobretudo, uma
infância que é permanentemente nele. O vô Bidu (como se apresenta no livro
Cantigas do vô Bidu) parece revelar um pouco disso. Mas eu percebi essa
característica nos seus textos e principalmente nas entrevistas. Muitas
entrevistas estão disponíveis na internet e nelas pude perceber seu humor
cortante. Mas ainda não consegui, apesar do esforço dessas linhas, pensar com
mais profundidade os efeitos dessa canção em mim. Persigo Coração do Agreste há
anos, me procuro nesta canção, me encontro numa ou outra passagem e me perco de
mim nas outras. Essa deriva disparadora de sentidos outros, novos e repetidos,
me traz de volta para ela. E seguimos compondo.
Rio, voltei no curso / Revi o meu
percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No
coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e
vir
Rio aqui pode estar compreendido como a Cidade do Rio de
Janeiro, cara a Aldir e Moacyr. Mas pode também se referir a um rio, um curso
d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma subjetividade em fluxo,
uma deriva, errância que renasce, brota, desabrocha. Nas palavras de Hannah
Arendt, um nascimento, um vir ao mundo. Nas palavras de Gert Biesta, tornar-se
presença, a emergência de uma obra inédita. Esse ir e vir, esse movimento que só
termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo,
gestando dentro daqueles que ficam neste mundo como Arendt, como Aldir fica em
nós por meio de sua obra. Imortais.
Ah fiz de uma saudade / A felicidade /
Pra voltar aqui
***
Ourives
do Palavreado
No dia 12 de maio de 2020, a Girândola Produções publicou o
vídeo promocional de um documentário por vir, chamado Ourives do Palavreado. Imagens
do escritório do Aldir com um violão sentado em sua poltrona de leitura rodeada
por livros, muitos livros, livros folheados, lidos e marcados, CDs e K7s,
quadros, ilustrações, imagens, charges, fotografias, álbuns, memórias. Não é um
cenário. Ou é. Cenário de uma biblioteca em chamas cujas labaredas incendiaram
a música popular brasileira por décadas. Palavras do Aldir:
“O sagrado é uma forma como você se comporta. Eu sou uma
pessoa profundamente sacra em relação ao momento em que eu boto uma fita (...)
pra fazer letra. Naquela hora, ninguém pode mais do que eu. Por incrível que
pareça, humildemente, fraco, doente, ferrado, meio bêbado assim como era
antigamente, ninguém pode mais do que eu naquele momento. Eu acho que o ato de
criar deixa você muito perto de uma certa transcendência, de uma espécie de
experiência pessoal em que você também é o outro, profundamente, em que você
sabe que outras pessoas vão compartilhar com você daquela experiência (...) ‘E
o tempo se rói com inveja de mim’ (trecho da canção Resposta ao Tempo,
Cristovão Bastos e Aldir Blanc), isso é coisa de letrista (risos)... é mentira:
o tempo come vivo, de um dia para o outro. Não deixem para amanhã, de forma
alguma, o famoso projeto pra daqui a não sei a quantos anos porque daqui a não
sei quantos anos não existe, fudeu. Corram atrás da vida.”
Guardei essa canção para finalizar este texto neste exercício
de compor com Aldir, me enredar com ele mas não será desta vez. Interessante
pensar que algumas canções ainda me são impossíveis. Quem sabe um dia... neste
caso não me resta escolha a não ser contrariar meu parceiro. Psicanalista, ele
me escutaria. Artista, ele me aceitaria. Carioca, ele me convidaria (claro que
eu iria) para uma cerveja no Momo, na Muda ou no bar da Maria.
Última
estrofe
Grande conversador, o cronista coloca seus personagens, todos
reais, na roda das conversações. Memórias inventadas, diria Manoel de Barros.
Mistura de realidade e fantasia, ou realidade e realidade melhorada na
lapidação textual da escrita. Lindauro e sua paixão por futebol, Valdir
Iapeteque e seu fabuloso repertório de piadas, Esmeraldo e suas conquistas
amorosas na Penha, Ambrósio Gogó de Ouro, Benedito Lacerda e Penteado, o
gozador que quebra a gabiroba, Ceceu Rico e as histórias das noites do Estácio.
Para o jornalista Luiz Fernando Vianna, a relação entre o pequeno Aldir e seu
pai não foi muito próxima. Ceceu gostava muito de sinuca, frequentava o jóquei
clube, torcia para o Vasco da Gama e frequentava o estádio. Era aquele tipo de
sujeito que sai do estádio e, mesmo com a vitória do cruz-maltino, reclama que
um determinado jogador deveria ter passado a bola. Um reclamão que, nas
crônicas aparece como “Ceceu Rico, aquele que não gosta de festa.” Mas com o
tempo essa relação foi mudando. Adultos, se tornaram grandes amigos. Para a
escritora Heloisa Seixas, Aldir é um cronista em tempo integral. Uma espécie de
cronista da vida. Observador da alma das ruas suburbanas cariocas, olha para o
mundo para extrair dele suas crônicas ou, melhor dizendo, para procurar no
mundo, no cotidiano, nos personagens da vida real o enredo que transformará em
música, em crônica, em poesia. Talvez não seja possível desenlaçar as linhas de
vida das linhas de arte. Aldir fez da sua vida, sua arte. Aldir fez da sua
arte, vida. Aldir viveu e entregou parte dela para nós como obra de arte. Um
artista digno de muitos aplausos.
Fim. Desce o pano.
Hora de apl_ALDIR Blanc.
Bibliografia
consultada:
ARENDT, Hannah. A crise na Educação. In: Entre
o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.
BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem.
Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2017.
BLANC, Aldir. Cantigas do vô Bidu.
São Paulo: Lazuli Editora, 2010.
BLANC, Aldir. Direto do balcão. Rio
de Janeiro: MV Serviços e Editora, 2017.
DIAS, Rosimeri. Deslocamentos na
formação de professores. Aprendizagem de adultos, experiência e políticas
cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2011.
KOHAN, Walter Omar. A infância da
Educação: o conceito devir-criança. Disponível em <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html> Acesso em 22/maio/2020.
PINHEIRO, Paulo César. Histórias das
minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.
ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir.
Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In: Cadernos
de Subjetividade, v.1, nr.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da
Subjetividade, PUC/SP. São Paulo, set/fev, 1993.
SENNETT, Richard. O Artífice.
Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2013.
VIANNA, Luiz Fernando. Aldir Blanc:
Resposta ao Tempo -Vida e letras. Rio de Janeiro: Casa das Palavras, 2013.
Sítios consultados
Dicionário Cravo Albin da música popular
brasileira. Disponível em <http://dicionariompb.com.br/aldir-blanc> Acesso em
15/maio/2020
Museu do Inconsciente. Disponível em <http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/#historico> Acesso em
20/maio/2020.
Souza, Ivan Cosenza de. Cartas ao Pai: a
Esperança Equilibrista. In: Revista Fórum, 6/maio/2020. Disponível em
<https://revistaforum.com.br/colunistas/ivancosenzadesouza/cartas-do-pai-a-esperanca-equilibrista/> Acesso em
15/maio/2020.
Cronistas do Rio. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=oYeZCdnzIb8&t=835s> Acessado em
27/maio/2020
Vídeos Consultados
ALDIR BLANC - Ourives do Palavreado –
promo-documentário. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WsJOPgppUTU Acesso em 24 de
maio de 2020.
Dois para lá, dois pra cá. Direção:
Alexandre R. de Carvalho, André Sampaio e José Roberto de Morais, de 2004. Disponível
em <https://www.youtube.com/watch?v=mrxcXXR5ISs&t=6s> Acesso em 06
de maio de 2020.
'Cerveja ou limão da casa?' Aldir Blanc
reflete sobre a vida em entrevista de 2016 para O Globo. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VkpDxaXk21s> Acesso em 21
de maio de 2020
Homenagem a Aldir Blanc | Cantos Gerais -
O Canto de Aldir Blanc. Direção de Fernanda Figueiredo, 2009. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=uZ1lDbYRQFE&t=4s> Acesso em 24
de maio de 2020.
Moacyr Luz canta Aldir Blanc @ instagram.
Live. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=f55LSVutTbw: Acesso em
20/maio/2020
Ivan Rubens Dário Jr.
Geógrafo sambista.
Estudante, inventor de textos.
Doutorando no Programa de
Pós Graduação em Educação. Instituto de Biociências da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus Rio Claro.
Rua
12-B, 533. Vila Indaiá, Rio Claro/SP. 13506-746
[1] João Bosco de Freitas Mucci,
conhecido como João Bosco (Ponte Nova/MG – 13 de julho de 1946) é cantor, violonista
e compositor.
[2]
Henrique de Souza Filho,
conhecido como Henfil (Ribeirão das Neves, 5 de fevereiro de 1944 – Rio de
Janeiro, 4 de janeiro de 1988), foi cartunista, quadrinista, jornalista e
escritor.
[3] Moacyr Luz (Rio de Janeiro, 5 de
abril de 1958) é músico, violonista e compositor.
[4]
Paulo César Francisco
Pinheiro (Rio de Janeiro, 28 de abril de 1949) é compositor, letrista e poeta.
[5] Cristovão da Silva Bastos Filho
(Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1946) é compositor, pianista e arranjador.
[6] Maurício Tapajós Gomes (Rio de
Janeiro, 27 de dezembro de 1943 – RJ, 21 de abril de 1995) foi compositor,
instrumentista, cantor e produtor musical.
[7]
Carlos Althier de Sousa Lemos
Escobar (Rio de Janeiro, 10 de junho de 1950) conhecido como Guinga, é violonista
e compositor, também é dentista.
[8] Manoel Fiel Filho (Quebrangulo/AL,
7 de janeiro de 1927 – São Paulo, 17 de janeiro de 1976) foi um operário
metalúrgico.
[9]
Vladimir Herzog, nascido
Vlado (Osijek/Reino da Ioguslávia, 27 de junho de 1937 – São Paulo, 25 de
outubro de 1975) foi jornalista, professor e dramaturgo.
[10]
Sueli Correa Costa (Rio de
Janeiro, 25 de julho de 1943) é cantora e compositora.
[11]
Personagem vivido pelo ator
Michael Nyqvist no filme A Vida no Paraíso.
[12]
A Vida no Paraíso (título
original: Så som i himmelen), filme sueco dirigido por Kay Pollak em 2004.
Indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.
[13]
Dorival Caymmi (Salvador, 30
de abril de 1914 – Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2008), cantor, compositor,
violonista e pintor.
[14]
Paulo Emilio da Costa Leite
(São Paulo, 26 de janeiro de 1941 – Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1990) foi
poeta e compositor.
[15] Silas de Oliveira (Rio de Janeiro,
4 de outubro de 1916 – 20 de maio de 1972), compositor e sambista.
[16]
Idem ao 13i.
[17]
Clara Francisca Gonçalves
Pinheiro, Clara Nunes (Paraopeba, 12 de agosto de 1942 – RJ, 2 de abril de
1983) cantora, compositora, pesquisadora da música brasileira.
[18]
José Domingos de Moraes,
conhecido como Dominguinhos (Garanhuns, 12 de fevereiro de 1942 – SP, 23 de
julho de 2013), sanfoneiro, cantor e compositor.
[19] Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo de televisão, transmitida entre agosto de 1989 e março de 1990 em 196 capítulos. Inspirada no romance de Jorge Amado, Tieta do Agreste.