Apl_Aldir - Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado

(artigo publicado na revista Mnemosine, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ISSN: 1809-8894. v. 16, n. 1 (2020): Edição Especial: Dossiê Formação inventiva de professores: ensaios microfísicos, pesquisa-intervenção e estudos foucaultianos.) 
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Apl_Aldir - Aldir Blanc: artífice das letras, ourives do palavreado

 

A propósito da confirmação da morte de Aldir Blanc naquele dia 4 de maio de 2020, uma declaração de João Bosco nas redes sociais convoca a mim um rigor estético. No turno daquela taciturna segunda feira o texto em sua força crepuscular, reproduzido integralmente a seguir, dissipou minha neblina.

Peço desculpas aos que têm me procurado hoje. Não tenho condições de falar. Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio. João Bosco

 

Autor de versos memoráveis da música brasileira, cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu aos 73 anos com infecção generalizada em decorrência do covid-19. O compositor deu entrada na coordenação de emergência regional do Leblon no dia 10 de abril com infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado numa sala da unidade de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20 foi transferido para um leito de terapia intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel.

Assim como João Bosco[1], muita gente tornou público seu sentimento naquele dia do pandêmico 2020. Foram muitas manifestações de carinho e de pesar. Ivan Cosenza de Souza informou seu pai, Henrique de Souza Filho[2] (o Henfil) por meio de uma carta pública, reproduzida a seguir:

 

Rio de Janeiro, 5 de maio de 2020.

Pai, você tinha hemofilia, e por causa da hemofilia acabou recebendo sangue contaminado e contraiu HIV. Foi se tratar de um problema e saiu com outro,  numa época que a doença era implacável, e você se foi muito rápido. Se foi, mas deixou escancarado o descaso do governo com o controle de sangue no país. Ninguém testava o sangue. Ele era comercializado, como uma mercadoria qualquer. Deixavam o dinheiro ficar na frente da vida das pessoas. Nós não deixamos barato e denunciamos! Você mesmo começou a denunciar, antes da doença se agravar. Hoje, por sua causa e por causa de nossa luta, quando se trata de sangue, a vida vem em primeiro lugar! Acabamos com o comércio de sangue no Brasil. É proibido por lei!

No dia 4 de janeiro de 1988, uma segunda feira, eu me despedia de você.
Seu amigo Aldir Blanc, pegou uma pneumonia, e precisou se tratar. Por causa da pneumonia, acabou contaminado com COVID-19. Foi se tratar de um problema e saiu com outro, numa época que a doença ainda é implacável, e se foi, muito rápido.
No dia 4 de Maio de 2020, também numa segunda feira, a gente se despedia dele.
Exatamente 32 anos e 4 meses depois, a história se repetiu. Mais uma vez temos que denunciar, e mostrar o descaso do governo com a vida da gente! Temos que mostrar mais uma vez que a vida tem que vir sempre na frente do dinheiro. Vencemos uma vez e vamos vencer de novo!

Pelo Flávio Migliaccio, que não aguentou a história se repetindo!

Pelo Aldir!

Por você, pai!

Um beijo do seu filho,

Ivan.

 

Breve percurso

5 de dezembro de 2019, homenagem aos 50 anos de estrada de Aldir Blanc no Beco do Rato (Lapa, Rio de Janeiro). No dia anterior, pelo telefone, Moacyr Luz[3] e Aldir falaram da homenagem e outros assuntos com o carinho de longa amizade. Uma conversa que durou cerca de 1/2 hora e a confirmação da ausência do homenageado: Aldir não estará! Pensei: ainda não será desta vez. Eu estava no Rio de Janeiro para me encontrar com a cidade que tanto me encanta, tentando me encontrar na cidade que canta... Admito: carregava uma esperança de ver pessoalmente aquela figura quase mítica.

Aldir aparece na minha vida pela voz da Elis Regina. Sobretudo na voz do João Bosco, depois com Moacyr Luz. Em Prá que Pedir Perdão? no disco Mandingueiro de Moacyr Luz (1988), a voz do próprio Aldir então aos 52 anos de idade me chegou. Recentemente mergulhei no disco Vida Noturna (2005), gravado em três dias com Aldir interpretando suas canções e recebendo parceiros. Foi, contudo, no cinema meu primeiro contato...

Engenho de Dentro.

O filme Nise – O coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner, me aproximou do pensamento e do trabalho da médica psiquiatra Nise da Silveira (1905 – 1999). Ao deixar a prisão, Nise retoma seu trabalho no hospital psiquiátrico Pedro II no subúrbio do Rio de Janeiro, e recusa o emprego de eletrochoque e lobotomia no tratamento dos esquizofrênicos. Ela não sabia bem o que fazer, mas sabia exatamente o que não fazer. Então inventou. E o filme mostra um pouco da dureza do tratamento a essas pessoas naquela época e a beleza do ateliê de pintura e artes plásticas no setor de Terapia Ocupacional. Diretamente com Nise estava a enfermeira Ivone Lara (1922 – 2018), Almir Marvignier (1925 – 2018) e muitos artistas plásticos produzindo a si mesmos na medida mesma das obras que compõem o acervo do Museu do Inconsciente. No hospital do Engenho de Dentro estava o médico psiquiatra residente Aldir Blanc.

Voltemos à Lapa, precisamente ao Beco do Rato e à Homenagem... no mês pandêmico de abril recebi as primeiras notícias da pneumonia e da internação de Aldir, drama que se estendeu até 4 de maio do ano pandêmico de 2020 com a confirmação do seu falecimento. Em meio ao isolamento social, me coloco no movimento de aproximação com sua obra, seu pensamento, a história dessa figura singular da música brasileira. Ao que recebo um convite formal para esta revista e o engenho aqui dentro vai se ativando.

 

Introdução

Aldir Blanc é um compositor brasileiro. Ele é também outros. E poderia vir a ser ainda outros.

Pensei em falar de um Aldir psiquiatra, cronista, escritor, leitor inveterado, boêmio, pai, avô etc... Passando inevitavelmente por essas facetas todas tentarei, neste texto, conversar sobretudo com o compositor e o parceiro.

Aqui, então, tentarei desenvolver linhas de envolvimento. Envolvimento na perspectiva de ‘compor com’. Envolvimento na perspectiva de quem ‘caminha ao lado de’.

O compositor e o parceiro. Me parece que composição e parceria estão quase que, por assim dizer, na mesma sintonia.

Sim_tonia, sim: tonias.

Tons, tonalidades.

Sonoridades e colorações. E tudo o que me atravessa pela força da arte materializada na obra. Quero, então, fazer uma composição e uma parceria. Compor com Aldir e escrever com Aldir. Com aquele Aldir que é em mim, que se faz em nós. Pois, como cantava João Nogueira com as palavras de Paulo César Pinheiro[4] no samba Súplica:

O corpo a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobe pra'as trevas / O nome a obra imortaliza (...)

Por corpo, por copo, por com. Com por.

Pé com pé, passo com passo, compasso. Parça, parceiro.

Penso que compor significa sempre estar com alguém, significa por algo perto, uma espécie de entrelaçamento. São linhas que se cruzam, se tocam, se emaranham, se entrelaçam. Formam nós, novelos, novelas. E um fio mostra sua extremidade, você puxa, aperta em nós, desfaz um nó e, devagar, o fio vem se fazendo só. Não mais o mesmo de antes. Parece confuso e pode até ser confuso mesmo.

Confusão. Com fusão. A temperatura que aquece até o ponto de fusão. Tudo isso para chegar a um ponto muito simples: nada é novo. Talvez seja novo para quem escreve. Mas, se considerarmos que o que escrevo aqui está marcado por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras, marcado pela letra do Aldir na voz do João, pela palavra do Aldir na voz da Elis, pelo pensamento do Aldir na música do Moacyr Luz... letra, palavra e pensamento do Aldir estão marcados por imagens, paisagens, olhares, escutas, leituras de bosque, Boscos e Bastos[5], de luas e Luzes, tapumes e Tapajós[6], pingas e Guingas[7], e comigo. Pode parecer pretencioso de minha parte. Como assim? Parceria com Aldir Blanc? Pois é.

Na parte final da canção Caça à Raposa, Bosco e Blanc dizem assim:

 

Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo

***

 

Primeiro texto

Iniciei o mergulho na obra de Aldir. Os livros escritos por ele, livros a respeito dele, vídeos, entrevistas, laives e, sobretudo, suas canções, suas parcerias, suas composições. Mas o eixo pulsante é, pela primeira vez em mim, o Aldir. Como já disse, suas canções chegavam até mim noutras vozes, tocavam em mim na respiração melodiosa de seus parceiros, interpretações espalhadas em um sem número de discos e obras, gravações daqui e dacolá. Então me empenhei em ouvir o pensamento musical do Aldir independente da parceria. Cidades maravilhosas outras foram se revelando em mim. Revelando mesmo como no antigo processo de transformação da imagem latente registrada num filme fotográfico em imagem visível por meio de uma química líquida. E uma primeira tentativa de escrita se esboça. Sim, porque a escrita deste texto (assim como as composições) são por si. Uma espécie de vida própria, de força criativa que move a caneta sobre o papel na metodologia de trabalho do Aldir, ou com o toque dos meus dedos sobre o teclado na metodologia utilizada neste texto. ‘Aldir Blanc, epidemia e pandemia’ vem dos atravessamentos da canção O Bêbado e a Equilibrista.

Aldir Blanc, epidemia e pandemia

Caía / a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto...

Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu (Ceceu), homem de poucas palavras, neto do afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel, bairro de origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu olhar aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem carioca. Na Tijuca conheceu a vida noturna, a boemia, futebol, blocos de carnaval, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...

Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil / pra noite do Brasil.

Em 1969 esteve com Ivan Lins, Luiz Gonzaga Junior (o Gonzaguinha) e Paulo Emílio da Costa Leite (grande ídolo de Aldir por sua capacidade de escrita e por sua postura ética) no Movimento Artístico Universitário. Graduado em medicina, fez residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do samba) em luta contra o uso do eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no ‘manicômio’ (para usar as palavras da época). As práticas de vida cantam, as lógicas de morte calam.

Não raro era visto conversando nas ruas, nos bares do centro do Rio de Janeiro com seus pacientes. As práticas de vida expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… Em 1973, canções em parcerias com João Bosco encantavam o Brasil na voz de Elis Regina. No ano seguinte Aldir perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do casamento com a professora Ana Lúcia. “Aí, é o seguinte: se eu não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso o que eu quero fazer." Decide abandonar a Medicina e a Psiquiatria para se dedicar exclusivamente à sua arte. Na medicina se luta contra a morte; na arte a vida se faz mais viva, mais e mais viva. O médico dá lugar ao artista.

Na rua Garibaldi, Tijuca, viveu no mesmo prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras em papéis, a parceria pariu muitas canções. Nos anos 1980 foi se afastando dos hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista, Aldir se dedicava a longas ligações telefônicas com amigos, à música e literatura.

Moacyr Luz conta uma história interessante. Saíram numa 5a feira para o final de semana num sítio. Aldir levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise, romances policiais, do jazz.

E nuvens, / lá no mata-borrão do céu / chupavam manchas torturadas / Que sufoco / Louco / Um bêbado com chapéu torto

Este trecho da canção “O Bêbado e a Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:

Chora / a nossa Pátria mãe gentil / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil

Maria, viúva do metalúrgico Manoel Fiel Filho[8], Clarisse, viúva de Vladimir Herzog[9], e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.

 

***

Nesta aproximação inicial com sua vida e obra, encontrei Suely Costa[10] se referindo, mais ou menos assim, a Aldir Blanc. Ocorreu durante um Festival da canção quando Aldir perguntou por que ela havia gostado de uma determinada canção. “Mas o por que? do Aldir vai lá dentro da gente”. E esta frase ficou vibrando como a corda de um violão... “É como se uma pergunta simples e direta atingisse diretamente o fundo da alma”. Nestes casos não basta uma resposta qualquer. Ele está investigando o mais profundo, ele procura a sua verdade como faz o maestro Daniel Daréus[11], em A Vida no Paraíso[12], à procura do tom mais profundo de cada coralista. O regente vai tecendo as vozes, o compositor vai tecendo as palavras exatas para cada intérprete. Como se colocasse na boca da cantora a palavra precisa, “uma espécie de psicografia musical”, finaliza Suely.

Depois desse primeiro texto mais sintético, publicado num Jornal da minha Cidade natal, recuperei o fôlego, enchi meus pulmões e mergulhei um pouco mais fundo entre livros, vídeos, entrevistas, crônicas e muitas, mas muitas canções. Foram dias ouvindo Aldir, buscando Aldir, encontrando Aldir, virando Aldir.

Aldir carrega nas suas canções as marcas de sua infância. Em algum momento deste mergulho me peguei pensando numa espécie de Manoel de Barros urbano. Uma infância aqui compreendida para além de uma fase da vida, mas uma infância compreendida como experiência, compondo com o professor Walter Omar Kohan. No caso de Aldir, um longo período de experimentação da alegria e da liberdade seguido pela sucursal do inferno, um período violento, uma espécie de relação de repressão da força vital... que poderia ser assim significada pelo poeta: a vida entre polifonia e paráfrase.

 

Da alegria e da liberdade à sucursal do inferno

Com 3 anos e meio Aldir chega a Vila Isabel, numa casa imensa, quintal enorme e muitas árvores, mangueiras, laranjeiras, bananeira e outras. Tinha uma goiabeira branca que se curvava até o chão onde Aldir subia para brincar, para buscar sossego, para observar ao redor e por sobre, para brincar de atiradeira. Fala disso se colocando na perspectiva da criança, usa escala da criança para dimensionar a casa e o quintal e apresenta sua relação com a vida, suspeito que influenciada em grande parte pelo avô: “não atirava pedras em passarinhos, não tinha coragem, mas tentava derrubar as mangas maduras dos galhos. Também sonhava lá de cima e lia Monteiro Lobato”.

Pouco antes de completar 11 anos de idade tem início a sucursal do inferno, nas palavras de Aldir. Nada de bullying, Aldir nos conta um pouco da realidade dura de um menino vítima de pequenas violências por parte dos adultos na cidade do Rio. “Sou surpreendido com o retorno para a rua Maia de Lacerda no bairro do Estácio (...) Você saía de casa, com 12, 13 anos, apanhava, seus trabalhos eram jogados na água, suas cartolinas com trabalhos da escola eram rasgados, o conteúdo das pastas eram jogados na água que corria no meio fio, levava uns tapas se estivesse com sorte. Quem fazia isso? Mecânicos, Policiais Militares, motoristas de caminhão, todos com mais de 20 anos.” Ao ouvir Aldir Blanc falar de sua história, desta fase mais inicial por assim dizer, é possível ler em sua fisionomia as marcas de alegria e opressão, um certo sorriso monalítico tatuando a vida em Vila Isabel e as cicatrizes produzidas no bairro do Estácio. Assim, afirma Aldir aos 70 anos de idade, quem ‘létra’ as canções desde sempre “sem a menor dúvida, é o garoto do curtíssimo período que passou em Vila Isabel entre os 3 anos e meio aos quase 11 anos de idade. Quando esse garoto morrer, o letrista, o articulista, seja lá o que for, morre junto”.

Com 6 ou 7 anos Aldir acompanhava a avó aos centros espíritas. Diz da avó uma ‘carioca típica’: “extremamente católica, espírita, rosa cruz, se chegasse uma ceita na vizinhança ela entrava imediatamente... intensamente macumbeira assim de punhal com cinza pra curar gripe, uma confusão. Ela me levava aos centros espíritas. E eu ficava fascinado com os atabaques. Na época eu tinha em casa tamboretes de peteca que eram grandes, de madeira e de couro ao contrário dos de hoje. Então eu esquentava aquilo numa fogueirinha e botava aquilo escorado de tal forma de lado a lado e batia neles, e cantava não os pontos que ouvia lá mas os meus próprios pontos. Quero dizer, eu compunha com essa idade o que é uma coisa patética. Era uma misturada de exú com nhambú, com tudo que rimasse com urubu e também tinha, por causa de uma música da época, era um tal de ema gemendo em todo lugar... e tudo isso ali, aquele saco de graça ali, até que sai alguém e diz: esse garoto está possuído... (rs). O primeiro canto, o canto essencial vem da forma com que a voz é solta dentro do terreiro de macumba.” Interessante pensar neste ponto da voz solta, a voz como a expressão da palavra; e solta como oposição a presa, como liberta portanto. Pensar com Aldir nos parece uma espécie de ‘asas à imaginação’, ou dito de outra maneira, um pensamento livre. Ouvir as palavras de Aldir presas nas letras das canções, presas mas livres, abrindo caminhos, conduzindo seu leitor às ruas e cenas da paisagem carioca, conduzindo seu ouvinte a patamares outros da existência. Ler, ouvir Aldir é como se um deslocamento profundo, uma fenda, uma cunha se apresentasse às nossas mãos e, com essa ferramenta, pequenas brechas, picadas, trilhas e caminhos se abrissem pela força de suas palavras soltas produzindo, em nós, perspectivas outras. Talvez Aldir se apresente para mim como Paulo Freire se apresentou, como uma espécie de convocatória, uma espécie de exigência ética a pensar no jogo das forças que aprisionam e libertam, forças de opressão e forças de libertação, forças de conservação e forças de transformação. Ouvi recentemente de uma amiga uma frase que me empurra a pensar com mais cuidado a força na obra do Aldir Blanc, em suas composições. Ela foi ao Rio de Janeiro pela primeira vez com muito medo, fruto da construção cotidiana por meio de imagens, matérias, notícias da violência na cidade via, no caso dela, pela televisão. Seu contato com a cidade foi traumático. O medo foi reforçado por uma correria em Copacabana. E a imagem de uma cidade extremamente violenta praticamente se consolidou. Mas essa cidade desconhecida materialmente e imaginada equivocadamente foi, devagar se diluindo. Nas palavras dela: “O Rio de Janeiro que conheço na música do Aldir Blanc me convida a conhecer essa cidade”. Emblemática e lapidar. E me dei conta da força da obra do Aldir, um carioca mesmo.

 

“Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do Ourives do Palavreado (grifo do autor). Estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Dorival Caymmi[13]em 30 de agosto de 1996.

 

***

A humanidade do compositor

Em 2009, assim se define Aldir:

“Hoje sou um cronista de 60 anos com vários livros publicados. Trabalhei em quase todos os jornais do Rio e São Paulo, mas tem uma coisa que me orgulha muito. É que apesar de toda atividade artística, uma febre de um neto me faz esquecer tudo. Eu sou um vô louco: uma das brincadeiras favoritas aqui junto com outras maluquices, porque eu sou desse avô que deixa jogar bola nos troféus de música popular e montar em cima de mim como se eu fosse cavalo e o cachorro ainda disputa uma corrida junto com outro neto montado em cima. Então é uma bagunça desgraçada. Mas assim como os cientistas querem a teoria de tudo, a brincadeira preferida aqui é a brincadeira de tudo. Vale tudo (...) Essa parte humana que a gente não abandona é que eu acho que influi no compositor e vice versa.”

 

As Drogas

Segue o artista: “Eu nunca usei droga. Por ter vindo da psiquiatria eu vi tanta coisa triste envolvendo droga, tanta gente pirando até mesmo com a pretensamente salutar maconha que eu nunca fui chegado. Sempre tive um problema de sangramento nasal desde a adolescência, então para mim é intolerável a ideia de cheirar qualquer coisa. Devo ser um dos raríssimos sujeitos da minha geração que nunca cheirou pó, nunca e em nenhum momento, por horror da possibilidade de uma coisa dentro da minha narina. E fiz uma vez uma experiência com maconha que me deu uma sede e uma taquicardia desgraçada. Devo ter tomado umas 10 cervejas para o coração serenar e para a língua voltar a funcionar colada no céu da boca. Então por que eu quero essa merda na minha vida? Eu quero é beber, porra!!!”

 

Também sou doutor

Ainda ele:

“(...) ando em casa com a roupa rasgada, às vezes esqueço de tomar banho, fico até 3 dias em casa vendo futebol e torcer até quando joga Ituano e Pé de Pedra... isso é uma característica minha que veio do meu pai, um cara que dizia ‘eu também sou doutor. Quando eu chego no botequim com um jornal para fazer minha fezinha, o cara me pergunta: vai ser cerveja ou limão da casa hoje, doutor?’ Esse diploma é o que me interessa”

“(...) Se criou muito esse lance que a psiquiatria teria me ensinado determinados truques e isso influenciou a carreira do letrista. É claro que é impossível você passar 5 anos da sua vida numa enfermaria no Engenho de Dentro, com só 40 leitos e oitenta e tantos pacientes seminus, e isso não influenciar você é impossível”. O pai, Ceceu, preferia que Aldir fosse médico mesmo reconhecendo os méritos e as conquistas do filho como compositor. Aldir segue: “não foi a psiquiatria que abriu a cabeça do letrista. Eu talvez tenha feito uma boa psiquiatria na época porque eu era antes um músico, percussionista e letrista”.

Escuta, escuta, até que pega o lápis e o papel.

“A letra do bolero ‘Dois pra lá, dois pra cá’ foi a mais difícil que eu fiz. Eu recebi a música, fiquei fascinado, e não conseguia escrever. E um dia, voltando de uma esbórnia num táxi, bem caído, bem escornado, a letra começou a vir na minha cabeça. Fiquei apavorado porque não tinha caneta, não tinha papel, não tinha lápis não tinha nada. E quando eu cheguei em casa peguei o gravador, liguei e ela começou a vir, saiu inteirinha. E esse é um dos milagres da parceria Bosco e Blanc.”

 

Seja na sua produção literária, seja na musical, Aldir escrevia com as próprias mãos. O que não significa que ele não fazia uso das tecnologias. Muito pelo contrário. Aldir aproveita as tecnologias para facilitar sua vida. Lápis ou caneta esboçavam as primeiras versões sobre folhas brancas. Máquina de escrever para as versões finais. Gravador e fita K7 foram tecnologias muito utilizadas também. Disco de vinil e CD. Segundo ele, o computador da casa não se dava bem com ele. Ambos não combinavam: “o computador é macho e eu sou do Estácio”, razão pela qual Mari ou alguma filha se encarregavam de digitar para ele. Duas tecnologias radicalmente revolucionárias ocuparam praticamente todos os 73 anos de Aldir: músicas e livros. 

 

O maior samba

“Uma das figuras mais extraordinárias da música popular que nós conhecemos, por sorte nossa foi nosso parceiro, Paulo Emílio[14]. Nós fizemos diversas músicas juntos, mas eu quero destacar Nação, que na mesma letra homenageia Silas de Oliveira[15], Dorival Caymmi[16], que foi título de um disco da Clara Nunes[17]. E que é uma música que eu posso afirmar, sem nenhum medo de parecer pretencioso, que é um dos grandes sambas do século XX.

Dorival Caymmi falou pra Oxum

Com Silas tô em boa companhia (bis)

O céu abraça a terra, deságua o rio na Bahia

Jeje minha sede é dos rios
A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta
Planta flor irmã da bandeira
A minha sina é verde-amarela feito a bananeira
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda manjedoura d'alma
Labarágua, Sete Queda em chama
Cobra de ferro, Oxum-maré, homem e mulher na cama

Jeje tuas asas de pomba
Presas nas costas com mel e dendê aguentam por um fio

Sofrem o bafio da fera
O bombardeio de Caramuru, a sanha de Anhanguera
Jeje tua boca do lixo, escarra o sangue
De outra hemoptise no canal do mangue
O Uirapuru das cinzas chama
Rebenta a louça Oxum-maré
Dança em teu mar de lama.

 

Ponte Nova

Em visita a Ponte Nova no interior de Minas Gerais, Aldir conheceu Daniel, pai do João. “Nasceu daí uma amizade que não teve nada a ver com a parceria com o João, foi uma coisa espontânea, natural e da maior riqueza. No tempo que a gente bebia muito e ainda conseguia acordar cedo, eu ia pro quintal da casa de Ponte Nova, ele estava me esperando. E num caixote tinha laranja. E desde manhã cedo a gente fazia uma coisa que eu duvido que vocês tenham feito que é tomar Brahma extra chupando laranja. Em homenagem a ele, com música do João (Bosco), do João Donato e letra minha, nós fizemos ‘Nossas Últimas Viagens’. Que foi brilhantemente gravado no songbook do João pelo Dominguinhos.”

Eu passei por Ponte Nova
Procurando Daniel
Disse um cascudo nas águas:
"Teu amigo foi pro céu
Foi botá Deus no seguro
No baú das buginganga
Levou faca afiadinha
Pra mió cortar laranja...

Levou a roupa de goleiro
Os baralho e as fritura
Na matula com cerveja
Pra comer sem dentadura"
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar para trás

Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais
Nem botei as flô na cova
Saí sem olhar pra trás
Fomo os dois de Ponte Nova
Não voltamo nunca mais

 

E Aldir tem razão. A propósito desta afirmação transcrita acima, fui ao songbook do João Bosco para conferir o registro. Além de encontrar uma obra de arte, uma linda e emocionada interpretação, ouvi mais ou menos o seguinte: “Pois é meu irmão João Bosco, aqui você juntamente com o Aldir Blanc e o João Donato disseram tudo, tudo tudo o que eu queria ter falado para o meu pai”, diz Dominguinhos[18].

Interessante perceber a expressão de Aldir durante a interpretação de Bosco nesta canção em homenagem ao Daniel. Amigo e, sobretudo, pai. E a elaboração do luto com a arte. A elaboração da perda, a falta que vai sendo preenchida por uma presença. Podemos falar então de uma saudade avessa ao ressentimento, uma saudade que não é perda mas que atualiza a melhor faceta, as melhores lembranças, que significa a vida presente. Podemos, portanto, pensar que a canção, a criação do filho e do amigo, fazem Daniel presente, vivo. A obra imortaliza.

Eu conheci Daniel pelas palavras melodiosas dessa oração, no melhor sentido da palavra. A expressão de Aldir durante a execução da canção por João no vídeo O Canto de Aldir Blanc, dirigido por Fernanda Figueira, mostra sua fisionomia contemplativa. Ele escuta a canção, na voz e violão de João Bosco, olhos fechados e um pequeno sorriso no rosto. Me parece que Aldir volta ao quintal de Ponte Nova, descasca laranjas com Daniel. Escuta mais uma vez as histórias das defesas impossíveis do goleiro e imagina cada cena com ainda mais cores e poesia. As peripécias do vendedor de seguro. As laranjas, a técnica para tirar a casca amarela sem ferir a fruta, a precisão do instrumento cortante, ferramenta do artífice de frutas e histórias. Mas também se lembra as palavras do cascudo, então eu imagino: um rio onde Daniel e Aldir pescaram, as águas barrentas, peixe pulando, poucas palavras murmuradas para não atrapalhar a pescaria. Pescaria de palavras, poucas, precisas. Palavras que, abertas, revelavam mundos. Palavras, poesias em forma de uma conversa quase muda. Mas desta vez o cascudo, dentro das águas, toma para si a palavra:

Teu amigo foi pro céu / Foi botá Deus no seguro / No baú das buginganga / Levou faca afilhadinha / Pra mió cortar laranja... / Levou a roupa de goleiro / Os baralho e as fritura / Na matula com cerveja / Pra comer sem dentadura

 

A expressão no rosto do filho, João Bosco, durante a execução da canção, violão nos braços, não demonstra tristeza apesar da canção melodiosa e do seu significado. Pelo contrário, tem uma face serena, doce. A arte tem dessas coisas: Daniel está ali entre João e Aldir. Estávamos em 4 pessoas.

 

***

Sobre o nascimento das canções

1)                 ‘O bêbado e a equilibrista’ nasce como um samba em homenagem ao Carlitos, personagem do Charles Chaplin então recém falecido. Acontece que Henfil repetidas vezes falava do irmão, Betinho de Souza, que Aldir sabia da existência, mas ignorava o nome, “o meu irmão que está exilado isso, o meu irmão aquilo...” Na hora de escrever, aparece “que sonha com a volta do irmão do Henfil”. A canção parece captar, mesmo que não tenha sido essa a intenção de seus criadores, uma força, uma onda e o hino da anistia. O artista tem uma sensibilidade capaz de perceber, de antecipar, de traduzir uma onda que ainda não quebrou na areia da praia. Um belo dia, uma figura desconhecida bate nas costas do Aldir dizendo: “Eu sou o irmão do Henfil. Sou o Betinho. Eu voltei por causa daquela música, seu filho da puta!” Ambos se abraçaram selando uma amizade duradoura.

 

1,5) Rápido parêntese: desde sempre me atrai histórias deste tipo. Como nascem as canções? Agora é Moacyr Luz quem dá algumas pistas em uma das laives feitas em homenagem ao Aldir logo após seu falecimento. Abrindo um parêntese para contar uma curiosidade deste encontro: em 1984 Moacyr cantava e tocava no bar Erva Doce e, para sua surpresa Aldir Blanc estava numa das primeiras mesas. O cantor arriscou duas canções de Aldir que estavam no seu repertório para aquele restaurante. Aldir elogiou seu estilo ao violão. O comentário abre um diálogo absolutamente imprevisível. Ao amanhecer, Moacyr oferece uma carona.

- Para onde vai?

- Para a Tijuca, depois da rua Uruguai.

Ocorre que, segundo Luz, assim se referem normalmente à grande Tijuca. Este, recém chegado a Tijuca, gosta da coincidência e afirma:

- É meu caminho, vamos lá!

E seguiram... Moacyr olhava para Aldir no seu carro, até ouvia suas palavras mas já não registrava nada. “Estava diante de uma figura especial, mítica.”

- Na rua Garibaldi.

- Vixi, eu também... como é o prédio, que número?

E entraram no estacionamento do mesmo prédio. Moacyr morava no primeiro andar e Aldir no quarto andar. A conversa se estendeu até o meio dia e a primeira canção nasceu daí. Fecho o parêntese.

Voltando às histórias reveladas por Luz. Vou reproduzir aqui três, sem o Brilho de quem as tem encarnadas apesar do visível abatimento do protagonista neste vídeo, todas da passagem de 1989 para 1990.

2)                 Saudade da Guanabara.

Moacyr entregou uma canção dele para Beth Carvalho que pediu alterações na letra. Consta que a canção trazia algumas afirmações que a cantora não se sentia à vontade em dizê-las. Um belo dia, ele telefona do primeiro para o quarto:

- Aldir, o Paulinho Pinheiro está aqui em casa, desce aqui para tomar uma cerveja.

 Aldir desceu. Quando estavam apenas os três e o ambiente mais tranquilo, Luz abriu o jogo a respeito do samba convidando os dois letristas para uma composição, ou “para fazer alguma coisa juntos”. Cantou o samba, beberam... Aldir se retirou para buscar mais cerveja no quarto andar. Demorou uns vinte minutos. “Pronto, deu o tempo dele, não vai voltar”, pensou Luz.

- Pode mudar essa cortina aí. Abra essa janela para sentir a brisa do sucesso.

De volta ao apartamento do primeiro andar, Aldir se referia à nova canção cuja letra estava numa folha de papel.

Moacyr pega o violão e começa a cantar a primeira parte que diz assim:

Eu sei que o meu peito é uma lona armada,

nostalgia não paga entrada,

circo vive é de ilusão

Chorei, ai, eu chorei!

com saudades da Guanabara,

refulgindo de estrelas claras,

longe desta devastação, e então

 

Segundo Paulo Cesar Pinheiro no livro Histórias das minhas canções, os versos acima foram completados ainda por Aldir com:

Armei pic-nic na Mesa do Imperador

e na Vista Chinesa solucei de dor

pelos crimes que rolam contra liberdade...

Reguei o Salgueiro pra Muda pegar outro alento

e plantei novos brotos no Engenho de Dentro

pra alma não se atrofiar

Brasil, Brasil,

tua cara ainda é o Rio de Janeiro

três por quatro na foto e o teu corpo inteiro

precisa se regenerar.

 

Nas suas Histórias, PC Pinheiro conta uma versão um pouco diferente de Moa. O que importa aqui é a segunda parte, versos de Pinheiro:

Eu sei que a cidade hoje está mudada,

Santa Cruz, Zona Sul, Baixada,

vala negra no coração...

Chorei, ai, eu chorei!

com saudade da Guanabara,

na Lagoa de águas claras

fui tomado de compaixão, e então

passei pelas praias da Ilha do Governador

e subi São Conrado até o Redentor,

lá no morro Encantado eu pedi Piedade.

Plantei Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento,

No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro

pois é pra gente respirar.

Brasil, Brasil,

tira as flechas do peito do meu padroeiro

que São Sebastião do Rio de Janeiro

ainda pode se salvar.

 

Saudade da Guanabara (Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro) é uma espécie de hino do Rio de Janeiro. Segundo Moacyr, esta canção mostrou para ele um Rio de Janeiro a ser cantado, uma canção que muda sua carreira por colocá-lo mais no samba, por perceber a cidade do Rio de Janeiro como cenário da inspiração criativa. E isso veio numa conversa com o Aldir.

 

3)      Aquário

Ambos sentados no sofá da sala do 4º andar no apartamento do Aldir, tomando cerveja e olhando para o aquário. [Neste depoimento tem um comentário engraçado do Moacyr: “sei lá porque o Aldir cismou de ter um aquário... dá uma trabalheira danada”.] A cena de pequenos peixes ‘se beijando’, limpando as paredes do aquário como um cascudinho beijando o vidro. E Moacyr chama a atenção:

- Aldir, olha lá os peixinhos se beijando.

E Aldir:

- Eu sou de peixes, ela de aquário.

Moacyr pega o violão e ambos fazem Aquário, a única canção da dupla simultaneamente música e letra.

Ele me obedece / Ah, se ele soubesse / O mal que ele me faz / Quando ele me ataca / Eu que era gata / Não aguento mais...

 

4)      Coração do Agreste

Tomando muita cerveja na garrafa caçulinha e correndo atrás de música para fazer novela, agosto de 1989. Chico Ribeiro pede uma canção para a novela Tieta do Agreste[19], Moacyr Luz apresenta na editora uma parceria com Aldir Blanc. A resposta da editora desafia o músico: apenas a letra era boa. Naquele tempo não havia celular, e-mail, nada disso. Moacyr pede mais 24 horas de prazo, segue com o carro para casa e vira a noite criando outra música. Na manhã seguinte, com a aprovação do letrista, Moacyr volta para a zona Sul e encontra o diretor musical da novela na areia da praia. A canção foi tema da personagem principal da novela, Tieta, vivida por Beth Faria.

 

Regressar é reunir dois lados / À dor do dia de partir / Com seus fios enredados / Na alegria de sentir / Que a velha mágoa / É moça temporã / Seu belo noivo é o amanhã  

 

A primeira frase parece esconder, mas, na verdade, revela. A mim, remete ao tempo. Aliás, o poeta Aldir Blanc tem esse poder... de nos fazer viajar. Viajar pelos bairros e ruas do Rio de Janeiro, viajar em seus tipos, personagens, cariocas e carioquices, alguns folclóricos outros inexplicáveis. Afinal, como disse Dorival Caymmi, “todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Pensando com Caymmi, há um pouco de carioca em todo brasileiro assim como, e logicamente, há um tanto de brasileiro em todo carioca. Estamos exagerando é claro, mas não se assuste. Pense comigo numa certa alegria tipicamente carioca, uma alegria que vem de uma cidade que, não à toa, é conhecida como a cidade maravilhosa. Uma cidade que, como tantas outras, tem suas contradições, desigualdades, durezas e injustiças. E uma beleza singular, uma alegria que se revela num sem número de blocos de carnaval, na praia, na Bossa, na Lapa, nos morros, nos terreiros e nas quadras das escolas, no samba. 

Coração do Agreste, de Aldir Blanc e Moacyr Luz, conhecida na voz de Fafá de Belém não fala exatamente disso. Mas fala. E fala de uma ligação, de linhas rompidas, de fios enredados. Uma espécie de tempo estendido passado-presente-futuro. Mas também de sentimentos provocados num tempo, adormecidos e que retornam, emergem num piscar de olhos. Para falar com Suely Rolnik, de marcas que vibram. Podemos, então, pensar que Aldir fala de um tempo aión, um tempo experiência. Um tempo livre do relógio, alforria de Chronos. 

Eu voltei para juntar pedaços / De tanta coisa que passei / Da infância abriu-se o laço / Nas mãos do homem que eu amei / O anzol dessa paixão me machucou / Hoje sou peixe / E sou meu próprio pescador

 

Até onde percebi no estudo da vida e obra do letrista, o que vitaliza o letrista e o cronista, a força original da sua escrita está na infância em Vila Isabel. Uma infância compreendida para além do tempo cronológico, uma infância compreendida como experiência. As passagens que Aldir fala do avô, da avó, de um tempo que não volta mais mas, e sobretudo, uma infância que é permanentemente nele. O vô Bidu (como se apresenta no livro Cantigas do vô Bidu) parece revelar um pouco disso. Mas eu percebi essa característica nos seus textos e principalmente nas entrevistas. Muitas entrevistas estão disponíveis na internet e nelas pude perceber seu humor cortante. Mas ainda não consegui, apesar do esforço dessas linhas, pensar com mais profundidade os efeitos dessa canção em mim. Persigo Coração do Agreste há anos, me procuro nesta canção, me encontro numa ou outra passagem e me perco de mim nas outras. Essa deriva disparadora de sentidos outros, novos e repetidos, me traz de volta para ela. E seguimos compondo.

 

Rio, voltei no curso / Revi o meu percurso / Me perdi no leste / E a alma renasceu / Com flores de algodão / No coração do Agreste / Quando eu morava aqui / Olhava o mar azul / No afã de ir e vir

 

Rio aqui pode estar compreendido como a Cidade do Rio de Janeiro, cara a Aldir e Moacyr. Mas pode também se referir a um rio, um curso d’água qualquer, afluente de uma bacia qualquer. Uma subjetividade em fluxo, uma deriva, errância que renasce, brota, desabrocha. Nas palavras de Hannah Arendt, um nascimento, um vir ao mundo. Nas palavras de Gert Biesta, tornar-se presença, a emergência de uma obra inédita. Esse ir e vir, esse movimento que só termina com a morte. Talvez nem com a morte porque ficamos vibrando, nascendo, gestando dentro daqueles que ficam neste mundo como Arendt, como Aldir fica em nós por meio de sua obra. Imortais.

 

Ah fiz de uma saudade / A felicidade / Pra voltar aqui

 

***

 

Ourives do Palavreado

No dia 12 de maio de 2020, a Girândola Produções publicou o vídeo promocional de um documentário por vir, chamado Ourives do Palavreado. Imagens do escritório do Aldir com um violão sentado em sua poltrona de leitura rodeada por livros, muitos livros, livros folheados, lidos e marcados, CDs e K7s, quadros, ilustrações, imagens, charges, fotografias, álbuns, memórias. Não é um cenário. Ou é. Cenário de uma biblioteca em chamas cujas labaredas incendiaram a música popular brasileira por décadas. Palavras do Aldir:

“O sagrado é uma forma como você se comporta. Eu sou uma pessoa profundamente sacra em relação ao momento em que eu boto uma fita (...) pra fazer letra. Naquela hora, ninguém pode mais do que eu. Por incrível que pareça, humildemente, fraco, doente, ferrado, meio bêbado assim como era antigamente, ninguém pode mais do que eu naquele momento. Eu acho que o ato de criar deixa você muito perto de uma certa transcendência, de uma espécie de experiência pessoal em que você também é o outro, profundamente, em que você sabe que outras pessoas vão compartilhar com você daquela experiência (...) ‘E o tempo se rói com inveja de mim’ (trecho da canção Resposta ao Tempo, Cristovão Bastos e Aldir Blanc), isso é coisa de letrista (risos)... é mentira: o tempo come vivo, de um dia para o outro. Não deixem para amanhã, de forma alguma, o famoso projeto pra daqui a não sei a quantos anos porque daqui a não sei quantos anos não existe, fudeu. Corram atrás da vida.”

Guardei essa canção para finalizar este texto neste exercício de compor com Aldir, me enredar com ele mas não será desta vez. Interessante pensar que algumas canções ainda me são impossíveis. Quem sabe um dia... neste caso não me resta escolha a não ser contrariar meu parceiro. Psicanalista, ele me escutaria. Artista, ele me aceitaria. Carioca, ele me convidaria (claro que eu iria) para uma cerveja no Momo, na Muda ou no bar da Maria.

 

Última estrofe

Grande conversador, o cronista coloca seus personagens, todos reais, na roda das conversações. Memórias inventadas, diria Manoel de Barros. Mistura de realidade e fantasia, ou realidade e realidade melhorada na lapidação textual da escrita. Lindauro e sua paixão por futebol, Valdir Iapeteque e seu fabuloso repertório de piadas, Esmeraldo e suas conquistas amorosas na Penha, Ambrósio Gogó de Ouro, Benedito Lacerda e Penteado, o gozador que quebra a gabiroba, Ceceu Rico e as histórias das noites do Estácio. Para o jornalista Luiz Fernando Vianna, a relação entre o pequeno Aldir e seu pai não foi muito próxima. Ceceu gostava muito de sinuca, frequentava o jóquei clube, torcia para o Vasco da Gama e frequentava o estádio. Era aquele tipo de sujeito que sai do estádio e, mesmo com a vitória do cruz-maltino, reclama que um determinado jogador deveria ter passado a bola. Um reclamão que, nas crônicas aparece como “Ceceu Rico, aquele que não gosta de festa.” Mas com o tempo essa relação foi mudando. Adultos, se tornaram grandes amigos. Para a escritora Heloisa Seixas, Aldir é um cronista em tempo integral. Uma espécie de cronista da vida. Observador da alma das ruas suburbanas cariocas, olha para o mundo para extrair dele suas crônicas ou, melhor dizendo, para procurar no mundo, no cotidiano, nos personagens da vida real o enredo que transformará em música, em crônica, em poesia. Talvez não seja possível desenlaçar as linhas de vida das linhas de arte. Aldir fez da sua vida, sua arte. Aldir fez da sua arte, vida. Aldir viveu e entregou parte dela para nós como obra de arte. Um artista digno de muitos aplausos.

Fim. Desce o pano.

Hora de apl_ALDIR Blanc.

 

 

Bibliografia consultada:

ARENDT, Hannah. A crise na Educação. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

BLANC, Aldir. Cantigas do vô Bidu. São Paulo: Lazuli Editora, 2010.

BLANC, Aldir. Direto do balcão. Rio de Janeiro: MV Serviços e Editora, 2017.

DIAS, Rosimeri. Deslocamentos na formação de professores. Aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2011.

KOHAN, Walter Omar. A infância da Educação: o conceito devir-criança. Disponível em <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html> Acesso em 22/maio/2020.

PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In: Cadernos de Subjetividade, v.1, nr.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/SP. São Paulo, set/fev, 1993.

SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2013.

VIANNA, Luiz Fernando. Aldir Blanc: Resposta ao Tempo -Vida e letras. Rio de Janeiro: Casa das Palavras, 2013.

 

Sítios consultados

Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em <http://dicionariompb.com.br/aldir-blanc> Acesso em 15/maio/2020

Museu do Inconsciente. Disponível em <http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/#historico> Acesso em 20/maio/2020.

Souza, Ivan Cosenza de. Cartas ao Pai: a Esperança Equilibrista. In: Revista Fórum, 6/maio/2020. Disponível em <https://revistaforum.com.br/colunistas/ivancosenzadesouza/cartas-do-pai-a-esperanca-equilibrista/> Acesso em 15/maio/2020.

Cronistas do Rio. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=oYeZCdnzIb8&t=835s> Acessado em 27/maio/2020

 

Vídeos Consultados

 

ALDIR BLANC - Ourives do Palavreado – promo-documentário. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WsJOPgppUTU Acesso em 24 de maio de 2020.

Dois para lá, dois pra cá. Direção: Alexandre R. de Carvalho, André Sampaio e José Roberto de Morais, de 2004. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mrxcXXR5ISs&t=6s> Acesso em 06 de maio de 2020.

'Cerveja ou limão da casa?' Aldir Blanc reflete sobre a vida em entrevista de 2016 para O Globo. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VkpDxaXk21s> Acesso em 21 de maio de 2020

Homenagem a Aldir Blanc | Cantos Gerais - O Canto de Aldir Blanc. Direção de Fernanda Figueiredo, 2009. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=uZ1lDbYRQFE&t=4s> Acesso em 24 de maio de 2020.

Moacyr Luz canta Aldir Blanc @ instagram. Live. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=f55LSVutTbw: Acesso em 20/maio/2020

 

Ivan Rubens Dário Jr.

Geógrafo sambista. Estudante, inventor de textos.

Doutorando no Programa de Pós Graduação em Educação. Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus Rio Claro.

Rua 12-B, 533. Vila Indaiá, Rio Claro/SP. 13506-746

blogdoivanrubens.blogspot.com

ivanrubens@hotmail.com.br

 

 



[1] João Bosco de Freitas Mucci, conhecido como João Bosco (Ponte Nova/MG – 13 de julho de 1946) é cantor, violonista e compositor.

[2] Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil (Ribeirão das Neves, 5 de fevereiro de 1944 – Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1988), foi cartunista, quadrinista, jornalista e escritor.

[3] Moacyr Luz (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1958) é músico, violonista e compositor.

[4] Paulo César Francisco Pinheiro (Rio de Janeiro, 28 de abril de 1949) é compositor, letrista e poeta.

[5] Cristovão da Silva Bastos Filho (Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 1946) é compositor, pianista e arranjador.

[6] Maurício Tapajós Gomes (Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1943 – RJ, 21 de abril de 1995) foi compositor, instrumentista, cantor e produtor musical.

[7] Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar (Rio de Janeiro, 10 de junho de 1950) conhecido como Guinga, é violonista e compositor, também é dentista.

[8] Manoel Fiel Filho (Quebrangulo/AL, 7 de janeiro de 1927 – São Paulo, 17 de janeiro de 1976) foi um operário metalúrgico.

[9] Vladimir Herzog, nascido Vlado (Osijek/Reino da Ioguslávia, 27 de junho de 1937 – São Paulo, 25 de outubro de 1975) foi jornalista, professor e dramaturgo.

[10] Sueli Correa Costa (Rio de Janeiro, 25 de julho de 1943) é cantora e compositora.

[11] Personagem vivido pelo ator Michael Nyqvist no filme A Vida no Paraíso.

[12] A Vida no Paraíso (título original: Så som i himmelen), filme sueco dirigido por Kay Pollak em 2004. Indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

[13] Dorival Caymmi (Salvador, 30 de abril de 1914 – Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2008), cantor, compositor, violonista e pintor.

[14] Paulo Emilio da Costa Leite (São Paulo, 26 de janeiro de 1941 – Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1990) foi poeta e compositor.

[15] Silas de Oliveira (Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1916 – 20 de maio de 1972), compositor e sambista.

[16] Idem ao 13i.

[17] Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, Clara Nunes (Paraopeba, 12 de agosto de 1942 – RJ, 2 de abril de 1983) cantora, compositora, pesquisadora da música brasileira.

[18] José Domingos de Moraes, conhecido como Dominguinhos (Garanhuns, 12 de fevereiro de 1942 – SP, 23 de julho de 2013), sanfoneiro, cantor e compositor.

[19] Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo de televisão, transmitida entre agosto de 1989 e março de 1990 em 196 capítulos. Inspirada no romance de Jorge Amado, Tieta do Agreste.

O Canto das Três Raças, você canta com quem? ou Não consigo respirar!


Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro conversavam sobre samba-enredo. Lá pelas tantas, decidiram fazer um samba. Pinheiro começou a devanear, buscar o motivo, procurar uma história para fazer a letra da canção. Palavras dele: “Lembrei da formação racial do Brasil e especialmente da minha genética índia e européia por parte de mãe, e negra do meu lado paterno. As três raças fundamentais desse país mestiço”. Ele conta que chegava na cabeça dele um canto triste nascido deste país miscigenado. E assim nasceu o samba ‘Canto das Três Raças’, gravado originalmente por Clara Nunes.

Ninguém ouviu / Um soluçar de dor / No canto do Brasil / Um lamento triste sempre ecoou / Desde que o índio guerreiro / Foi pro cativeiro e de lá cantou

“Pensei no colonizador branco, no banzo africano e na dolência nativa”, acrescenta o compositor. Ou seja, Europeu, Africanos e Indígenas. Os indígenas estavam aqui há muito tempo; os europeus chegaram com seu projeto colonial; os africanos foram escravizados e trazidos para cá. Quem se considerava ‘civilização’, escravizou e colonizou. Para ser mais direto: um grupo definiu humanos e não humanos. E quem não é humano, é o que? mercadoria!

Negro entoou / Um canto de revolta pelos ares / Do Quilombo dos Palmares / Onde se refugiou / Fora a luta dos Inconfidentes / Pela quebra das correntes / Nada adiantou

Paulo César Pinheiro fala em banzo e dolência. Na origem africana de Banzo está “pensamento, lembrança” e “saudade, paixão, mágoa”. “Banzo é uma nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil”. Já a palavra dolência vem do latim e significa “ter dor, sofrer ou sentir aflição”. Durante séculos, nações indígenas viviam à sua maneira nessas terras. Faziam parte da natureza exuberante, caçavam, coletavam, transmitiam sua cultura por gerações… até que o céu caiu sobre a cabeça dos povos originários.

E de guerra em paz / De paz em guerra / Todo o povo dessa terra / Quando pode cantar / Canta de dor

Nações africanas viviam em suas terras, à sua maneira, transmitiam sua cultura por gerações, até que um dia passaram a ser caçados, violentados, acorrentados e enviados para a América. 12,52 milhões de negros retirados da África, 10,7 milhões desembarcaram nas Américas sendo 4,8 milhões no Brasil. Indígenas e negros não tiveram escolha.

E ecoa noite e dia / É ensurdecedor / Ai, mas que agonia / O canto do trabalhador! / Esse canto que devia / Ser um canto de alegria / Soa apenas como um soluçar de dor

Mineápolis/EUA, 25 de maio de 2020, homem branco com o joelho na garganta do negro: “não consigo respirar!”. E a cena se repete: o Estado branco civilizado pesando, reprimindo, violentando, sufocando, matando um negro. “Não consigo respirar!”. Mais um corpo negro jogado no asfalto, morto e lançado na cova. Assim como 1,82 milhões de corpos negros foram lançados ao mar durante o período da escravidão. “Não consigo respirar!”

ô ôô ôôô ôô ôôôô ôô ô

Sua voz faz coro com qual canto? Você canta com quem? Não consigo respirar! Não consigo respirar!

Chega, não consigo respirar.



A imagem pode conter: 1 pessoa, texto que diz "Canto das Três Raças "Ninguém ouviu Um soluçar canto Brasil Um lamento triste Sempre ecoou Desde que índio guerreiro Foi pro cativeiro cantou Negro entoou Um canto revolta pelos ares Quilombo dos Palmares efugiou Fora luta dos Inconfidentes Pela quebra quebra correntes Nada adiantou guerra Todo dessa Quando pode cantar Canta dor noite ensurdecedor agonia canto trabalhador Esse canto Ser alegria Soa apenas Como soluçar Clara Nunes"



Aldir Blanc, epidemia e pandemia

Caía / a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto...

Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu, homem de poucas palavras, neto do afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel, bairro de origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu olhar aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem carioca. Na Tijuca conheceu a Vida Noturna, a boemia, futebol, blocos de carnaval, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...

Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil / pra noite do Brasil.

Em 1969 esteve com Ivan Lins e Gonzaguinha no Movimento Artístico Universitário. Graduado em medicina, fez residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do samba) em luta contra o uso do eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no ‘manicômio’ (para usar as palavras da época). As práticas de vida cantam, as lógicas de morte calam.

Não raro era visto conversando nas ruas, nos bares do centro do RJ com seus pacientes. As práticas de vida expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… em 1973, parcerias com João Bosco estavam na voz de Elis Regina. Aldir perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do casamento com a professora Ana Lúcia e o médico dá lugar ao compositor. Na medicina se luta contra a morte; Na arte a vida se faz mais viva, mais e mais viva.

Na rua Garibaldi viveu no mesmo prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras em papéis, a parceria pariu boas canções. Nos anos 80 foi se afastando dos hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista, Aldir dedicava se dedicava a longas ligações telefônicas aos amigos, à música e literatura.

Moacyr Luz conta uma história interessante. Saíram numa 5a feira para um final de semana no sítio. Aldir levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise, romances policiais, do jazz.

E nuvens, / lá no mata-borrão do céu / chupavam manchas torturadas / Que sufoco / Louco / Um bêbado com chapéu torto

Este trecho da canção “O Bêbado e a Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:

Chora / a nossa Pátria mãe gentil / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil

Maria, viúva do Francisco Manoel Filho, Clarisse, viúva de Vladimir Herzog, e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.


publicado no Jornal Cidade em 19 de maio de 2020.



Pior que está não fica?


Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?

Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva é cearense de Itapipoca. Tiririca nasceu no dia 1º de maio, dia dos trabalhadores. Trata-se de uma data comemorativa internacional dedicada aos trabalhadores sendo feriado em muitos países. Mas por que um dia aos trabalhadores e trabalhadoras? Bem, vamos lá…
Grandes massas de trabalhadores reivindicavam melhores condições de trabalho em muitas cidades dos Estados Unidos. Não era para menos: a jornada de trabalho chegava a 17 horas por dia. Durante a manifestação em 1/maio/1886 o movimento foi reprimido pelas forças policiais na cidade de Chicago. Muitos trabalhadores foram presos e mortos em consequência das lutas. A luta faz a lei: direitos trabalhistas foram conquistados.
Aos 8 anos de idade, Tiririca começou sua carreira circense como Palhaço em pequenos espetáculos no interior do Ceará. Em 1996, a canção Florentina deu visibilidade nacional em execuções exaustivas nas rádios e aparições na TV aberta numa espécie de vale tudo pela audiência. Tiririca já respondeu por racismo e violência doméstica.

Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?

Durante a campanha eleitoral de 2010, Tiririca perguntava ao eleitorado paulista: "O que é que faz um deputado federal? não sei. Mas vote em mim que eu te conto". E, “vote no Tiririca. Pior que está, não fica”. Tiririca tornou-se o Deputado Federal pelo estado de São Paulo com 1.348.295 votos. Esse fenômeno eleitoral foi interpretado como voto de protesto. Em 2014 foi reeleito com 1.016.796 votos e em 2018 com 445.521 mil votos, sempre pelo Partido da República. Dos 513 Deputados Federais, 1 é Tiririca.

Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?

Pior que está não fica? Pode piorar, sim. Veja: Jair foi um Deputado Federal inexpressivo entre 1991 e 2018. Isso mesmo: 7 mandatos inexpressivos. No parlamento, suas palavras não causavam tanto estrago, era uma voz num universo de 513. Catalizando todo um ressentimento de classe produzido no Brasil, desde pensamentos mesquinhos a sentimentos tacanhos, o Messias tornou-se presidente. Sua pequenez compromete a grandeza do Brasil. Nosso país está aprendendo, pela dor, que estupidez e ignorância podem ser letais. Um homem que cultua a morte não consegue, mesmo que deseje, formular políticas públicas que resultem vida melhor para brasileiros e brasileiras. Faz um governo medíocre e incompetente. E a pandemia deixa explícito que o atual presidente não está à altura da maioria do povo brasileiro, não tem condição de liderar nada, que aposta no quanto pior melhor. Sua lógica é a da guerra, uma espécie de reedição do “ame-o ou deixe-o”, “quem não está comigo está contra mim”. Uma lógica em que adversários são inimigos e inimigos, numa guerra, são mortos ou presos.

Cloroquina Cloroquina, / Cloroquina tem no SUS… / não sei se funciona / mas a gente deduz!

ACOMPANHEIRAR-SE: Paulo Freire fala de sua vida


Paulo Freire fala de sua vida pessoal e profissional. 
Realizado no Departamento do Instituto de Artes e Faculdade de Educação. 
1985 
Arquivo TV Unicamp



Zilda:
Queremos que essa gravação seja a primeira de uma série. Nesta primeira gravação vamos enfocar a parte da ligação de toda uma teoria sobre a prática do trabalho do Paulo Freire e do trabalho de todos aqueles que continuam ainda hoje. Para iniciar, pedimos ao Paulo que se apresente um pouco...

PAULO FREIRE
Interessante, eu sempre tenho dificuldade de falar de mim mesmo, de me apresentar. Sou Paulo Freire, nasci no Recife numa família de classe média bem comportada, me sentia bem e feliz dentro da família, na relação com meu pai, com minha mãe, com meus irmãos e os parentes. Nasci numa casa com quintal longo, largo, com frutas, fruteiras e passarinhos cantando. No fim dos anos 1920, nasci exatamente em 1921, minha família sofre o impacto da depressão econômica de 1929 e 1930 e essa coisa afetou a vida normal da nossa família e de tantas famílias. As implicações na minha vida e na minha história foram importantes para mim. Uma delas foi a experiência da fome. Não de uma fome demasiado agressiva como ainda temos milhões de meninos hoje, mas de qualquer maneira uma fome que maltratava. Uma fome quantitativa e qualitativa: às vezes comia pouco e quase sempre não comia bem. E essa coisa porém, sem ser masoquista, foi muito importante na minha vida. 
A família sai do Recife em 1932 e vai para Jaboatão (dos Guararapes), cerca de 19 km de distância. Lá eu vivi parte da infância e a adolescência. Lá eu aprendi um monte de coisa, terminei mal um curso primário, não muito bem feito. Lá eu experimentei a dificuldade de aprender com fome, mas lá eu aprendi também a querer bem a vida, a estar contente no mundo… eu sou uma pessoa que tem momentos de tristeza mas, no geral, sou naturalmente feliz, contente, apesar de tudo. Os problemas me desafiam mas não chegam a me anular. Fiz meus estudos normais, meus estudos comuns, com dificuldade. No final da adolescência começo da juventude, retornamos a morar no Recife, minha grande paixão. Lá eu faço o meu curso ginasial, o superior, tenho umas experiências muito interessante, a partir dos 22 anos, de ensinar língua portuguesa. Essa coisa me apaixonava, e foi exatamente por causa da língua portuguesa que eu conheci a Elza, um enorme momento da minha vida. Fui professor da Elza e, por causa disso eu tenho 7 netos hoje. Esse encontro com a Elza em que eu também fui encontrado por ela (seria horrível se apenas eu a encontrasse), que fomos encontrados. Nós nos encontramos numa esquina qualquer do mundo, numa certa hora do tempo. E a Elza exerceu sobre mim uma influência enorme, no seu preponderante silêncio, na sua forma de estar sendo muito calma, de vez enquanto apenas barulhenta. Uma excelente educadora. Trabalhava sobretudo na pré-escola. Nos casamos. E o casamento com Elza me abre um caminho, inaugura uma nova fase na minha vida, de curiosidade, de estímulos e assim eu caio na educação.

Estou tentando pinçar alguns momentos na infância, a fome, a crise que afetou a família. O mundo de Casa Amarela (bairro) no Recife que se estende na experiência de Jaboatão, eu ultrapasso o quilômetro da casa onde eu morava. E não é possível ampliar muito a geografia sem se deixar tocar pela cultura e pela história. De maneira que eu fui tocado nessa ampliação da geografia em Jaboatão. Depois eu volto, termino o estudo no Recife, me faço professor de língua portuguesa...a experiência com a língua portuguesa foi marcante nos estudos que eu fiz naquela época quando eu li (fala de um título de livro mas está incompreensível) e não entendia muito… Depois o encontro com Elza que quase me pega pela mão e me traz para o campo da educação onde eu me sentia perfeitamente bem. O meu trabalho por exemplo, já com 24 pra 25 anos numa instituição que surge num desses momentos lúcidos da classe dominante brasileira, o SESI, que se cria no sentido de apascentar um pouco a consciência do trabalhador emergente. O SESI de Pernambuco se abre para mim como um campo de (...)
O SESI é um outro marco. Um organismo assistencialista evidentemente mas que me possibilita um reencontro com a classe trabalhadora. Eu havia encontrado os filhos da classe trabalhadora na minha infância e agora eu encontro os pais. E o SESI, em certo sentido, me radicaliza ao invés de me assistencializar. É exatamente do SESI a partir de 1946 que eu começo toda uma busca, toda uma pesquisa ao mesmo tempo no campo da prática, por exemplo trabalhando no campo da educação popular mesmo que não chamasse assim. De outro lado, foi um período de intensa preocupação reflexiva apoiado em leituras que me ajudavam nessa reflexão sobre a realidade brasileira. O SESI se apresenta para mim como um momento e um espaço de intenso aprendizado. As raízes mais profundas de tudo isso que se veio chamar depois de método Paulo Freire, uma designação que não me agrada muito, está lá. 
Depois vem minha participação direta no movimento de cultura popular do Recife, que se antecipou a outros tantos movimentos de cultura popular no Brasil. Todo desenvolvimento da minha prática, da minha reflexão se dá no corpo desse movimento, depois eu me estendo até a universidade e coordeno o serviço de extensão cultural. Depois vem a experiência de Angicos onde se testa pela primeira vez em grande escala o que se chamou de método de alfabetização, depois eu vou até o plano nacional com ministro Paulo de Tarso no governo João Goulart e vem o golpe de Estado. O golpe frustra toda uma geração, e eu sou afastado da minha atividade na universidade, preso. Me aposentam quando eu não tinha nem tempo de serviço nem doença, nem queria me aposentar. Fui aposentado sem consulta e hoje eu ganho até muito bem, 800 mil cruzeiros na aposentadoria na Universidade Federal de Pernambuco. Daí eu parto para o exílio e vem toda uma vida de andarilhagem que eu experimentei, nos quase 16 anos de exílio onde eu trabalhei, me aprofundei na prática e na reflexão primeiro no Chile, depois nos Estados Unidos, depois morando em Genebra na Suíça mas me estendendo pelo mundo afora. É exatamente durante o exílio que tento por no papel, em alguns livros, em alguns trabalhos, alguma coisa que me parecia poder ser a fundamentação teórica da prática que eu vinha vivendo neste tempo. Numa síntese incompleta e imperfeita, este sou eu mas sou, sobretudo, um brasileiro para quem a terra dos outros também é boa. Eu não acho que só presta o que é da gente… 
Eu não me enfermei, não adoeci por andar o mundo afora. Agora, é claro que eu jamais esqueci foi a minha raiz. Por isso o Brasil foi, nos meus tempos de exílio, sempre uma pre-ocupação. Para que ele pudesse ser uma pré-ocupação eu precisei me ocupar no tempo do exílio. E me ocupei nos espaços emprestados do exílio. Se eu não tivesse me ocupado no outro espaço eu não teria me preocupado com o Brasil. E aí seria o fim! No momento que foi possível, no chamado processo de abertura, a volta para o país, eu não hesitei, não contei até 10 e aqui estou desde 1980, tendo passado por aqui em 1979 para uma visita e em seguida voltei.

Pergunta:
Paulo, nesta sua apresentação você não conseguiu se desligar da sua própria história. Então, gostaria de acrescentar mais alguma coisa nesta sua apresentação desde sua infância, desde o Sesi até os dias atuais?

PAULO FREIRE
Sobre a minha formação, acrescentar um componente: como eu vim aprendendo no meu encontro com os grupos populares a respeitar a compreensão do mundo que os grupos populares estão tendo no momento em que o educador chega, por exemplo. E dentro dessa tentativa de compreensão que eu comecei a aprender com os grupos populares com os quais eu comecei a trabalhar muito moço eu incluiria a necessidade de entender as diferenças de classe do ponto de vista da linguagem. A maneira de compreender e explicar os fatos em que a gente se envolve. Muito cedo, nas minhas primeiras experiências como educador, percebi isso. De um lado eu comecei a entender que não era possível, trabalhando em educação popular com os grupos populares, que não era possível esquecer ou botar entre parênteses as aspirações do grupo popular, por exemplo, os fantasmas do grupo popular, as dúvidas, os sonhos, a sua forma de compreender-se em relação com o mundo objetivo e a sua maneira de expressar esta compreensão de si com o mundo que é a sua linguagem. Eu comecei muito cedo a entender que não era possível trabalhar com os grupos populares a não ser partindo deste universo da compreensão e da expressão que os grupos populares tivesse de si e do mundo. Por isso mesmo que eu estou dizendo que era para mim impossível trabalhar com eles como educador a não ser partindo da compreensão que estavam tendo, por isso mesmo eu disse ‘partindo da’, eu jamais pensei também que fosse correto ficar com os grupos populares ao nível da sua compreensão do mundo. É interessante… às vezes eu fico espantado quando eu ouço certa crítica, a mim insinuando que eu pretendo com o partir da compreensão, ficar nela. É incrível porque eu nunca pude compreender que partir significasse ficar. Quero dizer, você partir de algum lugar para alcançar outro. Partir é um verbo que implica, um verbo que envolve um movimento que tem um ponto de referência no deslocamento e um ponto de referência na chegada. Eu nunca disse ficar ao nível da compreensão popular mas jamais aceitei que fosse possível chegar a uma leitura mais rigorosa do real do mundo, uma compreensão mais concreta do mundo (que nós pensamos que é a mais concreta, mais objetiva) sem partir da leitura para mim também crítica do ponto de vista dos parâmetros do grupo popular que o grupo popular faz. Essa foi uma coisa eu poderia ter anexado à minha formação. Quero dizer, essa coisa eu ponho agora dentro de quem eu sou para mostrar que no fundo eu aprendi isso, e quem me ensinou isso foi exatamente a realidade na qual eu trabalhei com os grupos populares. É por causa desse aprendizado da obviedade que eu digo hoje que, se eu estou num lado de uma rua e penso por N razões de estar no outro lado, eu não posso fazer outra coisa senão atravessar a rua. Então eu saio do lado de cá e vou para o lado de lá. Eu só entendo o lá porque tem um cá, um aqui. Se não houvesse o aqui eu jamais entenderia o lá e vice versa. O que significa então é que ninguém chega lá partindo de lá, mas sempre partindo de um aqui. Um dos equívocos que cometemos os educadores enquanto políticos e os políticos enquanto educadores, as vezes os educadores cometem mais esse equívoco é não perceber que o aqui da gente é quase sempre o lá do educando. Então eu não posso arrancar o educando do seu aqui, trazê-lo ao meu aqui que é o lá dele. Por isso, para mim, um bom educador, uma boa educadora, tem que permanentemente experimentar a andarilhagem. A andarilhagem entre o seu aqui e o lá a que pretende ir e o aqui do grupo popular que tem no seu aqui o lá dele. O educador e a educadora que pensa concretamente, que pensa dialeticamente, dinamicamente, ele tem que estar para cá e para lá constantemente. E por isso que às vezes o sujeito pode cansar de andar tanto. Esse seria o outro ponto que tem a ver um pouco com a teoria da própria prática que eu acho se incorpora a minha própria biografia. Veja, eu não quero dar a impressão que essa coisa me pertence como exclusividade. Não! eu sou um entre um sem número de educadores e educadoras que pensam e praticam isso.

Pergunta:
Tornando mais complexo, tornando mais complicadas as coisas que nós estamos vivendo no mundo. Como é que a gente complica por exemplo a relação social, por exemplo a minha relação com o favelado, por exemplo a minha relação com o entendimento do favelado, da luta dele. Como é que a gente torna complicado, sou seja, como é que a gente faz teoria?

PAULO FREIRE
Do ponto de vista da compreensão, do lado nossa, da própria ida nossa ao grupo popular... Da compreensão que nós temos ou que estamos tendo dos fatos por exemplo… tem que ver com os procedimentos que nós usamos para nos aproximar dos fatos e dos objetos no sentido de conhecê-los. Procedimentos que nos darão mais ou menos rigorosidade ou nos farão mais ou menos rigorosos na aproximação ao objeto, na tomada de distância do objeto e que, em função dessa maior ou menor rigorosidade de aproximação ao objeto nos darão maior ou menor exatidão no achado. Veja que a linguagem está mais complicada… (rs) é terrível. Você perguntou até porque que a gente complica... Mas eu acho que essa coisa está embutida na sua pergunta. A nossa ida aos grupos populares, você vê que a gente está usando aqui ida, significa que a gente está fazendo exatamente um movimento que vai de fora para dentro. A gente não está lá, a gente não é de lá. Isso tem que ver exatamente com a posição da classe em que a gente se situa, em que a gente nasceu. Para mim a questão fundamental é saber… e aí que entra agora questão da opção política que eu acho fundamental para compreender a prática do educador. É a opção dele ou dela e depois a coerência com essa opção explicitada na sua prática. Portanto, como é que eu sou coerente no momento em que opto pelas classes populares e marcho (caminho) até lá, como é que eu busco ser coerente e já no ato de marchar até lá. Como é que a minha marcha até lá já tem que ser uma marcha não de quem invade mas de quem pretende companheirar-se, de quem pretende virar companheiro. Quero dizer, a minha viagem até lá tem que ser coerente com a opção que me fez viajar até lá. Por isso mesmo que não posso invadir a área a que essa viagem me leva. Nós temos que compreender também, para ficar apenas nesse ângulo do procedimento em torno do objeto ou da compreensão do fato, nós temos que, na relação com os grupos populares nos perguntar (eu diria: procurar confirmar, constatar, averiguar) como é também que os grupos populares se aproximam dos fatos? Quero dizer: 
quais são os procedimentos que eles seguem, que eles usam para achar coisas?
Quais são as suas complicações?
No fundo isso: como é que se elabora esse saber?

Pergunta:
Paulo, tu falaste em acompanheirar-se. E isso que parece ser uma tônica importante do trabalho do educador com o grupo popular, do educador que não é do grupo popular. Talvez fosse importante a gente refletir um pouco o que significa esse acompanheirar-se uma vez que tu fala em situação de classe…. o que isso significa? em que consiste essa solidariedade em relação a esse objeto que está sendo discutido que vem a ser a transformação do mundo?

PAULO FREIRE
Muito bom… Amilcar Cabral que foi o grande líder na Guiné Bissau, mas sobretudo um líder africano… dificilmente não se encontraria Amilcar Cabral na história dos movimentos africanos de libertação independente de ter passado pelo país A, B ou C. Pelas cinco ex-colônias de Portugal não há dúvida que Amilcar portou com toda a luta, com a sua presença teórica, sua amorosidade, sua lucidez. Mas ele diz num de seus textos, quase vou repetir aqui textualmente… ele diz, analisando o que ele chamava de pequena burguesia nacional africana, ele diz que só há um caminho para a pequena burguesia nacional africana de um país A, B ou C, cumprir uma tarefa rigorosamente revolucionária, portanto a serviço do seu povo. Ele inclusive usa a palavra povo apesar da… para ele está muito claro quem é apesar do que possa haver de ambíguo no conceito. Para Amilcar, só há um caminho: é o do suicídio de classe por parte dos chamados intelectuais da pequena burguesia. Diz ele: eles terão que suicidar como classe para renascer como trabalhador revolucionário. Ora, eu não tenho dúvida nenhuma de que, simultaneamente a Amilcar sem porém ter lido Amilcar (eu li Amilcar depois de ter escrito a Pedagogia do Oprimido) mas na Pedagogia do Oprimido eu faço referência a isso que ele chamou de suicídio de classe, chamando de páscoa. Obviamente eu não tenho porque negar aí uma marca da minha formação cristã etc… mas eu desenvolvo até isso num certo momento da Pedagogia do Oprimido quando eu digo que nós temos que morrer enquanto classe dominante (não sei se eu usava classe dominante) para renascer. Isso é a páscoa como travessia etc. Essa experiência que Marx fez, que Guevara fez, que Fidel fez e continua fazendo, que os revolucionários verdadeiros que vieram da classe burguesa e pequeno burguesa tiveram que fazer…. essa experiência não é realmente fácil, é profundamente demandante. É no núcleo disso que eu situei, que eu usei o acompanheirar-se. Eu não estou dizendo que o intelectual deixe o seu bairro de classe média e vá morar na favela para acompanheirar-se. Eu acho que essa solidariedade não é necessariamente assim. Inclusive às vezes fazendo-se isso perde-se a possibilidade de uma maior atuação política. Mas o tornar-se companheiro do companheiro que está lá, para mim demanda, exige esse suicídio a que Cabral se referia. Essa superação, esse estar com a massa popular e não apenas para ela, e nunca sobre ela. Isso vai exigir então uma enorme coerência. Eu acho que um intelectual que não se esforça no sentido de compreender a linguagem metafórica popular, um intelectual que chega à área popular convencido de que o corpo individual e social da área popular é o corpo vazio de saber e que se desconhece que o fato mesmo de que as classes populares têm uma certa prática é suficiente para lhes dar uma certa sabedoria, e que esquecendo então como se gesta esta sabedoria e desrespeitando a validade dessa sabedoria pretende impor, em nome da salvação da classe popular que se dá pela revolução, a teoria para ele acabada da revolução, para mim (apesar de ter seus méritos porque há muito sacrifício também entre os que fazem isso) eu acho que os que fazem isso não chegaram a acompanheirar-se. Eu acho que a solidariedade não é que o intelectual de repente diga: eu sou igual aos outros. Não, ele tem uma função diferente, e uma função organizadora da cultura. O Gramsci está absolutamente certo. Mas o que não é possível é primeiro desconhecer que os grupos populares também são intelectuais. Eles podem não ter tarefas intelectuais. Então é neste sentido que eu colocava o acompanheirar-se.

Pergunta:
Continuando um pouco dentro dessa reflexão, quando se fala na relação educador-educando, esse acompanheirar-se vai acontecendo na medida em que ambos vão se reeducando. Quando se fala em termos de cultura popular, como tu poderia explicitar um pouco melhor esse aprender do intelectual que tu dizes ter uma papel e uma função inclusive organizativa. Acho essa questão importante porque a gente como educador vai até o meio popular, em que consiste o nosso aprendizado uma vez que a nossa tarefa é de organização?

PAULO FREIRE
Esse é um problema fundamental. É interessante observar como diante desta questão que tu colocas a gente pode ter, grosso modo, duas respostas falhas e falsas. Ambas com nome próprio. A primeira seria aquela segundo a qual a verdade organizativa, a verdade da sabedoria, a verdade das opções está exclusivamente nas bases populares. Olhe, quando a gente se põe diante desta indagação que tu fizeste, em uma posição excludente… eu acho que a gente pifa. Então veja: se eu olho… porque esta pergunta tua tem que ver com o papel do intelectual e o papel do grupo popular. Então, se eu me defino, porque a verdade toda está na base popular, coerentemente eu tenho que negar a mais mínima contribuição da teoria, eu tenho que negar a mais mínima, e veja que isso já é inviável… ninguém pode praticar sem teorizar, ninguém pode praticar sem que não haja na prática uma teoria embutida… ela pode não estar sendo vista, percebida. Mas se eu opto por isso, se eu me inclino para esta posição do reforço, da ênfase, da exclusividade da base popular, eu nego a teoria acadêmica por exemplo; eu digo:
- não tenho nada que ver com a academia, a academia é toda ela uma maluquice, um blablablá. 
Eu nego um intelectual como o professor Roberto Romano por exemplo… Eu diria, se a minha perspectiva é essa da base, num encontro ou num seminário de fim de semana para discutir a prática da educação popular, eu não posso admitir a presença do professor Gadotti, nem do professor Romano porque eles não têm nada o que fazer, nada a dizer, são excelentes professores lá na universidade. Eu admito aqui o Brandão porque além de ser um excelente antropólogo e professor da unicamp, um excelente intelectual, ele também vez por outra se dá às intimidades com os brasileiros então este eu aceito. Veja que essa posição é absolutamente falsa, absolutamente errada. Essa posição é a que nega o papel da reflexão teórica… eu não tenho dúvida que o professor Romano sem ter ido a favela pode dar uma excelente contribuição a um grupo de educadores populares que o apresentem um problema teórico e sobre o qual ele pense e reflete. O que pode haver é uma dificuldade do professor Romano é de traduzir. Dificuldade que nós temos e que começamos a diminuir quando vocês, por exemplo, sendo bons intelectuais se metem na área popular. Então a dificuldade do Romano poderia ser de traduzir mais popularmente certos conceitos que explicitam uma aproximação rigorosa ao objeto. Mas não pode é negar a contribuição que ele pode dar. Então essa seria a primeira possibilidade de um enorme equívoco.
A segunda é a de negar a validade de tudo o que se faz na área popular, a de negar a validade e a importância do senso comum. A segunda seria a dicotomia, a negação do senso comum e a única aceitação da rigorosidade acadêmica. Então, essa postura… enquanto a primeira é uma postura basista que conduz a um certo espontaneísmo, um certo populismo e que distorce a prática popular, a segunda é elitista. Ambas são autoritárias no meu entender. Um autoritarismo elitista do lado de certos teóricos que terminam sendo mals teóricos, principalmente porque cortam, porque não descobrem que a teoria é histórica e por isso tem historicidade… a teoria não é um à priori do mundo, um à priori da história, não: ela se dá na história, ela se dá na medida em que o ser humano primeiro praticou o mundo, primeiro alterou e cambiou o mundo. E então no transformar o mundo vem embutida uma certa explicação que ilumina o próprio ato. Então eu acho que o grande problema da gente como intelectual que adere a transformação radical da sociedade é saber até que ponto, na nossa caminhada, nós vivemos a experiência da coerência. De um lado negando, fugindo ao perigo e à tentação das explicações e das práticas basistas; do outro lado, de como correr também para longe das tentações elitistas. Então, para concluir a tua pergunta e de certa maneira bater um pouco no que Adriano colocava antes, eu acho…. e nisso Gramsci também, nisso que eu vou dizer, ele é muito claro…. no fundo eu acho que o que a gente teria que fazer era juntar à sensibilidade popular diante do concreto, a nossa capacidade de apreensão crítica do concreto. Eu acho que, nem a sensibilidade só (que é tipicamente popular) explica o fato, e a tentativa de compreensão do fato a nível de apreensão crítica que negue a sensibilidade… eu diria agora: a criticidade que não se molha da sensibilidade, para mim distorce o seu achado. Eu acho que um dos trabalhos nossos, exatamente o de como viver essa tensão permanente entre o conhecimento que fica ao nível da sensibilidade do fato que é preponderantemente o que se dá na área popular, que oferece (eu penso que é), que explica dar vez que seja…. Quero dizer: como conciliar, como viver a tensão entre esse tipo de conhecimento que para mais ou menos ao nível da sensibilidade para alcançar o conhecimento que, sendo histórico, nos entrega as razões de ser atuais pelo menos do fato.

Tereza: Seria como se o intelectual tivesse que colocar sua teoria em risco?

PAULO FREIRE
Ótima pergunta, obrigado.
Eu diria mais o seguinte: eu acho que não há criatividade sem risco, nem há desenvolvimento intelectual sem risco. Para mim uma das coisas terríveis da educação que nós estamos vivendo no Brasil é que ela vem sendo sobretudo uma educação da resposta e não uma educação da pergunta, da pergunta fundamental. Eu acho que para uma filósofa essa coisa bate muito. A impressão que eu tenho é que nós estamos entrando nas salas com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo, e a gente nem sabe quais foram elas mas a gente chega dá as respostas ao educando. E o educando pensa: eu nem perguntei. E essa ação da resposta castra a curiosidade necessária do educando que teria que se expressar na pergunta. Agora, veja: o ato de perguntar que faz parte fundamentalmente do ato de conhecer não pode ser assumido sem risco. Pra mim não é possível conhecer sem arriscar-se.

Adriano.
Uma parte da nossa tradição universitária faz com que a gente coloque teoria e prática lado a lado e separadas às vezes. É muito comum a gente ouvir na universidade: se aprende para poder aplicar depois. Você vai, estuda e vem aqui aplicar. Pelo o que tu está dizendo, eu estou vendo o explodir do político, o emergir da política. Quando a gente desvela ciência naquilo que fazemos, e estou supondo fazendo como os intelectuais comprometidos com os grupos populares... Então quando a gente desvela, garimpa a ciência dentro daquilo que fazemos, (por isso eu chamei de explosão) a gente está estudando as decorrências políticas, daí emerge o político, porque a gente vai ver que aquilo que fizemos está grávido de conceito e tem repercussões que, uma vez faladas, são maiores do que a simples enunciação. Porque desvelar supõe, como tu dizias há tempos já, decodificação, e decodificação é o ato político porque supõe explicitada a relação.

Quero acrescentar ao Adriano… você poderia, ao narrar alguma experiência de educação, explicitar ou falar um pouco mais daquilo que a gente vê acontecer sempre quando as pessoas, os educadores, as educadoras tentam vivenciar essa educação. Em grupos populares, em educação popular, mesmo quando você fala… e hoje a gente vive, por exemplo, muito forte a ideia de consciência do grupo…. a criatividade fica muito forte. O político é muito presente. E o gostar, o interessar, esse conhecer esse mundo ou trabalhar nesse mundo com muito entusiasmo, humor e alegria. Não sei se relaciona com a sua vida… você poderia explicitar um pouco isso narrando alguma prática concreta sua.

PAULO FREIRE
Eu faria uma contraproposta. Como estamos numa reunião muito informal em que a gente espera ser útil ou criar um produto que possa ser útil depois... Eu entendi perfeitamente a tua questão e eu teria alguma coisa pra dizer como eu vejo a questão. Mas quem sabe posteriormente, mesmo que pela própria natureza desta reunião, eu deva ser em certos momentos uma espécie de centro das perguntas mas talvez fosse interessante se alguém aqui… coincidentemente você me fez algumas referências sobre isso antes de começarmos essa conversa aqui. Talvez fosse interessante que alguém aqui, vocês que tem muita experiência, vocês que tem vivido isso, dissessem como vocês têm experimentado essa posição, essa atitude de grupos populares que participam de um trabalho educativo, que parte deles e não de nós. E eu digo depois como eu vejo essa questão…

Para para trocar a fita, encerra esta gravação.

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Participaram da entrevista:
- Zilda Santesso, orientação do serviço de apoio ao estudante na Unicamp. Tem trabalho popular num dos bairros da periferia de Campinas
- Debora Mazza, assessora da secretaria de promoção social da prefeitura de campinas para assuntos relacionados com Educação. Mestranda em ciências sociais aplicadas a educação na unicamp
- Gina, orientadora educacional no serviço de apoio ao estudante. Trabalha também num bairro periférico de Campinas
- Adriano, educador. Assessorando dois trabalhos em educação popular, acompanha o trabalho do Paulo na Unicamp.
- Elisabete, trabalha na área da periferia de Campinas.
- Maria Tereza Papaleu, de Porto Alegre. Como educadora no ensino secundário e um trabalho de periferia em Canoas. Dentre suas paixões estão a filosofia e a educação.