O Canto das Três Raças, você canta com quem? ou Não consigo respirar!


Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro conversavam sobre samba-enredo. Lá pelas tantas, decidiram fazer um samba. Pinheiro começou a devanear, buscar o motivo, procurar uma história para fazer a letra da canção. Palavras dele: “Lembrei da formação racial do Brasil e especialmente da minha genética índia e européia por parte de mãe, e negra do meu lado paterno. As três raças fundamentais desse país mestiço”. Ele conta que chegava na cabeça dele um canto triste nascido deste país miscigenado. E assim nasceu o samba ‘Canto das Três Raças’, gravado originalmente por Clara Nunes.

Ninguém ouviu / Um soluçar de dor / No canto do Brasil / Um lamento triste sempre ecoou / Desde que o índio guerreiro / Foi pro cativeiro e de lá cantou

“Pensei no colonizador branco, no banzo africano e na dolência nativa”, acrescenta o compositor. Ou seja, Europeu, Africanos e Indígenas. Os indígenas estavam aqui há muito tempo; os europeus chegaram com seu projeto colonial; os africanos foram escravizados e trazidos para cá. Quem se considerava ‘civilização’, escravizou e colonizou. Para ser mais direto: um grupo definiu humanos e não humanos. E quem não é humano, é o que? mercadoria!

Negro entoou / Um canto de revolta pelos ares / Do Quilombo dos Palmares / Onde se refugiou / Fora a luta dos Inconfidentes / Pela quebra das correntes / Nada adiantou

Paulo César Pinheiro fala em banzo e dolência. Na origem africana de Banzo está “pensamento, lembrança” e “saudade, paixão, mágoa”. “Banzo é uma nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil”. Já a palavra dolência vem do latim e significa “ter dor, sofrer ou sentir aflição”. Durante séculos, nações indígenas viviam à sua maneira nessas terras. Faziam parte da natureza exuberante, caçavam, coletavam, transmitiam sua cultura por gerações… até que o céu caiu sobre a cabeça dos povos originários.

E de guerra em paz / De paz em guerra / Todo o povo dessa terra / Quando pode cantar / Canta de dor

Nações africanas viviam em suas terras, à sua maneira, transmitiam sua cultura por gerações, até que um dia passaram a ser caçados, violentados, acorrentados e enviados para a América. 12,52 milhões de negros retirados da África, 10,7 milhões desembarcaram nas Américas sendo 4,8 milhões no Brasil. Indígenas e negros não tiveram escolha.

E ecoa noite e dia / É ensurdecedor / Ai, mas que agonia / O canto do trabalhador! / Esse canto que devia / Ser um canto de alegria / Soa apenas como um soluçar de dor

Mineápolis/EUA, 25 de maio de 2020, homem branco com o joelho na garganta do negro: “não consigo respirar!”. E a cena se repete: o Estado branco civilizado pesando, reprimindo, violentando, sufocando, matando um negro. “Não consigo respirar!”. Mais um corpo negro jogado no asfalto, morto e lançado na cova. Assim como 1,82 milhões de corpos negros foram lançados ao mar durante o período da escravidão. “Não consigo respirar!”

ô ôô ôôô ôô ôôôô ôô ô

Sua voz faz coro com qual canto? Você canta com quem? Não consigo respirar! Não consigo respirar!

Chega, não consigo respirar.



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Aldir Blanc, epidemia e pandemia

Caía / a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto...

Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu, homem de poucas palavras, neto do afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel, bairro de origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu olhar aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem carioca. Na Tijuca conheceu a Vida Noturna, a boemia, futebol, blocos de carnaval, a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...

Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil / pra noite do Brasil.

Em 1969 esteve com Ivan Lins e Gonzaguinha no Movimento Artístico Universitário. Graduado em medicina, fez residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do samba) em luta contra o uso do eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no ‘manicômio’ (para usar as palavras da época). As práticas de vida cantam, as lógicas de morte calam.

Não raro era visto conversando nas ruas, nos bares do centro do RJ com seus pacientes. As práticas de vida expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… em 1973, parcerias com João Bosco estavam na voz de Elis Regina. Aldir perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do casamento com a professora Ana Lúcia e o médico dá lugar ao compositor. Na medicina se luta contra a morte; Na arte a vida se faz mais viva, mais e mais viva.

Na rua Garibaldi viveu no mesmo prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras em papéis, a parceria pariu boas canções. Nos anos 80 foi se afastando dos hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista, Aldir dedicava se dedicava a longas ligações telefônicas aos amigos, à música e literatura.

Moacyr Luz conta uma história interessante. Saíram numa 5a feira para um final de semana no sítio. Aldir levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise, romances policiais, do jazz.

E nuvens, / lá no mata-borrão do céu / chupavam manchas torturadas / Que sufoco / Louco / Um bêbado com chapéu torto

Este trecho da canção “O Bêbado e a Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:

Chora / a nossa Pátria mãe gentil / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil

Maria, viúva do Francisco Manoel Filho, Clarisse, viúva de Vladimir Herzog, e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.


publicado no Jornal Cidade em 19 de maio de 2020.



Pior que está não fica?


Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?

Francisco Everardo Tiririca Oliveira Silva é cearense de Itapipoca. Tiririca nasceu no dia 1º de maio, dia dos trabalhadores. Trata-se de uma data comemorativa internacional dedicada aos trabalhadores sendo feriado em muitos países. Mas por que um dia aos trabalhadores e trabalhadoras? Bem, vamos lá…
Grandes massas de trabalhadores reivindicavam melhores condições de trabalho em muitas cidades dos Estados Unidos. Não era para menos: a jornada de trabalho chegava a 17 horas por dia. Durante a manifestação em 1/maio/1886 o movimento foi reprimido pelas forças policiais na cidade de Chicago. Muitos trabalhadores foram presos e mortos em consequência das lutas. A luta faz a lei: direitos trabalhistas foram conquistados.
Aos 8 anos de idade, Tiririca começou sua carreira circense como Palhaço em pequenos espetáculos no interior do Ceará. Em 1996, a canção Florentina deu visibilidade nacional em execuções exaustivas nas rádios e aparições na TV aberta numa espécie de vale tudo pela audiência. Tiririca já respondeu por racismo e violência doméstica.

Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?

Durante a campanha eleitoral de 2010, Tiririca perguntava ao eleitorado paulista: "O que é que faz um deputado federal? não sei. Mas vote em mim que eu te conto". E, “vote no Tiririca. Pior que está, não fica”. Tiririca tornou-se o Deputado Federal pelo estado de São Paulo com 1.348.295 votos. Esse fenômeno eleitoral foi interpretado como voto de protesto. Em 2014 foi reeleito com 1.016.796 votos e em 2018 com 445.521 mil votos, sempre pelo Partido da República. Dos 513 Deputados Federais, 1 é Tiririca.

Florentina Florentina, / Florentina de Jesus… / Não sei se tu me amas / E pra quê tu me seduz?

Pior que está não fica? Pode piorar, sim. Veja: Jair foi um Deputado Federal inexpressivo entre 1991 e 2018. Isso mesmo: 7 mandatos inexpressivos. No parlamento, suas palavras não causavam tanto estrago, era uma voz num universo de 513. Catalizando todo um ressentimento de classe produzido no Brasil, desde pensamentos mesquinhos a sentimentos tacanhos, o Messias tornou-se presidente. Sua pequenez compromete a grandeza do Brasil. Nosso país está aprendendo, pela dor, que estupidez e ignorância podem ser letais. Um homem que cultua a morte não consegue, mesmo que deseje, formular políticas públicas que resultem vida melhor para brasileiros e brasileiras. Faz um governo medíocre e incompetente. E a pandemia deixa explícito que o atual presidente não está à altura da maioria do povo brasileiro, não tem condição de liderar nada, que aposta no quanto pior melhor. Sua lógica é a da guerra, uma espécie de reedição do “ame-o ou deixe-o”, “quem não está comigo está contra mim”. Uma lógica em que adversários são inimigos e inimigos, numa guerra, são mortos ou presos.

Cloroquina Cloroquina, / Cloroquina tem no SUS… / não sei se funciona / mas a gente deduz!

ACOMPANHEIRAR-SE: Paulo Freire fala de sua vida


Paulo Freire fala de sua vida pessoal e profissional. 
Realizado no Departamento do Instituto de Artes e Faculdade de Educação. 
1985 
Arquivo TV Unicamp



Zilda:
Queremos que essa gravação seja a primeira de uma série. Nesta primeira gravação vamos enfocar a parte da ligação de toda uma teoria sobre a prática do trabalho do Paulo Freire e do trabalho de todos aqueles que continuam ainda hoje. Para iniciar, pedimos ao Paulo que se apresente um pouco...

PAULO FREIRE
Interessante, eu sempre tenho dificuldade de falar de mim mesmo, de me apresentar. Sou Paulo Freire, nasci no Recife numa família de classe média bem comportada, me sentia bem e feliz dentro da família, na relação com meu pai, com minha mãe, com meus irmãos e os parentes. Nasci numa casa com quintal longo, largo, com frutas, fruteiras e passarinhos cantando. No fim dos anos 1920, nasci exatamente em 1921, minha família sofre o impacto da depressão econômica de 1929 e 1930 e essa coisa afetou a vida normal da nossa família e de tantas famílias. As implicações na minha vida e na minha história foram importantes para mim. Uma delas foi a experiência da fome. Não de uma fome demasiado agressiva como ainda temos milhões de meninos hoje, mas de qualquer maneira uma fome que maltratava. Uma fome quantitativa e qualitativa: às vezes comia pouco e quase sempre não comia bem. E essa coisa porém, sem ser masoquista, foi muito importante na minha vida. 
A família sai do Recife em 1932 e vai para Jaboatão (dos Guararapes), cerca de 19 km de distância. Lá eu vivi parte da infância e a adolescência. Lá eu aprendi um monte de coisa, terminei mal um curso primário, não muito bem feito. Lá eu experimentei a dificuldade de aprender com fome, mas lá eu aprendi também a querer bem a vida, a estar contente no mundo… eu sou uma pessoa que tem momentos de tristeza mas, no geral, sou naturalmente feliz, contente, apesar de tudo. Os problemas me desafiam mas não chegam a me anular. Fiz meus estudos normais, meus estudos comuns, com dificuldade. No final da adolescência começo da juventude, retornamos a morar no Recife, minha grande paixão. Lá eu faço o meu curso ginasial, o superior, tenho umas experiências muito interessante, a partir dos 22 anos, de ensinar língua portuguesa. Essa coisa me apaixonava, e foi exatamente por causa da língua portuguesa que eu conheci a Elza, um enorme momento da minha vida. Fui professor da Elza e, por causa disso eu tenho 7 netos hoje. Esse encontro com a Elza em que eu também fui encontrado por ela (seria horrível se apenas eu a encontrasse), que fomos encontrados. Nós nos encontramos numa esquina qualquer do mundo, numa certa hora do tempo. E a Elza exerceu sobre mim uma influência enorme, no seu preponderante silêncio, na sua forma de estar sendo muito calma, de vez enquanto apenas barulhenta. Uma excelente educadora. Trabalhava sobretudo na pré-escola. Nos casamos. E o casamento com Elza me abre um caminho, inaugura uma nova fase na minha vida, de curiosidade, de estímulos e assim eu caio na educação.

Estou tentando pinçar alguns momentos na infância, a fome, a crise que afetou a família. O mundo de Casa Amarela (bairro) no Recife que se estende na experiência de Jaboatão, eu ultrapasso o quilômetro da casa onde eu morava. E não é possível ampliar muito a geografia sem se deixar tocar pela cultura e pela história. De maneira que eu fui tocado nessa ampliação da geografia em Jaboatão. Depois eu volto, termino o estudo no Recife, me faço professor de língua portuguesa...a experiência com a língua portuguesa foi marcante nos estudos que eu fiz naquela época quando eu li (fala de um título de livro mas está incompreensível) e não entendia muito… Depois o encontro com Elza que quase me pega pela mão e me traz para o campo da educação onde eu me sentia perfeitamente bem. O meu trabalho por exemplo, já com 24 pra 25 anos numa instituição que surge num desses momentos lúcidos da classe dominante brasileira, o SESI, que se cria no sentido de apascentar um pouco a consciência do trabalhador emergente. O SESI de Pernambuco se abre para mim como um campo de (...)
O SESI é um outro marco. Um organismo assistencialista evidentemente mas que me possibilita um reencontro com a classe trabalhadora. Eu havia encontrado os filhos da classe trabalhadora na minha infância e agora eu encontro os pais. E o SESI, em certo sentido, me radicaliza ao invés de me assistencializar. É exatamente do SESI a partir de 1946 que eu começo toda uma busca, toda uma pesquisa ao mesmo tempo no campo da prática, por exemplo trabalhando no campo da educação popular mesmo que não chamasse assim. De outro lado, foi um período de intensa preocupação reflexiva apoiado em leituras que me ajudavam nessa reflexão sobre a realidade brasileira. O SESI se apresenta para mim como um momento e um espaço de intenso aprendizado. As raízes mais profundas de tudo isso que se veio chamar depois de método Paulo Freire, uma designação que não me agrada muito, está lá. 
Depois vem minha participação direta no movimento de cultura popular do Recife, que se antecipou a outros tantos movimentos de cultura popular no Brasil. Todo desenvolvimento da minha prática, da minha reflexão se dá no corpo desse movimento, depois eu me estendo até a universidade e coordeno o serviço de extensão cultural. Depois vem a experiência de Angicos onde se testa pela primeira vez em grande escala o que se chamou de método de alfabetização, depois eu vou até o plano nacional com ministro Paulo de Tarso no governo João Goulart e vem o golpe de Estado. O golpe frustra toda uma geração, e eu sou afastado da minha atividade na universidade, preso. Me aposentam quando eu não tinha nem tempo de serviço nem doença, nem queria me aposentar. Fui aposentado sem consulta e hoje eu ganho até muito bem, 800 mil cruzeiros na aposentadoria na Universidade Federal de Pernambuco. Daí eu parto para o exílio e vem toda uma vida de andarilhagem que eu experimentei, nos quase 16 anos de exílio onde eu trabalhei, me aprofundei na prática e na reflexão primeiro no Chile, depois nos Estados Unidos, depois morando em Genebra na Suíça mas me estendendo pelo mundo afora. É exatamente durante o exílio que tento por no papel, em alguns livros, em alguns trabalhos, alguma coisa que me parecia poder ser a fundamentação teórica da prática que eu vinha vivendo neste tempo. Numa síntese incompleta e imperfeita, este sou eu mas sou, sobretudo, um brasileiro para quem a terra dos outros também é boa. Eu não acho que só presta o que é da gente… 
Eu não me enfermei, não adoeci por andar o mundo afora. Agora, é claro que eu jamais esqueci foi a minha raiz. Por isso o Brasil foi, nos meus tempos de exílio, sempre uma pre-ocupação. Para que ele pudesse ser uma pré-ocupação eu precisei me ocupar no tempo do exílio. E me ocupei nos espaços emprestados do exílio. Se eu não tivesse me ocupado no outro espaço eu não teria me preocupado com o Brasil. E aí seria o fim! No momento que foi possível, no chamado processo de abertura, a volta para o país, eu não hesitei, não contei até 10 e aqui estou desde 1980, tendo passado por aqui em 1979 para uma visita e em seguida voltei.

Pergunta:
Paulo, nesta sua apresentação você não conseguiu se desligar da sua própria história. Então, gostaria de acrescentar mais alguma coisa nesta sua apresentação desde sua infância, desde o Sesi até os dias atuais?

PAULO FREIRE
Sobre a minha formação, acrescentar um componente: como eu vim aprendendo no meu encontro com os grupos populares a respeitar a compreensão do mundo que os grupos populares estão tendo no momento em que o educador chega, por exemplo. E dentro dessa tentativa de compreensão que eu comecei a aprender com os grupos populares com os quais eu comecei a trabalhar muito moço eu incluiria a necessidade de entender as diferenças de classe do ponto de vista da linguagem. A maneira de compreender e explicar os fatos em que a gente se envolve. Muito cedo, nas minhas primeiras experiências como educador, percebi isso. De um lado eu comecei a entender que não era possível, trabalhando em educação popular com os grupos populares, que não era possível esquecer ou botar entre parênteses as aspirações do grupo popular, por exemplo, os fantasmas do grupo popular, as dúvidas, os sonhos, a sua forma de compreender-se em relação com o mundo objetivo e a sua maneira de expressar esta compreensão de si com o mundo que é a sua linguagem. Eu comecei muito cedo a entender que não era possível trabalhar com os grupos populares a não ser partindo deste universo da compreensão e da expressão que os grupos populares tivesse de si e do mundo. Por isso mesmo que eu estou dizendo que era para mim impossível trabalhar com eles como educador a não ser partindo da compreensão que estavam tendo, por isso mesmo eu disse ‘partindo da’, eu jamais pensei também que fosse correto ficar com os grupos populares ao nível da sua compreensão do mundo. É interessante… às vezes eu fico espantado quando eu ouço certa crítica, a mim insinuando que eu pretendo com o partir da compreensão, ficar nela. É incrível porque eu nunca pude compreender que partir significasse ficar. Quero dizer, você partir de algum lugar para alcançar outro. Partir é um verbo que implica, um verbo que envolve um movimento que tem um ponto de referência no deslocamento e um ponto de referência na chegada. Eu nunca disse ficar ao nível da compreensão popular mas jamais aceitei que fosse possível chegar a uma leitura mais rigorosa do real do mundo, uma compreensão mais concreta do mundo (que nós pensamos que é a mais concreta, mais objetiva) sem partir da leitura para mim também crítica do ponto de vista dos parâmetros do grupo popular que o grupo popular faz. Essa foi uma coisa eu poderia ter anexado à minha formação. Quero dizer, essa coisa eu ponho agora dentro de quem eu sou para mostrar que no fundo eu aprendi isso, e quem me ensinou isso foi exatamente a realidade na qual eu trabalhei com os grupos populares. É por causa desse aprendizado da obviedade que eu digo hoje que, se eu estou num lado de uma rua e penso por N razões de estar no outro lado, eu não posso fazer outra coisa senão atravessar a rua. Então eu saio do lado de cá e vou para o lado de lá. Eu só entendo o lá porque tem um cá, um aqui. Se não houvesse o aqui eu jamais entenderia o lá e vice versa. O que significa então é que ninguém chega lá partindo de lá, mas sempre partindo de um aqui. Um dos equívocos que cometemos os educadores enquanto políticos e os políticos enquanto educadores, as vezes os educadores cometem mais esse equívoco é não perceber que o aqui da gente é quase sempre o lá do educando. Então eu não posso arrancar o educando do seu aqui, trazê-lo ao meu aqui que é o lá dele. Por isso, para mim, um bom educador, uma boa educadora, tem que permanentemente experimentar a andarilhagem. A andarilhagem entre o seu aqui e o lá a que pretende ir e o aqui do grupo popular que tem no seu aqui o lá dele. O educador e a educadora que pensa concretamente, que pensa dialeticamente, dinamicamente, ele tem que estar para cá e para lá constantemente. E por isso que às vezes o sujeito pode cansar de andar tanto. Esse seria o outro ponto que tem a ver um pouco com a teoria da própria prática que eu acho se incorpora a minha própria biografia. Veja, eu não quero dar a impressão que essa coisa me pertence como exclusividade. Não! eu sou um entre um sem número de educadores e educadoras que pensam e praticam isso.

Pergunta:
Tornando mais complexo, tornando mais complicadas as coisas que nós estamos vivendo no mundo. Como é que a gente complica por exemplo a relação social, por exemplo a minha relação com o favelado, por exemplo a minha relação com o entendimento do favelado, da luta dele. Como é que a gente torna complicado, sou seja, como é que a gente faz teoria?

PAULO FREIRE
Do ponto de vista da compreensão, do lado nossa, da própria ida nossa ao grupo popular... Da compreensão que nós temos ou que estamos tendo dos fatos por exemplo… tem que ver com os procedimentos que nós usamos para nos aproximar dos fatos e dos objetos no sentido de conhecê-los. Procedimentos que nos darão mais ou menos rigorosidade ou nos farão mais ou menos rigorosos na aproximação ao objeto, na tomada de distância do objeto e que, em função dessa maior ou menor rigorosidade de aproximação ao objeto nos darão maior ou menor exatidão no achado. Veja que a linguagem está mais complicada… (rs) é terrível. Você perguntou até porque que a gente complica... Mas eu acho que essa coisa está embutida na sua pergunta. A nossa ida aos grupos populares, você vê que a gente está usando aqui ida, significa que a gente está fazendo exatamente um movimento que vai de fora para dentro. A gente não está lá, a gente não é de lá. Isso tem que ver exatamente com a posição da classe em que a gente se situa, em que a gente nasceu. Para mim a questão fundamental é saber… e aí que entra agora questão da opção política que eu acho fundamental para compreender a prática do educador. É a opção dele ou dela e depois a coerência com essa opção explicitada na sua prática. Portanto, como é que eu sou coerente no momento em que opto pelas classes populares e marcho (caminho) até lá, como é que eu busco ser coerente e já no ato de marchar até lá. Como é que a minha marcha até lá já tem que ser uma marcha não de quem invade mas de quem pretende companheirar-se, de quem pretende virar companheiro. Quero dizer, a minha viagem até lá tem que ser coerente com a opção que me fez viajar até lá. Por isso mesmo que não posso invadir a área a que essa viagem me leva. Nós temos que compreender também, para ficar apenas nesse ângulo do procedimento em torno do objeto ou da compreensão do fato, nós temos que, na relação com os grupos populares nos perguntar (eu diria: procurar confirmar, constatar, averiguar) como é também que os grupos populares se aproximam dos fatos? Quero dizer: 
quais são os procedimentos que eles seguem, que eles usam para achar coisas?
Quais são as suas complicações?
No fundo isso: como é que se elabora esse saber?

Pergunta:
Paulo, tu falaste em acompanheirar-se. E isso que parece ser uma tônica importante do trabalho do educador com o grupo popular, do educador que não é do grupo popular. Talvez fosse importante a gente refletir um pouco o que significa esse acompanheirar-se uma vez que tu fala em situação de classe…. o que isso significa? em que consiste essa solidariedade em relação a esse objeto que está sendo discutido que vem a ser a transformação do mundo?

PAULO FREIRE
Muito bom… Amilcar Cabral que foi o grande líder na Guiné Bissau, mas sobretudo um líder africano… dificilmente não se encontraria Amilcar Cabral na história dos movimentos africanos de libertação independente de ter passado pelo país A, B ou C. Pelas cinco ex-colônias de Portugal não há dúvida que Amilcar portou com toda a luta, com a sua presença teórica, sua amorosidade, sua lucidez. Mas ele diz num de seus textos, quase vou repetir aqui textualmente… ele diz, analisando o que ele chamava de pequena burguesia nacional africana, ele diz que só há um caminho para a pequena burguesia nacional africana de um país A, B ou C, cumprir uma tarefa rigorosamente revolucionária, portanto a serviço do seu povo. Ele inclusive usa a palavra povo apesar da… para ele está muito claro quem é apesar do que possa haver de ambíguo no conceito. Para Amilcar, só há um caminho: é o do suicídio de classe por parte dos chamados intelectuais da pequena burguesia. Diz ele: eles terão que suicidar como classe para renascer como trabalhador revolucionário. Ora, eu não tenho dúvida nenhuma de que, simultaneamente a Amilcar sem porém ter lido Amilcar (eu li Amilcar depois de ter escrito a Pedagogia do Oprimido) mas na Pedagogia do Oprimido eu faço referência a isso que ele chamou de suicídio de classe, chamando de páscoa. Obviamente eu não tenho porque negar aí uma marca da minha formação cristã etc… mas eu desenvolvo até isso num certo momento da Pedagogia do Oprimido quando eu digo que nós temos que morrer enquanto classe dominante (não sei se eu usava classe dominante) para renascer. Isso é a páscoa como travessia etc. Essa experiência que Marx fez, que Guevara fez, que Fidel fez e continua fazendo, que os revolucionários verdadeiros que vieram da classe burguesa e pequeno burguesa tiveram que fazer…. essa experiência não é realmente fácil, é profundamente demandante. É no núcleo disso que eu situei, que eu usei o acompanheirar-se. Eu não estou dizendo que o intelectual deixe o seu bairro de classe média e vá morar na favela para acompanheirar-se. Eu acho que essa solidariedade não é necessariamente assim. Inclusive às vezes fazendo-se isso perde-se a possibilidade de uma maior atuação política. Mas o tornar-se companheiro do companheiro que está lá, para mim demanda, exige esse suicídio a que Cabral se referia. Essa superação, esse estar com a massa popular e não apenas para ela, e nunca sobre ela. Isso vai exigir então uma enorme coerência. Eu acho que um intelectual que não se esforça no sentido de compreender a linguagem metafórica popular, um intelectual que chega à área popular convencido de que o corpo individual e social da área popular é o corpo vazio de saber e que se desconhece que o fato mesmo de que as classes populares têm uma certa prática é suficiente para lhes dar uma certa sabedoria, e que esquecendo então como se gesta esta sabedoria e desrespeitando a validade dessa sabedoria pretende impor, em nome da salvação da classe popular que se dá pela revolução, a teoria para ele acabada da revolução, para mim (apesar de ter seus méritos porque há muito sacrifício também entre os que fazem isso) eu acho que os que fazem isso não chegaram a acompanheirar-se. Eu acho que a solidariedade não é que o intelectual de repente diga: eu sou igual aos outros. Não, ele tem uma função diferente, e uma função organizadora da cultura. O Gramsci está absolutamente certo. Mas o que não é possível é primeiro desconhecer que os grupos populares também são intelectuais. Eles podem não ter tarefas intelectuais. Então é neste sentido que eu colocava o acompanheirar-se.

Pergunta:
Continuando um pouco dentro dessa reflexão, quando se fala na relação educador-educando, esse acompanheirar-se vai acontecendo na medida em que ambos vão se reeducando. Quando se fala em termos de cultura popular, como tu poderia explicitar um pouco melhor esse aprender do intelectual que tu dizes ter uma papel e uma função inclusive organizativa. Acho essa questão importante porque a gente como educador vai até o meio popular, em que consiste o nosso aprendizado uma vez que a nossa tarefa é de organização?

PAULO FREIRE
Esse é um problema fundamental. É interessante observar como diante desta questão que tu colocas a gente pode ter, grosso modo, duas respostas falhas e falsas. Ambas com nome próprio. A primeira seria aquela segundo a qual a verdade organizativa, a verdade da sabedoria, a verdade das opções está exclusivamente nas bases populares. Olhe, quando a gente se põe diante desta indagação que tu fizeste, em uma posição excludente… eu acho que a gente pifa. Então veja: se eu olho… porque esta pergunta tua tem que ver com o papel do intelectual e o papel do grupo popular. Então, se eu me defino, porque a verdade toda está na base popular, coerentemente eu tenho que negar a mais mínima contribuição da teoria, eu tenho que negar a mais mínima, e veja que isso já é inviável… ninguém pode praticar sem teorizar, ninguém pode praticar sem que não haja na prática uma teoria embutida… ela pode não estar sendo vista, percebida. Mas se eu opto por isso, se eu me inclino para esta posição do reforço, da ênfase, da exclusividade da base popular, eu nego a teoria acadêmica por exemplo; eu digo:
- não tenho nada que ver com a academia, a academia é toda ela uma maluquice, um blablablá. 
Eu nego um intelectual como o professor Roberto Romano por exemplo… Eu diria, se a minha perspectiva é essa da base, num encontro ou num seminário de fim de semana para discutir a prática da educação popular, eu não posso admitir a presença do professor Gadotti, nem do professor Romano porque eles não têm nada o que fazer, nada a dizer, são excelentes professores lá na universidade. Eu admito aqui o Brandão porque além de ser um excelente antropólogo e professor da unicamp, um excelente intelectual, ele também vez por outra se dá às intimidades com os brasileiros então este eu aceito. Veja que essa posição é absolutamente falsa, absolutamente errada. Essa posição é a que nega o papel da reflexão teórica… eu não tenho dúvida que o professor Romano sem ter ido a favela pode dar uma excelente contribuição a um grupo de educadores populares que o apresentem um problema teórico e sobre o qual ele pense e reflete. O que pode haver é uma dificuldade do professor Romano é de traduzir. Dificuldade que nós temos e que começamos a diminuir quando vocês, por exemplo, sendo bons intelectuais se metem na área popular. Então a dificuldade do Romano poderia ser de traduzir mais popularmente certos conceitos que explicitam uma aproximação rigorosa ao objeto. Mas não pode é negar a contribuição que ele pode dar. Então essa seria a primeira possibilidade de um enorme equívoco.
A segunda é a de negar a validade de tudo o que se faz na área popular, a de negar a validade e a importância do senso comum. A segunda seria a dicotomia, a negação do senso comum e a única aceitação da rigorosidade acadêmica. Então, essa postura… enquanto a primeira é uma postura basista que conduz a um certo espontaneísmo, um certo populismo e que distorce a prática popular, a segunda é elitista. Ambas são autoritárias no meu entender. Um autoritarismo elitista do lado de certos teóricos que terminam sendo mals teóricos, principalmente porque cortam, porque não descobrem que a teoria é histórica e por isso tem historicidade… a teoria não é um à priori do mundo, um à priori da história, não: ela se dá na história, ela se dá na medida em que o ser humano primeiro praticou o mundo, primeiro alterou e cambiou o mundo. E então no transformar o mundo vem embutida uma certa explicação que ilumina o próprio ato. Então eu acho que o grande problema da gente como intelectual que adere a transformação radical da sociedade é saber até que ponto, na nossa caminhada, nós vivemos a experiência da coerência. De um lado negando, fugindo ao perigo e à tentação das explicações e das práticas basistas; do outro lado, de como correr também para longe das tentações elitistas. Então, para concluir a tua pergunta e de certa maneira bater um pouco no que Adriano colocava antes, eu acho…. e nisso Gramsci também, nisso que eu vou dizer, ele é muito claro…. no fundo eu acho que o que a gente teria que fazer era juntar à sensibilidade popular diante do concreto, a nossa capacidade de apreensão crítica do concreto. Eu acho que, nem a sensibilidade só (que é tipicamente popular) explica o fato, e a tentativa de compreensão do fato a nível de apreensão crítica que negue a sensibilidade… eu diria agora: a criticidade que não se molha da sensibilidade, para mim distorce o seu achado. Eu acho que um dos trabalhos nossos, exatamente o de como viver essa tensão permanente entre o conhecimento que fica ao nível da sensibilidade do fato que é preponderantemente o que se dá na área popular, que oferece (eu penso que é), que explica dar vez que seja…. Quero dizer: como conciliar, como viver a tensão entre esse tipo de conhecimento que para mais ou menos ao nível da sensibilidade para alcançar o conhecimento que, sendo histórico, nos entrega as razões de ser atuais pelo menos do fato.

Tereza: Seria como se o intelectual tivesse que colocar sua teoria em risco?

PAULO FREIRE
Ótima pergunta, obrigado.
Eu diria mais o seguinte: eu acho que não há criatividade sem risco, nem há desenvolvimento intelectual sem risco. Para mim uma das coisas terríveis da educação que nós estamos vivendo no Brasil é que ela vem sendo sobretudo uma educação da resposta e não uma educação da pergunta, da pergunta fundamental. Eu acho que para uma filósofa essa coisa bate muito. A impressão que eu tenho é que nós estamos entrando nas salas com respostas cujas perguntas fundamentais se perderam no tempo, e a gente nem sabe quais foram elas mas a gente chega dá as respostas ao educando. E o educando pensa: eu nem perguntei. E essa ação da resposta castra a curiosidade necessária do educando que teria que se expressar na pergunta. Agora, veja: o ato de perguntar que faz parte fundamentalmente do ato de conhecer não pode ser assumido sem risco. Pra mim não é possível conhecer sem arriscar-se.

Adriano.
Uma parte da nossa tradição universitária faz com que a gente coloque teoria e prática lado a lado e separadas às vezes. É muito comum a gente ouvir na universidade: se aprende para poder aplicar depois. Você vai, estuda e vem aqui aplicar. Pelo o que tu está dizendo, eu estou vendo o explodir do político, o emergir da política. Quando a gente desvela ciência naquilo que fazemos, e estou supondo fazendo como os intelectuais comprometidos com os grupos populares... Então quando a gente desvela, garimpa a ciência dentro daquilo que fazemos, (por isso eu chamei de explosão) a gente está estudando as decorrências políticas, daí emerge o político, porque a gente vai ver que aquilo que fizemos está grávido de conceito e tem repercussões que, uma vez faladas, são maiores do que a simples enunciação. Porque desvelar supõe, como tu dizias há tempos já, decodificação, e decodificação é o ato político porque supõe explicitada a relação.

Quero acrescentar ao Adriano… você poderia, ao narrar alguma experiência de educação, explicitar ou falar um pouco mais daquilo que a gente vê acontecer sempre quando as pessoas, os educadores, as educadoras tentam vivenciar essa educação. Em grupos populares, em educação popular, mesmo quando você fala… e hoje a gente vive, por exemplo, muito forte a ideia de consciência do grupo…. a criatividade fica muito forte. O político é muito presente. E o gostar, o interessar, esse conhecer esse mundo ou trabalhar nesse mundo com muito entusiasmo, humor e alegria. Não sei se relaciona com a sua vida… você poderia explicitar um pouco isso narrando alguma prática concreta sua.

PAULO FREIRE
Eu faria uma contraproposta. Como estamos numa reunião muito informal em que a gente espera ser útil ou criar um produto que possa ser útil depois... Eu entendi perfeitamente a tua questão e eu teria alguma coisa pra dizer como eu vejo a questão. Mas quem sabe posteriormente, mesmo que pela própria natureza desta reunião, eu deva ser em certos momentos uma espécie de centro das perguntas mas talvez fosse interessante se alguém aqui… coincidentemente você me fez algumas referências sobre isso antes de começarmos essa conversa aqui. Talvez fosse interessante que alguém aqui, vocês que tem muita experiência, vocês que tem vivido isso, dissessem como vocês têm experimentado essa posição, essa atitude de grupos populares que participam de um trabalho educativo, que parte deles e não de nós. E eu digo depois como eu vejo essa questão…

Para para trocar a fita, encerra esta gravação.

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Participaram da entrevista:
- Zilda Santesso, orientação do serviço de apoio ao estudante na Unicamp. Tem trabalho popular num dos bairros da periferia de Campinas
- Debora Mazza, assessora da secretaria de promoção social da prefeitura de campinas para assuntos relacionados com Educação. Mestranda em ciências sociais aplicadas a educação na unicamp
- Gina, orientadora educacional no serviço de apoio ao estudante. Trabalha também num bairro periférico de Campinas
- Adriano, educador. Assessorando dois trabalhos em educação popular, acompanha o trabalho do Paulo na Unicamp.
- Elisabete, trabalha na área da periferia de Campinas.
- Maria Tereza Papaleu, de Porto Alegre. Como educadora no ensino secundário e um trabalho de periferia em Canoas. Dentre suas paixões estão a filosofia e a educação.

Bate forte o tambor


Amazonas é o maior estado brasileiro em extensão territorial. Sua capital é Manaus. Parintins é a segunda cidade mais populosa do estado. É mundialmente conhecida pelo Festival Folclórico de Parintins.

Bate forte o tambor / Que eu quero é tic tic tic tic tac / É nesta dança que meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar / É nesta dança que meu boi balança / E o povão de fora vem para brincar...

Toada de Boi é tradição que traz muita gente para a festa de Parintins. Não foi o caso de nosso personagem. Ele não foi ao Amazonas para a festa de Parintins. Ele carregava a festa dentro de si. Por muito tempo guardou no peito um desejo incontido de conhecer a região Norte do Brasil. Esse desejo foi, durante os anos de espera, se materializando em leituras, estudos, conversas com toda a gente que trouxesse elementos, histórias, experiências amazônicas. Tinha especial interesse pela floresta e seus mistérios, pelos rios em sua imensidão de água, pela gente da floresta e pelos povos indígenas. Pela geografia enfim. Desconfiava que o suposto des-envolvimento do Brasil, marcadamente econômico e supostamente social seriam, por assim dizer, um grande equívoco. Porque a exploração desenfreada e gananciosa dos recursos naturais produzem um modo de viver “sem vida”, desvitalizam, agridem a Mãe Terra, esse frágil planeta azul. Geram destruição: poluem as águas e o ar, envenenam o solo. Ele queria mesmo é comer peixe de rio, fresco, que nada rio acima e rio abaixo procurando comida. Ele queria comer açaí do pé, tomar suco da fruta. Estava cansado da gastronomia dos congelados, da proteína criada em confinamento e à base de ração de soja, dos sucos de polpa ou de caixinha.

As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar / As barrancas de terras caídas / Faz barrento o nosso rio mar
De Manaus partiu para o interior. Pegou a primeira “estrada”, no caso o Rio Negro já no contato com o Solimões. Primeira grande descoberta: a diferença gritante de coloração. Não se conteve, mergulhou. Precisava sentir com o corpo inteiro aquilo que conhecia pelos livros. Percebeu a diferença de temperatura, de densidade e se certificou que ambos não se misturam. As águas do Negro e do Solimões fluem lado a lado por quilômetros. Na esquina do Rio Amazonas com o Madeira, virou à direita e durante horas olhou, do barco, as barrancas de terra caída, a floresta, as casas em palafitas e canoas atracadas, gente roçando mandioca.

Amazonas rio da minha vida / Imagem tão linda / Que meu Deus criou / Fez o céu a mata e a terra / Uniu os caboclos / Construiu o amor
É como se devorasse tudo com a boca, os olhos, os sentidos, o corpo enfim. Sentia a exuberância de vida que pulsava nas águas e na floresta. Sobretudo a gente do interior do estado. Gente simples, gente humilde, gente boa. Que sabe esperar, sabe receber. E que ensina nosso personagem que o envolvimento é o caminho para que a vida seja mais viva. Porque no limite, principalmente em tempo de pandemia, o que temos de verdade é uns aos outros. E bate forte o tambor.

Tic tic tac é uma toada de boi composta pelo pescador Braulino Lima.



publicado em 23 de março de 2020

Escolarizando o mundo - (transcrição)


Documentário:       Escolarizando o Mundo
EUA, Índia, 2010, 65 min. - Direção: Carol Black
Ladakh índia
Texto das legendas, tradução dos diálogos no documentário.



“A minha filha mais nova se mudou para cidade para frequentar a escola. A mais velha também se foi com o seu marido para mandar seus filhos para a escola em Leh. Eu fico aqui sozinha para cuidar da casa... Regar as plantações, cuidar das vacas... Não é como era antes. Estão todos ‘educados’ agora. Então eles não ficam aqui. Era mais feliz quando estávamos todos aqui juntos... Mas eles dizem que temos que mandá-los para a escola”.

Uma pintura de 1872, chamada “Progresso Americano” mostra uma mulher branca flutuando sobre as planícies do oeste norte-americano. Colonos brancos a seguem... Enquanto índios animais selvagens fogem. Em sua testa ela veste a estrela do império. Em sua mão direita ela traz um livro escolar. Conforme os Estados Unidos toma o oeste, milhares de crianças nativas são retiradas à força de suas famílias e enviadas para internatos administrados pelo governo. O objetivo é evidente: é destruir o seu modo de vida.

“Para civilizar os índios... Insira-os em nossa civilização e quando nós os tivermos nela... Segure-os lá até que estejam completamente imersos.”
– General Richard Pratt, fundador da Escola Indígena da Carlisle.

“Deixe tudo que for indígena dentro de você morrer.”
- Discurso de inauguração da Escola Indígena de Carlisle.

Na Índia, os ingleses também estão escolarizando uma nação.
“Nós devemos no momento fazer o nosso melhor para formar... Uma classe de pessoas indianas de sangue e cor... mas inglesas em gosto, em opiniões, em moral, em intelecto.”
- Lorde Macaulay em “Minuta sobre Educação Indiana.”

Os próximos a serem educados são os cubanos e os filipinos. O exército americano invade as Filipinas; Mais de 500.000 civis são mortos. Um exército de professores é enviado para educar os sobreviventes. Um desenho do período mostra um homem branco carregando uma figura de pele escura para uma escola. Com o titulo: “O fardo do Homem Branco”. “A bandeira americana não foi fincada em solo estrangeiro para adquirir mais território... mas sim para o bem da humanidade.”

ESCOLARIZANDO O MUNDO O ÚLTIMO FARDO DO HOMEM BRANCO

Tradicionalmente nós criamos nossas crianças de acordo com os ensinamentos de Buda. Mas agora, com o desenvolvimento, todos mandam suas crianças para a escola... E os antigos valores de bondade e compaixão estão começando a declinar. Agora as pessoas estão pensando: “eu tenho que ser um médico ou um engenheiro.” E as formas tradicionais de compaixão, bondade, e ajuda estão lentamente desaparecendo. Através de nossa “miopia cultural” achamos que educamos nossas crianças, enviamos nossas crianças para escola, nós temos uma forma de enculturar crianças em nossa sociedade, que é a educação. E povos que não seguem aqueles mesmo padrões de educação, de alguma forma, não educam seus filhos. E com certeza, isto é um absurdo.
Antes da escolarização moderna, nossa educação focava ensinamentos espirituais... Mas agora a ênfase é no sucesso material. Pessoas vão a escola para que possam ganhar muito dinheiro, ter uma grande casa, dirigir um bom carro... Toda ideia de aprendizagem foi transformada para significar: “Como eu posso ganhar muito dinheiro?”

Hoje, a escolarização ocidental é responsável por introduzir uma monocultura humana ao redor do mundo todo. Praticamente um mesmo currículo está sendo ensinado e está treinando pessoas para empregos muito escassos. Mas para empregos em uma cultura urbana e de consumo. A diversidade de cultura, assim como a diversidade de indivíduos únicos, está sendo destruída dessa forma.

Os antigos missionários

(Escola Missionária Moráviana Leh)
Essa escola que foi estabelecida, chamada Escola Missionária Moráviana era secular no sentido de serem dados alguns ensinamentos cristãos. Como parte da propagação evangélica feita pelos Morávianos. (Reverendo Elijah Gergen, Diretor da Escola Missionária Moráviana).

O diretor: A Escola Missionária Moráviana foi fundada por missionários alemães. É considerada uma das melhores escolas de Ladakh.  Em 1887, quando a escola abriu pela primeira vez, haviam certas percepções que eram erradas, por exemplo... Uma escola iniciada por missionários... Em uma esquina... Deve ter algum interesse por trás. De conversão. De ensinamentos que estão em conflito com os ensinamentos da sociedade tradicional, em conflito com a religião.
As crianças: “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino, Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu...”. 
O diretor: Me disseram que as crianças tinham que vir a força para a escola, e as pessoas simplesmente não mandavam as crianças para escola.
As crianças: “E perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...”
O diretor: Eu acredito firmemente que a existência de um sistema de educação secular e uma sociedade cosmopolita não deveria ser o custo de perder as características culturais de Ladakh.
As crianças: “E não nos deixe cair em tentação, mas livrai-nos do mal, pois Teu é o reino, e o poder, e a glória para sempre. Amém”.
O diretor: Se você perdeu sua história você perdeu tudo.

Uma cultura tradicional
É um ecossistema, uma rede complexa de relações entre humanos e a terra onde eles vivem. Cada elemento está interligada com outros e como qualquer ecossistema mudanças repentinas tem efeitos imprevisíveis.
“Nós somos a juventude da nação”...........

Seis mil vozes
“A grande lição da antropologia é a ideia de que o mundo no qual você nasceu não existe em um senso absoluto. É apenas um modelo de realidade. A consequência de um conjunto particular de escolhas de adaptação que seus antepassados fizeram, de alguma forma com sucesso, há muitas gerações atrás. E as outras pessoas do mundo não são tentativas falhas de ser você. Ou no nosso caso, tentativas falhas de modernidade. Elas são por definição, facetas únicas de imaginação humana. E quando perguntadas sobre o significado de ser-humano, elas respondem com seis mil vozes diferentes. E essas vozes coletivamente tornam-se o repertório humano para lidar com os desafios que irão nos confrontar nos próximos milênios. Nós sempre tivemos essa ideia de que nossa sociedade não é uma cultura, mas sim o mundo real. E essas outras culturas de fora, elas sim são as culturas. Esse tipo de miopia cultural que realmente não podemos mais ter. E nós não somos a real inexorável onda da história. Nós somos apenas outro conjunto de possibilidades. Nós somos apenas outra realidade cultural com escolhas que nós fizemos. E é por isso que todo o aspecto de criar uma criança e educa-la nos responsabiliza em olhar os modelos de enculturação, de iniciação, de trazer as crianças para o universo adulto que outras sociedades celebraram e desenvolveram ao longo de milhares de anos de experiência”.
Wade Davis Etnobotânico, explorador residente National Geographic Society.

“Não há duvidas de que se nós olharmos honestamente as formas tradicionais de educação e compará-las ao sistema de educação atual veremos que as formas tradicionais de conhecimento promoveram sustentabilidade. Todas essas culturas não foram perfeitas. Mas elas conheciam seu próprio e específico clima, solo, água, e elas conseguiram sobreviver independentemente, responsáveis por suas próprias vidas, por geração após geração Na economia moderna e com o sistema educacional moderno, as crianças não aprendem nada daquilo, mas ao invés disso elas aprendem basicamente como usar produtos corporativos em uma cultura urbana de consumo. Então uma vez educadas em escolas modernas, elas literalmente não sambem como sobreviver em seu próprio meio-ambiente.”
Helena Norberge-Hodge - Sociedade Internacional pela Ecologia e pela Cultura

Os que saem para ir para a escola não sabem fazer nada aqui. Eles não sabem como levar os animais para pastar, como cuidar das plantações. Eles não conseguem fazer nada.

“Educação não é simplesmente a transmissão de informação, é por definição a transmissão, e de fato a enculturação, ou poderia ser dito mais duramente, a doutrinação de uma criança para uma certa forma de saber, de aprender, de ser. E novamente, quando nós projetamos nossas noções de que educação é ou o que uma forma de ser é em outros continentes na vida de outras pessoas, nós esquecemos que nós estamos projetando apenas algo que nós mesmos inventamos. E uma das coisas que vejo no meu trabalho é que diferentes formas de saber, diferentes formas de ser e diferentes formas de aprender, realmente criam diferentes seres humanos. Se você foi criado no Colorado para acreditar que uma montanha é uma pilha inerte de pedras esperando para ser minada, você terá uma relação muito diferente com aquela montanha do que uma criança do sul do Peru que acredita piamente que uma montanha é um espírito Apu, uma deidade protetora, que irá direcionar seu destino ao longo da vida. Mas a observação interessante não é nem que a montanha seja de fato um espírito ou apenas uma pilha de terra. A observação interessante é como o sistema de educação que define o que a montanha é, cria um diferente ser humano com uma diferente relação com a terra. Eu fui criado nas florestas da Colúmbia Britânica a acreditar que aquelas florestas existiam para ser cortadas. Aquela foi a base ideológica da ciência florestal que me foi ensinada na escola e que eu pratiquei como madeireiro nas florestas. Foi baseado na ideia que nós tínhamos que eliminar todo o crescimento mais antigo para conseguir o crescimento de plantações saudáveis, porque afinal, o incremento adicional de celulose seria maior em uma planta... Enfim isso foi toda uma construção. Mas de maneira drástica, aquele sistema de crenças me fez um ser humano muito diferente com uma relação muito diferente com a floresta do que meus amigos das comunidades nativas que acreditavam que aquela floresta era a moradia de Hokuk e o beiral do paraíso. E por causa da minha ideologia e da minha educação, aquelas florestas não existem mais.”
Wade Davis Etnobotânico, explorador residente National Geographic Society.


“A escola forçosamente arranca as crianças de um mundo repleto de artesanatos de Deus... é um mero método de disciplina que se recusa a levar em consideração o indivíduo... uma fábrica para gerar resultados uniformes. Eu não fui uma criança da direção escolar: o Ministério da Educação não foi consultado quando eu nasci neste mundo.”
Rabindranath Tagore, Vencedor do Prêmio Nobel da Poesia de 1927.


Filhos de Macaulay
“Uma educação geral pelo Estado é uma mera invenção para modelar as pessoas para serem exatamente umas iguais às outras: e como o molde em que são plasmadas é o que agrada a força dominante no governo.. ele estabelece um despotismo sobre a mente que, por uma tendência natural, conduz a um despotismo sobre o corpo”.
John Stuart Mill, “Sobre a Liberdade”.

“Eu acho que a maneira pela qual a educação ocidental tem crescido ao longo dos últimos séculos, especialmente com o crescimento da industrialização, foi basicamente, não para criar seres humanos totalmente preparados para lidar com a vida e todos os problemas dela, cidadãos independentes capazes de exercitar suas decisões e viver suas responsabilidades em comunidade, mas sim elementos para alimentar um sistema de produção industrial. Eles eram produtos, com conhecimento parcial. Nós migramos da sabedoria para o conhecimento, e agora estamos migrando do conhecimento para a informação; E essa informação é tão parcial, que estamos criando seres humanos incompletos”.

“Se olharmos para trás, para o inicio da chamada ‘educação’, veremos que o plano era muito claro. Havia uma elite que queria treinar pessoas para servir suas necessidades, para essencialmente criar uma economia extrativista que servisse a poucos ao custo de muitos. Há muita literatura explícita sobre isso: era muito claro que a educação estava lá para treinar uma classe de pessoas para servir as necessidades da elite. Quando Macaulay veio para a Índia...
...Não sei quantos de vocês sabem, mas Macaulay criou o que é chamado de ‘crianças de Macaulay’. Ele dizia que as ‘crianças de Macaulay’ seriam marrons por fora mas brancos por dentro. E que eles saberiam basicamente uma coisa só: como comandariam a Índia como se eles mesmos fossem Europeus.
Vandana Shiva Navdanya
- Fundação de Pesquisa pela Ciência, Tecnologia e Ecologia.

Se você voltar aos anos 60 e analisar a literatura sobre a modernização, fica bem claro que o idioma local, a tradição local e os costumes locais são uma barreira para a modernização. E para comunidades progredirem nos tipos de estágios de desenvolvimento,essas coisas precisam ser eliminadas.
Manish Jain Shikshantar
- Instituto dos Povos para Repensar a Educação e o Desenvolvimento

99% de todas as atividades que acontecem sob o rótulo de ‘educação’ vem desse plano bem específico que se estendeu além da expansão colonial europeia ao redor do mundo. E agora, em diferentes países do chamado Terceiro Mundo, o plano fundamental básico é o mesmo: puxar as pessoas para a dependência de uma economia moderna e centralizada. E empurrá-las para fora de suas independências, de suas próprias culturas e auto-respeito.

“A modernização... Segue um ritmo limitado dentro de uma sociedade ainda caracterizada pelos métodos tradicionais de baixa produtividade e pela antiga estrutura social e valores...”
“A maioria da população deve estar preparada para aceitar o treinamento para um sistema econômico... Que cada vez mais confia o indivíduo em grandes disciplinadas organizações que a designa tarefas limitadas e especializadas.”
Walt Rostow.
Os estágios do Crescimento Econômico – 1960

“Nossas escolas são, em certo sentido, fábricas, nas quais as matérias primas – crianças - são moldadas e modeladas em produtos.
“As especificações para a produção vêm das demandas da civilização do século 20, e é o dever da escola construir seus alunos de acordo com as especificações dadas.”
Ellwood P. Cubberly, Dean
Universidade de Educação de Stanford 1898.

“Em nossos sonhos, as pessoas se rendem com perfeita docilidade às nossas mãos modeladoras”.
John D Rockefeller
Bancada de Educação Geral 1906.


Educação para todos
Na verdade, há um grande programa global que está acontecendo neste momento, chamado “Educação para Todos”. E todas as pessoas que eu conheci que estão associadas a isso, basicamente não questionam o plano ou a intenção desse programa, o que é algo bem perturbador. É um programa sancionado por todos os governos do mundo, é um programa que o Banco Mundial e a ONU apoiam, é um programa que grandes corporações, como McDonalds e tantas outras também estão por trás. E o plano do programa é colocar toda criança na escola. A alegação é de que, indo para a escola, comunidades serão capazes de se desenvolver e serão capazes de fazer parte da sociedade de massa. Mas acho que temos que questionar o que significa tornar-se parte da sociedade de massa hoje. E isso para mim está muito mais ligado a um claro plano de tornar-se parte da economia global, e trocar a economia local, a cultura local e os recursos locais, tanto pessoais quanto coletivos, para estar a serviço da economia global.
Então encontrará primeiros ministros e presidentes de países, constantemente dizendo: “Nós temos que mudar nosso sistema de educação para nos tornarmos mais competitivos na economia global”. Isso quer dizer que terão que treinar os seus jovens para que eles satisfaçam as necessidades de corporações gigantes e móveis.

Os novos missionários
“A iniciativa da ‘Educação para Todos’ é uma tentativa de reparar o que foi visto como um sério desequilíbrio no financiamento para educação primária. A intenção é realmente colocar toda criança na escola.
A missão anunciada pelo Banco Mundial é de ‘reduzir a pobreza global’.
Eu acho que vemos a educação como crucial. É uma condição absolutamente necessária para a continuação da redução de pobreza.
Mas muito vieram a questionar aos interesses de quem o Banco realmente serve.
Agora, a demanda por educação não está vindo apenas de pessoas como o Banco Mundial e pessoas de fora, está vindo de homens de negócios, que estão descobrindo que eles não conseguem desenvolver suas fábricas, porque eles não conseguem desenvolver seus negócios, porque há uma escassez de trabalhadores qualificados.
Mas quem realmente se beneficia quando toda criança do planeta é educada da mesma forma?
Temos que ser muito cuidadosos para não sermos paternalistas com as chamadas culturas tradicionais. Nós podemos ajudá-las e certamente não arruinar ou tentar estragar suas próprias culturas. Mas por outro lado, eu acho que nós deveríamos ser cuidadosos ao tentar preservar suas culturas em um tipo de ‘congelamento’. Se eles não querem isso, nós deveríamos estar lá para ajudá-los.
“A bandeira americana não foi fincada em solo estrangeiro para adquirir mais território... Mas sim para o bem da humanidade”.
Se visitar uma área tribal na Índia e fizer perguntas... Você senta com um grupo de mulheres, e diz a elas:
- Por que a educação é importante para suas crianças?
Elas olham para você como se você fosse completamente estúpido: “é claro que é importante para nossas crianças.”
Então você diz: Por quê? Me diz o porquê ?
- “Porque nós não queremos que elas vivam como nós vivemos.”
Julian Schweitzer
- Banco mundial, Diretor de desenvolvimento humano para região Sul da Ásia.

Então viva como nós vivemos.

Distúrbio de déficit de atenção.
16 milhões de crianças nos EUA sofrem de depressão e outros problemas emocionais;
1,6 milhões estão atualmente sob duas ou mais drogas psiquiátricas;
69 mil garotas entre 13 e 19 anos se autoflagelam regularmente;
78 crianças no EUA foram mortas ou machucadas em tiroteios em escola nos últimos oito anos;
120 mil tentaram cometer suicídio nos últimos 12 meses;
55,5% dos alunos de ensino médio dos EUA acreditam que o governo não deveria ser capaz de censurar jornais; 32,5% acreditam que o governo deveria censurar jornais; 12 % não sabem.
Alunos de escolas públicas americanas que NÃO CONSEGUIRAM FINALIZAR O ENSINO MÉDIO: Nova Orleans 46,6%; Detroit 78,3%; Dallas 53,7%; Pittsburgh 35,9%; Cidade de Nova Iorque 61,1%; Cidade de Kansas 54,3%; Atlanta 54%; Chicago 47,8%; Los Angeles 55,8%;
13.247.845 crianças nos EUA vivem na pobreza.
“Enquanto a massa da população não é educada, é iletrada, eles... se manterão atrasados, e seguirão superstições velhas e religiosas”.
- Livro de economia de Ladakhi

Atrasados e primitivos
“Enquanto a maioria das pessoas é iletrada e atrasada, seus padrões de vida são baixos quando comparados com seus semelhantes que estão bem educados e avançados”.
– Livro de economia de Ladakhi.

Quando a educação ocidental moderna é introduzida nas culturas tradicionais ao redor do mundo, ela cria um imenso sentimento de inferioridade. Os livros escolares falam sobre uma cultura ocidental urbana como sendo o progresso, como se fosse a única forma de existência. E o resultado final é que as crianças acabam sentindo que sua própria cultura, seu idioma e sua maneira de fazer as coisas são atrasados, primitivos e vergonhosos.
Eu ouvi da minha avó que antes do desenvolvimento, as mulheres não costumavam ir à escola, elas apenas ficavam em casa... Iam com as vacas para as montanhas. Elas voltavam à noite e faziam comidas e outras coisas. Uma das coisas que eu vi que a educação realmente criou foi o senso de inferioridade em muitos níveis. Um em nível dos idosos. Eu visitei muitas vilas querendo aprender com os idosos todos os tipos de práticas tradicionais e a primeira resposta é sempre: ‘Eu não sei nada, vá fale com meu filho. Ele esta na décima série. Eu não sei nada, eu não entendo nada’. Na minha vida, isso foi provavelmente uma das coisas mais dolorosas que eu ouvi repetidamente nas vilas.
No passado, as mulheres costumavam gostar e respeitar o trabalho na terra. Agora como o desenvolvimento, elas pensam que educação é apenas ler e escrever. Elas dizem ‘Eu não sou educada, eu não sei nada’.
Um filho se mudou com suas crianças para Leh, o mais novo está em Jammu, outro está em Délhi. Agora na minha casa é só meu marido e eu. Uma vez que os filhos vão para a escola, eles não podem mais ficar aqui. Eles precisam ganhar dinheiro. Eu seria mais feliz se eles estivessem aqui mas eles precisam ganhar dinheiro.

Pobreza
Hoje existe uma crença que é através da educação moderna que vamos tirar as pessoas da pobreza. Mas se prestarmos atenção no que está acontecendo, veremos que foi advento do colonialismo, desenvolvimento, e a ideia de “ajuda” que criou a pobreza. Nos sistemas e economias pré-modernas, ou pré-desenvolvimento, você não encontrará o tipo de pobreza que se encontra nas favelas de Calcutá, Cidade do México e Pequim. Hoje, nas maiorias das vilas tradicionais seja na China, Índia ou África, as pessoas são levadas a acreditar que o futuro é essa cultura moderna, urbana e consumista. E elas estão se endividando, vendendo suas casas para dar educação aos seus filhos. A grande esperança é que elas vão conseguir um bom emprego como engenheiros ou médicos na economia moderna. Menos de 10% estão obtendo sucesso. 90% acabam como fracassados. Elas talvez conseguirão um emprego como faxineiras ou mecânicos de carro, mas não é a vida gloriosa que as pessoas esperavam.
Falas de alguns jovens:
As maiorias dos alunos de Ladakh não se dão muito bem. De 10, 2 se darão bem, mais do que bem. Mas aproximadamente oito não serão melhores.
Muitos alunos não estão conseguindo trabalho depois que se formam, e eles ficam depressivos, frustrados e revoltados.
Uma das coisas que é mais perturbadora para mim, em termos de justiça e moralidade, é que você tem uma instituição presente no mundo todo, que está classificando milhões e milhões de pessoas inocentes como fracassadas. Pessoas muito brilhantes, maravilhosas, e talentosas estão sempre se apresentando pra mim na Índia como? ‘eu sou repetente da oitava série’ ou ‘eu sou repetente da décima série’... É assim que eles se apresentam. O que é incrível é que as pessoas que dizem estar preocupadas com justiça social não conseguem ver o gigantesco tipo de hierarquia e desigualdade social que é criada através da educação moderna. É incompreensível para mim como as pessoas não enxergam isso. Uma outra questão é em termos de perda da riqueza imaginativa e dos recursos culturais que as pessoas poderiam trazer, porque eu acho que aqueles que são classificados como fracassados, na verdade possuem uma variedade de capacidades de pensar de diferentes maneiras. E isto está sendo perdido e suprimido, e as pessoas que só conseguem pensar de maneira muito fragmentada e unidimensional, estas estão sendo recompensadas. Qualquer um que se diz preocupado com justiça social, precisa sentar e ter uma conversa séria sobre este assunto.

Eu venho da região central do Himalaia, que é chamada Garhwal. As mulheres de Garhwal trabalhavam arduamente para terem certeza de que seus filhos tivessem uma escolarização. Mas uma escolarização institucional do tipo que não ensina nada sobre a sua ecologia local, a sua cultura local, a sua economia local, ou sua habilidade de ser produtivo. Ela te ensina basicamente a ser um semi-alfabetizado para outro sistema, ao qual você não tem acesso, porque você não pertence à classe certa, ao privilégio certo, etc. Agora eu volto àquelas mesmas vilas e as mulheres dizem que o pior erro que elas cometeram foi pensar que aquele tipo de educação iria ajudar. Nós temos um ditado hindú: “É o cachorro do lavadeiro que não pertence nem ao lugar onde a lavação é feita, nem ao lar”. Elas são pessoas excluídas, e elas estão caindo pelas rachaduras de um mundo excludente.

Ajuda mental
É tão triste ver quantos ocidentais vem para culturas e economias remotas, relativamente intactas e sustentáveis, e se apaixonam pelo lugar. Eles querem ficar, querem voltar, eles adoram as pessoas, acham as pessoas incrivelmente felizes, incrivelmente generosas, incrivelmente prestativas. E então eles querem ajudar, desenvolver, trazendo a escolarização ocidental para ‘melhorar’ a vida dessas pessoas.

“Bem, meu nome é Heidi. Eu venho do sul da Alemanha, a Baviera. Como eu moro na Baviera eu sou boa em montanhismo e foi por esse motivo que eu quis ir ao Himalaia. Como eu era professora e estava ensinando ética anglo-germânica, que é um tipo de religião, ou estava interessada em escolas. E então acabei conhecendo a Escola Lamdon.”
(A escola Modelo de Lamdon é considerada uma das melhores escolas seculares privadas de Ladakh.)
“E eu aprendi tanto sobre as pessoas daqui, sobre suas crenças religiosas, sua mentalidade, o caminho de compaixão, tolerância que eu pensei: bem, eu preciso fazer algo por essa escola. Passo a passo eu fui tentando encontrar patrocinadores, levantar dinheiro... Por exemplo: eu tenho orgulho de por lá existir um albergue, um albergue para meninas, para cem alunas. E isso foi construído principalmente com o dinheiro que eu consegui levantar.”
(Graças a Heidi, centenas de Crianças de vilas de todas Ladakh podem deixar suas famílias e lares para a Escola de Lamdon.)
Na sala de aula, o professor diz: aqui está uma lista de razões possíveis para se usar um espelho. Primeiro para verificar a aparência, para verificar a aparência? Vocês fazem isso? Olhar para checar? E para ficar bonita. Para checar a aparência, sim? Você checa sua aparência. Você checa a aparência não só pra ver como você está, mas também como está vestida, ok? Certo? Como você está vestida. E então, para ficar bonita. Qual importante é isto? Vaidade, beleza, todos se importam com sua aparência, ok? Tipo como você se aparenta, sua aparência é importante.
(Heidi) Mesmo se eles ficam aqui por um ou dois anos e às vezes eles têm que voltar forçados por seus pais a trabalhar nos campos e cuidar das crianças mais novas, eles ganham alguma coisa para a vida deles. Alguns vão para as forças armadas. Então eles são bons comerciantes, eles abrem lojas e vendem todos aqueles colares, suéteres e essas coisas. Ou eles aprendem profissões especiais. E agora, principalmente, como eu sei e como eu espero, em computação. Então eles vão para Índia e tem uma boa chance. Então, eu acho que eles superaram a real pobreza aqui. E algumas pessoas dizem: ‘Bem, por que você não vai para o Congo ou algo assim?’, mas eu acho que eles ainda precisam de ajuda. Não é só jogá-los na água e deixá-los nadar. Eles precisam de tudo, de roupa a ajuda mental.”
“Se nós devemos adequar e treinar as crianças para o futuro, elas não podem ser deixadas como são. E, apesar dele mesmo, o nativo deve ser ajudado”.
“Você está no processo de ser doutrinado. Nós ainda não desenvolvemos um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação”.
“O que você está sendo ensinado aqui é um algema do atual preconceito e das escolhas dessa cultura em particular”.
“O menor olhar sobre a história mostrará quão impermanente elas devem ser” Doris Lessing - Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2007

Ligando os pontos
Quando eu vejo o número de pessoas realmente bem intencionadas que estão tentando ajudar e outras pessoas com um pacote de escolarização e ajuda, eu realmente acho que não há uma má intenção por trás disso. Eu acho que é puramente de coração e boa vontade em ajudar outras pessoas. Só que elas simplesmente não ligam os pontos. Elas normalmente não ficam tempo suficiente para realmente perceber o impacto geral. E elas simplesmente não vêem de forma abrangente suficiente.
Falas dos jovens:
“Eu estudei na Escola Missionária Moráviana que fica em Leh, eu acho ser a melhor escola de Ladakh.”
“No começo eu estudei na Escola Modelo de Lamdon, até a sexta série”.
“Eu fiz o ensino médio em Delhi mesmo. Eu estive em Delhi durante os últimos oito, nove anos”.
“Quando eu estava na idade em que fiz minha primeira aula. Eu me mudei pra cá. Eu me mudei para Mussoorie, depois para Dehradun e então para Delhi.”
“Eu não sei muito sobre minha cultura. Nós não temos muito conhecimento sobre a nossa tradição e tudo mais.”
“Basicamente, quando os estudantes vêm para Delhi para estudar, eles ficam expostos a um ambiente que é muito diferente de Ladakh. E eles tendem a esquecer a sua própria cultura. Às vezes eles nem sequer sabem falar o seu próprio idioma. Eles esquecem suas tradições. Eu acho que não é um bom sinal para Ladakh”.
“Ninguém fala Ladakhi fluentemente, que era o original antes.”
“Nós estamos aqui e seguimos a tradição global, nós estamos tentando competir com eles”.
“Nós só estamos atrás de dinheiro, dinheiro, dinheiro...”.

O inglês comanda o mundo
No ano em que você nasceu, haviam seis mil línguas faladas na Terra. Uma língua não é só gramática e vocabulário, uma língua é um lampejo do espírito humano. É um veículo pelo qual a alma de toda cultura vem ao mundo. Eu sempre digo que cada língua é como uma floresta nativa da mente, um ecossistema de pensamentos, uma bacia hidrográfica de possibilidades espirituais e sociais. Enquanto estamos sentados aqui metade daquelas línguas não estão sendo ensinado às crianças.

(Diretor da Escola Missionária Moráviana) Em algumas áreas nós somos muito rigorosos. Por exemplo: falar em inglês.
Fala de criança: “Minha escola é de currículo britânico, todas as crianças estão falando em inglês. E quando elas estão no playground também estão falando em inglês. Em classe também, em todos os lugares da escola temos que falar em inglês”.
(diretor) Exigimos que as crianças falem em inglês com os professores na classe e entre elas.
(Criança) “Se alguém falar outra língua, Ladakhi ou Hindú, o professor dá uma punição.” “O que acontece quando alguém é punido?” “Dinheiro. Sim, é uma multa em dinheiro, de 5 rúpias”
(diretor) Mas essa disciplina inculca um hábito de inglês. E inglês é uma língua que comanda o mundo hoje, seja o mundo virtual, internet, negócios, qualquer coisa... Você tem que aprender inglês na Índia.
(criança) “Quando vamos para outros países, temos que falar inglês. Se não falarmos inglês não poderemos ir a outros países. Falar inglês é muito bom, e quando eu me formar eu irei para outros países. (onde você pensa em estudar?) em Delhi. (sua mãe vai sentir sua falta quando você mudar para Delhi?) Sim, sentirei saudades da minha mãe.”
(outro jovem) “Sinto saudade da minha cidade, de verdade. E dos meus pais. Porque eu estou aqui, não aqui exatamente, mas fora da minha cidade há... 10 ou 12 anos. E sobre um lugar chamado Ladakh... você viu, é paradisíaco, realmente é um paraíso. Sinto muita saudade de Ladakh, porque lar é lar, certo?”

Natureza + Humana
“O grande propósito da escola pode ser melhor realizado em lugares feios, escuros e sem ar... É para dominar o ser físico... para transcender a beleza da natureza... A escola deve desenvolver o poder de afastar-se do mundo exterior”
William Torrey Harris. Ministro da Educação dos EUA 1889 - 1906.

Uma das grandes tragédias da escolarização é como ela arrancou as pessoas da natureza e as trancou em salas durante 8 horas por dia. E eu acho que o profundo dano que está nos fazendo só será reconhecido gerações adiante. Então olharemos para trás e diremos: “Como pudemos ter feito esse tipo de coisa às pessoas? E pensar que criando prisões de concreto e trancando pessoas lá, e as dando livros que falam sobre natureza, é uma melhor forma de pensar sobre a vida do que realmente passar tempo na natureza.
(Professora na sala de aula com jovens) Porque isso é chamado – porque isso tem esse nome? Vocês podem me dizer? Vocês tem alguma ideia do porque chamamos isso por esse nome? Se soletra “xe-ró-fi-ta”. É xerófita. Por que chamamos por esse nome? Vegetação xerófita. O tipo de vegetação que temos aqui em Ladakh é xerófita. Agora, vocês podem citar por que razões chamamos esse tipo de vegetação xerófita? Alguém na sala?
Alguém? Alguém?
Nós temos chuvas pesadas aqui? Não. Nós temos pouca chuva aqui. Então por essa razão, nós, como havíamos discutido não temos um bom tipo de vegetação aqui. Não podemos esperar que tenhamos florestas, boas florestas, não podemos esperar que tenhamos uma grande vegetação aqui. Eu apenas queria acrescentar que com o distinto tipo de plantas, animais e meio-ambiente, o ser humano também está incluso no ecossistema. Entendem?  Agora como o ser humano está incluso? Porque dizemos que o ser humano é uma parte integral no ecossistema? Como vocês acham que os seres humanos estão envolvidos no ecossistema? Alguém da classe?
Alguém, Alguém?

“É, de fato, nada menos que um milagre... que os métodos modernos de instrução... ainda não estrangularam por completo a sagrada curiosidade da pesquisa; pois esta delicada plantinha, independente de estimulação... existe principalmente pela necessidade de liberdade”. Albert Einstein

“Educação... faz uma vala de corte reto de um livre e sinuoso riacho”. Henry David Thoreau.

(falas das indianas) Tradicionalmente, os pais ensinaram seus filhos a manter a água limpa. Nós aprendemos a nunca sujar as nascentes ou córregos... Já que as pessoas precisam de água limpa para beber, ou para fazer oferendas às divindades.
Tendo aprendido isso quando éramos bem jovens, permaneceu em nossas mentes para sempre. Agora, talvez seja o desenvolvimento, ou o progresso... Ou os pais que não estão dizendo boas coisas aos seus filhos, ou as crianças não os estão escutando. Em todo lugar as pessoas estão jogando coisas na água e poluindo todo meio ambiente á sua volta.
A terra é nossa verdadeira mãe. Esta terra é nosso banco, a terra é algo que podemos manter a salvo por gerações e gerações. Quando falamos de educação, precisamos passar nosso conhecimento sobre a terra e como plantar comida para nossas crianças. Muitas pessoas deixam Ladakh para estudar fora voltam e dizem: ”O que existem Ladakh? Não há nada aqui”. As pessoas dizem que os turistas e estrangeiros são sortudos, eles são tão ricos, e não precisam trabalhar duro. Mas na verdade, nós temos nossa própria terra... Nós temos nossas próprias casas... Nós temos nossa própria comida, tradições e cultura. Para onde o desenvolvimento levou as pessoas?

Muitas ciências
A coisa mais incrível, se você parar pra pensar, é que os biólogos finalmente provaram ser verdade o que os filósofos sempre sonharam que fosse verdade, que é o fato de que nós somos todos irmão e irmãs, somos todos, por definição, frutos da mesma árvore genética. Isso significa que todas as populações humanas, todas as culturas, em geral dividem a mesma capacidade mental, capacidade intelectual, acuidade mental, etc...
E isso quer dizer que, se um povo coloca seus gênios na inovação tecnológica, como tem sido a tradição no ocidente, ou, em contraste, no caso dos Budistas Tibetanos, em passar 2500 anos tentando entender a natureza da existência, no que chamamos sempre de uma ciência da mente. E por que usamos a palavra “ciência”? o que é ciência senão a busca da verdade? E o que é o Budismo senão a busca empírica da verdade? Como Matthieu Ricar, um monge tibetano e antigo biólogo molecular do instituto Pasteur de Paris, sempre diz: “A ciência ocidental é uma imensa resposta para minúsculas necessidades.” Nós passamos todas nossas vidas tentando ter certeza que viveremos para ter cem anos sem perder nossos dentes ou cabelo, e no Tibet as pessoas passam suas vidas tentando entender a natureza da existência. Ele diz que todos os nossos (ocidentais) outdoors propagandeiam com jovens crianças em roupas íntimas. Em seus (indianos) “outdoors”, que são muitas paredes, estão gravadas em pedras as orações para o bem-estar de todos os seres sencientes.

“A liberdade real virá quando nós nos libertarmos da dominação da educação ocidental, da cultura ocidental, do modo de vida ocidental”. Mahatma Gandhi.

Uma das coisas que sempre foi surpreendente para mim é o entendimento que as pessoas possuem de Gandhi. Por todo o mundo as pessoas afirmam ser grandes fãs de Gandhi, e se você realmente observar o que ele escreveu notará que ele era extremamente crítico quanto à educação moderna. E particularmente do conhecimento ocidental, que era algo que Gandhi estava questionando abertamente: “Qual é realmente a grande contribuição do conhecimento ocidental para o bem- estar da vida no planeta?”.
E então as pessoas o entenderam errado, elas pensavam que Gandhi era contra os britânicos e na verdade, ele disse: “Eu não tenho problemas com os britânicos, mas eles precisam entender que este sistema que foram criados por todo o mundo são fundamentalmente desempoderadores, desumanizantes e destrutivos. Não só para os seres humanos, mas também para toda a vida existente no planeta. E eles não podem se sustentar.” Ele disse isso em 1909. E ele disse: “Nós não estamos apenas tentando nos livrar dos britânicos e manter os seus sistemas”. E ele usava uma boa frase: “Essa luta por liberdade não é o ato de se livrar do tigre, mas manter a natureza do tigre”.

“Educação é uma ação compulsória e forçada de uma pessoa sobre outra... Cultura é a relação livre entre pessoas...”.
“A diferença entre educação e cultura está apenas na coerção, a qual a educação se julga no direito de exercer”.
“Educação é a cultura sob limitação. Cultura é livre”
Leon Tolstói.

E nós não nos vemos como uma cultura, portanto quando nós exportamos algo, como o nosso modelo econômico, não vemos isso pelo que é, que é apenas uma opção, uma maneira de organizar o comportamento econômico. E ainda quando você pensa nisso, todos os índices do paradigma do desenvolvimento não dizem quase nada sobre qualidade de vida. As pessoas falam sobre renda per capita ter quadruplicado. E o que isso quer dizer? Pode significar que algum agricultor saiu de uma economia agrária não monetária para entrar numa fábrica que explora os empregados numa favela em Delhi. Sua qualidade de vida melhorou porque sua renda foi quadruplicada? Essa é uma outra parte da nossa “miopia cultural”. Nós vendemos essa ideia, que eu penso ser uma mentira descarada, que se as pessoas aderirem à ditadura do nosso paradigma econômico, elas de alguma forma mágica alcançarão a riqueza que nós desfrutamos no ocidente. Não vai acontecer! Só para ter os recursos energéticos necessários seria preciso 4 planetas Terra para trazer toda população para nosso nível de consumo. Então nós projetamos essa visão de mundo para outros continentes com a ilusão de que se pessoas aderirem a isso, eles alcançarão o que nós (ingleses) temos. E então você tem que parar e dizer: “Bem, o que é que nós temos que nos faz tão espetaculares?” Muitas coisas incríveis. Acredite, se eu me envolver em um acidente de carro, e meus braços forem cortados, eu não quero ser levado para um herbalista africano, eu quero ser levado para um pronto-socorro. Eu não estou desprezando nossa cultura; mas por outro lado, se analisarmos a maneira como nós ganhamos dinheiro, a maneira com que nós tiramos nosso ganha-pão, é baseada num paradigma econômico que, segundo qualquer definição cientifica, está mudando a bioquímica da biosfera. Isso não é trivial. E certamente não sugere que nosso modo de vida é um protótipo do potencial humano.
O que
É
Conhecimento?

O que
É
Saúde?

O que
É
Ignorância?

O que
É
Pobreza?

O caminho para as culturas sobreviverem no mundo de hoje não é se isolando ou se excluindo. Na verdade, eu acredito que mais do que nunca que nós precisamos de um diálogo mais profundo entre o ocidente e as partes do mundo não industrializado. Nós precisamos desse diálogo porque a mídia e a educação convencional estão perpetuando basicamente uma mentira sobre uma forma de atingir sucesso e como todos nós podemos atingir esse glorioso, rico e luxuoso estilo de vida. Nós precisamos urgentemente sentar e conversar uns com os outros, e comunicar o fato de que este modelo não está funcionando nem mesmo no EUA, que é o centro desse sonho.
E é realmente importante notar que quando nós pensamos nossas diferentes culturas, há uma espécie de ideia de que esses outros povos, embora singulares e coloridos, talvez de alguma maneira, estão destinados a desaparecer. Enquanto o “mundo real”, que seria o nosso mundo, segue em frente. Essas culturas não são fracas e frágeis. Pelo contrário, elas são povos vivos e dinâmicos, sendo levados à inexistência por forças identificáveis. Por que isso é tão importante? É importante porque a cultura não é trivial. A cultura não é decorativa, não é penas e sinos, não é dança, nem mesmo rituais. Cultura é o coberto de valores morais e éticos com que o individuo é coberto.
E se você quer saber o que acontece quando uma cultura é perdida e ainda o individuo sobrevive, quando uma sombra de seu ser anterior, incapaz de voltar para o conforto da tradição e suas raízes, se lança à deriva em um mundo alienígena, onde geralmente, o destino é simplesmente o mais baixo degrau da escada econômica que não dá em lugar algum, basta olhar para o mar de miséria que são os centros demográficos do Terceiro Mundo.

A estrada para o inferno
Houve muitos casos na história em que atos evidentes de violação dos direitos humanos, como o deslocamento de povos, têm sido absolutamente motivado por interesses econômicos e políticos das elites e das estruturas de poder. Não há dúvidas quanto a isso. Eu acho que, de uma maneira estranha, as maiores ameaças surgiram através das boas intenções daqueles que não entendem que estas boas intenções podem não ser apropriadas pode refletir apenas uma projeção de nossa própria ideologia. Se alguém vai para uma outra cultura e diz: “Eu estou aqui para educar suas crianças”, isso é uma das coisas mais ultrajantes e audaciosas que você pode imaginar. Se você vai àquela cultura e diz: “nós temos algumas habilidades que vocês provavelmente poderiam usar”. Para mim, essa é a partilha de informação que deveria ser tanto recíproca quanto honrosa. Mas é muito diferente de eu ir e dizer: “os seus caminhos não são mais aceitáveis... sigam o programa, eduquem seus filhos nesta escola, livrem-se de suas ideias supersticiosas e aceitem algumas das minhas”.

Há uma suposição de que a educação ocidental, o conhecimento ocidental, é universalmente aplicável, é algo superior. Existe uma ideia de que evoluímos para um nível de existência mais elevado, e que essas pessoas, tão amáveis, irão se beneficiar deste conhecimento superior.

A situação mais triste é a das ong’s que realmente pensam que estão se inserindo e ajudando comunidades, ao auxiliá-las na perda de sua língua nativa e na perda de sua autossuficiência. Amarrando elas à economia global e trazendo para elas mais dinheiro, que por fim as levará à perda de controle de suas próprias vidas. Muitas dessas ong’s são muito bem intencionadas, pessoas boas, que acham que realmente estão fazendo o bem para as crianças e para as comunidade. Mas eu acho que elas não entenderam o jogo maior no qual elas são os peões.

Em resumo, estamos passando por um período de transição que simplesmente nos obriga a prestar atenção. Foi como disse Margaret Mead antes de morrer, seu maior medo era que, enquanto nós escorregássemos cegamente em direção a esse, levemente sem forma, mundo genérico, nós acordaríamos um dia como se acordássemos de um sonho, tendo esquecido de que haviam ainda outras possibilidades de vida. Esses povos, essas visões, não são tentativas falhas de serem como nós. Elas são preciosas respostas para uma questão fundamental: o que significa ser humano e estar vivo? E muitas destas pessoas, quando respondem a esta questão, elas respondem de maneira que as possibilitaram viver de maneira sustentável no planeta por gerações. Nossa espécie está aqui há um bom tempo. Quando podemos dizer que começou como uma forma social, há 150 mil anos atrás? A revolução neolítica que deu início à agricultura começo há apenas 10 mil anos atrás. A sociedade industrial moderna como a conhecemos dificilmente possui seus 300 anos de idade.  Isso não deveria sugerir que temos todas as respostas para todos os desafios que iremos enfrentar enquanto espécie no próximo milênio.

Canção final.
“Pequenas caixas na encosta, pequenas caixas feitas de material padrão / pequenas caixas na encosta, toda iguais / tem uma rosa e uma verde uma azul e uma amarela. E elas todas são feitas de material padrão e elas todas parecem exatamente iguais.
E as pessoas nas casas foram todas para a universidade, onde foram colocadas em caixas e saíram todas iguais. E há médicos e advogados, e executivos de negócio. E eles são todos feitos de material padrão e eles todos parecem exatamente iguais. Eles todos jogam no campo de golfe e bebem seus Martines secos, e todos eles tem crianças bonitas e as crianças vão para a escola, e as crianças vão para o acampamento de verão ou então vão para universidade onde são colocadas em caixas feitas de material padrão e elas todas parecem exatamente iguais.
Os meninos entram para os negócios e se casam e constituem famílias em caixas feitas de material padrão. E elas todas parecem exatamente iguais tem uma rosa uma verde e uma azul e uma amarela. E elas são todas feitas de material padrão e elas todas parecem exatamente iguais.