Jatobá

 (introdução com o som dos jatobás)


O som da cachoeira vindo do Jatobá / Nasci na cordilheira desaguei no Guamá / Tesouro escondido que atrai o olhar / Banzeiro diferente, Araxá, Macapá.

Paisagem, simetria, coração por um fio / Poesia rabiscada, ensaiada num canto do Brasil


Lampejo, gravidade / estou saindo do chão / Vestindo um chapéu / de palha “azul confusão” / Na aba o mistério, tão intensa atração! / Maria que o diga, acordes desta canção.

Ensaio, fim de tarde, bossa, blue, um café / E eu tiro o chapéu, retiro meu chapéu só pr'aquela mulher


É nessa onda carimbó, marabaixo / que eu saio pro mato sem pressa de voltar / Visto o chapéu azul que controla o tempo, / no preciso momento, à sombra do jatobá.


Cláudio Bolão e Ivan Rubens


Falsete da emoção

Falsete de emoção 


Pare na ladeira / descida traiçoeira / Mudança de Estação 

Em raios lancinantes / Manhã tão cintilante / torrente de paixão


Num cofre ali guardado / Um ponto iluminado / E pulsa o coração

Se abro a janela / Solfejo em aquarelas / Falsete da emoção


Se a noite ali está / um poeta a pensar  / Um acorde, um violão

Se o tempo não passar / Que não é de se  estranhar / o poder da criação


Seja do jeito que for / mas que seja uma canção / que toque a alma e dê sabor / que sapeca, o coração

Seja do jeito que for / seja lá o que Deus quiser / que agrade o coração / no peito de uma mulher



Cláudio Bolão e Ivan Rubens


Igarapé de mulheres


As palavras são um mundo, cada palavra é um mundo inteiro ou pode ser um mundo inteiro. Me lembro que no museu da língua portuguesa na capital paulista, uma frase é repetida como um refrão: "penetra surdamente no reino das palavras, penetra surdamente no reino das palavras, no reino das palavras, das palavras"... Trata-se do fragmento de um poema do Carlos Drummond de Andrade, que diz assim:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.    (...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
"Trouxeste a chave?"

Para Drummond, cada pessoa carrega (talvez dentro do coração) a chave para entrar no reino das palavras, lugar onde estão os poemas ainda não escritos. Ele te convida para chegar mais perto e te convida ainda para contemplar as palavras, afinal, cada palavra tem mil faces. São faces secretas escondidas debaixo de uma face aparentemente neutra. Mas as palavras não são neutras, as palavras não são neutras! Meu inconsciente, por algum motivo, me coloca neste poema do Drummond com uma outra palavra. Meu inconsciente me traz mundo no lugar de reino. Na minha leitura mais íntima: "penetra surdamente no mundo das palavras. Penetra surdamente no mundo das palavras, no mundo das palavras, das palavras"... Desatento, aquele estado que o consciente (danadinho) se manifesta, troco reuni por mundo. Gosto dessa manobra inconsciente. Particularmente, gosto mais de mundos do que de reinos. Reinos pressupõe um castelo com uma porta imensa, rodeada de soldados, trancas e chaves. Mundos talvez não tenham portas, nem trancas, nem soldados, nem chaves. Pelo menos os "mundos" aqui imaginados. Que bom poder imaginar livremente... mundos abertos, sem portas nem chaves, nem grades de todo tipo, grades físicas como aquelas que protegem janelas das casas nas cidades, tampouco as grades que limitam nossa capacidade de pensar, grades que estão dentro das cabeças, grades que impedem o corpo de sentir, o coração de sentir, grades não físicas mas, por assim dizer, grades imateriais, grades subjetivas.

Uma palavra muito presente na amazônia, tem uma sonoridade adorável: Igarapé. Uma palavra musical. A palavra foi adotada do tupi. Significa, literalmente, "caminho de canoa", através da junção dos termos ygara (canoa) e apé (caminho). Lindo, não? Na língua Tupi, igarapé é "caminho da canoa"! 
Podemos dizer que igarapé é um curso d'água amazônico (de primeira, segunda ou terceira ordem,) constituído por um braço longo de rio ou canal. Existem em grande número na Bacia amazônica. Caracterizam-se pela pouca profundidade e por correrem quase no interior da mata. Apenas pequenas embarcações, como canoas e pequenos barcos, podem navegar pelas águas de um igarapé devido a sua baixa profundidade e por ser estreito.

Osmar Jr é um artista brasileiro. Nortista de Macapá (1963), é cantor, compositor, poeta, importante estrela no céu da música amapaense. Iniciou seus estudos musicais aos 14 anos de idade. É do Osmar Jr a canção "Igarapé das Mulheres". A canção diz assim:

O tempo leva tudo / O tempo leva a vida / Lá fora as margaridas fazem cor / Eu lembro a alegria / Boiar naquelas águas / E ver as lavadeiras lavando a dor / E lavavam a minha esperança perdida / De crescer lá no igarapé / E lavavam o medo que tinha da vida / E agora o meu medo o que é?

Igarapé está no título da canção, e a letra começa com a palavra-mundo "tempo". Um afeto inicial produzido pela obra de arte, então, associa Igarapé e tempo. Se igarapé é um curso d'água, é (por assim dizer) um rio, podemos associar o rio ao tempo. O rio passa, o tempo passa. O rio tem fluxo, o tempo tem fluxo. Uma boa imagem para nos ajudar a pensar é a ampulheta, a areia que, passando pelo funil da ampulheta, cai do recipiente superior para o inferior. A areia da ampulheta não volta, a água do rio não volta, o tempo não volta. O tempo passa e, com ele, a vida passa. É feito um rio: flui. O rio flui, a vida flui. Quantas vezes não nos pegamos pensando: "se eu pudesse voltar no tempo, faria diferente". mas isso não é possível.

Então, o tempo leva tudo, o tempo leva a vida. O artista fala de um tempo de alegria quando era possível brincar no igarapé, de boiar nas águas, ali mesmo onde as lavadeiras realizavam seu trabalho se lavar roupas, ali mesmo onde as margaridas fazem flor. Linda a imagem trazida pelo poeta, linda.

A canção continua:

A minha nave, um tronco navegava / As estrelas, entre as palafitas / E as lavadeiras / Nas minhas aventuras, Poraquê / Pirarara, Piranha Peixe-Boi, Boto, Igara / E lavavam a minha paixão corrompida / As mulheres do igarapé / As Joanas, Marias, deusas, Margaridas / Lavarão o que ainda vier

O artista continua nos apresentando paisagens, belas paisagens: um tronco que navega provavelmente boiando sobre as águas, com a capacidade de transportar o artista numa viagem imaginária, uma noite de céu estrelado cujo brilho pode ser observado entre as palafitas, as lavadeiras. Podemos imaginar mulheres com os pés molhados de igarapé, cantam lindamente enquanto lavam suas roupas, seus panos, suas toalhas, suas redes etc. E os bichos, seres encantados pela maravilha da obra de arte:peixe elétrico, Pirararas, Piranhas, peixes perigosos mas também bichos encantados. Tudo isso lava a paixão corrompida, sobretudo as mulheres do igarapé. Aqui vale um olhar mais cuidadoso:

- Quem são as mulheres que lavam a paixão corrompida?
são Joanas, são Marias, deusas, são Margaridas. Olha ela aparecendo novamente: a margarida da primeira frase aparece com letra minúscula, sinalizando a planta, a flor, uma margarida em flor, colorida. Se me permitem imaginar, uma margarida amarela cor de sol, margaridas amarelas e uma margarida em Sol, linda, exuberante, uma paisagem florida como um dia claro, quente, um dia de sol.

- O que seria uma 'paixão corrompida'?
Osmar fala de uma paixão lavada. Mas ele não para por aí, ela qualifica essa paixão: uma paixão corrompida que foi lavada. Talvez as mulheres do igarapé tenham lavado a paixão, tenham lhe tirado a corrupção. Uma paixão corrompida foi lavada. Mas o que seria uma paixão corrompida? paixão corrompida pode ser compreendida como uma paixão contaminada, uma paixão pervertida, uma paixão viciada. Uma paixão estragada, uma paixão subornada. Ou seja, podemos compreender que a paixão destruída. Destruída, estragada, contaminada, pervertida, viciada... uma paixão que perdeu suas características originais, que foi maculada por alguma força de repressão, de negação, por algum afecção triste. Olhando numa perspectiva positiva, uma perspectiva da alegria, podemos pensar que a paixão está sendo restaurada porque lavada. Sobretudo se considerarmos que não foi lavada de qualquer jeito, pelo contrário, foi lavada por mulheres extraordinárias: as mulheres do igarapé. Dada a extraordinária das mulheres e das flores (amareladas de sol), e da água do igarapé (palavra musical), a corrupção realizada na paixão foi lavada e, não bastasse, o artista sabe o risco permanente que a paixão está submetida. A paixão está ameaçada pela corrupção do mundo povoado pelo humano, das forças que corrompem a paixão ontem, hoje e sempre. Conheço paixões corrompidas que teimam em manter-se viva à espera da delicadeza das mulheres do igarapé em lavá-la e, lavando, a paixão se restabelece. Para virar paixão renovada, e, neste processo de estragar a paixão e reapaixonar, como estamos falando de uma canção podemos usar a palavra reencanto, ou na ação de reencantar. Cantar e reencantar, apaixonar e amar. Com todos os riscos de ter corrompidos tais sentimentos. Cantar e reencantar, apaixonar e amar.

Corromper a paixão pode ser compreendida como estragar uma paixão. Quem nunca estragou uma paixão? quem nunca? errar, cometer erros e desejar que o tempo voltasse para que o erro não fosse cometido. Mas foi, e o tempo não volta. É como rio, vai da nascente até a foz, a vida vai do nascimento até a morte. A vida tem princípio, meio e fim. Isso é inexorável. Mas no percurso da vida, estragar paixões é péssimo, lamentável. Quem não erra? mas a vida nos dá sempre uma nova chance em quem está atento ao seu próprio movimento, se esforça muito para não cometer os mesmos erros. E tal processo, tal movimento nos torna melhores amantes, e nesta passagem da paixão para o amor, aprendemos a amar mais verdadeiramente. Aprendemos que o amor é bom, que se entregar é bom, que confiar é muito bom, que viver uma vida de amor é algo maravilhoso, é fazer a vida ser vivida na intensidade. É lutar todos os dias e noites contra a corrupção, é se esforçar cotidianamente para que o amor valha a pena. 
A canção é clara com a luz do sol, o amor é quente como a luz do sol.

Ivan Rubens

Deixa chover, ô ô ô


A cidade de Belém/PA é conhecida por muitas coisas, inclusive pela chuva. Dizem que em Belém chove quase todos os dias sempre no final da tarde. Dizem que é comum as pessoas marcarem compromissos para depois da chuva: "nos encontramos depois da chuva". Uma pesquisa rápida apresenta várias cidades brasileiras onde a chuva ultrapassa os 3.000 milímetros no período de um ano, a maioria delas situadas na região Norte do Brasil. O ano de 2023 foi bastante chuvoso na cidade de Rio Claro/SP também: 1.837 milímetros.

Guilherme Arantes é um artista brasileiro, cantor e compositor, nascido na cidade de São Paulo no ano de 1953. A canção “Deixa Chover” começa assim:

CERTOS DIAS DE CHUVA / NEM É BOM SAIR DE CASA, AGITAR / É MELHOR DORMIR / SE VOCÊ TENTOU E NÃO ACONTECEU... VALEU! / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER

A cantora Vanessa Moreno diz que, quando era criança e tinha algum pedido negado pela mãe, tal negativa se justificava com a canção do Guilherme na voz materna: "Infelizmente nem tudo é / Exatamente como a gente quer". Aqui vemos um trecho bem pedagógico, desses que educa para a vida. Porque a vida nos ensina exatamente isso: nem tudo é exatamente do jeitinho que a gente quer. O nosso desejo é ilimitado, mas a vida nos coloca limites, o mundo nos coloca limites, a sociedade nos coloca limites. O tempo nos dá limites, as outras pessoas nos colocam limites. Nosso próprio corpo nos coloca limites. Tudo isso que nos dá limites, também nos dá possibilidades... A canção continua:

AS PESSOAS SEMPRE TÊM CHANCE DE JOGAR / DE NOVO E ERRAR / VER O QUE CONVÉM / RECEBER ALGUÉM / NO SEU CORAÇÃO... OU NÃO / INFELIZMENTE NEM TUDO É / EXATAMENTE COMO A GENTE QUER

Que bom!!! poder errar e continuar tentando. A canção nos convida a pensar na errância, o erro livre do acerto, do certo em oposição ao errado, mas pensar e experimentar o erro como errância, e a errância como movimento. O movimento mesmo da vida, possibilidades de vida dentro do tempo determinado da vida, porque o corpo tem limites e a vida que habita um corpo tem fim, o fim determinado pela morte.

DEIXA CHOVER Ô Ô Ô / DEIXA A CHUVA MOLHAR / DENTRO DO PEITO TEM UM FOGO ARDENDO / QUE NUNCA VAI SE APAGAR

Fogo que arde no peito pode ser compreendido como a chama do desejo, da vontade. Desejo de viver, vontade de lutar pela vida, uma força que alimenta, que anima, que coloca nosso corpo na ativa. Mas tudo isso tem o limite inexorável da morte. A canção “Deixa Chover” estourou no Brasil em 1981 na voz do próprio Guilherme Arantes mas, para mim e para as minhas irmãs Graziella e Ivanessa, a canção fez sucesso mesmo na voz grave de um rioclarense que, violão no colo e bigode proeminente, cantava para as crianças embalando aquela década mágica de nossas vidas.

João Afonso Faglioni, nos encontramos depois da chuva.

DEIXA CHOVER Ô Ô Ô…




Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 16 de abril de 2024