Um Jeito Tucujú

Pode ser uma experiência interessante ler o texto ouvindo a canção. Clique aqui: 


Dois artistas amapaenses, Val Milhomem e Joãozinho Gomes, criaram a canção intitulada Jeito Tucuju. A canção diz assim:

QUEM NUNCA VIU O AMAZONAS / NUNCA IRÁ ENTENDER A VIDA DE UM POVO / DE ALMA E COR BRASILEIRAS / SUAS CONQUISTAS RIBEIRAS / SEU RITMO NOVO / NÃO CONTARÁ NOSSA HISTÓRIA / POR NÃO SABER OU POR NÃO FAZER JUS / NÃO CURTIRÁ NOSSAS FESTAS TUCUJUS

Um rio produz erosões, retira e transporta sedimentos em seu fluxo natural depositando-os em outros pontos do seu curso; um rio transborda no período das cheias. Estamos falando do rio como ‘modelador da paisagem’ física. Jeito Tucuju fala do maior rio do mundo como modelador de paisagens de outros tipos. Para os artistas, o rio Amazonas é fundamental na vida de um povo. Mas que povo? Um povo de alma e cor brasileiras, um povo que tem um ritmo próprio e, subentende-se, não se deixar colonizar pelos dispositivos, pelos interesses, pelos produtos que, acelerando o tempo, retiram de nós o pouco tempo de que dispomos, e retirando-nos o tempo também retiram uma parcela de vida. Para eles, o rio Amazonas parece modelar um modo de vida, portanto, um ou vários povos. A canção continua:

QUEM AVISTAR O AMAZONAS NESSE MOMENTO / E SOUBER TRANSBORDAR DE TANTO AMOR / ESSE TERÁ ENTENDIDO O JEITO DE SER DO POVO DAQUI

O rio Amazonas é muito grande. E pode, espero, despertar em nós humanos (nos desumanos, quiçá nos inumanos) algum sopro de sensibilidade, de arte e de beleza. Sensibilidade para olhar e de fato enxergar, e se deixar tocar, de fato se deixar afetar pela imagem da lua cheia refletida nas águas. Nos dias quentes, se deixar afetar pela força dos raios de Sol iluminando as águas, esquentando, aquecendo... E ferve a verve do poeta modelando o poeta e sua poesia: obras de arte em processo. Há poesia nas conversas de pescador, há poesia nas conversas da floresta, poesia nas lendas, poesia nas histórias de boto, há poesia nas conversas de visagem. O rio como modelador de tantas belezas, modelador compreendido como força de vida e poesia compreendida uma estética nas falas.

Habitar o território do Amapá, transitar por ele, olhar as paisagens e as pessoas, as tradições, comer açaí com farinha, maniçoba, tacacá, peixe e camarão, taperebá, cupuaçu, caju, jambo, bacaba. Ouvir regionalismos como ‘égua, fôlego, disque’, expressões como: “a modo que tô mufina”. Ouvir o Marabaixo e o Batuque, ver as danças, estar no quilombo do Curiaú, estar nas ruas de Mazagão Velho/AP quando a Festa de São Thiago reconta desde 1777 as batalhas entre mouros e cristãos. Habitar o Amapá, transitar por ele, olhar para as paisagens e para as pessoas nos dá as primeiras pistas para entender o jeito de ser do povo daqui.

QUEM NUNCA VIU O AMAZONAS / JAMAIS IRÁ COMPREENDER A CRENÇA DE UM POVO / SUA CIÊNCIA CASEIRA / A REZA DAS BENZEDEIRAS / O DOM MILAGROSO

O rio nos atravessa, generoso. Somos feitos de rio, gente_rio, quem está vivo também é rio, não há separação. Encontrar o Amazonas é encontrar um Brasil singular.

Tucujús foram os primeiros povos indígenas a habitar o território onde se constituiu o estado do Amapá.

Ivan Rubens
Educador popular



Jeito Tucuju na versão do grupo Senzalas


Com Patrícia Bastos no programa Ensaio (TV Cultura)



Publicado no Jornal Cidade de 31 de outubro de 2023

Sobre escrever

Por Janaina Freitas Calado e Ivan Rubens



A escrita te escolheu

A escrita me escolheu

Escrevendo, te convido a escrever.

Vamos escrever juntos? Escrever pelo simples prazer de escrever.

Escrever sobre ESCREVER? 


Mas como? 

Você me escolheu para escrever ou foi a escrita que nos juntou para ela?

Será que já estamos escrevendo?


Talvez. Em comum temos o fato de escrevermos pela alegria de escrever. 

Não escrevemos pela obrigação, mas pela alegria.


Sim!! Já topei! O texto começou no convite.

Mas eu só escrevo o óbvio.


Não pretendemos escrever nada complexo, mas algo simples. 

Tão simples quanto o desejo que nos toma neste momento da escrita. 

Neste encontro inusitado que começou nas leituras de um e outro. 

É preciso dizer o óbvio, por mais que ele seja óbvio.

Mas um óbvio que salta aos olhos. 

Um óbvio que pode passar despercebido. 

Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?


Eu não sabia que sabia escrever.

Mas eu escrevia, e ainda escrevo, com amor.

Acho que o amor faz a gente transbordar em palavras o que sente,

aí, a gente escreve.


Escrevemos pelo simples prazer de escrever.

Escrevemos por uma escolha, 

mas não uma escolha nossa, 

não por uma escolha desse sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá… 

Mas por uma escolha modesta, 

Uma escolha que não foi nossa mas foi do texto. 

O texto que nos escolheu!!


É, acho que é isso.

Por isso escrevemos, porque não temos escolha.

Quando você dá fé, já saiu.

O dedo no teclado, a caneta no papel são mais rápidos em expressar nosso querer.


Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente. 

Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever.

Seja uma carta, seja uma dissertação

Seja um bilhete, seja uma tese.

Seja um texto, seja um livro.

Basta pensar, pensar, pensar, sentar e escrever.


Que coisa bonita de se dizer, 

Quero dizer, de se escrever!

“Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente”

Acho que tenho muita coisa enrolada dentro de mim, 

e quando escrevo, me sinto aliviada.

Eu tenho um monte de cartas escritas e não enviadas,

bilhetes de amor, textos não publicados, fragmentos que não servem de nada.

Escrever torna o pesado leve,

torna o superficial profundo.

É um suspiro de amor aliviado.


….Por fora da cabeça, os fios de cabelo podem estar lisos, 

podem estar cacheados, podem estar enrolados. 

Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados. 

Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas, 

dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado. 

Escrever é um jeito de desenrolar. 

Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue.


Mas realmente se a gente parar pra pensar assim, 

desse jeito que você me propôs,

fica tudo muito complexo mesmo. 

Até quando se escreve o óbvio.


O óbvio se torna óbvio depois de descoberto. 

Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é ‘não saber’. 

Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio,

Como transformar o óbvio num conjunto de palavras?

Porque mesmo óbvio tem uma complexidade.


E escrever é parte também

Pois de tudo que a gente vive, sente e experimenta, 

a gente só consegue expressar uma parte.

A parte que transborda na escrita.

Acho importante Ser Parte na escrita, 

Porque a escrita só se completa quando o outro ler

E quando o outro ler já não é mais o que a gente quis escrever, 

mas o que atravessou quem leu.


Entendo escrever como um processo de elaboração.

Os fios de cabelo enrolado ou os fios, 

as linhas enroladas são uma imagem do pensamento. 

No início, é uma massa disforme. Com nosso trabalho de elaboração, 

vai ganhando contorno, vai ganhando forma. Escrever é, entre outras possibilidades,

esse trabalho de elaboração, de escultura, de dar alguma forma.

Agora, o que o/a outro/a, leitor e leitora farão com o texto, aí é com eles.

Trata-se de uma experiência de liberdade: a liberdade de pensar.

Quando releio textos antigos, fragmentos abandonados, anotações esparsas,

sinto como se me encontrasse com alguém que eu já fui.


Eu também, esse encontro me causa sensações diferentes.

Eu tento entender o que eu estava vivendo naquela hora, para ter escrito aquilo. 

Aquele texto antigo me atravessa diferente.

Às vezes dói, dá saudade.

Às vezes dá orgulho e sinto esperança.


Quando sinto beleza em algo que escrevi

quando leio e sinto que ficou realmente bonito, 

isso me dá esperança. A beleza me dá esperança, 

uma esperança freiriana, uma esperança ativa.

E me faz escrever mais pois a beleza é forte

A arte, a beleza, a estética pode produzir uma nova ética 

A beleza é capaz de abrir possibilidades de uma nova sensibilidade 


Acho que a escrita é esperança.

Não é uma esperança parada, inerte, que espera o sol inevitavelmente se pôr. 

É uma esperança ativa, que faz acontecer o que a gente quer. 

Aí depois de ter muito feito, de ter muito agido, de ter muito escrito... 

Você espera…

Espera o alívio de ter desenrolado um pouquinho o nó que tinha na cabeça,

espera alguém ler 

e espera que aquilo faça algum sentido.

A escrita espera com esperança. 


A escrita nos moveu, nos escolheu

Éramos um, dois e, juntos, somos mais que três


Escrever é verbo, é o ato de pôr palavra com palavra. 

Por COM, com por. 

Compor.

Palavra que se abraçam, 

palavras de mãos dadas, 

palavras faladas,

palavras coladas, 

palavras contadas, 

palavras inventadas,

palavras caladas,

palavras vividas.

Palavras que vão se compondo, compondo frases.


O destino dos escritores

desembaraçar ideias

criar estratégias


Escritores amadores, criadores de possibilidades,

fazedores de convites, relógios

despertadores de interesses, de sonhos e desejos


O destino dos escritores

eternizar suas dores, temores,

saberes, sabores e amores.


Você ainda está aí?

Estou.

Estou escrevendo.

Às vezes, tenho dificuldades de parar de escrever

Será que alguém vai nos ler?


Talvez.

Mas agora isso não é mais conosco.

Espero que esta composição toque

toque cabeças e corações,

toque flautas e violões, 

e que faça alguém sorrir.


Quem escreve?


Dia desses, numa conversa com uma amiga professora e escritora, nos perguntávamos: quem é escritor? quem é escritora? e essa pergunta acende, ecoa, ascende, ressoa. E a conversa rolava: 

- Escrevemos pelo simples prazer se escrever. Escrevemos por uma escolha, mas não uma escolha nossa, não por uma escolha de um suposto sujeito ocidental, moderno, racional, cristão blábláblá… Mas por uma escolha modesta, uma escolha que não foi nossa mas uma escolha que foi do próprio texto. O texto é quem escolhe.

- Ao sentar para escrever, não se pretende escrever nada complexo, mas algo simples. Tão simples quanto o desejo que nos toma no momento da escrita. Neste encontro inusitado que via de regra começa ou recomeça na leitura de outros textos, nesse encontro inusitado de ser e texto, texto e ser, tanto texto quanto escritores se fazem no processo da escrita. Parece óbvio e, por mais que ele seja óbvio, que salte aos olhos, pode passar despercebido. Então, como enxergar o óbvio para dizer do óbvio?

O óbvio se torna óbvio depois de descoberto. Antes de descoberto, mesmo o óbvio é mistério, é não saber. Então, como enxergar, como ver, como dizer do óbvio, como transformar o óbvio num conjunto de palavras? porque mesmo óbvio tem uma complexidade. Por fora da cabeça os fios de cabelo podem estar lisos, podem estar cacheados, podem estar enrolados. Mas os fios que ficam dentro da cabeça, esses são todos enrolados, muito enrolados. Os pensamentos são uma espécie de bolo de linhas, dentro da cabeça, dentro do corpo está tudo embolado. Escrever é um jeito de desembolar, escrever é um jeito de desenrolar. Você encontra uma ponta, puxa, desenrola um pouquinho, mais um pouquinho e segue. Escrever é desenrolar os fios de pensamento que estão enrolados dentro da gente. 

Escrever é uma arte democrática. Não precisa muita coisa, não. Basta sentar e escrever. Seja uma carta, seja uma dissertação, seja um bilhete, seja uma tese. Seja um texto, seja um livro. Claro que cada texto tem seu rigor, uns tem o rigor acadêmico, o rigor científico, rigor metodológico, rigor temático. Rigor ético, rigor estético, rigor político. Rigor ético-estético-político. Escrever é também um exercício de liberdade, de libertação, de elaboração, é como se você tirando de dentro de si algo que nem mesmo você sabe bem o que é, liberando o espaço para começar tudo de novo. Algo que te tocou, algo que te atravessou, que te incomodou, algo que ficou em ti e, elaborado, já pode ganhar alguma forma e, saindo, liberar o espaço para começar tudo de novo.

No fundo é muito simples: deixar-se afetar pelo mundo, ler, pensar, pensar, pensar, sentar e escrever. Então, quem é escritor? quem é escritora?

Talvez seja mais fácil dizer quem não é. Não é escritor, não é escritora quem não escreve. Porque Escrever é inscrever-se. Então, quem escreve é...