Disponível no spotify, podiquesti Andarilhagens.
“O Roberto Carlos me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso... E se eu quiser falar de falar com Deus? Com esses pensamentos, dei início a uma exaustiva enumeração: 'Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro'. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes”. Assim começou, segundo Gilberto Gil, sua criação.
Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que apagar a luz / Tenho que calar a voz / Tenho que encontrar a paz / Tenho que folgar os nós / Dos sapatos, da gravata / Dos desejos, dos receios / Tenho que esquecer a data / Tenho que perder a conta / Tenho que ter mãos vazias / Ter a alma e o corpo nus
O compositor sugere que para falar com Deus não precisa muita coisa. Basta estar sozinho, na penumbra, em silêncio, em paz. É bom desatar os nós que nos apertam como os do sapato e da gravata. Mas também é bom folgar as grades que aprisionam nossos desejos e receios. É bom dar-se tempo, libertar-se um pouco das cronologias e ordens. Não carregar nada, não levar nada, ter as mãos vazias. E se expor assim como se é, assim como viemos ao mundo: nus.
Se eu quiser falar com Deus / Tenho que aceitar a dor / Tenho que comer o pão / Que o diabo amassou / Tenho que virar um cão / Tenho que lamber o chão / Dos palácios, dos castelos / Suntuosos do meu sonho / Tenho que me ver tristonho / Tenho que me achar medonho / E apesar de um mal tamanho / Alegrar meu coração
O ser humano é, de um modo geral, enganador. Ele busca permanentemente o prazer, a alegria, a felicidade. Ele evita a dor, ele engana_a_dor. Contudo, a vida é muito complexa. A linha sugerida por Gil é aceitar a dureza da vida, aceitar também a tristeza e o medo. Mas não qualquer medo. É preciso aceitar um medo específico: o medo que dá-se a si mesmo. É preciso estar atento às palavras que usamos e aos pensamentos que tais palavras significam; atento aos gestos e às atitudes, e agir com prudência até perceber a beleza e a potência que habita os detalhes, as sutilezas, a simplicidade da vida.
Se eu quiser falar com Deus / Tenho que me aventurar / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar / Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar / Decidido, pela estrada / Que ao findar vai dar em nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar
Desprender-se um pouco dos planos e projetos para libertar-se ao acaso. Permitir-se. Como diz outra canção: ‘para se perder tem que se achar’. Primeiro perder-se para, depois, se encontrar. Encontrar-se consigo mesmo, estar diante de si, perceber-se, sentir-se. ‘Conhece-te a ti mesmo’. Aventurar-se ao encontro de si mas também ao encontro do outro. Porque o mundo é povoado de seres diferentes. Então, nesse movimento encontros e des_encontros podemos nos diferenciar de nós mesmos? podemos diferir? Talvez sim, porque ao se aventurar, corre-se um risco muito bom: encontrar no outro um fragmento, um pedaço daquilo que dificilmente encontra-se em si mesmo. É mais ou menos como um caminhar sem destino, decidido, pela estrada que ao final vai dar em nada do que eu pensava encontrar. Porque criar expectativas, esperar resultados, fecha a possibilidades de outros acontecimentos.
Roberto Carlos não gravou esta canção. Talvez por crer num Deus mais pleno. O Deus de Gil nesta canção é um tanto vago, ou a ser preenchido. Elis Regina gravou.
Ivan Rubens