Conversa com um xamã Yanomami (parte 1)


Estive recentemente com o xamã yanomami Davi Kopenawa. A respeito do livro ‘A Queda do Céu’, o xamã lançou suas palavras como quem lança sementes na esperança de flores e plantas, de árvores dando ao mundo frutas, castanhas, açaí, pupunha, bacaba, manga e outros alimento para os pássaros, para os bichos, para os peixes, para as pessoas, doando sua sombra para o crescimento de outras espécies debaixo de suas copas… tudo numa imensa rede de vida diversa, de bio (vida), de biodiversidade.

Disse o xamã: “Eu sou o Davi Kopenawa e quero falar da nossa terra, do nosso país. Vamos falar bem de nossa terra mãe, falar bem de nossa terra floresta, falar bem do nosso rio, de saúde, de alegria, de toda a nossa riqueza. A natureza é a nossa riqueza, a sabedoria e o pensamento é a nossa riqueza, o conhecimento tradicional é nossa riqueza. Riqueza não é dinheiro como pensam alguns”. Veja que interessante… Para o xamã yanomami, a terra é mãe. O corpo da mãe terra é bonito, tem floresta, tem rios, tem saúde e tem alegria. Ele fala em saúde e em alegria para a vida em geral, ele não especifica uma determinada forma de vida mas fala da saúde e alegria para a vida em geral. Para os yanomamis, a vida é a grande fortuna, dinheiro é um pedaço de papel.

Davi fala prioritariamente na língua yanomami num gesto de afirmação de seu povo, sua cultura e tradições. Gentil, Davi traduziu do yanomami para o português. Fiquei pensando: quantas línguas são faladas no Brasil? por que não aprendemos a língua yanomami?

Davi continua: “É preciso primeiro sonhar, depois pensar muito, sonhar com a terra mãe, sonhar com Omama (criador da floresta, das montanhas, dos rios, do céu, do sol, da noite, da lua e das estrelas, da sociedade e da cultura yanomami), sonhar com os xapiris (espíritos guardiões da floresta), sonhar com o que se pode falar para, só depois de tudo isso, escrever um livro. Os não indígenas fazem livros, os yanomami não fazem livros. Eu vi durante muito tempo os antropólogos observando e escrevendo livros, vi os professores escreverem muitas palavras, parte do trabalho de professores e antropólogos é escrever. Nós, indígenas yanomami, trabalhamos para comer: trabalhamos no roçado plantando macaxeira, banana, cará, batata e outras frutas, na pesca, na caça. Vocês trabalham escrevendo livros porque as palavras já estão na garganta. Nós precisamos sonhar e pensar muito antes de fazer qualquer coisa”. Então Davi pensou muito a respeito de contar, e como contar, as histórias dos xapiris, as histórias do rio, como o rio nasceu, como nossa terra nasceu, como a floresta nasceu, como a claridade nasceu, como a escuridão nasceu. Primeiro é sonhar muito e pensar muito. Podemos pensar que o trabalho do pensamento não está separado do trabalho com as mãos, ou seja, a educação da pessoa por inteiro, integral.

Interessante pensar o trabalho das mãos na terra: fazer o roçado, cuidar da terra, cuidar da vida. Esse é um bom caminho… Davi falou de vários caminhos a seguir, mas fica para nosso próximo encontro nesta coluna.


Ivan Rubens
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 10 de junho de 2025

Mais que uma escola


por 

Ivan Rubens Dário Jr - Escola de Ativismo

Madalena Santana de Sales - professora



Neste texto faremos um exercício de pensar que uma escola pode ser muito mais do que uma escola. Um primeiro olhar para as escolas nos remetem a entrada com uma placa indicativa com o nome da escola, algumas grades e portões, paredes, portas, tijolos, telhado, uma escola em sua dimensão física. Logo percebemos que tem gente, as matrículas, professores, disciplinas. Tem gente que vê indicadores como o ideb e outros índices que tentam medir o aprendizado. Tem gente que vê ensino e aprendizagem, na distorção idade-série, nas aprovações e nas reprovações, nos planejamentos, nas assessorias pedagógicas desses institutos que “amam” a educação pública, os direitos trabalhistas, os corporativismos, tem gente que vê as políticas de acesso e permanência na escola, as bolsas e os pés de meia e tem gente que consegue ver os pés mesmo, com leia e sem meia, com chinelo de dedo e sem chinelo nenhum.


Neste exercício que estamos te convidado para fazer conosco, neste esforço de pensar para além disso tudo, pensar que uma escola pode ser mais que uma escola, vamos apontar nosso olhar e colocar nossa atenção em uma escola em particular: a Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento situada no Território Quilombola do Vão Grande no Mato Grosso.



O Território e a Escola


O território quilombola do Vão Grande está situado no vale do rio Jauquara, afluente do rio Paraguai. Em sua margem esquerda está o município de Porto Estrela, e neste estão a comunidade do Retiro e a comunidade de Vaca Morta. Durante muito tempo a passagem de uma margem para outra se dava por dentro da água mesmo nos trechos onde era mais rasinho. E no período das chuvas, quando o Jauquara estava mais cheio, os carros não passavam. Só passava na canoa. No território quilombola do Vão Grande se produz muita mandioca, macaxeira, muita banana, legumes como jerimum, frutas, e toda essa produção passava nas canoas até a outra margem para acessar os mercados e os consumidores. A mesma coisa acontece com os produtos e mercadorias que vinham das cidades, sobretudo o gás de cozinha e outros combustíveis oriundos do distrito de Currupira, do posto Currupira e das cidades mais próximas. Mais próximo aqui significa no mínimo 1 hora dentro de um carro na estrada de chão até acessar a rodovia MT-246 vencendo os cerca de 30 km em linha reta que, no traçado da estrada cruzando riachos e acidentes geográficos somam cerca de 45 km. Do outro Lado, na margem direita do rio Jauquara estão a comunidade do Baixius, a comunidade do Morro Redondo e a comunidade da Camarinha, estas no município de Barra do Bugres. Tanto Porto Estrela quanto Barra do Bugres compõem o estado do Mato Grosso. Estamos falando do alto curso do rio Paraguai, ou seja, mas para a região onde estão as nascentes do rio Paraguai e somam com as águas que abastecem o Pantanal.


A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento é, certamente, o único equipamento público permanentemente aberto e em funcionamento naquele território. A Escola é a presença do poder público, a Escola Quilombola é a presença do Estado brasileiro ali. A Escola Quilombola funciona como centro aglutinador de muita coisa, inclusive das cinco comunidades que compõem o território quilombola do Vão Grande.



Uma história da educação


Para falar um pouquinho da educação ali no território Quilombola do Vão Grande, contamos com a colaboração da professora Madalena Santana de Sales. Madá é professora de matemática e muito querida das cinco comunidades. Madá conhece a luta dos Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima, conheceu a luta pela defesa do Pantanal Vivo, participa das atividades organizadas pela Escola de Militância Pantaneira, é parceira da Escola de Ativismo e, por reconhecer a luta e valorizar todo esse movimento popular, no tempo que esteve à frente da Coordenação Pedagógica da Escola Quilombola ela estimulou a escola a participar desse esforço. Não foi, Madalena? Então conta pra gente um pouco da história da educação escolar no Território Quilombola Vão Grande.


Madalena Santana de Sales


A história da educação escolar no território Quilombola do Vão Grande tem seu início com as aulas ministradas nas casas, alguns alunos caminhavam mais de 10 km entre as morrarias. O professor era um membro da comunidade que dominava a leitura, a escrita e alguns cálculos básicos. 

O Sr. Benedito Osvaldo, morador da comunidade Baixius, nascido no final da década de 1940, foi um dos professores. Ele estudou até a 3ª série, apenas alguns meses por ano, aprendeu a ler, escrever e fazer cálculos. Ele ministrava aulas de manhã para os alunos da Comunidade Baixius, Morro Redondo e Camarinha que pertenciam ao município de Alto Paraguai/MT, à tarde para os alunos da Comunidade Vaca Morta e Retiro que se localiza do outro lado do Rio Jauquara e pertenciam ao município de Barra do Bugres/MT. No período chuvoso, ele precisava atravessar o rio com os alunos na canoa, para diminuir o número de travessias, pois a capacidade de canoa não era suficiente para todos, ele colocava os alunos e puxava a canoa por uma corda. 


“Eu atravessava o rio com seis alunos na canoa, eu colocava as crianças e puxava, para atravessar mais ligeiro,  porque  se  eu  entrasse  na  canoa  tinha  que  fazer  o percurso  mais  vezes,  tinha  que dar três, quatro viagem”, disse o Dito Osvaldo para a Madalena em junho de 2019. Ele ficava vários meses sem pagamento, precisava ir até Alto Paraguai para receber seu pagamento.

Certa vez, quando voltava do município de Alto Paraguai cujo percurso (cerca de 45 km) da MT-246 até o Território Quilombola… 


“Eu fui, porque nesse tempo a gente tinha que ir até com rede pra dormir, porque não tinha onde dormir, daí eu levei uma bolsa com roupa e a rede e de lá pra cá eu fiz compra de mantimentos e, ainda trouxe livro, caderno, lápis, caneta e borracha, uma caixa que dava mais ou menos 7 kg ou 8 kg. O saco com os mantimentos pra cá, a bolsa aqui e a caixa na cabeça, saí de lá oito horas da manhã e cheguei oito horas da noite [...], noutro dia acordei com a cabeça inchada de carregar a caixa, não tinha costume de carregar nada na cabeça, vim a  pé do estrada onde o ônibus parou até aqui” (Dito Osvaldo, junho de 2019). 



A primeira escola construída foi na Comunidade  Retiro. Sr Maximiano disse que o Sr. Leopoldino com a ajuda do  prefeito de Barra do Bugres da  época construiu a escola  e levou  uma professora para ministrar  aulas. Ela não  morava na comunidade, precisava subir e descer a serra para chegar à escola e, diante da dificuldade, abandonou as  aulas. 


“Quando eu era criança, minhas irmãs foram à escola, o Leopoldino buscou professora, conversou com o prefeito  na Barra,  ele trouxe  material e fez a escola, então veio uma professora chamada Arcelina, mas nessa época eu não estudava, eu era  bem pequeno,  tinha que  atravessar o  Jauquara, as  minhas irmãs  mais velhas, todas as pessoas mais velhas de certa idade aprenderam a assinar o nome, com essa professora, com o passar do tempo, comecei a ir para a escola, mas logo a professora foi  embora  e  não  voltou  mais” (Sr. Maximiano, morador da comunidade Baixius, disse para a Madá em Abril de 2019). 



Na comunidade Vaca Morta, há uma escola, que leva o nome do Sr. Leopoldino. A escolinha foi desativada com a inauguração da escola José Mariano Bento em 2018.


O Sr. José Ambrósio também estudou na escola criada pelo Sr. Leopoldino.

“Pra ir à aula, eu atravessava a mata do Jauquara, lá na passagem do retiro. Eles me levavam lá, mas só quando era tempo de seca, no tempo da água não podia ir, pois Jauquara  ficava  cheio demais,  eu  não  aprendi  nada,  só  um  pouquinho. O professor era  o  finado  Leopoldino, era  barbudo e tinha  um filho chamado  Godofredo.  Pegava  ele  pela  orelha  e  passava  perto  de  nós  com  ele pendurado, meu Deus do céu, ficávamos com muito medo. O professor tinha uma palmatória furada, qualquer coisa que a gente fazia ele vinha de lá, ah, medo triste. Com o passar  do tempo parei de ir à  escola, mas nesse tempo todas as coisas eram tranquilas, eu não aprendi nada mesmo, mas era desse jeito, nesse tempo que nós vivíamos (Sr. José Ambrósio morador da Comunidade Morro Redondo. Abril de 2019).  


O senhor Maximiano se lembra que “o prefeito de Alto Paraguai começou a criar umas  escolas nas casas, na residência do Antônio e do compadre Manoel funcionou a ‘escola’ do Baixius”.    


A prefeitura de Alto Paraguai construiu as escolas de madeira nas comunidades Morro Redondo, Camarinha, Baixius as comunidades Vaca Morta e Retiro pertencentes a Barra do Bugres compartilhavam a mesma escola. Em algumas comunidades, a escola era também a moradia das professoras e professores que ministravam aulas, preparavam o lanche e limpavam a escola. Era preciso buscar água no rio Jauquara e levar louças e roupas para lavar lá no rio também. Tais escolas atendiam somente até a 4ª série, que atualmente chamamos 5o ano. Após o término dessa etapa escolar, quem tinha parente na cidade mandava os filhos pra lá onde havia escola para continuar os estudos e, para quem não tinha parente na cidade só restava a opção do abandono escolar. Isso perdurou até 2002, quando as professoras Dinalva, Lucimara e Maria Helena que já atuavam nas escolas, uma em cada Comunidade, juntamente com os moradores conseguiram a abertura de salas anexas de escolas municipais. Então já era possível terminar o ensino fundamental, porém mais uma vez alguns  alunos  e  pais  sonhavam com o ensino médio.  

Novamente  entram em cena a Comunidade e as professoras (também moradoras na comunidade) para trazer o ensino médio, e assim as salas anexas são da Escola Estadual Sabino Ferreira Maia, a escola rural São José do Baixio, salas anexas da escola municipal Guiomar de Campos Miranda, atendendo os alunos do 6º ao 9º ano e o ensino médio da escola Sabino Ferreira Maia. Ou seja, três escolas diferentes funcionando num mesmo espaço físico.


Desde 2009 eu (Madalena Santana de Sales) comecei a fazer parte dessa realidade. Fui contratada como professora de matemática para ministrar aulas no ensino médio nas salas anexas da Escola Sabino Ferreira Maia. A escola possuía duas salas de aula, uma secretaria, dois banheiros e uma cozinha, para cerca de 200 alunos e alunas. O povo do Vão Grande construiu barracões cobertos de palha de babaçu para abrigar salas de aula. Em 2010, após muitas reivindicações e luta da comunidade, a SEDUC/MT criou em fevereiro de 2010 a Escola Estadual José Mariano Bento. As obras começaram em 2011 previstas para 12 meses mas se arrastaram por 4 anos. Muitos foram os problemas com a construção, a obra foi paralisada, diziam que a empreiteira vencedora da licitação entrou em falência. As aulas continuavam acontecendo nos barracões de palha babaçu…


Em 2014, as aulas foram interrompidas porque a palha de babaçu não aguentou o excesso de chuva.  A solução mostra o espírito de luta: 


A comunidade, a equipe escolar, professores, alunos e alunas OCUPARAM o prédio ainda em construção.


A cozinha e os banheiros funcionavam na antiga escola de madeira. Para comer e usar os sanitários, uma caminhada de 200 metros. Nova licitação para conclusão das obras mas escândalos envolvendo a SEDUC/MT e a empreiteira vencedora desta nova licitação e responsável pelas obras de finalização paralisou as obras pela segunda vez. O prédio onde hoje funciona a Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento foi concluído apenas em 2017.




Uma educação quilombola


As discussões sobre educação quilombola, para professores e professoras da cidade e mesmo da comunidade, eram novidade. As formações promovidas pelo CEFAPRO iniciaram. Devido às especificidades da educação escolar quilombola, as Ciências e Saberes Quilombolas compostas por três disciplinas: prática em tecnologia social, prática em cultura e artesanato quilombola e prática em técnicas agrícolas quilombola e as demais disciplinas também têm que trabalhar de acordo a realidade local considerando suas vivências, seus saberes e fazeres. O que fazer? Como fazer?


De posse da matriz curricular, com as novas disciplinas fornecidas pela Superintendência de Diversidade, iniciamos os trabalhos. A SEDUC/MT e o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação da UFMT ofereceram formação e aperfeiçoamento para as escolas quilombolas de Mato Grosso. Além dos cursos de formação, os  professores da Escola Quilombola José Mariano Bento participam desde 2010 do Seminário de Educação promovido pela UFMT e da Jornada Desigualdades Racial na Educação Brasileira,  apresentando  relatos  de experiências em educação escolar quilombola. Ainda  em 2016,  foi aprovado o PROINQ  –  Programa  de  inclusão  de  estudantes quilombola, com primeiro vestibular para 2017. O programa garante 100 vagas por ano e o acesso de alunos quilombolas em todos os cursos ofertados pela  UFMT, com vestibular específico e as provas  aplicadas nas Comunidades Quilombolas. A aprovação do programa se deu  após  muitas  lutas  da comunidade acadêmica, dos quilombolas e de instituições parceiras, uma ação afirmativa de reparação  a tantos  anos  de desigualdades educacionais  vivenciados pelos  quilombolas.  

Aos  alunos  aprovados  e  matriculados  é disponibilizada  bolsa  permanência  que os auxiliará nos gastos com moradia, alimentação e deslocamento, e também apoio emocional feito por psicólogos para ajudá-los nesse momento de adaptação à nova realidade longe do convívio familiar. Em 2018, o vestibular foi suspenso devido a restrições orçamentárias e consequentemente diminuição no número das bolsas permanência.

Em 2017, o Conselho Estadual realizou audiências públicas nas comunidades quilombolas com o título: A escola que temos e a escola que queremos. Com o objetivo de ouvir os anseios e as reivindicações dos moradores sobre as escolas dos quilombos. Nessa ocasião, as discussões foram as condições de acesso à escola e o término da obra.   Em 2019,  solicitou-se que se fizesse  o levantamento da quantidade  de quilombolas para ingressar na universidade pelo PROINQ e também o número de alunos que prestaram o ENEM, depois de cumpridas as exigências, estaria programado o lançamento do edital para o segundo semestre desse mesmo ano, porém isso não aconteceu. Se por um lado a educação escolar quilombola avançou nos últimos tempos, por outro os desafios ainda são grandes. A precariedade das estradas e o transporte escolar insuficiente, que não supre suas necessidades, são alguns aspectos que fragilizam a educação escolar no Território Quilombola Vão Grande. Devido à distância entre  as cinco  comunidades e somente um ônibus para fazer o transporte dos  alunos até a  escola, eles permanecem  cerca de três  horas dentro do ônibus, empoeirados e submetidos à temperatura elevada. Ao poder público compete oferecer condições dignas para que os alunos cheguem até a escola, desconsiderando todas as situações já relatadas pela comunidade escolar e moradores. A manutenção das estradas só é feita após muitas reivindicações da comunidade, sendo uma das principais ações para minimizar o sofrimento dos alunos. 



A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento hoje


Pois bem, no Território Quilombola do Vão Grande está a Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento com, segundo o censo escolar (INEP) e dados finalizados em 2023:


fundamental anos iniciais

12

fundamental anos finais

26

ensino médio

14

Educação de Jovens e Adultos

25

educação especial 

02

total

52


professores/as

12

trabalhadores/as 

07


A escola é nova, suas dependências são boas, amplas e bem cuidadas. Possui acessibilidade nas dependências de um modo geral incluindo os sanitários, a água é filtrada e geladinha, as refeições são preparadas com muito carinho na própria escola. Biblioteca, sala de leitura, uma quadra poliesportiva ampla e coberta com arquibancada, que recebe atividades esportivas, sobretudo o futebol, que agrada meninos e meninas, jovens e adultos. A diretora tem uma sala para fazer o seu trabalho, tem sala para professores e professoras, tem internet quando a energia elétrica chega até ali (o funcionamento é irregular, cai com certa frequência). A escola possui equipamentos como TV, projetores, copiadoras, computadores, impressoras e etc. Estamos falando de um bom equipamento público em termos de estrutura e equipamentos.

Lembramos como se fosse hoje da festa junina que acontecia na escola em julho de 2019, escola lotada, a comunidade participando em peso da festa e, aproveitando a oportunidade, um abaixo assinado com algumas centenas de pessoas dizendo: PCH, AQUI NÃO!!! O abaixo assinado foi decisivo para o poder judiciário proibir a construção de uma pequena central hidrelétrica ali no Sarto do Jauquara. 


As dificuldades também foram atualizadas. Diferente do que vimos acima nas falas do Dito Oswaldo, do Maximiano e do Zé Ambrósio, a comunidade e a escola lutam para melhorar o transporte escolar, instalar um laboratório de informática. Durante muito tempo o acesso à internet tem pacote de dados pago pelos professores. A biblioteca não possui acervo para pesquisas, ela é composta em sua maioria por livros didáticos, questões que fragilizam as pesquisas em livros e, pior do que isso, não permitem a criação de um gosto pela leitura. Sem biblioteca não há escola. Há? Claro que há escola sem biblioteca. De que escola estamos falando? 




Quem foi José Mariano Bento?



Bem, vimos neste texto um pouco do território quilombola do Vão Grande e a história da educação escolar naquele território. Para tanto contamos com alguns depoimentos dos mais antigos e contamos com a colaboração da professora Madalena. A Escola Estadual Quilombola leva o nome de uma pessoa em tom de homenagem. Então, quem foi José Mariano Bento?


Para responder essa questão, contamos com a ajuda de Antônio de Souza Bento, o tio Antônio, filho do homenageado.


Tio Antônio diz que o pai, José Mariano Bento foi um homem inteligente. O convívio de ambos durou 39 anos. Generoso, não relutava em passar bons conselhos aos filhos. “Meu pai era muito conselhoso, muito generoso e muito sábio, ele não queria as coisas apenas para ele. Reza, palavras das bíblia sagrada onde estão as palavras de Deus”.


José Mariano Bento ficou doente de quase morte logo ao nascer. Mãe Fina prometeu que faria a festa para São José sempre na passagem de 18 para 19 de março com reza de ladainha, dança de São Gonçalo e canto de Cururu, tudo em louvor a São José. São José é o padroeiro da comunidade São José do Baixius. O garoto se levantou, o santo ouviu o pedido e a festa em devoção a São José iniciada pela mãe Fina acontece até hoje, promessa que tio Antônio carrega por toda sua vida. De mãe Fina para o abençoado José Mariano Bento, e deste para o filho Antônio de Souza Bento.


“Meu pai morreu mas deixou em nossas mãos a continuação da festa. Somos 13 filhos naturais e mais um adotado. Enquanto os filhos estiverem vivos não esqueceremos dos bons conselhos e da devoção que papai nos passou”, disse o tio Antônio. Ele procura fazer o bem porque aprendeu isso com o pai. Em consequência, tio Antônio entende que as amizades, as boas pessoas que aparecem na vida dele são virtudes que vieram dos ensinamentos do pai.


“Quem honra o pai e a mãe será honrado em vida também, são sabedorias divinas que chegaram aos filhos pelas palavras ditas por José Mariano Bento. Meu pai é um homem inesquecível porque foi bom aqui na terra. Ele foi uma das pessoas que levantou essa comunidade, ele é raiz daqui.”


Tio Antônio entende que a comunidade quilombola do Vão Grande enfrenta e enfrentou muitas batalhas. São um povo de luta que se espelha nos mais velhos como José Mariano Bento. Segundo tio Antônio o pai era um homem muito generoso, criou filhos, netos e tataranetos enfrentando toda dificuldade, ele nunca teve ambições de acumular. Pelo contrário, trabalhou para construir o reino de Deus aqui na terra. Reino de Deus aqui na terra é “onde não falta o pão na mesa de ninguém”.


José Mariano não tinha nenhum estudo mas batalhou muito para que os filhos aprendessem a ler e a escrever. “Na minha casa feita ainda de pau a pique e barreado, veio um professor da Barra do Bugres e dava aulas para as crianças em casa mesmo”. Queria os filhos “bem estudado e bem assentado”. Em 2007 as aulas passaram da minha casinha para a casa do meu irmão que tinha os cômodos um pouco maiores. Em regime de mutirão, a comunidade fez um barracão para acomodar a primeira escola. Desde as primeiras conversas sobre uma escola pública funcionando no território do Vão Grande, já aparecia a possibilidade de homenagear este pioneiro. “Meu pai sonhou com essa escola durante a vida toda. E nós lutamos muito pela escola até hoje.”


“Uma escola estadual com o nome de papai é que recebeu a criançada das cinco comunidades aqui do território quilombola para estudar”, disse o tio Antônio. E isso não é pouca coisa. Isso tem um significado simbólico, isso vincula ainda mais escola e comunidade, comunidade e escola. Numa perspectiva outra, a denominação da escola é resultado de uma história construída a muitas mãos, mãos calejadas do trabalho na terra, mãos molhadas das águas do Jauquara e do sangue de quem tombou lutando por esse território. E isso é muita coisa, isso é muita vida vivida neste chão. A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento meio que materializa tudo isso, ou seja, dá forma para a história de lutas. São lutas populares que dão forma a uma escola, e é uma escola resultante dessa luta popular.


Essa escola está na comunidade e suas raízes são profundas. Segundo o tio Antônio, um dia o secretário ou um assessor do prefeito marcou uma reunião e chamou a comunidade pra decidir o nome da escola nova. “Aqui teve um homem que foi professor a muitos tempos, o Elpídio deu aula na escola José Leopoldino”. Então tio Antônio disse: “Antes de ter estrada a gente circulava de a pé, a cavalo pelas picadas e, desde esse tempo José Mariano Bento já lutava por nossa comunidade”. Este nome funciona como uma espécie de homenagem aos ancestrais. Uma escola, Escola Quilombola José Mariano Bento.


“E nós não vamos deixar desdobrar essa escola que leva esse nome em homenagem a nossos ancestrais quilombolas”. Esse nome simbólico funciona como raízes profundas que vinculam a escola ao território, nas profundezas do território, lá onde está o lençol freático que, no período das secas, abastecem as plantas e seus frutos. 




Mais uma ameaça para as comunidades quilombolas


No dia 14 de outubro de 2024, a DRE - Diretoria Regional de Ensino - Pólo Tangará da Serra e a secretária de educação do município de Barra do Bugres, estiveram na escola para comunicar a municipalização da Escola Quilombola José Mariano Bento. O município seria o responsável pelo Ensino Fundamental Anos Iniciais e administração escolar, enquanto Ensino Fundamental Anos Finais e o Ensino Médio como sala anexa de uma escola urbana. A Fala do Diretor da DRE foi apenas COMUNICAR, pois já estaria tudo resolvido entre a SEDUC/MT e a Secretaria de Educação de Barra do Bugres, desconsiderando todas as pessoas envolvidas na Educação Escolar nesse espaço, profissionais da educação, estudantes, pais e moradores que tanto lutaram para uma escola com a estrutura atual no Território Quilombola Vão Grande.


A gestão da escola não foi informada sobre a reunião, surpreenderam todos os que estavam presentes nesse momento, alegaram que não o fizeram para que a escola e comunidade não se organizassem para recepcioná-los, como aconteceu no início do ano letivo, quando a DRE veio até a escola para empossar um diretor efetivo, e a comunidade disse NÃO, nós queremos uma profissional que conheça a nossa luta, por uma educação que valorize o conhecimento, a vivência, a ancestralidade, os saberes e os fazeres do nosso povo. Desde então, percebemos que algumas ações foram dificultadas para a escola, chegamos a pensar que isso poderia ser uma represália ao ocorrido no início do ano letivo. Justificaram também que o fechamento da escola se deve ao baixo número de estudantes, no entanto, esse fato é uma realidade das escolas quilombolas, indígenas e do campo, é preciso um olhar diferenciado para essas especificidades. É preciso educar também o olhar para as comunidades e os territórios onde uma escola está situada. Há escolas e escolas. Há escolas urbanas e escolas não urbanas, há escolas de cidade e há escolas que não estão nas cidades assim como há gente que mora nas cidades, a imensa maioria da população mora nas cidades mas não toda. Tem gente que prefere morar no campo, nas matas, nas florestas, nas aldeias, nas beiras de rio, em remanescentes de quilombo e toda gente tem direito a educação. Mas qual educação? qual escola? há que se reinventar a escola e isso não será feito nos gabinetes palacianos. A reinvenção da escola acontecerá nos territórios.


O redimensionamento é uma realidade no estado do Mato Grosso, várias escolas fechadas ou municipalizadas, um plano de educação que fecha escolas ao invés de construir escolas.

Na fala tanto do diretor da DRE quanto do diretor adjunto nada mudará, somente a escola deixará de ser administrada pelo estado e a responsabilidade será do município, mas será mesmo que nada mudará? Ou será mais uma tentativa de invisibilização e silenciamento de uma população que sempre lutou para que seus direitos sejam respeitados?


Foi com profunda tristeza que recebemos a notícia que a escola quilombola José Mariano Bento será desativada, e será sala anexa de uma escola urbana do município de Barra do Bugres, memórias de quando era sala anexa de quatro escolas urbanas, cada qual com suas próprias diretrizes, tudo o que não era mais utilizado pelas escolas e estava acumulado em seus depósitos era o que destinavam aos estudantes da comunidade. A arbitrariedade é tamanha que os estudantes dessa escola não foram rematriculados, estão à espera do período de novas matrículas para serem inseridos em uma escola urbana. 


A decisão de municipalização e desativação da Escola José Mariano Bento representa um retrocesso na luta pelo fortalecimento da Educação Escolar Quilombola nas cinco escolas do Estado de Mato Grosso.




O GOVERNO MAURO MENDES FECHA ESCOLAS


O GOVERNO MAURO MENDES É CONTRA EDUCAÇÃO











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Para saber mais um pouquinho sobre o Território Quilombola do Vão Grande e a escola estadual Quilombola José Mariano Bento, sugerimos:


- o artigo A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento e sua contribuição na preservação dos fazeres e dos saberes dos habitantes do Território Quilombola do Vão Grande, pesquisa da professora Madalena Santana de Sales que está disponível em < https://www.researchgate.net/publication/346402632_A_Escola_Estadual_Quilombola_Jose_Mariano_Bento_e_sua_contribuicao_na_preservacao_dos_fazeres_e_dos_saberes_dos_habitantes_do_Territorio_Quilombola_Vao_Grande

RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade 6(2)

DOI:10.23899/relacult.v6i2.1835



- o livro Narrativas do Interior, de Pedro Silva. Jovem quilombola ali da comunidade do Retiro que escreveu um pouco das tantas conversas com seu avô, o capelão, rezadô, cururueiro e liderança tradicional Francisco Sales da Silva, o pai-véio Chico. E está disponível em < https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2022/04/Narrativas_do_Interior_LIVRO_digital.pdf >

e uma boa explicação do livro numa matéria sobre o dia do rio Jauquara < https://escoladeativismo.org.br/pedro-silva-jovem-quilombola-do-vao-grande-mt-lanca-o-livro-narrativas-do-interior-leia-aqui/ >



- a live de lançamento do livro Narrativas de Interior está disponível em < https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=_rbiIBjLWvk


Amor de índio

clique no link ao lado para ler o texto ouvindo a canção 


O violeiro, cantor e ator Gabriel Sater regravou a canção ‘Amor de Índio’, dos mineiros Ronaldo Bastos e Beto Guedes. A canção diz assim:

Tudo o que move é sagrado / E remove as montanhas / Com todo o cuidado, meu amor

Sagrado é todo aquele espaço, objeto, símbolo, que tem um significado especial para uma pessoa ou grupo. A canção começa afirmando: “Tudo o que move é sagrado”, ou seja, todo movimento de vida, tudo aquilo que dispara movimentos, que coloca em movimento, que movimenta assim como o amor, o fruto do trabalho…

Sim, todo amor é sagrado / E o fruto do trabalho / É mais que sagrado, meu amor

Todo amor é sagrado. Não um amor específico, até essa família tipo papai, a mamãe e filhinhos, essa família tradicional que parte do Brasil tenta proteger aos berros. A canção fala do amor e não fala das pessoas que amam. Se fizermos um esforço de tirar o olhar da pessoa que ama e colocar o nosso olhar no amor, independente das pessoas, se colocarmos nosso olhar no amor de que fala são Francisco de Assis por exemplo, muda tudo. O artista mineiro fala do trabalho como movimento, como fazer humano.

A massa que faz o pão / Vale a luz do teu suor

E o fruto do trabalho é mais que sagrado: o trabalho do Beto Guedes em escrever essa canção… quanto tempo desde a primeira ideia até a canção finalizada? quanto ele pensou, quanto ele conversou, leu, se dedicou em cada frase, em cada palavra? nas escolhas dessa e não de outras palavras, quantos folhas de caderno riscou? sim, esta canção que é fruto do trabalho, é sagrada.

O trabalho do cavalo que puxava carroça desde o sítio até a cidade para oferecer o leite que alguém tirou da vaca, para oferecer o queijo que alguém produziu, para entregar os legumes e as hortaliças que alguém cultivou, para levar as frutas que as mãos humanas colheram mas que a natureza, a árvore, o sol, a chuva e a terra produziram. O fruto do trabalho é mais que sagrado, o trabalho é sagrado, o esforço humano e mesmo o não humano são sagrados porque são a expressão da vida acontecendo. Toda vida é sagrada.

Lembra que o sono é sagrado / E alimenta de horizontes / O tempo acordado, de viver / No inverno, te proteger / No verão, sair pra pescar / No outono, te conhecer / Primavera, poder gostar / No estio, me derreter / Pra na chuva dançar e andar junto…

Penso que para muitos povos indígenas a ideia de amor seja muito interessante, a ideia de trabalho e a relação com o tempo também. Alguns povos consideram o sono sagrado ao ampliarem o significado do sono para além um adereço da vigília, ao ponto de se reunirem logo que acordam para conversar a respeito dos sonhos e, a partir dos sonhos, definir o que será feito no tempo da vigília. Entendo que muito provavelmente a palavra ‘sagrado’ tenha chegado com as caravelas coloniais; Já a ideia, o sentido, o significado do ‘sagrado’ certamente não.

Sim, todo o amor é sagrado

“Índios são os membros de povos e comunidades que têm consciência de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus”. (Eduardo Viveiros de Castro, 2016)

Amor de Índio é uma canção de Ronaldo Bastos e Beto Guedes.

Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 17 de março de 2025





Amor de Índio com Gabriel Sater





conversa boa sobre Andarilhagens

Conversa boa com Carla Hummel e Murillo Pompermayer no Jornal Cidade de Rio Claro a respeito do livro Andarilhagens - uma pedagogia em movimento


em 19 de dezembro de 2023


disponível Canal de tv do Jornal Cidade de Rio Claro. Acesso em janeiro de 2025



Acesso ao livro: Acesso ao livro Andarilhagens - crônicas de uma pedagogia em movimento
 

Deus me proteja


Para ouvir a canção durante sua leitura, clique aqui: 


Chico César é um artista brasileiro, nordestino da Paraíba, nascido em janeiro de 1964. A canção Deus me Proteja, diz assim:

DEUS ME PROTEJA DE MIM / E DA MALDADE DE GENTE BOA / DA BONDADE DA PESSOA RUIM / DEUS ME GOVERNE E GUARDE, ILUMINE E ZELE ASSIM

É comum as pessoas pedirem proteção contra algum mal. Veja, o artista pede proteção de 3 coisas: 1) proteção dele mesmo, 2) proteção da maldade de gente boa e 3) proteção da bondade da pessoa ruim. Maldade não é exclusividade de gente má assim como bondade não é exclusividade de gente boa. Ninguém é sempre bom, ninguém é sempre mau, nós carregamos toda essa complexidade dentro da gente.

Um amigo me perguntou se “gente ruim pode fazer bondades”. Para ele, quando uma pessoa ruim faz uma bondade, é fake, é maldade com máscara de bondade. Estávamos no interior do Mato Grosso quando, numa audiência pública, um fazendeiro da soja disse: “Eu também quero salvar o rio Paraguai”. Salvar um rio sufocando suas nascentes com monocultura? Salvar o rio jogando veneno no solo? Salvar o rio com o veneno no lençol freático? Salvar o rio com o veneno que escorre para o leito do rio com as águas da chuva?

Eu posso (me) fazer algo ruim, você pode fazer, todos podem fazer algo ruim. Então, a maldade não está necessariamente vinculada ao outro, à ação ou ao desejo de outrem. Até pode ser, mas não necessariamente. Eu não estou livre da prática de maldades, deliberadas ou escondidas, claras ou escamoteadas, conscientes ou inconsciente. Seres humanos não são transparentes, somos opacos, a transparência é ilusão. O caminho se faz caminhando…

CAMINHO SE CONHECE ANDANDO / ENTÃO VEZ EM QUANDO É BOM SE PERDER / PERDIDO FICA PERGUNTANDO / VAI SÓ PROCURANDO / E ACHA SEM SABER

Podemos falar em deriva, palavra de origem latina que significa ‘mudar o lugar da corrente de um rio’. Mudar é bom, mas mudar como? Mudar para onde? Mudar por que? Não sei. Talvez tais respostas sejam o fim da deriva. Porque as perguntas disparam movimentos, boas perguntas nos colocam na deriva, na busca, na procura, na caminhada. E nesse movimento, pode ser até que você encontre algo, que ache mesmo sem se dar conta que achou. Mas há um perigo...

PERIGO É SE ENCONTRAR PERDIDO / DEIXAR SEM TER SIDO / NÃO OLHAR, NÃO VER / BOM MESMO É TER SEXTO SENTIDO / SAIR DISTRAÍDO, ESPALHAR BEM-QUERER

Se encontrar perdido é um perigo. Se perder é se encontrar. Se perder de si, tem muita música popular que fala desse processo, dessa busca, desse risco, desse perigo de se perder e se encontrar. De encontrar dentro de si monstros maléficos, eles nos habitam sim da mesma forma que criaturas de rara beleza também nos habitam. Em cada um ou cada uma de nós rola esse jogo, esse balanço, esse fluxo de contradições, é como se o nosso corpo fosse um campo onde rola uma partida de futebol: as forças que dão vontade de viver X as forças que nos deprimem, que nos amedrontam. Forças de vida X forças de morte. E está tudo bem. O grande desafio é olhar o jogo sem medo e sem julgamentos. Olhar para tudo isso em si mesmo mesmo sabendo que é mais fácil enxergar as contradições dos outros.

Deus me proteja é uma canção do Chico César.

Ivan Rubens


Chico César e Mestrinho muito bem acompanhados.



Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 21 de janeiro de 2025

Vieste

uma experiência bacana: leia o texto ouvindo a canção                  
para isso, clique aqui: 



Sabe quando você pensa num assunto meio nebuloso, meio sem clareza, meio sem saber com alguma precisão do que é que você está pensando? pois é… E é meio assim mesmo porque o pensamento pode começar como uma massa disforme que, com o tempo, pode ser esculpido. É como uma argila bruta que vai ganhando uma forma de vaso, de cerâmica, de escultura, de artesanato. Uma porção de argila bruta que vai se transformando em obra de arte por força do trabalho de mãos humanas, de esforço humano, do trabalho que é ao mesmo tempo manual e criativo. São as mãos e a cabeça, as mãos e o coração, as mãos movidas por uma força que vem de dentro, do sentimento e das emoções, da alma ou do espírito, do trabalho humano.


Estava ali um pensamento disforme, um embolado na cabeça, um pensamento que voltava. Daqueles que você se pega pensando naquilo sem perceber que era naquilo que você estava pensando. Estava ali um sentimento disforme, um embolado no peito, um sentimento que voltava. Daqueles que você se pega sentindo aquilo sem perceber que era aquilo que você estava sentindo. Não se dispunha das palavras para nomear. Até que uma canção trouxe as primeiras palavras, foi uma canção que trouxe linguagem e, com linguagem, a argila bruta foi se transformando em uma obra concreta, um embolado no peito foi ganhando palavras da cabeça para os dedos que marcam uma folha de papel. A canção diz assim: 


Vieste na hora exata / Com ares de festa e luas de prata / Vieste com encantos, vieste / Com beijos silvestres colhidos pra mim / Vieste com a natureza / Com as mãos camponesas plantadas em mim / Vieste com a cara e a coragem / Com malas, viagens pra dentro de mim / Meu amor


Podemos pensar que alguém chegou, chegou chegando pra valer. Chegou trazendo festa, encantos, beijos silvestres, chegou com a natureza, com mãos camponesas plantadas em mim.

Vieste, a hora e a tempo / Soltando meus barcos e velas ao vento / Vieste, me dando alento / Me olhando por dentro, velando por mim / Vieste de olhos fechados / Num dia marcado, sagrado pra mim / Vieste com a cara e a coragem / Com malas, viagens pra dentro de mim / Meu amor

Chegou promovendo derivas, tirando do lugar seguro e lançando numa extraordinária aventura de vidas, vindas e vivas. Deriva feito barcos com as velas ao vento. Você chegou definitivamente, velando, olhando. Chegou tocando com sua doce voz baixa suave, de poucas palavras, de fala melodiosa e chiado sotaque amapaense. Mas quero chamar a atenção para a parte mais forte da canção que, não à toa, se repete:

Vieste com a cara e a coragem / Com malas, viagens pra dentro de mim / Meu amor

Mas, e se a chegada não for necessariamente de uma pessoa mas de um sentimento? A chegada de uma pessoa pode trazer um sentimento, neste caso tudo está colocado numa pessoa, está personificado. É o triunfo do sujeito. Contudo, dessubjetivada a canção fica mais bonita: um sentimento chegou. Quem chegou foi o amor. Amor como força viva que toca a gente, amor como noite fria na cama quente. Vieste viagens pra dentro de mim, chegou, ficou. Está.

Vieste é uma canção de Ivan Lins e Vitor Martins.

Ivan Rubens








Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 24 de dezembro de 2024

#Ivan Lins #Vieste #MPB #Jazz na calçada