por
Ivan Rubens Dário Jr - Escola de Ativismo
Madalena Santana de Sales - professora
Neste texto faremos um exercício de pensar que uma escola pode ser muito mais do que uma escola. Um primeiro olhar para as escolas nos remetem a entrada com uma placa indicativa com o nome da escola, algumas grades e portões, paredes, portas, tijolos, telhado, uma escola em sua dimensão física. Logo percebemos que tem gente, as matrículas, professores, disciplinas. Tem gente que vê indicadores como o ideb e outros índices que tentam medir o aprendizado. Tem gente que vê ensino e aprendizagem, na distorção idade-série, nas aprovações e nas reprovações, nos planejamentos, nas assessorias pedagógicas desses institutos que “amam” a educação pública, os direitos trabalhistas, os corporativismos, tem gente que vê as políticas de acesso e permanência na escola, as bolsas e os pés de meia e tem gente que consegue ver os pés mesmo, com leia e sem meia, com chinelo de dedo e sem chinelo nenhum.
Neste exercício que estamos te convidado para fazer conosco, neste esforço de pensar para além disso tudo, pensar que uma escola pode ser mais que uma escola, vamos apontar nosso olhar e colocar nossa atenção em uma escola em particular: a Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento situada no Território Quilombola do Vão Grande no Mato Grosso.
O Território e a Escola
O território quilombola do Vão Grande está situado no vale do rio Jauquara, afluente do rio Paraguai. Em sua margem esquerda está o município de Porto Estrela, e neste estão a comunidade do Retiro e a comunidade de Vaca Morta. Durante muito tempo a passagem de uma margem para outra se dava por dentro da água mesmo nos trechos onde era mais rasinho. E no período das chuvas, quando o Jauquara estava mais cheio, os carros não passavam. Só passava na canoa. No território quilombola do Vão Grande se produz muita mandioca, macaxeira, muita banana, legumes como jerimum, frutas, e toda essa produção passava nas canoas até a outra margem para acessar os mercados e os consumidores. A mesma coisa acontece com os produtos e mercadorias que vinham das cidades, sobretudo o gás de cozinha e outros combustíveis oriundos do distrito de Currupira, do posto Currupira e das cidades mais próximas. Mais próximo aqui significa no mínimo 1 hora dentro de um carro na estrada de chão até acessar a rodovia MT-246 vencendo os cerca de 30 km em linha reta que, no traçado da estrada cruzando riachos e acidentes geográficos somam cerca de 45 km. Do outro Lado, na margem direita do rio Jauquara estão a comunidade do Baixius, a comunidade do Morro Redondo e a comunidade da Camarinha, estas no município de Barra do Bugres. Tanto Porto Estrela quanto Barra do Bugres compõem o estado do Mato Grosso. Estamos falando do alto curso do rio Paraguai, ou seja, mas para a região onde estão as nascentes do rio Paraguai e somam com as águas que abastecem o Pantanal.
A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento é, certamente, o único equipamento público permanentemente aberto e em funcionamento naquele território. A Escola é a presença do poder público, a Escola Quilombola é a presença do Estado brasileiro ali. A Escola Quilombola funciona como centro aglutinador de muita coisa, inclusive das cinco comunidades que compõem o território quilombola do Vão Grande.
Uma história da educação
Para falar um pouquinho da educação ali no território Quilombola do Vão Grande, contamos com a colaboração da professora Madalena Santana de Sales. Madá é professora de matemática e muito querida das cinco comunidades. Madá conhece a luta dos Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima, conheceu a luta pela defesa do Pantanal Vivo, participa das atividades organizadas pela Escola de Militância Pantaneira, é parceira da Escola de Ativismo e, por reconhecer a luta e valorizar todo esse movimento popular, no tempo que esteve à frente da Coordenação Pedagógica da Escola Quilombola ela estimulou a escola a participar desse esforço. Não foi, Madalena? Então conta pra gente um pouco da história da educação escolar no Território Quilombola Vão Grande.
Madalena Santana de Sales
A história da educação escolar no território Quilombola do Vão Grande tem seu início com as aulas ministradas nas casas, alguns alunos caminhavam mais de 10 km entre as morrarias. O professor era um membro da comunidade que dominava a leitura, a escrita e alguns cálculos básicos.
O Sr. Benedito Osvaldo, morador da comunidade Baixius, nascido no final da década de 1940, foi um dos professores. Ele estudou até a 3ª série, apenas alguns meses por ano, aprendeu a ler, escrever e fazer cálculos. Ele ministrava aulas de manhã para os alunos da Comunidade Baixius, Morro Redondo e Camarinha que pertenciam ao município de Alto Paraguai/MT, à tarde para os alunos da Comunidade Vaca Morta e Retiro que se localiza do outro lado do Rio Jauquara e pertenciam ao município de Barra do Bugres/MT. No período chuvoso, ele precisava atravessar o rio com os alunos na canoa, para diminuir o número de travessias, pois a capacidade de canoa não era suficiente para todos, ele colocava os alunos e puxava a canoa por uma corda.
“Eu atravessava o rio com seis alunos na canoa, eu colocava as crianças e puxava, para atravessar mais ligeiro, porque se eu entrasse na canoa tinha que fazer o percurso mais vezes, tinha que dar três, quatro viagem”, disse o Dito Osvaldo para a Madalena em junho de 2019. Ele ficava vários meses sem pagamento, precisava ir até Alto Paraguai para receber seu pagamento.
Certa vez, quando voltava do município de Alto Paraguai cujo percurso (cerca de 45 km) da MT-246 até o Território Quilombola…
“Eu fui, porque nesse tempo a gente tinha que ir até com rede pra dormir, porque não tinha onde dormir, daí eu levei uma bolsa com roupa e a rede e de lá pra cá eu fiz compra de mantimentos e, ainda trouxe livro, caderno, lápis, caneta e borracha, uma caixa que dava mais ou menos 7 kg ou 8 kg. O saco com os mantimentos pra cá, a bolsa aqui e a caixa na cabeça, saí de lá oito horas da manhã e cheguei oito horas da noite [...], noutro dia acordei com a cabeça inchada de carregar a caixa, não tinha costume de carregar nada na cabeça, vim a pé do estrada onde o ônibus parou até aqui” (Dito Osvaldo, junho de 2019).
A primeira escola construída foi na Comunidade Retiro. Sr Maximiano disse que o Sr. Leopoldino com a ajuda do prefeito de Barra do Bugres da época construiu a escola e levou uma professora para ministrar aulas. Ela não morava na comunidade, precisava subir e descer a serra para chegar à escola e, diante da dificuldade, abandonou as aulas.
“Quando eu era criança, minhas irmãs foram à escola, o Leopoldino buscou professora, conversou com o prefeito na Barra, ele trouxe material e fez a escola, então veio uma professora chamada Arcelina, mas nessa época eu não estudava, eu era bem pequeno, tinha que atravessar o Jauquara, as minhas irmãs mais velhas, todas as pessoas mais velhas de certa idade aprenderam a assinar o nome, com essa professora, com o passar do tempo, comecei a ir para a escola, mas logo a professora foi embora e não voltou mais” (Sr. Maximiano, morador da comunidade Baixius, disse para a Madá em Abril de 2019).
Na comunidade Vaca Morta, há uma escola, que leva o nome do Sr. Leopoldino. A escolinha foi desativada com a inauguração da escola José Mariano Bento em 2018.
O Sr. José Ambrósio também estudou na escola criada pelo Sr. Leopoldino.
“Pra ir à aula, eu atravessava a mata do Jauquara, lá na passagem do retiro. Eles me levavam lá, mas só quando era tempo de seca, no tempo da água não podia ir, pois Jauquara ficava cheio demais, eu não aprendi nada, só um pouquinho. O professor era o finado Leopoldino, era barbudo e tinha um filho chamado Godofredo. Pegava ele pela orelha e passava perto de nós com ele pendurado, meu Deus do céu, ficávamos com muito medo. O professor tinha uma palmatória furada, qualquer coisa que a gente fazia ele vinha de lá, ah, medo triste. Com o passar do tempo parei de ir à escola, mas nesse tempo todas as coisas eram tranquilas, eu não aprendi nada mesmo, mas era desse jeito, nesse tempo que nós vivíamos (Sr. José Ambrósio morador da Comunidade Morro Redondo. Abril de 2019).
O senhor Maximiano se lembra que “o prefeito de Alto Paraguai começou a criar umas escolas nas casas, na residência do Antônio e do compadre Manoel funcionou a ‘escola’ do Baixius”.
A prefeitura de Alto Paraguai construiu as escolas de madeira nas comunidades Morro Redondo, Camarinha, Baixius as comunidades Vaca Morta e Retiro pertencentes a Barra do Bugres compartilhavam a mesma escola. Em algumas comunidades, a escola era também a moradia das professoras e professores que ministravam aulas, preparavam o lanche e limpavam a escola. Era preciso buscar água no rio Jauquara e levar louças e roupas para lavar lá no rio também. Tais escolas atendiam somente até a 4ª série, que atualmente chamamos 5o ano. Após o término dessa etapa escolar, quem tinha parente na cidade mandava os filhos pra lá onde havia escola para continuar os estudos e, para quem não tinha parente na cidade só restava a opção do abandono escolar. Isso perdurou até 2002, quando as professoras Dinalva, Lucimara e Maria Helena que já atuavam nas escolas, uma em cada Comunidade, juntamente com os moradores conseguiram a abertura de salas anexas de escolas municipais. Então já era possível terminar o ensino fundamental, porém mais uma vez alguns alunos e pais sonhavam com o ensino médio.
Novamente entram em cena a Comunidade e as professoras (também moradoras na comunidade) para trazer o ensino médio, e assim as salas anexas são da Escola Estadual Sabino Ferreira Maia, a escola rural São José do Baixio, salas anexas da escola municipal Guiomar de Campos Miranda, atendendo os alunos do 6º ao 9º ano e o ensino médio da escola Sabino Ferreira Maia. Ou seja, três escolas diferentes funcionando num mesmo espaço físico.
Desde 2009 eu (Madalena Santana de Sales) comecei a fazer parte dessa realidade. Fui contratada como professora de matemática para ministrar aulas no ensino médio nas salas anexas da Escola Sabino Ferreira Maia. A escola possuía duas salas de aula, uma secretaria, dois banheiros e uma cozinha, para cerca de 200 alunos e alunas. O povo do Vão Grande construiu barracões cobertos de palha de babaçu para abrigar salas de aula. Em 2010, após muitas reivindicações e luta da comunidade, a SEDUC/MT criou em fevereiro de 2010 a Escola Estadual José Mariano Bento. As obras começaram em 2011 previstas para 12 meses mas se arrastaram por 4 anos. Muitos foram os problemas com a construção, a obra foi paralisada, diziam que a empreiteira vencedora da licitação entrou em falência. As aulas continuavam acontecendo nos barracões de palha babaçu…
Em 2014, as aulas foram interrompidas porque a palha de babaçu não aguentou o excesso de chuva. A solução mostra o espírito de luta:
A comunidade, a equipe escolar, professores, alunos e alunas OCUPARAM o prédio ainda em construção.
A cozinha e os banheiros funcionavam na antiga escola de madeira. Para comer e usar os sanitários, uma caminhada de 200 metros. Nova licitação para conclusão das obras mas escândalos envolvendo a SEDUC/MT e a empreiteira vencedora desta nova licitação e responsável pelas obras de finalização paralisou as obras pela segunda vez. O prédio onde hoje funciona a Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento foi concluído apenas em 2017.
Uma educação quilombola
As discussões sobre educação quilombola, para professores e professoras da cidade e mesmo da comunidade, eram novidade. As formações promovidas pelo CEFAPRO iniciaram. Devido às especificidades da educação escolar quilombola, as Ciências e Saberes Quilombolas compostas por três disciplinas: prática em tecnologia social, prática em cultura e artesanato quilombola e prática em técnicas agrícolas quilombola e as demais disciplinas também têm que trabalhar de acordo a realidade local considerando suas vivências, seus saberes e fazeres. O que fazer? Como fazer?
De posse da matriz curricular, com as novas disciplinas fornecidas pela Superintendência de Diversidade, iniciamos os trabalhos. A SEDUC/MT e o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação da UFMT ofereceram formação e aperfeiçoamento para as escolas quilombolas de Mato Grosso. Além dos cursos de formação, os professores da Escola Quilombola José Mariano Bento participam desde 2010 do Seminário de Educação promovido pela UFMT e da Jornada Desigualdades Racial na Educação Brasileira, apresentando relatos de experiências em educação escolar quilombola. Ainda em 2016, foi aprovado o PROINQ – Programa de inclusão de estudantes quilombola, com primeiro vestibular para 2017. O programa garante 100 vagas por ano e o acesso de alunos quilombolas em todos os cursos ofertados pela UFMT, com vestibular específico e as provas aplicadas nas Comunidades Quilombolas. A aprovação do programa se deu após muitas lutas da comunidade acadêmica, dos quilombolas e de instituições parceiras, uma ação afirmativa de reparação a tantos anos de desigualdades educacionais vivenciados pelos quilombolas.
Aos alunos aprovados e matriculados é disponibilizada bolsa permanência que os auxiliará nos gastos com moradia, alimentação e deslocamento, e também apoio emocional feito por psicólogos para ajudá-los nesse momento de adaptação à nova realidade longe do convívio familiar. Em 2018, o vestibular foi suspenso devido a restrições orçamentárias e consequentemente diminuição no número das bolsas permanência.
Em 2017, o Conselho Estadual realizou audiências públicas nas comunidades quilombolas com o título: A escola que temos e a escola que queremos. Com o objetivo de ouvir os anseios e as reivindicações dos moradores sobre as escolas dos quilombos. Nessa ocasião, as discussões foram as condições de acesso à escola e o término da obra. Em 2019, solicitou-se que se fizesse o levantamento da quantidade de quilombolas para ingressar na universidade pelo PROINQ e também o número de alunos que prestaram o ENEM, depois de cumpridas as exigências, estaria programado o lançamento do edital para o segundo semestre desse mesmo ano, porém isso não aconteceu. Se por um lado a educação escolar quilombola avançou nos últimos tempos, por outro os desafios ainda são grandes. A precariedade das estradas e o transporte escolar insuficiente, que não supre suas necessidades, são alguns aspectos que fragilizam a educação escolar no Território Quilombola Vão Grande. Devido à distância entre as cinco comunidades e somente um ônibus para fazer o transporte dos alunos até a escola, eles permanecem cerca de três horas dentro do ônibus, empoeirados e submetidos à temperatura elevada. Ao poder público compete oferecer condições dignas para que os alunos cheguem até a escola, desconsiderando todas as situações já relatadas pela comunidade escolar e moradores. A manutenção das estradas só é feita após muitas reivindicações da comunidade, sendo uma das principais ações para minimizar o sofrimento dos alunos.
A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento hoje
Pois bem, no Território Quilombola do Vão Grande está a Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento com, segundo o censo escolar (INEP) e dados finalizados em 2023:
fundamental anos iniciais | 12 |
fundamental anos finais | 26 |
ensino médio | 14 |
Educação de Jovens e Adultos | 25 |
educação especial | 02 |
total | 52 |
professores/as | 12 |
trabalhadores/as | 07 |
A escola é nova, suas dependências são boas, amplas e bem cuidadas. Possui acessibilidade nas dependências de um modo geral incluindo os sanitários, a água é filtrada e geladinha, as refeições são preparadas com muito carinho na própria escola. Biblioteca, sala de leitura, uma quadra poliesportiva ampla e coberta com arquibancada, que recebe atividades esportivas, sobretudo o futebol, que agrada meninos e meninas, jovens e adultos. A diretora tem uma sala para fazer o seu trabalho, tem sala para professores e professoras, tem internet quando a energia elétrica chega até ali (o funcionamento é irregular, cai com certa frequência). A escola possui equipamentos como TV, projetores, copiadoras, computadores, impressoras e etc. Estamos falando de um bom equipamento público em termos de estrutura e equipamentos.
Lembramos como se fosse hoje da festa junina que acontecia na escola em julho de 2019, escola lotada, a comunidade participando em peso da festa e, aproveitando a oportunidade, um abaixo assinado com algumas centenas de pessoas dizendo: PCH, AQUI NÃO!!! O abaixo assinado foi decisivo para o poder judiciário proibir a construção de uma pequena central hidrelétrica ali no Sarto do Jauquara.
As dificuldades também foram atualizadas. Diferente do que vimos acima nas falas do Dito Oswaldo, do Maximiano e do Zé Ambrósio, a comunidade e a escola lutam para melhorar o transporte escolar, instalar um laboratório de informática. Durante muito tempo o acesso à internet tem pacote de dados pago pelos professores. A biblioteca não possui acervo para pesquisas, ela é composta em sua maioria por livros didáticos, questões que fragilizam as pesquisas em livros e, pior do que isso, não permitem a criação de um gosto pela leitura. Sem biblioteca não há escola. Há? Claro que há escola sem biblioteca. De que escola estamos falando?
Quem foi José Mariano Bento?
Bem, vimos neste texto um pouco do território quilombola do Vão Grande e a história da educação escolar naquele território. Para tanto contamos com alguns depoimentos dos mais antigos e contamos com a colaboração da professora Madalena. A Escola Estadual Quilombola leva o nome de uma pessoa em tom de homenagem. Então, quem foi José Mariano Bento?
Para responder essa questão, contamos com a ajuda de Antônio de Souza Bento, o tio Antônio, filho do homenageado.
Tio Antônio diz que o pai, José Mariano Bento foi um homem inteligente. O convívio de ambos durou 39 anos. Generoso, não relutava em passar bons conselhos aos filhos. “Meu pai era muito conselhoso, muito generoso e muito sábio, ele não queria as coisas apenas para ele. Reza, palavras das bíblia sagrada onde estão as palavras de Deus”.
José Mariano Bento ficou doente de quase morte logo ao nascer. Mãe Fina prometeu que faria a festa para São José sempre na passagem de 18 para 19 de março com reza de ladainha, dança de São Gonçalo e canto de Cururu, tudo em louvor a São José. São José é o padroeiro da comunidade São José do Baixius. O garoto se levantou, o santo ouviu o pedido e a festa em devoção a São José iniciada pela mãe Fina acontece até hoje, promessa que tio Antônio carrega por toda sua vida. De mãe Fina para o abençoado José Mariano Bento, e deste para o filho Antônio de Souza Bento.
“Meu pai morreu mas deixou em nossas mãos a continuação da festa. Somos 13 filhos naturais e mais um adotado. Enquanto os filhos estiverem vivos não esqueceremos dos bons conselhos e da devoção que papai nos passou”, disse o tio Antônio. Ele procura fazer o bem porque aprendeu isso com o pai. Em consequência, tio Antônio entende que as amizades, as boas pessoas que aparecem na vida dele são virtudes que vieram dos ensinamentos do pai.
“Quem honra o pai e a mãe será honrado em vida também, são sabedorias divinas que chegaram aos filhos pelas palavras ditas por José Mariano Bento. Meu pai é um homem inesquecível porque foi bom aqui na terra. Ele foi uma das pessoas que levantou essa comunidade, ele é raiz daqui.”
Tio Antônio entende que a comunidade quilombola do Vão Grande enfrenta e enfrentou muitas batalhas. São um povo de luta que se espelha nos mais velhos como José Mariano Bento. Segundo tio Antônio o pai era um homem muito generoso, criou filhos, netos e tataranetos enfrentando toda dificuldade, ele nunca teve ambições de acumular. Pelo contrário, trabalhou para construir o reino de Deus aqui na terra. Reino de Deus aqui na terra é “onde não falta o pão na mesa de ninguém”.
José Mariano não tinha nenhum estudo mas batalhou muito para que os filhos aprendessem a ler e a escrever. “Na minha casa feita ainda de pau a pique e barreado, veio um professor da Barra do Bugres e dava aulas para as crianças em casa mesmo”. Queria os filhos “bem estudado e bem assentado”. Em 2007 as aulas passaram da minha casinha para a casa do meu irmão que tinha os cômodos um pouco maiores. Em regime de mutirão, a comunidade fez um barracão para acomodar a primeira escola. Desde as primeiras conversas sobre uma escola pública funcionando no território do Vão Grande, já aparecia a possibilidade de homenagear este pioneiro. “Meu pai sonhou com essa escola durante a vida toda. E nós lutamos muito pela escola até hoje.”
“Uma escola estadual com o nome de papai é que recebeu a criançada das cinco comunidades aqui do território quilombola para estudar”, disse o tio Antônio. E isso não é pouca coisa. Isso tem um significado simbólico, isso vincula ainda mais escola e comunidade, comunidade e escola. Numa perspectiva outra, a denominação da escola é resultado de uma história construída a muitas mãos, mãos calejadas do trabalho na terra, mãos molhadas das águas do Jauquara e do sangue de quem tombou lutando por esse território. E isso é muita coisa, isso é muita vida vivida neste chão. A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento meio que materializa tudo isso, ou seja, dá forma para a história de lutas. São lutas populares que dão forma a uma escola, e é uma escola resultante dessa luta popular.
Essa escola está na comunidade e suas raízes são profundas. Segundo o tio Antônio, um dia o secretário ou um assessor do prefeito marcou uma reunião e chamou a comunidade pra decidir o nome da escola nova. “Aqui teve um homem que foi professor a muitos tempos, o Elpídio deu aula na escola José Leopoldino”. Então tio Antônio disse: “Antes de ter estrada a gente circulava de a pé, a cavalo pelas picadas e, desde esse tempo José Mariano Bento já lutava por nossa comunidade”. Este nome funciona como uma espécie de homenagem aos ancestrais. Uma escola, Escola Quilombola José Mariano Bento.
“E nós não vamos deixar desdobrar essa escola que leva esse nome em homenagem a nossos ancestrais quilombolas”. Esse nome simbólico funciona como raízes profundas que vinculam a escola ao território, nas profundezas do território, lá onde está o lençol freático que, no período das secas, abastecem as plantas e seus frutos.
Mais uma ameaça para as comunidades quilombolas
No dia 14 de outubro de 2024, a DRE - Diretoria Regional de Ensino - Pólo Tangará da Serra e a secretária de educação do município de Barra do Bugres, estiveram na escola para comunicar a municipalização da Escola Quilombola José Mariano Bento. O município seria o responsável pelo Ensino Fundamental Anos Iniciais e administração escolar, enquanto Ensino Fundamental Anos Finais e o Ensino Médio como sala anexa de uma escola urbana. A Fala do Diretor da DRE foi apenas COMUNICAR, pois já estaria tudo resolvido entre a SEDUC/MT e a Secretaria de Educação de Barra do Bugres, desconsiderando todas as pessoas envolvidas na Educação Escolar nesse espaço, profissionais da educação, estudantes, pais e moradores que tanto lutaram para uma escola com a estrutura atual no Território Quilombola Vão Grande.
A gestão da escola não foi informada sobre a reunião, surpreenderam todos os que estavam presentes nesse momento, alegaram que não o fizeram para que a escola e comunidade não se organizassem para recepcioná-los, como aconteceu no início do ano letivo, quando a DRE veio até a escola para empossar um diretor efetivo, e a comunidade disse NÃO, nós queremos uma profissional que conheça a nossa luta, por uma educação que valorize o conhecimento, a vivência, a ancestralidade, os saberes e os fazeres do nosso povo. Desde então, percebemos que algumas ações foram dificultadas para a escola, chegamos a pensar que isso poderia ser uma represália ao ocorrido no início do ano letivo. Justificaram também que o fechamento da escola se deve ao baixo número de estudantes, no entanto, esse fato é uma realidade das escolas quilombolas, indígenas e do campo, é preciso um olhar diferenciado para essas especificidades. É preciso educar também o olhar para as comunidades e os territórios onde uma escola está situada. Há escolas e escolas. Há escolas urbanas e escolas não urbanas, há escolas de cidade e há escolas que não estão nas cidades assim como há gente que mora nas cidades, a imensa maioria da população mora nas cidades mas não toda. Tem gente que prefere morar no campo, nas matas, nas florestas, nas aldeias, nas beiras de rio, em remanescentes de quilombo e toda gente tem direito a educação. Mas qual educação? qual escola? há que se reinventar a escola e isso não será feito nos gabinetes palacianos. A reinvenção da escola acontecerá nos territórios.
O redimensionamento é uma realidade no estado do Mato Grosso, várias escolas fechadas ou municipalizadas, um plano de educação que fecha escolas ao invés de construir escolas.
Na fala tanto do diretor da DRE quanto do diretor adjunto nada mudará, somente a escola deixará de ser administrada pelo estado e a responsabilidade será do município, mas será mesmo que nada mudará? Ou será mais uma tentativa de invisibilização e silenciamento de uma população que sempre lutou para que seus direitos sejam respeitados?
Foi com profunda tristeza que recebemos a notícia que a escola quilombola José Mariano Bento será desativada, e será sala anexa de uma escola urbana do município de Barra do Bugres, memórias de quando era sala anexa de quatro escolas urbanas, cada qual com suas próprias diretrizes, tudo o que não era mais utilizado pelas escolas e estava acumulado em seus depósitos era o que destinavam aos estudantes da comunidade. A arbitrariedade é tamanha que os estudantes dessa escola não foram rematriculados, estão à espera do período de novas matrículas para serem inseridos em uma escola urbana.
A decisão de municipalização e desativação da Escola José Mariano Bento representa um retrocesso na luta pelo fortalecimento da Educação Escolar Quilombola nas cinco escolas do Estado de Mato Grosso.
O GOVERNO MAURO MENDES FECHA ESCOLAS
O GOVERNO MAURO MENDES É CONTRA EDUCAÇÃO
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Para saber mais um pouquinho sobre o Território Quilombola do Vão Grande e a escola estadual Quilombola José Mariano Bento, sugerimos:
- o artigo A Escola Estadual Quilombola José Mariano Bento e sua contribuição na preservação dos fazeres e dos saberes dos habitantes do Território Quilombola do Vão Grande, pesquisa da professora Madalena Santana de Sales que está disponível em < https://www.researchgate.net/publication/346402632_A_Escola_Estadual_Quilombola_Jose_Mariano_Bento_e_sua_contribuicao_na_preservacao_dos_fazeres_e_dos_saberes_dos_habitantes_do_Territorio_Quilombola_Vao_Grande >
RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade 6(2)
DOI:10.23899/relacult.v6i2.1835
- o livro Narrativas do Interior, de Pedro Silva. Jovem quilombola ali da comunidade do Retiro que escreveu um pouco das tantas conversas com seu avô, o capelão, rezadô, cururueiro e liderança tradicional Francisco Sales da Silva, o pai-véio Chico. E está disponível em < https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2022/04/Narrativas_do_Interior_LIVRO_digital.pdf >
e uma boa explicação do livro numa matéria sobre o dia do rio Jauquara < https://escoladeativismo.org.br/pedro-silva-jovem-quilombola-do-vao-grande-mt-lanca-o-livro-narrativas-do-interior-leia-aqui/ >
- a live de lançamento do livro Narrativas de Interior está disponível em < https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=_rbiIBjLWvk >