Numa partida de futebol em 1976, Dori Caymmi se contundiu. “Cheguei a operar. Fiquei deprimido e senti raiva do mundo”. Seu pai, Dorival Caymmi, disse: “Coloquem o violão perto do Dori que ele logo se acalma”.
A recuperação foi longa. Na cama, Dori dedilhava o violão. Foram chegando as imagens da Zona da Mata mineira e a saudade das Minas Gerais. Lembrou dos amigos do colégio, professoras/es, lembrou da cidade. “Deu aquela nostalgia, os primeiros acordes foram chegando. Eu estava lendo Guimarães Rosa e me lembrei de minha mãe cantando uma canção que me remetia aos hinos de Ouro Preto”. E surgiu o refrão: Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe. Dori se considera ⅓ carioca, ⅓ baiano e ⅓ mineiro: nascido no Rio de Janeiro, filho do soteropolitano Dorival Caymmi, filho de Stella Maris, mineira do interior.
Recuperado, Dori Caymmi mostrou a melodia e o refrão para o amigo e poeta Paulo César Pinheiro que escreveu algumas linhas. “À medida que fui escrevendo, imagens mineiras passavam na minha cabeça. Lugares como Sabará, São João del-Rei. Tudo surgia como imagens: ‘Por toda a terra que passo/ Me espanta tudo o que vejo’...
Por toda terra que
passo / Me espanta tudo o que vejo / A morte tece seu fio / De vida feita ao
avesso. / O olhar que prende anda solto / O olhar que solta anda preso / Mas
quando eu chego / Eu me enredo / Nas tramas do teu desejo.
O mundo todo marcado / A ferro, fogo e desprezo / A vida é o fio do tempo
A morte é o fim do
novelo. / O olhar que assusta / Anda morto / O olhar que avisa / Anda aceso. /
Mas quando eu chego / Eu me perco / Nas tramas do teu segredo.
Pinheiro aprendeu também a escrever a partir dessas imagens que apareciam na sua cabeça. “Conheci Minas dos livros de Guimarães. Quando me casei com a Clara, desbravamos os interiores de Minas Gerais”. Pinheiro foi casado com a cantora mineira Clara Nunes.
Ê, Minas / Ê, Minas / É hora de partir / Eu vou / Vou-me embora pra bem longe.
Composição: Dori se recompondo de um trauma, re_compondo consigo mesmo, se procurando no território e na própria história, compondo e recompondo no espaço e no tempo, compondo com o violão, com as imagens e as paisagens; Ao mesmo tempo em que Pinheiro está compondo, está tecendo suas próprias linhas. As linhas de vida se encontram, as linhas vão tecendo. Os artistas usam a palavra ENREDO para dizer que a vida é tecer as redes, ou seja, enredar. A imagem que me ocorre é o corpo de uma criança indígena acolhido numa rede, seguro, tranquilo e calmo, repousando e balançando na rede. A canção termina assim:
A cera da vela queimando / O homem fazendo o seu preço / A morte que a vida anda armando / A vida que a morte anda tendo. / O olhar mais fraco anda afoito / O olhar mais forte, indefeso / Mas quando eu chego / Eu me enrosco / Nas cordas do teu cabelo.
Desenredo dá ideia de desembaraço, o desenlace de uma rede. “Inclusive, digo isso como se estivesse desembaraçando o fio do tempo, à medida que ia passando por lugares centenários de MG”, afirma o poeta.
Desenredo é uma canção de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro.
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição impressa de 23 de março de 2021