Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade. / Muitos temores nascem do cansaço e da solidão / E o descompasso e o desperdício herdeiros são / A glória da virtude que perdemos. / Há tempos tive um sonho, não me lembro / não me lembro…
2/abril/1999 - Dois estudantes mataram 12 alunos e um professor da Columbine High School/EUA. 21 pessoas feridas. Os dois estudantes se mataram. Oscar de melhor documentário para Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore. Suzano completava 50 anos.
Tua tristeza é tão exata / E hoje o dia é tão bonito / Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso. Os sonhos vêm e os sonhos vão / O resto é imperfeito.
2003 a 2012 - Durante 8 anos morei na rua da Escola Estadual Raul Brasil em Suzano/SP. Parte dessa história está no livro “Pedagogias da Cidade: corpos e movimento” lançado em 2018 pela Appris editora. Em Suzano conheci muita gente bonita, colorida, mistura de raças e etnias, gente trabalhadora e dedicada. Suzano é conhecida como a Cidade das Flores.
13/março/2019
9 horas. Um jovem de 17 anos e um rapaz de 25, atiram em um comerciante de carros em Suzano, tio de um dos rapazes.
9h30. Os dois jovens entram na escola Raul Brasil, ambos ex-alunos, e matam a tiros 2 funcionárias e 5 estudantes do ensino médio. Tristeza exata e precisa: eles usaram um revólver com numeração raspada e armas brancas: uma machadinha e uma besta. Onze pessoas ficaram feridas. Na versão oficial, a dupla se matou no momento da chegada da polícia. Dez pessoas foram mortas. Jovens estudantes pularam os muros da escola às fugindo do massacre e buscando refúgio nas casas da vizinhança.
Disseste que se tua voz tivesse força igual / À imensa dor que sentes / Teu grito acordaria / Não só a tua casa / Mas a vizinhança inteira.
14/março/2019 - A polícia civil informou que os jovens planejaram o crime há tempos. Conseguiram apoio de pessoas que, na internet, discutem e incitam crimes de ódio e intolerância protegidas por ferramentas de anonimato. Ainda segundo a polícia, os jovens tentavam superar o massacre de Columbine. Num lado da cidade, um velório coletivo com parte das vítimas: milhares de vozes, gritos de dor ecoando pelo mundo. Noutro lado, uma desértica cerimônia de enterro dos réus: policiais, jornalistas e o grito surdo de uma mãe.
E há tempos nem os santos têm ao certo / A medida da maldade / Há tempos são os jovens que adoecem / Há tempos o encanto está ausente / E há ferrugem nos sorrisos / E só o acaso estende os braços / A quem procura abrigo e proteção.
17/março/2019 - Voltei a Suzano. Andei pela bairro e pela rua Otávio Miguel da Silva num reencontro com meu passado. Vi gente consternada. Sobre a tinta branca das paredes da escola, pedidos de paz em desenhos, sinais, palavras e frases. Marcas de mãos espalmadas. E muitas flores. A cidade das flores homenageando os filhos que partiram. A rua, o bairro e até mesmo a cidade já não são as mesmas. Talvez a cidade das flores seja conhecida, a partir de agora, como a cidade das mortes na escola.
Qual seria a medida da maldade? quantas vítimas somos? qual a nossa responsabilidade na produção de uma sociedade, uma juventude, que sente imensa dor? por que tanto cansaço e solidão? Estamos chocados, inconformados porque aconteceu desta vez dentro de uma escola pública. Parece que já não mais nos afetamos com chacinas nas periferias e favelas. Mas tanto um quanto o outro são, de alguma maneira, a materialização do gesto de campanha do atual presidente do Brasil. Dois jovens o levaram a sério.
disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem / Lá em casa tem um poço / mas a água é muito limpa.
Há tempos é uma canção da banda Legião Urbana. A canção começa falando de uma tristeza que entorpece. O clipe da canção sugere que o caminho de saída está nos livros, nas artes e na cultura. O buraco do poço é fundo e escuro, mas a água é limpa.
Ivan Rubens Dário Jr
geógrafo, doutorando em Educação.
publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 26 de março de 2019