Benzeção, Bento e a benta

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Um tal Antônio
Um certo tio
Num certo dia de julho naquele ano da graça de 2022.
Um tal Bento
Bento primeiro, Bento segundo, Bento terceiro
Bento, bento: re_Bento.
Rebentou

A rebenta: mais uma benta na família Bento.

O carro parou:
“Antonio Bento, sua neta nasceu no caminho da maternidade”

Parou na estrada aquele carro meia_bomba: explosão de vida!
Enfermeira, acompanhante, motorista…
Motorista… motorista que conta a história é aQuele que_mente. Um motorista clama pra vida vingar, um motorista chama pra vida chegar. Mais uma vida naquele Vão, naquele vale encantado, mais uma vida cabe porque a boa vida vale.

O motorista clama mas não mente. Melhorar uma história real é um fazer poético, é fazer beleza na hora de contar. É criar um interesse por um episódio, por um causo. Aprendemos isso com o pantaneiro Manoel de Barros. Aprendemos isso com o povo do sítio lá naquele grande Vão de morros. Prefiro falar serras, Vão de Serras, para não falar de morros. Talvez um grande Vão cujo rio do bravo jaú esculpiu a rocha das morrarias matogrossenses.

Naquela vale encantada
cheiro de terra molhada
passando pela vaca malhada
onde Saci Pererê é Subanaré
e sua traquinagem amarrando bezerro
e trançando rabos e cabelo

Mas nossa história aconteceu do outro lado do rio.
De início, uma certa expectativa tomou conta de mim.
Assim:
O Tal de Antônio, estava se transformando. O famoso pescadô, famoso pelas histórias e pelas capturas de grandes criaturas das águas doces pintadas de dourado, o Tal Antônio transformava-se. Não era noite, tampouco lua cheia. Transformação que dava vistas, ali, à luz do dia. Estava ali dentro do carro cruzando as águas do rio encantado, driblando criaturas enormes e jaús quarando nas beiras.

Besteira?
Não!

O minhocão das águas nos deu passagem,
O peixe grande, imensas rochas roladas no leito abriram passagem para a nossa embarcação, aquele pequeno fiat uno com velas imensas torneadas pelo vento derivando naquele mar de água doce.

Bem, nossa pequena embarcação passou com as rodas molhadas, mais uma vez cruzamos o Jauquara sob o sol escaldante daquele mato. Mas não um mato qualquer, um mato grosso, grosso grosso. No interior do vale encantado, no interior do Mato Grosso. Justo ali, do meu lado, o tal Antônio metamorfoseando. Logo vi…

Ele já não era o Antônio, quem estava ali era Bento,
do tal de Antônio para
o tal de Bento.

Seguimos para a casa da criança.
Uma criança que chora
que a mãe reclama
e clama por rezas
e clama por orações.
Ali estava a rebenta, pequena, num macacão vermelho.
Chegamos.
A criança não chora.
Amor
Amora
Ela vê o avô
Antonio Bento
Ele puxa uma folhinha de arruda que trouxe.
E começa o ritual

Bem, eu estava ali com o Antônio Bento para benzer a rebenta, Josiele, sua netinha recém chegada.
Antonio Bento fala as primeiras palavras quase sussurrando, a pequenina ri.
Uma ritualística que passa por um canto manso do avô, gestos com o braço direito que às vezes sugerem uma cruz rabiscada no ar, outras vezes desenham círculos sobre a menina. Os olhos da pequenina acompanham tudo atentamente. A canção é mansa, a voz do avô é doce. Faço silêncio. A criança ri.
Antônio está vestido de amarelo, Camiseta da Brigada Quilombola, gandola, calça e bota. No peito do macacão da menina, palavras: “Eu amo meu irmão”. Braços e pernas não param um minuto, parece que tenta acompanhar os movimentos do avô. Talvez uma benzeção chegue à pequena como o convite. Talvez a voz doce do avô, o Bento que benze, chegue como canção. Talvez os olhares se cruzem na graça e alegria. Sim, porque o avô é esse sujeito da palavra doce, do convite, do gesto sereno.

Olhos de jabuticaba.
Bento termina o ritual de benzeção, como ele diz, tocando a neta. As duas mãos espalmadas sobre os pés, depois no tronco. Quase tocando aquele corpinho frenético, e um breve sinal da cruz com o dedão da mão direita na testa da pequenina.

Ela ri.
Ela ri muito.
Parece gostar da brincadeira.
Para ela, brincadeira.
Para ele, benzeção.

Então, não ouvi choro nem reclamação.
Só ouvi doçuras.
Vi apenas gestos.
Apenas aqui compreendido como muita coisa.
Uma energia de vida pulsante entre aquele Bento e aquela criança.
Ele, Bento
Ela, benta

Mais uma benta na família Bento.
Eis a benzeção do Bento na pequena Josiele.


Segundo encontro:

A mãe sente dores no peito. Talvez consequência do início da amamentação, talvez uma certa angústia ou depressão como dizem no vale encantado. Tem muito canto neste vale: Siriri, Cururu, São Gonçalo, ladainhas. Pai-véio Chico, grande cantador e capelão cuja fama transita por todo canto deste Mato Grosso, observa esse encontro conosco.

A mãe sente dores e pede as bençãos do pai. Antonio Bento pergunta do choro da neta. Resposta: “não chora mais. Mas essa dor no peito, aqui no lado direito, essa não passa. Vai e volta. E volta”. Bento avô, agora Bento pai e nova benzeção.

Resultado?

Bem, quem sabe um terceiro encontro possa responder. De qualquer maneira, tudo ficará bem. Afinal, o vale encantado, esse Vão Grande de tanta música que sai das violas de cocho, da garganta afinadíssima das respondedeiras quando os capelão tiram a reza, do sotaque quase incompreensível para os ouvidos poucados do encantamento, da música linda que sai da garganta dos galos, das galinhas, vacas e bezerros, das muitas espécies de passarinho…. Vão Grande de muita beleza, das imagens e dos sons encantadores, do calor capaz de descongelar olhos e ouvidos poucados de encanto, beleza e poesia. Vão Grande de Ditos e não ditos, de Marias, Bentos e bentas, Rosas e mangas… De tanta beleza com força de cura para corpo e curas para a alma. Cura pela fé e pela beleza.


Antônio Bento, Josiele e Ivan Rubens

Em mim a embarcação


(Rabicho Luis e Ivan Rubens)



Deu-me o tempo a paciência

Feita em mim a embarcação

Sobre o mar da existência

Vim remando da ilusão

De um tempo à deriva aprendi

Que o mar arrebenta e passa

E o leme é de quem resistir

Quando a solidão disfarça

Navegante eu sei que sou

E espero amansar a maré

Confiante que o amor

Ancore seguro onde a vida der pé

Quero uma nova emoção

Como se eu fosse um marujo aprendiz

E um novo amor embarcando

No meu coração na rota mais feliz

Com as marés sempre tranquilas

E os bons ventos a favor

Singrando

Força estranha

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 Clique aqui para ouvir o texto

 dica: leia o texto ouvindo a canção 


Eu vi um menino correndo / eu vi o tempo brincando ao redor / do caminho daquele menino, / eu pus os meus pés no riacho. / E acho que nunca os tirei. / O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.

No final da década de 1970, Caetano Veloso encontrou Roberto Carlos nos corredores da antiga TV Globo. Um abraço saudoso seguido de uma constatação: o tempo passa para todos. Estavam ali dois grandes artistas populares. A canção continua:

Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. / A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou. / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.

Bela e provocativa a frase: “A mulher preparando outra pessoa”. Na gravidez, uma mulher prepara outra pessoa. Vejo certa afinidade com a educação infantil: mulheres preparando pessoas outras. Desde pequeno observo barrigas e escolas. Já habitei ambas, ainda habito. O tempo para enquanto olho barrigas. Via de regra, tudo começa no ato de amor entre seres vivos, e cresce no ventre da mulher um outro ser por 40 semanas. A mulher grávida nos dá a imagem da renovação do mundo e da vida. A vida seguirá seu curso, a esperança se renova. Escola é uma espécie de gravidez que dura alguns anos. A canção continua:

Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar. / Por isso é que eu canto, não posso parar. / Por isso essa voz tamanha.

Renovação do mundo, esperança de vida melhor para todos e todas, talvez seja a tal “força estranha” que move o mundo. Uma certa utopia, um certo lugar a chegar (o paraíso para alguns), talvez inatingível, mas que ilumina a nossa caminhada. E quando digo vida melhor para todas e todos, falo da vida como um todo, incluindo a vida humana. Só há vida humana quando rios e mares estão vivos, quando chuva e sol dão saúde para a terra, quando o ar venta saúde, com plantas e bichos saudáveis, quando rochas e montanhas estão vivas. Não haverá vida humana sem a vida pulsando na natureza. E a canção continua:

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece. / Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. / É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.

Nos corredores da antiga TV Globo, Roberto Carlos comentou que Caetano Veloso “estava um garotão bonito”, como se o tempo não passasse para ele: "É, bicho, artista nunca envelhece". A frase fecundou. Sem saber, Roberto lançou a semente num fecundo Caetano: o artista está grávido. Caetano seguiu por semanas com essa frase, indo e vindo, vagando e divagando, e a imagem de dois homens com cabelos embranquecendo. Fazer uma obra de arte, seja canção, um crônica, seja uma criança, é um processo de gestação e parto. Neste sentido, são muitas barrigas grávidas gravitando por aí todos os dias, em todo canto.

Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar. / Por isso é que eu canto, não posso parar. / Por isso essa voz tamanha.

Caetano Veloso, autor de Força Estranha, tem 80 anos. O artista não envelhece.

Ivan Rubens
Educador Popular