Esotérico (ou) Gil Moreno
Um Jeito Tucujú
Que mundo é esse?
ouça este texto na voz doce da professora Graziella Jordão Marcucci
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Este texto tem como título: Que mundo é esse?
mas poderia ser: Um pouquinho por dia...
Nasce um bebê. É linda essa cena. O choro da criança aparece como um símbolo, como um grito: cheguei! Mas, cheguei onde? que mundo é esse?
Coloque-se no lugar do bebê. Você fica cerca de 40 semanas dentro de uma barriga, protegido, protegida, recebendo tudo que precisa para sobreviver. Até que um dia, você, bebê, sai da barriga e vai para o mundo. Mas que mundo é esse?
Um bebê não fala. Mas, se falasse, o que diria?
O que você, bebê, diria na chegada a este nosso mundo?
Então você deixa aquele mundo de água, passa por um aperto danado, uma passagem estreita e é lançado/a para fora. Mãos te tocam, te enrolam em panos, dedo na tua boca, no teu nariz e teus olhos… E tem um choque térmico: se num hospital, certamente uma sala com ar condicionado em baixa temperatura, se numa aldeia na floresta provavelmente calor, muito calor. E seus braços se movem, pernas, mãos se movem, e coisas que você não conhece tocam no seu corpo, toalhas, paninhos, mãos, algodão. E um monte de ruído toca seus ouvidos, cheiros e tal, um mamilo encontra tua boca… o que te resta é sentir, sentir e sentir.
Ou seja, sua primeira relação com este mundo extra_uterino acontece nos cinco sentidos: audição, olfato, tato e, até, visão e paladar. Ouvidos, nariz, pele, e até os olhos e a língua são intensamente estimulados, mas você não tem palavras para dizer o que te acontece, ainda não tem linguagem, consciência, razão, isso virá com o tempo. Pelo menos não esta linguagem e esta razão que mobilizamos ao ler (e escrever) este texto. O que está operando em você, bebê, talvez uma experimentação intensiva. Você está nascendo para uma (muitas) vida(s) neste mundo. A primeira relação com este mundo fora do útero é sensível e, acredito, a sensibilidade pode ser cultivada durante a vida.
Tem uma palavra para dizer da “apreensão pelos sentidos”, dessa “percepção”. Estética deriva da palavra grega ‘aisthesis’, é uma forma de conhecer, de apreender o mundo através dos cinco sentidos. Uma música, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos ouvidos. Uma tela, exemplo de obra de arte, é uma criação humana que toca nossos olhos. Uma poesia, literatura, dança, ou o cheiro de uma comida, um prato bonito, o barulho da cerveja caindo no copo, o cheiro do vinho, a cor do suco da fruta colhida do pé, tudo isso vai criando um desejo. Estamos falando de um cultivo da sensibilidade que nos torna mais humanos, um pouquinho por dia.
‘O contrário também sei que pode acontecer’: podemos cultivar sementinhas de medo e ódio, um pouquinho por dia. Acredito nas belezas como produtoras de sensibilidades e de uma humanidade mais interessante. Quero sugerir duas obras de arte: JEITO TUCUJÚ, de Joãozinho Gomes e Val Milhomem, (hino popular do Amapá); e SABOR AÇAÍ, de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves, homenagem a esse alimento maravilhoso que é o açaí. A Música Popular Amapaense é um mundo de beleza e poesia. Um pouquinho por dia.
Ivan Rubens
Educador popular
A Vida Boa de Zé Miguel
Ele poderia dizer: amanheceu! Mas um artista não fala assim. Um artista da música faz, com palavras e sons, obras de arte. Um artista nos apresenta paisagens, mostra a potência do simples, abre nossos sentidos para perceber a beleza.
A canção Vida Boa começa assim:
O dia nos chega toda manhã / Com nuvens de fogo pintando o céu / Um ventinho frio sopra sim e assim / Vez em quando se escuta o canto do Japiim.
Uma obra de arte requer atenção. O artista coloca nossa atenção nas cores da manhã, no vento, no canto do Japiim. Japiim é uma ave de plumagem preta e amarela, comum na Amazônia brasileira, que tem uma característica peculiar: não tem um canto próprio, ele imita o canto dos outros pássaros. Ou seja, o artista sugere que é possível escutar o que ainda não foi dito, é possível ler nas entrelinhas. Pura provocação.
A canção continua…
A canoa balança bem devagar / A maré vazou, encheu, é preamar, eh / O Zé vai pro mato apanhar açaí / Maria pra roça vai capinar / A vida daqui é assim devagar / Precisa mais nada não pra atrapalhar / Basta o céu, o sol, o rio e o ar. / E um pirão de açaí com tamuatá.
O artista fala de um lugar onde as pessoas vivem do jeito que lhes agrada. Uma pessoa da cidade, com cabeça de cidade, carioca ou gaúcha por exemplo, talvez tenha muita dificuldade de se libertar do ritmo frenético dos apps como o tiktok e o twitter, da rotina acelerada do Zé Delivery ou do ifood, ou de uma Maria ligada aos ritos palacianos. E, escorregando em julgamentos morais, dizer que a canção “estimula a vagabundagem”. Quem dera???
A canção apresenta uma vida onde o trabalho na roça, na coleta, na pesca, parece voltado à ‘subsistência’. O Zé vai para o mato apanhar açaí, Maria vai capinar a roça. Devagar, divagando. Me alegra pensar que a natureza nos oferece tudo o necessário para sustentação da vida: água, ar, comida. E pensar que ainda há no Brasil comida partilhada: açaí no pé, peixe no rio, mandioca na terra, banana. Aliás, Tamuatá é um peixe típico dos rios da Amazônia, saboroso, combina bem com o açaí, talvez você conheça por Cascudo.
Uma obra de arte tem a potência de colocar um mundo diante de outros mundos, uma vida diante de outras possibilidades de vida.
A canção continua…
Que vida boa sumano / Nós não tem nem que fazer planos / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa / Que vida boa suprimo / Nós só tem que fazer menino / E assim vão passando os anos / Eita! Que vida boa
Sumano é um regionalismo para expressões de carinho, tipo “irmão querido, querida irmã”. Disse o artista: “Quando eu era criança, nas férias escolares, eu voltava ao encontro da minha família no interior do Amapá, num lugar chamado Mel. Lá vivia meu avô, e foi lá que eu tive contato com os elementos da natureza na sua essência, eu aprendi a respeitar a natureza e o homem vivendo em harmonia com ela. Essa canção foi feita para homens e mulheres do campo”. ‘Fazer menino’ é um jeito bonito de dizer que a vida tem profundidade, um jeito bonito de dizer que o que interessa na vida, bom… isso não cabe nos planos.
Vida Boa é uma canção do amapaense Zé Miguel.
Ivan Rubens
Florescer, florestar.
Saiu de casa cedinho. Partiu da cidade até o porto, uma horinha de estrada. Choveu muito naquela noite. Começo de ano na linha do equador é inverno, chuvoso e quente, mas nuvens de chuva dão um certo conforto térmico. Ele carregava rede, mosquiteiro, corda e um computador com livros e filmes gravados. Aconselhado pelos povos do lugar, carregava uma camisa de manga longa para proteger do frio da noite.
O professor chegou ao porto fluvial, embarcou na voadeira e navegou lentamente pelo igarapé que estava enchendo. No rio Ipixuna Miranda a velocidade aumentou; certa calmaria no imenso rio Amazonas até a foz do rio Macacoari. Mais um igarapé… jogaram a corda, saltaram. O trapiche recebe os professores com a alegria de uma escola na floresta. Adoro essa palavra: FLORESTA. Na minha imaginação a palavra entoa verde, como céu entoa azul, água salobra aflora exuberante. A palavra floresta já chega com bichos, com chuva, com mato, palmeiras carregadas de açaí. E penso em gente, porque na floresta tem gente, sempre teve. Floresce gente desde sempre na floresta.
Uma gente que “vive em harmonia com a floresta”. Quem pensa assim talvez nunca tenha passado pela floresta, talvez não conheça a floresta e a sua gente. Talvez pense assim quem nunca teve contato com a floresta em sua bio_diversidade. Essa ideia de “harmonia” parece um tanto exótica, parece o olhar de fora. Na floresta, o professor vê uma outra coisa. Na escola da floresta, o professor escuta um produtor rural que participa da Cooperativa de produtores de açaí insistindo na palavra pertencimento. Abre-se aí uma perspectiva nova de pensar, colocando o conhecimento teórico de um professor em contato com a vida real dos povos na floresta. Portanto, não se trata de viver em harmonia, mas de pertencer a um território.
Pronto, encontrei o que procurava na escrita deste texto: pertencer!
Um fazendeiro, proprietário de terra, diria: “essa terra me pertence!”, “essa terra é minha, sou proprietário!” Já os povos da floresta dizem: “pertencemos a essa terra”. Gente que é da terra dizendo pertencer à terra, que pertence ao território, que são próprios do lugar, que são nascidos deste chão. Gente que está na terra há muito tempo, mas muito tempo mesmo... Muito antes de Pedro Álvares Cabral e a máquina colonial, muito antes de reduzirem a terra à mera mercadoria, essa gente já estava na terra, essa gente florescia. Gente que pertence à terra, gente que é terra, terra com roupa de gente.
Por isso não se trata de estar em harmonia com a terra. Trata-se de pertencer à terra, de ser parte da Terra, de pertencer à Floresta e de ser floresta também. Todo nascimento, de um bichinho ou de uma criança, é uma espécie de florada como um botão de rosa que se abre, vida desabrochando, florescer de uma vida nova. Não há dicotomia entre natureza e cultura. É uma questão de ser e de estar: ser terra, ser rio, ser flor, ser vivo, ser natureza. Ser e estar floresta: florescer, florestar.
Ivan Rubens
Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro na edição de 21/fevereiro/2023