Caía / a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto...
Aldir Blanc Mendes nasceu no Rio de
Janeiro em 1946, filho de Helena e Alceu, homem de poucas palavras, neto do
afetuoso português Antônio Aguiar. Criado pelos avós em Vila Isabel, bairro de
origem de tipos e cenários, comportamentos e paisagens que, dado seu olhar
aguçado, povoam sua obra. No bairro do Estácio encontrou a malandragem carioca.
Na Tijuca conheceu a Vida Noturna, a boemia, futebol, blocos de carnaval, a
escola de samba Acadêmicos do Salgueiro...
Louco
/ o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil / pra noite do Brasil.
Em 1969 esteve com Ivan Lins e
Gonzaguinha no Movimento Artístico Universitário. Graduado em medicina, fez
residência em psiquiatria no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de
Dentro. Esteve com Nise da Silveira e a enfermeira Ivone Lara (sim, a dama do
samba) em luta contra o uso do eletrochoque em ‘doentes mentais’ internados no
‘manicômio’ (para usar as palavras da época). As práticas de vida cantam, as
lógicas de morte calam.
Não raro era visto conversando nas
ruas, nos bares do centro do RJ com seus pacientes. As práticas de vida
expandem, produzem aberturas. Abrem os olhos para as belezas do mundo e da
vida, afinam os ouvidos, aguçam os sentidos… em 1973, parcerias com João Bosco
estavam na voz de Elis Regina. Aldir perde Maria e Alexandra, filhas gêmeas do
casamento com a professora Ana Lúcia e o médico dá lugar ao compositor. Na
medicina se luta contra a morte; Na arte a vida se faz mais viva, mais e mais
viva.
Na rua Garibaldi viveu no mesmo
prédio que Moacyr Luz. Subindo e descendo, o elevador gestou fitas K7 e letras
em papéis, a parceria pariu boas canções. Nos anos 80 foi se afastando dos
hábitos sociais, aprofundado por um acidente de carro em 1991. Equilibrista,
Aldir dedicava se dedicava a longas ligações telefônicas aos amigos, à música e
literatura.
Moacyr Luz conta uma história
interessante. Saíram numa 5a feira para um final de semana no sítio. Aldir
levou 4 malas: numa estava o ventilador; nas duas malas mais pesadas estavam
livros; na pequena sacola, algumas roupas. No sítio, Aldir leu compulsivamente
e ambos se encontraram apenas no momento de carregar o carro para retornar ao
RJ. Aldir se equilibrava nas linhas da mitologia grega, da psicanálise,
romances policiais, do jazz.
E
nuvens, / lá no mata-borrão do céu / chupavam manchas torturadas / Que sufoco /
Louco / Um bêbado com chapéu torto
Este trecho da canção “O Bêbado e a
Equilibrista” nos ajuda a atualizar a ‘loucura’. Um médico que deixa o hospital
psiquiátrico para fazer do prosaico poesia, alerta:
Chora
/ a nossa Pátria mãe gentil / choram Marias e Clarisses / no solo do Brasil
Maria, viúva do Francisco Manoel Filho, Clarisse, viúva de Vladimir Herzog, e a dor das vidas perdidas nos porões da ditadura militar. Hoje as ditaduras calam com armas mais sofisticadas: em 4 de maio, Aldir foi uma das vítimas da epidemia do descaso bolsonarista e da pandemia do covid19.
publicado no Jornal Cidade em 19 de maio de 2020.
Maravilhoso texto! Merecida homenagem. Necessário protesto.
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