Por que que a gente inventou esse nome de texto baba?
A palavra texto baba foi inventada para dar conta de alguma coisa que estava querendo produzir... mais do que uma coisa que agente estava querendo produzir, é um lugar desde o qual a gente pensa. E a palavra baba veio porque uma vez conversando com Pierre Fédida, (analista da Lygia Clark), um psicanalista muito interessante porque se ligava muito na questão dos afetos, e ele disse: as palavras são excreções do corpo, elas são baba e aos poucos ela vai encontrando as roupinhas com as quais elas vão se apresentar.
As palavras, elas tem o conteúdo delas o significado que a gente apreende com a nossa capacidade cognitiva (nossa capacidade cognitiva é integralmente estruturada na linguagem, no repertório cultural de que a gente dispõe), então as palavras estão dentro de uma cartografia de representações, de significado. Mas as palavras são vivas nas inscrições do corpo. Que corpo? essa capacidade que tem um corpo, que é muito diferente da sua capacidade cognitiva, que é de ser afetado pelo corpo vivo do mundo é nossa condição. Uma coisa é nossa experiência subjetiva como sujeito integrado na cultura e etc; e outra coisa é nossa capacidade subjetiva como ser vivo. A experiência que a capacidade subjetiva faz como ser vivo, que é como o mundo (o cosmo e não só a Terra) que é um imenso corpo feito de forças de todas as espécies em relações que vão variando, afeta nosso corpo. Palavra afecto com c (porque não é afeto de carinho), é afecto de ser afectado, de ser tocado, de ser perturbado, de ser contaminado. E isso produz uma experiência que não tem imagem, não tem palavra, mas que ela cria uma outra maneira de ver e de sentir. E é essa experiência que, na sua tensão com o nosso campo todo de representações, significados e etc, é ela que funciona como um alarme que força o desejo a agir. O desejo entra em ação pra conseguir dar um corpo para essa experiência de maneira que ela passe a participar da realidade, das nossas imagens e etc... E que muda, muda o mapa ali. Então, essa experiência, essa ação do desejo é que é o pensamento.
Então o pensamento tem uma função ética, porque ele tá a serviço da vida pras demandas da vida;
O pensamento tem uma função cultural, porque ele produz algo novo que muda a cartografia cultural do presente;
O pensamento tem uma função política, porque através dessa experiência (e o pensamento sobre o que fazer com essa experiência) que a gente cria escolhas e cria o que é necessário criar para que a vida individual e social volte a respirar, volte a pulsar.
E o nosso texto baba é um exercício pra poder conquistar essa capacidade de se reconectar com isso que eu chamo de saber do corpo que nós, caras pálidas, estamos destituídos desta conexão, (isso é uma das características fundamentais da subjetividade na cultura moderna-ocidental-colonial-capitalista-burguesa etc etc etc….) inclusive na subjetividade de esquerda. A esquerda é a melhor que nós temos a democracia burguesa que é o que zela, que visa a uma melhor distribuição das riquezas materiais e imateriais.
Na nossa tradição de cara pálida o pensamento, ao contrário (como a gente está desconectado com isso), ele serve pra nos apaziguar da turbulência que essa experiência nos traz e do medo que a gente fica de se desagregar, do mundo cair, de acabar o mundo. Porque como a gente não tem essa outra capacidade, a gente só se baseia apenas na capacidade cognitiva, o mundo que é tal como é, parece que é O MUNDO e não esse mundo. Então, quando isso fica desestabilizado com essas novas experiências, essa subjetividade reduzida ao sujeito ela fica apavorada.
E no pensamento acadêmico como é que se traduz? eu crio uma coisa, uma espécie de alucinação de completude, de verdade, que me acalma. Qual é a consequência disso? isso é gravíssimo!
- do ponto de vista ético, você tá interrompendo um processo de criação vital absolutamente necessário para vida estar bem, o tal do viver bem dos indígenas (que agora entrou na moda, entrou para esse sentido da perspectiva de quem está desconectado). Então, do ponto de vista ético é uma interrupção do processo vital;
- do ponto de vista político é uma conservação de status quo;
- do ponto de vista cultural também, é a manutenção do campo de representações.
A ideia é a gente praticar isso juntos: nós, os alunos, porque eu também... os professores…(haaaa, os professores já sabem…???!!!) mas isso é a luta de uma vida. E o que é uma vida pra valer? é quando você está o tempo inteiro, do começo ao fim, cada vez conquistando mais possibilidades de dar espaço para isso. Então o nosso objetivo é compartilhar um exercício do pensamento desta maneira para agente ir avançando junto. Nossos seminários convidam as pessoas a apresentarem o que estão pensando nessa forma do texto baba, e ao mesmo tempo os grupos de trabalho vão trabalhando nisso e avançando junto…..
produção do texto baba:
Como é que a gente combina o texto baba? como são as consignas?
Primeiro você entre em contato com aquilo que está mais te inquietando, você sabe que tá no teu corpo, é uma experiência que tá tendo ou que acabei de ter, uma experiência que é real, e que você não tem palavra, não tem imagens... então o texto baba é pra tentar achar as palavras pra dizer, e a gente pede pra fazer só um parágrafo, é mais fácil do que escrever um monte pra dar nome pra essa inquietação, né?
Essa inquietação que é a experiência do mundo enquanto ser vivo ou o modo como o mundo enquanto o corpo vivo nos afecta, cria novas experiências, novas maneiras de ver e sentir que não tem palavra, não tem gesto, que não tem imagem. Então o exercício do pensamento consiste em encontrar essas palavras.
E uma dica que a gente dá é: se você começa a se agarrar nas palavras de autores que a gente adora (e a gente adora porque encontra essa ressonância lá - não se trata de imitar as ideias dele - é que encontra porque o autor está fazendo esse esforço e a gente fica mais fortalecido), então na hora que vem essa palavra você tem que ver que experiência você está nomeando com aquela palavra. Às vezes você botou uma palavra de um autor e quando você vai escrever saem duas palavras, saem duas frases sai um parágrafo, sai um livro às vezes... Então esse é o esforço…
E a gente pede também pra buscar em algum autor que você encontre uma ressonância, não que eu ele esteja pensando que você quer pensar, mas que leve em conta que o autor está nesse esforço e que as palavras dele estão vivas porque elas são (palavras) portadoras dessa experiência. Porque a palavra ela não é só o significado, isso é, o que a gente decifra com nossa capacidade cognitiva. As palavras são vivas porque são portadores de experiências vivas. Então quando a gente sente que tá pulsando isso lá a gente se sente acompanhado, não para imitar, a gente se sente acompanhado para fazer o próprio caminho, o próprio processo, a própria criação.
Então a gente perde: encontra algum parágrafo de alguém (ou pode ser um pedacinho de filme) onde você sente que está. E só. Porque quanto mais conciso, mais a gente vai ter que batalhar para estar só nessas palavras não escapar. Porque aí o grupo de trabalho vai ajudar todo mundo a ver aquilo, desenvolver aquilo, ver aonde aquilo escapou. Porque em geral, como eu dizia, escapa porque baixa o superego acadêmico eu sou burro, como é que vou falar com minhas palavras, eu tenho que falar com as palavras do Foucault, do Deleuze, do Marx, (do raio que o parta, depende do meu repertório), porque caso contrário serei mal visto. Ainda vão dizer: isso aí é subjetivo! Porque como o cara pálida tá acostumado a usar só uma parte da experiência subjetiva que é o sujeito com sua capacidade cognitiva, com sua vontade, com sua consciência, totalmente estruturado no mapa cultural, a gente costuma achar que tudo o que fala a partir da experiência subjetiva é o sujeito, mas não é. É justamente nosso esforço de conquistar essa outra experiência da subjetividade que é essencial para assumir, tomar nas mãos, tomar a responsabilidade da vida... porque não tem outro lá no Céu. Porque essa responsabilidade é nossa!!!
Referências
Suely Rolnik e o texto baba. Seminário Novos Povoamentos, 2016. Disponível em: . Acesso em: 17/set/2016.
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