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De volta pro Aconchego

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uma experiência 



Dominguinhos (José Domingos de Morais, 1941-2013) é pernambucano, sanfoneiro, cantor e compositor. Amigo de Luiz Gonzaga, sua formação musical passa pelo baião, bossa-nova, choro, forró, xote e jazz.

Dominguinhos e Luiz Gonzaga são artistas. Artistas são pessoas dotadas de grande sensibilidade, são pessoas à flor da pele. Artistas são pessoas que carregam dentro de si a energia da criação. Sem a criação, artistas talvez não conseguissem viver, talvez implodiriam. Trata-se do contrário: artistas são seres em explosão, seres em erupção. Imagine uma bexiga de festa infantil que explode quando cheia demais. Imagine um vulcão que dá passagem ao magma incandescente desde as profundezas da Terra para a superfície, derramando lava, a rocha em estado líquido. A imagem do vulcão nos ajuda a pensar como eu imagino que aconteça no corpo dos artistas: a criação como uma fervura que está nas profundezas da alma humana, que passa pelo corpo do artista e chega à superfície, que derrama no mundo sua beleza em forma de arte. Uma canção, por exemplo.

De Dominguinhos e Nando Cordel, a canção “De volta pro aconchego” diz assim:

Estou de volta pro meu aconchego / Trazendo na mala bastante saudade / Querendo um sorriso sincero, um abraço / Para aliviar meu cansaço / E toda essa minha vontade

O eu lírico fala da alegria de retornar a um lugar. Um lugar que, neste caso, pode ser uma cidade, uma casa, um lugar de aconchego. Ele chega trazendo na mala saudade, o desejo de um sorriso e um abraço. Um abraço como o lugar do aconchego. A canção continua…

Que bom poder tá contigo de novo / Roçando o teu corpo e beijando você / Pra mim tu és a estrela mais linda / Seus olhos me prendem, fascinam / A paz que eu gosto de ter

Contigo, "roçando o teu corpo e beijando você", indica ser o lugar do aconchego uma pessoa. Uma pessoa com o brilho da estrela mais linda, cujo olhar fascina, cuja presença produz um ambiente de paz. Afinal, “quando a gente ama, brilha mais que o Sol”, mas essa é outra canção (rs).

É duro ficar sem você, vez em quando / Parece que falta um pedaço de mim / Me alegro na hora de regressar / Parece que eu vou mergulhar / Na felicidade sem fim

Se é duro ficar sem esse lugar de aconchego (e é), por outro lado, acessar este lugar do aconchego é sentir uma felicidade sem fim, uma alegria eterna. Uma eternidade no sentido da ternura, da chama acesa, da vida que pulsa. E do desejo de mergulhar mais profundo, mesmo que um pouquinho mais profundo, num encontro potente, um encontro que significa um tempo e um espaço à parte, um tempo e espaço separado da rotina, separado do dia-a-dia, um tempo e um espaço para contemplação e sublimação. Sublimação como observar um amanhecer, um nascer de Sol, um ser novo que vem à luz do dia, ou um golfinho que salta nas águas, um boto, uma preguiça na árvore. Uma criança que pedala a bicicleta sem as rodinhas e sem as mãos de um adulto, que caminha pela primeira vez, uma criança desenhando ou lendo sozinha as primeiras letras. Uma castanheira na floresta amazônica. Comer fruta do pé.

Ivan Rubens
educador




Garupa de moto amarela


leia o texto abaixo ouvindo a canção. clique aqui:  



Tim Bernardes é um jovem artista. Nascido em 1991, é cantor, compositor e produtor. Eu já o conhecia antes mesmo de conhecê-lo. (rs)

Tim Tom Tim Tom… Em 2013, o tropicalista Tom Zé gravou "Papa Francisco Perdoa Tom Zé", leitura das redes sociais como tribunal para condenação sumária de comportamentos e pessoas: o feicebuqui como tribunal da santa sé. Para minha surpresa, a canção não é criação de Tom Zé mas de Tim Bernardes. Interessante saber da obra e depois saber de seu criador.

Também de Tim Bernardes, “BB (garupa de moto amarela)”, diz assim:

Tudo em volta tem me confirmado, bebê / Que eu e você somos coisa de alma / O universo tem deixado claro, bebê / Só quem não quer ver, não enxerga / Namora comigo, eu namoro com você / Garupa de moto amarela / É meu feriado favorito, você / Quem eu quero ser tem que estar do seu lado

Um rapaz recebeu essa canção de sua namorada. Ela costuma ouvir atentamente a letra das canções, descobrir os mistérios da música, desvendar os mundos que os artistas apresentam em suas obras de arte. Uma obra de arte cria, apresenta, revela mundos. Soledad, a garota, costuma ouvir repetidas vezes, buscar, mergulhar, ela tem o bom hábito de habitar as canções. Fã de Belchior, Soledad é boa ouvinte das melodias, cantora atenta aos andamentos, leitora das letras. Surpreso com a descoberta da namorada, Gira, o rapaz, gostou de “é meu feriado favorito, você”: um feriado para ter o tempo para si, ser soberano do próprio tempo, senhor da própria vida. Surpreso também com “quem eu quero ser tem que estar do seu lado”: muito bonito pensar que ‘não se é’ mas ‘se esforça para ser’ algo de interessante e, para tanto, estar ao lado de Soledad é fundamental, é belo, é necessário. Para ele, é possível ser quem ele deseja se ao lado dela: ele Gira, ela Sol.

Já me apaixonei ficando cego, bebê / Com você eu sonho de olho aberto / Quero amar e sempre ver de perto você / Vamos explorar Santa Cecília, bebê / Eu sigo você sossegado / Pode me seguir também, vou te fazer bem

Bonito pensar numa paixão às cegas, de olhos fechados como num sonho. Será que no sonho vemos mais de perto? e, ligando as duas partes da canção, se eles estão na moto amarela, ele pilota com ela na garupa, ela pilota com ele na garupa. Sobre a moto, piloto e garupa estão praticamente grudados, bem perto, garupa abraçado à pilota: “sigo você sossegado”.

Podemos curtir de mãos dadas / Você muda tudo, e tudo fica tão bem / Mil cores, melhores amigos / Nós não vamos mais ser tão sozinhos, bebê / Conto com você, pode contar comigo

Soledad acorda de um jeito, passa o dia de outro e anoitece uma terceira pessoa. Soledad é pura mudança. Já o rapaz, Gira, se adapta às mudanças de Sol, mexe, remexe, faz, refaz, satisfaz os caprichos dela. Ela, cantora. Ele, caprichoso dançarino. Sol de Maria seria “curtir de mãos dadas”, mas ela soltou as mãos dele: nem dança nem cantoria, nem garupa de moto amarela. A moto amarela foi encostada.

Bom pensar nas possíveis histórias de amor que uma canção pode embalar. BB (garupa da moto amarela), é uma canção de Tim Bernardes.


Ivan Rubens

publicado no Jornal Cidade de Rio Claro em 03 de setembro de 2023


Tim Bernardes
BB (garupa de moto amarela)


Enquanto houver Sol


Experiência: leia o texto ouvindo a canção.
É só clicar aqui: 




Vibra o aparelho celular, chegou uma mensagem: é uma foto belíssima, estética e simbolicamente. Ao olhar a fotografia, marcas de um passado recente se fizeram vivas na memória mas também se fizeram vivas no corpo, vivas no desejo. Ou seja, vibraram o corpo e a alma. Para alguns indígenas, “a alma é a parte invisível do corpo”, portanto a alma é corpo também. É a alma que viaja quando sonhamos, quando o corpo está repousando, o sonho é o passeio da alma, o sonho é o voo da alma. Nos sonhos, almas se encontram. Sonhar com alguém e ter encontro de almas.

A foto mostrava uma praia fluvial iluminada pelo sol poente. O sol no horizonte refletindo todo seu brilho amarelo meio fogo, meio puxando para o dourado, cor de fogo na água doce parada daquela pequena cidade na fronteira Brasil e Guiana Francesa.

Uma pessoa de luz própria, iluminada de sensibilidade, faz a fotografia. Na cena, tem um Sol ardendo em chamas. Tem a luz de Sol brilhando as águas doces de uma praia fluvial. Tudo isso no segundo plano, um plano de horizontes abertos. No primeiro plano a areia fina preenchendo todo o espaço entre a fotógrafa brilhante de olhar sensível até o ponto onde a lâmina d'água toca suavemente a superfície de areia fina.

Maria Bethânia canta: Eu vi um menino correndo / eu vi o tempo / brincando ao redor do caminho daquele menino. Linda composição da iluminada, da brilhante artista das imagens e dos sons. Uma outra canção aparece: Enquanto houver sol…

Quando não houver saída / Quando não houver mais solução / Ainda há de haver saída / Nenhuma ideia vale uma vida / Quando não houver esperança / Quando não restar nem ilusão / Ainda há de haver esperança / Em cada um de nós, algo de uma criança

Ainda na foto, exatamente na linha onde se encontram a água doce com a areia fina, uma criança de quase 4 anos está agachada sentindo nos pés a areia, e nas mãos a água doce. O menino belíssimo, brinca tranquilamente. Imaginem um menino bem no início, um menino que, apesar de amazônida, mostra certa fobia da areia nos pés. Um menino urbano que, apesar de amazônida, está absolutamente aprisionado no medo da água. Um menino amazônida que não toma banho de rio, tampouco brinca nas águas.

Quando não houver caminho / Mesmo sem amor, sem direção / A sós ninguém está sozinho / É caminhando que se faz o caminho / Quando não houver desejo / Quando não restar nem mesmo dor / Ainda há de haver desejo / Em cada um de nós…

Mas o desejo de sol ilumina um coração que, apaixonado pela vida, brinca com o menino belíssimo. Brincam de fazer massagem nos dedos dos pés com a areia do rio. Brincam com a água pelo vão dos dentes numa brincadeira de molhar os cabelos cacheados, lindos como o da mãe. Brincam no pneu que balança sobre o espelho d’água. Brincam o menino belíssimo e o coração iluminado de sol. Uma espécie de alfabetização aconteceu e a foto mostra o infante 'beníssimo' livre do medo, brincando peladinho nas águas do rio como um pequeno curumim.

Enquanto houver sol / Enquanto houver sol / Ainda haverá…

Coração iluminado de sol, coração à espera de sol, coração ardendo de sol. Enquanto houver sol é uma canção da banda Titãs.


Ivan Rubens
blogdoivanrubens.blogspot.com